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Ao final dos anos 1970, tornaram cada vez mais evidentes sinais de “esgotamento” dos
três grandes modelos historiográficos predominantes no período subseqüente à segunda
guerra mundial. A busca de novas formas de representação nas ciências sociais tem início
nessa quadra de 1970. A crise já vinha aparecendo em algumas ciências sociais vizinhas, a
começar pela antropologia. Não é de estranhar, portanto, que a influência dessa mudança na
antropologia tenha influenciado alguns intentos inovadores na historiografia.
O inegável progresso historiográfico alcançado no período de 1940 a 1970 levou afinal
a disciplina a um grau de desenvolvimento irreversível, mas dando sinais de saturação. O
abandono das fórmulas historiográficas mais influentes nos anos 1960 não foi seguido do
aparecimento de um novo paradigma abrangente. A multiplicidade de abordagens e práticas
metódicas caracteriza os anos 1980 e 1990. A maior parte das novas propostas, os esboços de
novos modelos historiográficos, concentram-se na apresentação de escritos de reflexão, de
fundamentação, de método e de teoria, quando não de exortação e normalização.
Nos anos oitenta constata-se uma mudança no panorama das tendências e ensaios no
campo da teoria e da pesquisa social em seu conjunto, incluída a historiografia em todas as
suas variações. O panorama ao final do séc. XX pode ser caracterizado das mais diversas
maneiras, mas certamente se impõe o aspecto de certa dispersão, rica em propostas
inovadoras, fértil em modismos e abundante em “releituras”. A época das grandes propostas
paradigmáticas, como as do marxismo, dos Annales e do quantitativismo estrutural, que se
estendeu dos anos 1940 até os 1980, cedeu à fase da crise dos paradigmas e da busca de
novas formas de investigação e de expressão. Assim, ao encerrar-se o séc. XX, a grande linha
de desenvolvimento que fez da história um inegável êxito cognitivo ao longo de mais de
cinqüenta anos, parece ter sofrido uma forte inflexão, da qual resultou a perda de atrativo da
história-ciência em benefício da história-ensaio.
No panorama de pesquisas aparentemente sem um norte definido emergem as buscas
conscientes de novos modelos historiográficos. A tendência, pois, a articular padrões
metódicos e bases teóricas abrangentes permanece um traço característico do esforço
científico. Três campos historiográficos podem servir de exemplo dessa busca renovada de
recentrar o objeto e o modo de o trabalhar. Um é o da chamada microhistória, cujo objetivo,
entre outros, foi o de promover a volta do sujeito individual do histórico. Outro é o da nova
história cultural, que incorpora as questões da representação e das formas lingüísticas de
apreensão do mundo pelo sujeito individual ou coletivo. Um terceiro corresponde a uma
forma de ressurgimento da história social e da sociologia histórica, que se rotula de ciência
histórica sócio-estrutural.
O último quartel do séc. XX apresenta-se, em dúvida, como uma fase de grandes
mudanças. Mudanças econômicas e políticas, mas igualmente mudanças do padrão metódico
do conhecimento científico do homem e de seu agir. A evolução das ciências sociais inclui a
historiografia que se formou entre os três grandes paradigmas do século: a dispersão algo
narcisista dos Annales e de seus seguidores, o escolasticismo dogmático do marxismo
(influente nas ciências sociais em geral) e o controvertido quantitativismo (também presente
em outras ciências sociais). Formaram-se assim os descontentamentos com o que a
historiografia vinha produzindo, de que é exemplo o intenso e algo disparatado debate sobre o
pós-modernismo.
Ninguém contesta, por certo, que essas três grandes concepções da historiografia (em
parte rivais), assim como suas bases crítica e técnica, deixaram ao menos um legado relevante
e impossível de ignorar para qualquer progresso ulterior. Pretender abstrair delas é tão frívolo
quão pouco plausível. No entanto, na historiografia contemporânea continuam existindo não
poucos trabalhos que contêm fortes traços tradicionais da história “exemplar”, descritora dos
“bons” temas, fornecedora das análises “certas” e propositora da explicação “correta”.
Sob a influência geral de uma atitude intelectual e artística nova, ampla e difusa, de
uma sensibilidade cultural conhecida como pós-modernismo, a concepção da velha disciplina
historiográfica parece ser arrastada para a uma espécie de criação literária, análise semiótica,
exploração microantropológica, em direção a um relativismo geral que rejeita as pretensões
anteriores de encontrar “explicações”, mais ou menos apoiadas em teoria, do movimento
histórico. A nova forma apropriada do discurso histórico seria, por conseguinte, de acordo com
esses pontos de vista, a narrativa, na sua mais simples expressão de relato. A crise produziu, ao
que parece, no mundo da historiografia, dois tipos de realidade. Uma delas é desvalorização
dos fundamentos anteriores da prática do historiador, em função da qual se produziram
buscas por caminhos externos à própria historiografia: a recepção da problemática pós-
moderna em geral se encontra nessa ordem de reação. Outra é a resposta à crise produzida
desde o próprio seio da historiografia e com seus próprios instrumentos, dada por
historiadores mais imunes às influências externas, buscando “novas” concepções e campos da
pesquisa histórica, dado o esgotamento dos antigos.
No primeiro conjunto de respostas é difícil — pelo menos atualmente — ver mais do
que “revisões”, “releituras”, ou lampejos efêmeros, importados, produtos uma vez mais da
influência de modismos ou mesmo de tendências mais duradouras, mas pouco praticantes do
método disciplinar historiográfico, de cunho ensaístico. São as orientações pós-modernas. O
segundo conjunto de respostas, produto da própria reflexão historiográfica, mas que recebeu
também não poucas críticas externas, acarretou o aparecimento de propostas pragmáticas
para novos enfoques da historiografia: enfoques temáticos, metodológicos, que assumem de
novo traços de outros campos de investigação. Três dessas propostas merecem, seguramente,
consideração especial: a da micro-história, a da história sócio-estrutural e a da história sócio-
cultural.
O paradoxal, neste caso, é que uma disciplina como a historiografia, na qual a
“teorização” do objeto sempre foi extremamente tênue, tenha visto nos anos 1980 o
surgimento de uma forte tendência “antiteórica”. Isso não pode ser mostra de cansaço ou
esgotamento quanto a uma reflexão pouco praticada, ao menos pouco sistematizada. Antes,
trata-se de uma evidência da pouca solidez teórica da história. Uma matriz disciplinar
insuficientemente assentada levou à rejeição da história “naturalizada”, cujo decalque do
modelo das ciências naturais havia conduzido a histórias “problemáticas”, o que por sua vez
levou à valorização do “contar histórias”, quase sem compromisso com garantias de verdade
ou mesmo apenas verossimilhança, refugiado na liberdade literária. O pós-moderno construiu
seu (relativo) sucesso sobre a crítica ao modelo racionalista, identificado com o projeto da
modernidade, no formato do despotismo metódico tardio do séc. XIX. Seu equívoco, que
transparece no final dos anos 1990 sob a forma de desencanto com os resultados obtidos, foi o
de ter confundido a concepção de razão iluminista com a faculdade racional humana de
reflexão crítica e de promoção do agir. A dispersão decorrente da nova liberdade plena de
estilo teve duas conseqüências nefastas para a especificidade historiográfica. Uma foi a
dissolução da abordagem histórica, sua instrumentalização pelas demais áreas de
conhecimento. O segundo efeito consistiu numa perda de consistência da historiografia como
fator explicativo da realidade social, cuja consistência era (e é) esperada tanto pelos estudiosos
quanto pelos integrantes das respectivas comunidades, a partir de cujo passado se conta
poder construir uma explicação consistente do presente e uma intelecção útil do futuro.
No último quartel do século 20 duas são as tendências mais marcantes e cuja
identificação apresenta menos dificuldades para a historiografia: o abandono das posições
marxistas e a influência polivalente da análise da linguagem. Em parte essa evolução se deve
ao abalo causado pela crítica pós-moderna, que mostrou o quão frágeis eram as pretensões
uniformizadoras dos modelos anteriores e chamou a atenção para a diversidade cultural
multifacetada das idéias e as ações humanas.
Certas dimensões da posição pós-moderna influíram nas concepções gerais das
ciências sociais, de forma que essa influência pode ser tida como um dos ingredientes mais
fortes da “crise” por que passam estas. O pós-modernismo foi alimentado pela obra de alguns
ensaístas sobre a cultura, filósofos, teóricos da literatura, lingüistas e antropólogos. Sua
influência sobre o pensamento historiográfico é inegável, sobretudo na concepção do
“discurso historiográfico”. A análise crítica da incidência pós-moderna na prática e na reflexão
historiográfica contemporânea não é tarefa fácil por causa da heterogeneidade desta corrente
de pensamento.
É, no entanto, indiscutível que o debate relativo ao significado da história e acerca da
natureza da “escrita da história”, incentivado pelo pós-modernismo, está estreitamente
relacionado com a questão de nossa “representação lingüística” do mundo, tomando como
ponto de partida o que a filosofia contemporânea convencionou chamar de “giro lingüístico”.
Isso se reflete na preocupação com as formas da linguagem humana como definidoras da
“realidade” e com a manifestação intelectual que veio a chamar-se de “pensamento fraco” e
que impregna de alguma maneira o pós-modernismo em seu conjunto. O correto parece, pois,
deter-se no giro lingüístico aparecido no pensamento filosófico em meados dos anos 1960.
O assunto que importa aqui especialmente é o da “explicação do mundo” como
resultado da linguagem com que tentamos captá-lo e que foi muito além do estrito âmbito
filosófico em que surgiu, atingindo a prática do campo completo das ciências humanas e
sociais, incluindo por certo a historiografia. A análise da linguagem conduzira à análise do
discurso, e desta à análise da escrita da história como uma forma de discurso. Essa forma
especial que é a história escrita foi tratada dentro do problema geral da natureza e do
significado da linguagem. O que o discurso, o texto, a escrita são, com relação à linguagem, nos
remete ao problema do que tais coisas significam na intelecção do passado.
A escrita da história também ocupou lugar nas preocupações da lingüística pós-
estruturalista e do desconstrucionismo, uma das variantes da primeira, que fala da
necessidade de descodificar todo texto. É evidente que a discussão da natureza da linguagem
humana, e a dos textos escritos, e de seu alcance exato para explicar o homem, têm certa
incidência sobre a concepção do histórico e, consequentemente, sobre a idéia do que consiste
a prática historiográfica. O desconstrucionismo apareceu, em certas ocasiões, como a
expressão mais acabada desta ideologia do pós-modernismo como teoria da linguagem e da
representação — ou de sua impossibilidade — mediante a linguagem. A questão é que o
desconstrucionismo atinge a noção de “fonte histórica” e a idéia mesma da possibilidade da
transmissão da imagem histórica. Afeta medularmente também a concepção habitual de
“objetividade” do conhecimento expresso por uma linguagem. O desconstrucionismo implica,
em suma, a não-diferença entre realidade e linguagem: todo o real, para o ser, tem de estar
elaborado como linguagem.
Mas se bem podemos falar de uma especulação filosófica e lingüística sobre a
historiografia a partir das posições do pós-modernismo, é mais difícil fazê-lo a partir de uma
produção historiográfica específica que se possa chamar de pós-moderna. Não obstante, a
influência cultural de tal forma de pensar deixa seqüelas claras, como propugnadora da morte
da teoria. Uma historiografia pensada pelo pós-modernismo condena definitivamente o
marxismo. Isso foi perfeitamente entendido por F. Jameson, ao qualificar o pós-modernismo
como mais um dos produtos culturais emblemáticos do capitalismo tardio. É por isso que
parece estranho que, enquanto os pós-modernos recomendam e louvam a morte da teoria,
precisamente os fundadores da teoria crítica literária, à qual se filia boa parte das idéias pós-
modernas, defendem uma “teoria da criação”. Nesse meio tempo, a crítica literária pós-
moderna, que antes sustentava coisas do tipo “a claridade é uma forma de opressão fascista”,
volta a recomendar a leitura dos textos “referenciados” ao mundo exterior.
Até que ponto esse complexo de atitudes pós-modernas afetou a historiografia ainda
está por ser avaliado, como afirmou Jörn Rüsen. De imediato, isso significa o abandono de
duas idéias tipicamente modernas acerca da história: a de que esta abarca todo o
desenvolvimento temporal e a de que seu curso é o progresso da racionalidade. Por outra
parte, o pós-modernismo é também uma demissão, com sua rejeição de toda teoria —
especialmente do marxismo — sob o disfarce de buscar novas aproximações da ação humana.
Para o pós-modernismo, alguém teria inventado — indevidamente — a idéia de que é possível
“explicar” algo.
4. Novos modelos de historiografia?