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e os primórdios
da tv no Brasil
Marialva Carlos Barbosa
Seis anos antes da instalação das primeiras emissoras no país, a TV Tupi Di-
fusora de São Paulo e a TV Tupi do Rio de Janeiro, observa-se nos anúncios publi-
citários, nas matérias publicadas nos jornais diários, nas revistas antes destinadas
exclusivamente a publicar notícias sobre o rádio, a formação de um imaginário
tecnológico sobre a televisão, que a apresenta de múltiplas formas.
Tecnologia que insere, definitivamente, o país na modernidade; possibilida-
de decorrente da capacidade inventiva do homem; ampliação da reprodução sobre
a forma de verdade das imagens do mundo; meio mais completo do que a radio-
telegrafia, que permitiu a eclosão das ondas sonoras nos espaços domésticos: essas
são algumas das formas com que se caracteriza o novo meio. Imersa numa imagem
de sonho, na qual aparece materialmente como próximo ao rádio e ao cinema,
um misto dos dois, a televisão antes de ser materialidade povoou o imaginário
da população, criando o que estamos chamando de uma imaginação televisual.
Essa imaginação permite a construção material do meio como um híbrido
entre o rádio e o cinema e a sua instauração num lugar simbólico, como veremos ao
longo deste capítulo, que multiplica as faces desconhecidas e torna os acontecimen-
tos do mundo ainda mais próximos. Dependente diretamente de um imaginário
tecnológico que, também no Brasil, se formou gradativamente desde os primeiros
anos do século xx, quando inúmeros artefatos imagéticos, sonoros e motores in-
vadiram o cotidiano do público, a televisão exacerbou a imaginação em torno das
possibilidades de reprodução em imagens do que era captado pelo olhar humano.
Com a moderna tecnologia da eletrônica, as imagens em movimento, prerrogati-
va dos que saíam do espaço privado para os lugares públicos de exibição cinema-
tográfica, passam a ser possíveis de serem disponibilizadas no espaço doméstico.
A rigor, a imaginação tecnológica, em torno dos meios de comunicação,
seria exacerbada já na década de 1920, quando se criou a possibilidade de ouvir
os sons do mundo através de um transmissor que emitia, também no espaço da
casa, as chamadas ondas hertzianas. A radiodifusão despertou, ainda, as potencia-
lidades inventivas de muitos que procuravam se aproximar do novo meio cons-
truindo, a partir dos mais diferentes artefatos, transmissores artesanais através
dos quais escutavam sons do mundo.1 Muitos podiam ser (e eram) inventores de
aparelhos que permitiam a recepção das ondas sonoras.
Na década seguinte assistiu-se a popularização do rádio e, nos anos 1940,
quando o país se preparava para adensar aquela que conceituamos como sua pri-
meira modernidade,2 começam a aparecer na imprensa encenações em torno de
outro artefato tecnológico doméstico que colocaria definitivamente as imagens
do mundo ao alcance do público na sua sala de visita. Muitos já “ouviam falar de
televisão, mesmo antes de ver a televisão”.3
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zava emissões experimentais desde abril daquele ano. As imagens, nesses primór-
dios, não ultrapassavam o saguão do prédio dos Diários Associados, localizado na
rua 7 de Abril, em São Paulo, onde havia alguns aparelhos instalados. Em 10 de
setembro, ainda na fase experimental, vai ao ar um filme em que o ex-presidente
Getúlio Vargas fala de seu retorno à vida política.
No dia 18 de setembro de 1950, a cerimônia de inauguração, ainda sem ser
transmitida, começa às cinco da tarde. Às sete horas descobre-se um defeito em
uma das três câmeras, o que faz com que o show inaugural só começasse a ser
transmitido após as oito horas. Durante o discurso na cerimônia, Chateaubriand
destaca a ação de quatro empresas que, com recursos publicitários, tornaram pos-
sível o custoso empreendimento: a Companhia Antarctica Paulista, o grupo Sul
América Seguros, o Moinho Santista e a Organização Francisco Pignatari, fabri-
cante da Prata Wolff.
Nesse pequeno trecho, duas indicações: em primeiro lugar, o dono dos Asso-
ciados remarca que as ações no sentido de implantação da tv no país se iniciaram
em 1946, ou seja, quatro anos antes daquela data. Em segundo lugar, que “o
empreendimento” televisão fora dispendioso, já que eram quatro dos maiores
anunciantes dos anos 1950 que subsidiavam a iniciativa. Destacando a importân-
cia da adesão de primeira hora, o proprietário dos Diários Associados continua
realçando a importância de ter conseguido montar as emissoras com recursos de
empresas nacionais.
Este transmissor foi erguido, pois, com a prata da casa; isto é, com os re-
cursos de publicidade que levantamos sobre a prata Wolff e outras não menos
macias pratas da casa: a Sul América, que é o que pode haver de bem brasilei-
ro; as lãs Sams, do Moinho Santista, arrancadas ao coro das ovelhas do Rio
Grande e, mais que tudo isso, ao Guaraná Champagne da Antarctica, que é a
bebida dos nossos selvagens, o cauim dos bugres do Pantanal mato-grossense
e de trechos do vale amazônico.6
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Atentai bem e vereis como é mais fácil do que se pensa alcançar uma
televisão: com prata Wolff, lãs Sams, bem quentinhas, Guaraná Champagne,
borbulhante de bugre e tudo isto bem amarrado e seguro na Sul América,
faz-se um bouquet de aço e pendura-se no alto da torre do Banco do Estado
um sinal da mais subversiva máquina de influir na opinião pública – uma
máquina que dá asas à fantasia mais caprichosa e poderá juntar os grupos
humanos mais afastados.7
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res e lojas de São Paulo. O alcance limitado da transmissão – cerca de cem qui-
lômetros – também fez com que as imagens pudessem ser vistas por não mais do
que um punhado de pessoas.8
No Rio de Janeiro, a emissora, com apenas duas câmeras e um estúdio pe-
queno, ocupava o quarto andar do prédio da avenida Venezuela, 43, na praça
Mauá, onde funcionavam as rádios Tupi e Tamoio, também do grupo Associados.
Para os que viveram a experiência pioneira, essa foi uma das razões para que desde
este momento algumas transmissões do Canal 6 do Rio de Janeiro tenham sido
feitas das ruas, transmitindo-se espetáculos tais como eram encenados nos teatros.
Também a proibição dos cassinos levou muitos dos grandes astros que se apresen-
tavam nos três cassinos do então Distrito Federal a procurar na televisão um novo
lugar para apresentar seus dotes artísticos, juntando-se aos novos diretores, atores,
cenógrafos e outros profissionais.
Loredo destaca também as dificuldades iniciais da TV Tupi do Rio de Ja-
neiro decorrentes da falta de estrutura, como a ausência de estúdios adequados.
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Apesar disso, os anos 1950 seriam marcados também pela expansão da tele-
visão como uma rede de imagens nas principais cidades do país: de 1955 a 1961
são inauguradas 21 novas emissoras. Em 1955, começa a funcionar a TV Itaco-
lomi (de Belo Horizonte). Quatro anos depois é a vez da TV Piratini (de Porto
Alegre) e a tv Cultura (de São Paulo). Em 1960, são inauguradas a tv Itapoan
(de Salvador), tv Brasília, tv Rádio Clube (de Recife), tv Paraná, tv Cea-
rá, tv Goiânia, tv Mariano Procópio (de Juiz de Fora), Tupi-Difusora (de São
José do Rio Preto). E, no ano seguinte, seria a vez da tv Vitória, tv Coroados,
tv Borborema (de Campina Grande), tv Alterosa (de Belo Horizonte), tv Baré,
tv Uberaba, tv Florianópolis, tv Aracaju, tv Campo Grande e tv Corumbá.
Mas mesmo antes dessa explosão inicial, a televisão já fazia parte do coti-
diano do público como imaginação. Antes de ser imagem, como expectativa, a
televisão já estava colocada definitivamente na sala de visitas do público.
O anúncio do novo artefato tecnológico, cujo uso ainda era experimental, en-
cena uma expectativa em relação aos modos de ver televisão que a coloca definitiva-
mente na sala de visitas dos que inicialmente serão chamados de “telespectadores”.
A ideia de comodidade se sobressai em muitas das reproduções e nos textos que infor-
mam as possibilidades tecnológicas do novo “invento revolucionário da eletrônica”.
Ainda que em relação à televisão, diferentemente do que acontecera com o
rádio, a complexidade técnica impedia o exercício do “saber-fazer”,12 não havendo
possibilidade de os novos receptores serem construídos de maneira artesanal, ha-
via mesmo antes de sua materialização uma designação prévia dos modos de ver e
dos conteúdos que poderiam ser considerados relevantes para o potencial público.
Muitas décadas ainda seriam necessárias para que fosse possível a gravação
de externas, mas o anúncio de Seleções refere-se, sobretudo, às imagens de um
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Acervo da Biblioteca Nacional
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neira coletiva, ao redor de uma plateia cada vez mais vasta, parece ser o imperativo
com que se imagina a possibilidade receptiva do meio.
Num cenário semelhante a uma sala de projeção cinematográfica, abria-se a
cortina e, no vazio, aparecia a imagem de um receptor: uma caixa de madeira, com
uma tela ovalada, na qual uma imagem de mulher domina a cena. Na plateia, o
público, disposto como num cinema, senta-se lado a lado e olha fixamente o novo
aparelho que atesta definitivamente a entrada do país noutro tempo. Risonhos,
boquiabertos, homens e mulheres formam uma espécie de massa amorfa (todos
aparecem no desenho com um rosto semelhante e com nenhuma qualidade in-
dividual) pouco familiarizada com o novo artefato tecnológico. Mais uma vez, a
suposição era de que a televisão deveria ser vista de maneira coletiva, agora não
mais na sala de visitas, mas em lugares previamente montados para a sua recepção:
a televisão era apresentada definitivamente como uma espécie de outro cinema.
Complementando a imagem, o texto dizia:
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Televisão:
o “brinquedo mais fascinante do século xx”
Aqueles que só tinham, até então, ouvido falar de televisão (até porque o
rádio era o meio de massa por excelência, através do qual o público buscava infor-
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um público mais apaixonado, talvez, que aquele que consagrou nomes como
Silvio Caldas, Ary Barroso, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Dircinha
e Linda Batista, Araci de Almeida e tantos outros igualmente famosos da
rádio brasileira.23
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Bibi Ferreira raptada por um chofer de praça. Que diria a leitora se,
ao tomar um táxi, fosse desviada de seu caminho e levada para um distante
bairro da cidade? Todos os casos de tarados, certamente, desfilariam em sua
cabeça e o susto não haveria de ser pequeno. Foi o que aconteceu com Bibi
Ferreira quando, ao tomar um táxi em São Paulo, foi reconhecida pelo chofer
e levada para vila Mariana, onde toda uma família, inclusive televizinhos, foi con-
vocada pelo ardoroso fã, para festejar sua presença. O moço era um telespectador
assíduo dos programas da tv Difusora, onde a querida atriz estreava pouco
tempo antes, e não quis perder a oportunidade de externar o seu entusiasmo.
Depois de várias temporadas, Bibi conseguiu popularidade com apenas algu-
mas apresentações em televisão.27
Desde menina sempre pensara em teatro. Sempre desejara ser uma atriz
grande, que dominasse as plateias. Fez sua estreia como Dulcina – um curto
papel, e depois outro. Mas devia sair do palco para tomar parte no brinquedo
mais fascinante do século xx: a televisão. O talento, a beleza, e, sobretudo, a juven-
tude da moça da televisão, aquela que nascera para o estrelato quase ao mes-
mo tempo em que a magia da imagem entrava nos anos brasileiros, que era fas-
cínio para os jovens que a viam e a adoravam à distância, era algo imperecível.28
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Notas
1 Ver Michele Vieira, De inventores a ouvintes: o rádio no imaginário científico e tecnológico (1920-1930), Niterói,
2010, dissertação (mestrado em Comunicação), uff.
2
Ver Marialva Barbosa, “Imprensa e encenações de modernidade no início da República”, em Revista Vivência,
Natal, ufrn, 2010.
3
O Cruzeiro, 23 set. 1950.
4
Ver Sérgio Mattos, História da televisão brasileira, Petrópolis, Vozes, 2002.
5
Discurso de Assis Chateaubriand durante inauguração da TV Tupi Difusora de São Paulo, disponível em
<http://www.telehistoria.com.br/canais/emissoras/tupi/tupi5.htm>, acesso em 5 abr. 2010.
6
Idem.
7
Idem.
8
Ver Sandra Reimão (org.), Em instantes: notas sobre a programação na tv brasileira (1965-1995), São Paulo, Cabral
Editora Universitária, 1997.
9
Ver João Loredo, Era uma vez... a televisão, São Paulo, Alegro, 2000, p. 5.
10
Sérgio Mattos, op. cit., p. 80.
11
Anúncio “A eletrônica trará a televisão ao nosso lar”, em Seleções do Reader’s Digest, jan. 1944, grifo nosso.
12
Ver Beatriz Sarlo, Paisagens imaginárias, São Paulo, Edusp, 2005.
13
Ver Philippe Berton, L’Utopie de la communication, Paris, La Découverte, 1997.
14
Paul Ricoeur, Ideologia e utopia, Lisboa, Edições 70, 1991, pp. 451-2.
15
Seleções do Reader’s Digest, op. cit., grifos nossos.
16
Anúncio “Você já ouviu falar. Agora vá ver televisão”, em O Cruzeiro, 29 set. 1950.
17
Ver Raymond Williams, Towards 2000, London, Penguin Books, 1985.
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18
Ver Raymond Williams, Marxismo e literatura, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1979.
19
Conforme Cora Kaplan, “What We Have Again to Say: Williams, Feminism and the 1840s”, em Christopher
Prendergast (ed.), Cultural Materalism: on Raymond Williams, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1995.
20
Ver Raymond Williams, op. cit., 1985.
21
Idem, p. 188.
22
“A moça da televisão: o trágico destino de Sonia Ketter”, em O Cruzeiro, n. 21, p. 11, jan. 1952.
23
Radiolândia, n. 2, jan. 1954.
24
“A tv cria ídolos”, em Radiolândia, op. cit., grifos nossos.
25
“Televisolândia”, em Radiolândia, op. cit.
26
“A moça da televisão: o trágico destino de Sonia Ketter”, op. cit.
27
“Televisolândia”, em Radiolândia, op. cit., grifos nossos.
28
“A moça da televisão: o trágico destino de Sonia Ketter”, op. cit.
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