«Num livro polémico e inovador, Luc Ferry, á maneira de um ensaísta, procura reflectir sobre o caos moderno (...) oferecendo as suas ferramentas teóricas tanto ao homem de acção como ao cidadão comum." Le Nouvel Observateur
«A filosofia seduz o grande público. Este pedagogo ímpar utiliza a sua erudição ao serviço do saber-viver e do saber-estar. Lendo esta obra (...) aprendemos a pensar e a organizar o nosso raciocínio.» Le Fígaro
«Num livro polémico e inovador, Luc Ferry, á maneira de um ensaísta, procura reflectir sobre o caos moderno (...) oferecendo as suas ferramentas teóricas tanto ao homem de acção como ao cidadão comum." Le Nouvel Observateur
«A filosofia seduz o grande público. Este pedagogo ímpar utiliza a sua erudição ao serviço do saber-viver e do saber-estar. Lendo esta obra (...) aprendemos a pensar e a organizar o nosso raciocínio.» Le Fígaro
«Num livro polémico e inovador, Luc Ferry, á maneira de um ensaísta, procura reflectir sobre o caos moderno (...) oferecendo as suas ferramentas teóricas tanto ao homem de acção como ao cidadão comum." Le Nouvel Observateur
«A filosofia seduz o grande público. Este pedagogo ímpar utiliza a sua erudição ao serviço do saber-viver e do saber-estar. Lendo esta obra (...) aprendemos a pensar e a organizar o nosso raciocínio.» Le Fígaro
«Famílias! Odeio-vos! Lares herméticos; portas trancadas; possessões ciumentas da felicidade.» André Gide, Os Alimentos Terrestres Comecemos por uma constatação banal: o medo tornou- se, como já se terão apercebido, uma das paixões dominantes das sociedades democráticas. Para dizer a verdade, temos medo de tudo: da velocidade, do álcool, do sexo, do tabaco, da costeleta de vitela, das deslocalizações, das ONG*, do efeito de estufa, dos frangos, dos micro-ondas, do dumping social, da precariedade, da Turquia, do Presidente americano, da extrema-direita, das periferias, da mundialização, para mencionar apenas alguns. Todos os anos, um novo medo é acrescentado aos anteriores — no próximo ano, posso até apostar que será a vez das nanotecnologias, pois já as utilizam para fazer cremes solares —, o que provoca uma verdadeira proliferação das angústias. No que me diz respeito, confesso que comecei a ficar preocupado quando assisti em 2003, em França, às manifestações dos jovens em defesa... das suas reformas! O mais espantoso é que o governo ao qual eu pertencia tinha apenas um objectivo: salvá-los! O que se estava a passar era muito simples e fácil de entender: devido ao aumento da esperança de vida, para pagar as pensões dos idosos era necessário ou aumentar o tempo dos descontos ou o seu montante, ou mesmo ambos, caso contrário o peso do financiamento dos seniores iria cair sobre os ombros das gerações futuras. Ora eram precisamente os jovens, ou pelo menos as organizações que supostamente os representavam, que tinham ido para a rua manifestar-se... Independentemente da sua irracionalidade, esta reacção revelava algo de profundamente perturbador para alguém como eu, que iniciara os estudos em 1968. Na minha geração, os estudantes tiveram de facto a oportunidade de manifestar- se por tudo e por nada, por mais absurdo que fosse — mas nunca pela defesa das suas reformas. Da extrema-direita à extrema-esquerda, esta ideia nunca teria sequer passado pela cabeça de um indivíduo com menos de quarenta anos, nem mesmo em sonhos. Não digo que antes fosse melhor, e muito menos idealizo a década de 1960: o fascínio por Mao ou Castro não revelava grande vivacidade e, em geral, a juventude de hoje, defensora da ecologia e dos Direitos do Homem, está bem menos perdida do que a da minha geração. Apenas digo que algo mudou. E tento perceber o que terá sido. Segundo choque: algumas das organizações de estudantes decidiram manifestar-se contra o «LMD» — licenciatura, mestrado e doutoramento — ou seja, traduzindo a gíria das administrações, contra a harmonização dos diplomas universitários europeus. No entanto, esta medida permite a qualquer estudante que deseje ter um espírito mais aberto iniciar, por exemplo, os seus estudos em Paris, prossegui-los em Roma, Madrid ou Berlim e, se assim o desejar, terminá- -los em Toulouse sem prejudicar o seu curso devido às temporadas que passou fora do seu país. Trata-se pois de uma excelente oportunidade que, objectivamente, só possui vantagens e não apresenta qualquer inconveniente. Perguntamo- -nos uma vez mais o que poderia motivar a hostilidade das organizações de estudantes de esquerda e de extrema-esquerda. Respondem-nos: o medo, mais concretamente o medo da aventura, é claro, e de facto têm razão. Mas a explicação é demasiado simplista. Afinal, os nossos antepassados já tinham medo de que o céu lhes caísse em cima da cabeça e, regra geral, o medo do desconhecido ou da mudança é, sem dúvida, o mais antigo e o mais comum do mundo. Não temos pois aqui nada de novo. O que é inédito não é o medo enquanto tal, mas o facto de as nossas sociedades o desculpabilizarem incessantemente transformando-o numa paixão positiva, num factor de prudência ou mesmo de sabedoria. Simplificando: ensinava-se às crianças da minha geração que o medo era um sentimento pouco digno e que tornar-se adulto era essencialmente conseguir vencer os seus receios. Tanto na escola como em casa, repetiam constantemente que um «rapaz crescido não tem medo». Ser «grande» era deixar de ter medo do escuro, atrever-se a deixar os pais para viajar, ter coragem de defender uma pessoa fraca alvo de agressão no comboio ou no metro... Enfim, o medo era apreendido essencialmente como algo negativo. Ora, no final do século xx, com a união do pacifismo e da ecologia radical, assistimos a uma mudança total de perspectiva: longe de ser entendido como um sentimento infantil e um tanto ou quanto lamentável, o medo, tal como afirmou o filósofo alemão Hans Jonas, adquiriu uma função «heurística». Ou seja, alcançou o estatuto de poderoso motor de descoberta, revelando- se não só um factor de prudência, mas sobretudo de conhecimento. Segundo esta nova ideologia, é graças a ele que tomamos consciência de que o nosso mundo está ameaçado pelo desenvolvimento industrial moderno, e é também através dele que nos tornamos, como aconteceu com tantos jovens na Alemanha da década de 1970, «militantes da paz» animados pelo famoso slogan lieber rot als tod, «antes vermelho que morto»... Quando os valores transcendentes se esbatem, centramo-nos apenas nas exigências da vida e estas primam sobre qualquer outra consideração. Desde então, a desculpabilização do medo nunca parou de fazer «progressos », ao ponto de esse sentimento, outrora ridicularizado, ter adquirido o estatuto de paixão política eminente. Hoje, a angústia já não envergonha ninguém, até se leva a tiracolo. Ao longo dos dois anos do meu ministério — e afirmo-o aqui sem ironia nem exagero — não recebi uma única delegação sindical sem que a primeira frase não fosse invariavelmente: «Senhor Ministro, estamos muito preocupados...» Como se a preocupação fosse por si só um primeiro passo para a inteligência, um primeiro degrau para o famoso «princípio da precaução»... Em contrapartida, temos de confessar que o poder, também ele, está petrificado de angústia. Antes de cada reforma, tacteia-se o terreno, tal como os banhistas que provam a água com a ponta do pé com pusilanimidade. Se estiver gelada, fogem a sete pés. Se o líquido não estiver demasiado hostil, avançam passo a passo até à cintura e à primeira on- dinha inoportuna recuam. O resultado desta situação é trágico: a impotência pública é tal que as nossas democracias acabam praticamente por ficar paralisadas. Tal como afirmavam Hobbes e Maquiavel, o medo tem tendência a tornar-se a «paixão mais comum» e isso não anuncia nada de bom. Daí a questão que anima este livro: de onde surge esse medo, desculpabilizado e paralisante, e como poderemos finalmente libertar-nos dele, ou, melhor dizendo, como fazer dele senão um inimigo irredutível, pelo menos um aliado — à semelhança do judoca que consegue utilizar em benefício próprio a força do seu adversário? Para além dos motivos económicos e sociais geralmente evocados — o receio de perder o emprego ou a casa, a ameaça do dumping social e da precariedade relacionados com a mundialização —, que apesar de bem reais nos impelem muitas vezes a agir contrariamente ao que seria desejável (o medo é mau conselheiro), é preciso ter em conta o conjunto da situação histórica em que nos encontramos hoje no plano intelectual e moral. A meu ver, podemos defini-la em três palavras cuja explicitação e análise constituem a trama deste livro: desconstrução, despossessão, sacralização. As duas primeiras explicam o estado de depressão em que nos encontramos. A terceira indica as vias que permitem ultrapassá-lo. Voltemos atrás para melhor esclarecer o propósito antes de o aprofundar. Desconstrução (Capítulo I). Não se cansam de dizer e repetir: o século xx age como um ácido. Os princípios de sentido e de valor que formavam os cenários tradicionais da vida da grande maioria dos homens desmoronaram-se ou, pelo menos, esbateram-se. Daí a confusão gerada pela proliferação e pela desculpabilização dos medos que atrás evoquei e cuja natureza iremos aprofundar. Com efeito, não basta lastimar, como muitas vezes fazemos, a «perda de referências », estigmatizar a falta de cultura clássica dos jovens ou lamentar a «deserção cívica» e o declínio da moral comum. Mesmo admitindo a existência destes fenómenos — o que ainda está por provar pois muitas vezes determinadas regressões dissimulam a emergência de novos progressos —, não podemos cingir-nos apenas aos sintomas. Temos de interrogar- nos também sobre as suas causas, sobre a origem profunda das transformações cuja responsabilidade não devemos imputar injustificadamente aos recém-chegados. Não houve nestes últimos tempos, pelo menos que eu tenha conhecimento, nenhuma mutação genética no seio da humanidade, sendo pouco provável que os nossos filhos se tenham tornado subitamente diferentes de nós como um certo tipo de discurso conservador parece defender. Sim, na verdade, o último século foi votado à «desconstrução» das tradições e à escalada do individualismo — o que no fundo vai dar ao mesmo —, mas resta-nos compreender porquê e também tentar perceber se essa evolução dos hábitos e das mentalidades trouxe algo de novo e, se for esse o caso, se isso foi positivo. Voltaremos a esta questão. Todavia, numa primeira aproximação podemos considerar como hipótese plausível que o desgaste das tradições — quaisquer que sejam a longo prazo as suas eventuais repercussões benéficas — tem como efeito imediato despoletar a angústia. Sobretudo porque esta erosão é acompanhada de um fenómeno objectivamente preocupante: a perda de controlo sobre o curso da história, que, devido à mundialização da competição capitalista, tende de dia para dia a escapar à nossa vontade. Despossessão (Capítulo II). O regresso em força dos mitos de Frankenstein e do aprendiz de feiticeiro revelam muito sobre o mecanismo deste princípio: desde os tempos mais remotos, estes contos filosóficos falam-nos de despossessão. Relatam-nos a história aterradora de uma criatura que escapa ao controlo do seu criador e ameaça devastar a Terra. Ora, estes mitos regressam hoje para assombrar incansavelmente os nossos espíritos quando se trata de descrever certos aspectos da «globalização»: mercados financeiros, deslocalizações, Internet, manipulações genéticas, ONG, efeito de estufa... À semelhança das imagens veiculadas pelas fábulas, estes produtos da actividade humana escapam pouco a pouco ao controlo da espécie que os criou e que fica assim des- possuída daquilo que engendrou. Tal como o grão de milho transgénico que um pássaro ou um ratinho transporta de um campo para o outro e que ameaça escapar à vigilância dos homens propagando-se ilimitadamente, o curso do mundo é cada vez menos controlado por aqueles que ainda são denominados, como que por ironia, os «dirigentes». Se temos a impressão de que cumprem pouco ou mal as suas promessas — proteger o planeta, dar realidade ao ideal de uma igualdade de oportunidades, acabar com o desemprego, reduzir o défice, relançar o crescimento, etc. — isso deve-se não tanto a uma falta de coragem ou de palavra mas mais à impotência face a uma realidade que escapa constante e claramente à sua vontade. Deste modo, parece que é a própria democracia no seu princípio que está a ser traída: prometeu aos homens a possibilidade de fazerem a sua própria história, ou pelo menos de participarem nela — e é precisamente essa promessa que se estilhaça sob os golpes da mundialização liberal. Filosofia da liberdade por excelência, o liberalismo apostava em tornar os seres humanos cada vez mais responsáveis. Ora, é a própria vitória — visto que a mundialização é pela sua essência liberal — que conduz pouco a pouco à criação de seres desprovidos de qualquer poder real sobre o curso do mundo e, por esse mesmo motivo, desresponsabilizados como nunca, pelo menos no nosso curto passado democrático. Esta atmosfera intelectual tão característica dos nossos tempos não possui, tanto quanto eu saiba, qualquer precedente na história da humanidade. Como e por que razão chegámos ao ponto de pôr em causa os princípios que, há dois séculos, nos pareciam fundadores da civilização europeia moderna? Não há dúvida de que estamos a viver uma verdadeira alteração histórica. Para melhor nos apercebermos disso, basta comparar o pensamento actual ao da época das Luzes. Pensemos, por exemplo, na reacção que os espíritos mais brilhantes do seu tempo tiveram face ao famoso terramoto que devastou Lisboa em 1755 e que num só dia fez largos milhares de mortos. A conclusão a que chegaram foi praticamente unânime: graças aos progressos da ciência e da técnica, uma catástrofe semelhante poderia certamente ser evitada no futuro. Eis a convicção profunda dos homens mais iluminados. A geologia, a matemática e a física iriam permitir prever e, consequentemente, prevenir os flagelos que a natureza inflige de forma tão absurda e cruel aos seres humanos. Por fim, o espírito científico unido ao espírito empreendedor salvar-nos-ia das tiranias da matéria bruta. Só esta última foi considerada culpada — de tal forma que nem o presidente da câmara da cidade, nem os arquitectos, carpinteiros ou engenheiros que tinham construído os edifícios foram postos em causa. Mudança de cenário, para não dizer de paradigma. Dominados pela paixão do medo, hoje é a natureza que nos pa- rece admirável e a ciência ameaçadora ou maléfica. Face às catástrofes naturais, passamos o tempo todo a tentar descobrir os responsáveis com grande fervor, pois tudo aquilo que pode pôr em perigo as nossas existências nos aterroriza. A angústia de uma morte que permanentemente renegamos declina-se assim nesta infinitude de «pequenos medos» particulares, muitas vezes relacionados com as mil e uma inovações «diabólicas» que a ciência e o mundo moderno inventam. Nos antípodas do optimismo das Luzes, hoje já não vemos os avanços do conhecimento como um progresso, mas antes como o abandono de um qualquer paraíso perdido. Ou, melhor dizendo, estamos sobretudo preocupados em perceber se o progresso é em si mesmo um progresso e se a multiplicação das façanhas técnicas que quotidianamente a imprensa divulga nos tornou realmente mais livres e mais felizes. Ora, o mais preocupante é que por detrás desta proliferação dos medos se esconde uma preocupação mais profunda e silenciosa que engloba, por assim dizer, todas as outras: a de que uma nova forma de impotência pública, inerente à natureza da mundialização, que coloca os cidadãos das sociedades modernas — para não mencionar aquelas que nem sequer têm voto na matéria — numa posição de perda de controlo sobre o curso do mundo. É este sentimento de que o Estado é fraco e praticamente incapaz de levar a cabo qualquer tipo de reforma, mesmo as mais justificadas, não con- seguindo sequer opor-se a processos nefastos que escapam definitivamente ao seu controlo, que lenta mas insidiosamente se insinua no espírito dos nossos concidadãos. O tema recorrente do «declínio» só revela esta angústia, até mesmo quando apela, ainda que de forma impotente, à coragem, ao dever e à resistência moral. Mais do que este ou aquele objecto em particular, é a paralisia doravante visível do poder político que exaspera ou desespera. Tudo isto revela muito claramente uma crise da representação sem precedentes: com efeito, como podemos sentir-nos representados se aqueles que incumbimos de «tomar conta das coisas» já não possuem realmente capacidade para o fazer? Nos anos cinquenta, o poujadismo* denunciava a venalidade e a falta de probidade política: «são todos uns mentirosos» que «só querem encher os bolsos». Hoje, o que mais nos inquieta não é tanto a desonestidade dos dirigentes, mas sobretudo a sua impotência face à resolução dos problemas. Problema: em que devemos apoiar-nos para sair do marasmo? O pragmatismo é claramente insuficiente. Na melhor das hipóteses, permite-nos surfar sobre as ondas de uma mundialização cujos ganhos e perdas nos escapam inteira- mente. Ora não é de surfistas que precisamos. Por vezes, tanto em política como noutras áreas, é preciso saber dizer não, é preciso resistir à onda, e para o conseguir temos de nos apoiar em valores firmes. Paradoxo da política moderna do qual nenhum dirigente conseguiu até à data libertar-se: é preciso manter-se popular para conquistar o poder, é preciso ser impopular por vezes para o exercer. E, tal como diz um provérbio árabe, um homem que nunca encontrou na vida uma razão para a pôr em risco é um pobre homem. Pois apenas o sagrado — etimologicamente, aquilo pelo que nos podemos sacrificar — dá não só sentido, mas também, e sobretudo, sabor à existência. Mas onde encontrar esse sagrado se todos os valores foram desconstruídos? E como o instaurar se o curso do mundo nos escapa? É neste ponto que intervém o terceiro termo que enunciei, a sacralização. A convicção que atravessa este livro (Capítulo III) é que a elevação dos valores da intimidade que caracteriza as nossas sociedades democráticas não deve ser interpretada como um «recuo individualista», uma regressão «neoliberal», uma renúncia face aos problemas do mundo. Representa, pelo contrário, um alargamento de horizontes inacreditável, sem dúvida de forma profundamente paradoxal, ainda que muito imperfeita e mitigada porque claramente imbuída desse egoísmo insuportável que estigmatiza a frase de Gide, mas que é, contudo, muito real: a verdade de um humanismo finalmente amadurecido e não, como em geral pensamos, precipitado no egoísmo e na atomização do social. Não ignoro que, face à importância das preocupações individuais, o reflexo político mais comum e irreflectido consiste em declarar com ar enfastiado e com uma nesga de nostalgia na voz e de cansaço no olhar que, tendo as entidades «grandiosas» (Deus, a República, a Pátria, a Revolução, etc.) perdurado tanto tempo, hoje temos de cingir-nos de forma mais ou menos medíocre àquilo que nos resta: a família com, no melhor dos casos, algum espírito humanitário e ecológico, de forma a assegurar alguma consciencialização, por muito ínfima que seja, das questões relacionadas com o futuro das novas gerações. Defendo precisamente o oposto. Como tentarei demonstrar mais adiante, somos menos medíocres e menos «materialistas» do que em geral o pensamos. À semelhança da «consciência infeliz» de que nos fala Hegel na sua Fenomenologia do Espírito, apenas apreendemos o lado mau da história: vemos utopias mortíferas mas sublimes desmoronarem- se, princípios heróicos e valores tradicionais desaparecerem; assistimos, de geração em geração, ao declínio acelerado dos enquadramentos estáveis do civismo e da cultura clássica, ficando de tal forma afligidos com tudo isto que acabamos por ceder ao medo e à morosidade. Mas ainda não conseguimos vislumbrar, nos processos históricos que abalam as nossas vidas, o que irá substituí-los, o que é novo e ilumina o futuro em vez de o ensombrar. Ora, sob o efeito de uma história ainda demasiadamente pouco conhecida para desencadear a reflexão no espaço público — refiro-me à história da intimidade, da família moderna e do casamento por amor que os historiadores das mentalidades nos ajudam a descobrir pouco a pouco e sobre a qual voltarei a falar mais adiante —, vivemos uma formidável revolução dos espíritos*, sem nos apercebermos nem conseguindo ainda medir os seus efeitos: uma mutação lenta e silenciosa que marca como nunca outra o fez as nossas existências e altera radicalmente a problemática clássica do sentido da «vida boa». É impensável — e é este o fio condutor deste livro — que esta revolução sem precedentes não tenha impacto sobre a vida política, quer sobre os projectos que a orientam quer sobre a forma de a pôr em prática. Como tentarei demonstrar, o nascimento da família moderna e do casamento por amor — que pouco a pouco se transforma em ideal e depois em regra nas sociedades contemporâneas — irá alterar tudo isto. Sob o efeito desta inovação que irá revolucionar a vida quotidiana dos indivíduos, o sagrado irá mudar de sentido ou, melhor dizendo, de encarnação. Progressivamente, irá afastar-se das entidades tradicionais supostamente grandiosas porque desumanas — di- vindade, hierarquias sociais, aristocracias, Nação, Pátria, ideais revolucionários —, instalando-se gradual mas solidamente no coração do menos divino, ou seja, na própria humanidade. Quando evoco esta ideia, replicam-me sempre a famosa análise de Dostoievski: estando Deus morto, será doravante o humano que irá tomar o seu lugar de uma forma excessiva e incorrendo em todos os perigos totalitários. Não é evidentemente esta figura inquietante e fantasmagórica do homem-deus que pretendo aqui defender. Para termos uma ideia — a análise virá mais adiante — é preciso recordar os símbolos que Max Weber mobiliza para descrever a natureza dos valores tradicionais e das entidades sacrificiais do tempo de outrora. O grande sociólogo alemão vislumbra o modelo no nobre comportamento do capitão do navio que, obedecendo a um código de honra bem estabelecido, sucumbe com o seu barco depois de a tripulação e os passageiros serem evacuados. Sacrifício inaudito ou martirologia limitadora? Cada qual poderá, sem dúvida, tirar as suas conclusões, mas a meu ver considero que, apesar de tudo, hoje mais vale dar a vida por outro tipo de causas e que decerto o casco de um navio não merece que se morra por ele... Ora, entre todas as causas possíveis, a história da família moderna, fundada no sentimento, irá convencer- nos de que a única causa que vale a pena é a da pessoa. Hoje é de bom-tom troçar, sobretudo no meio intelectual e jornalístico, dos trabalhadores humanitários e da sua paixão mediática. Neste caso, confesso contudo que sempre fiquei do lado dos ingénuos. Permitam-me que prefira Bernard Kouchner, o fundador dos Médicos Sem Fronteiras em França, que arriscou cinquenta vezes a vida para salvar outras tantas, àqueles que do alto das suas cátedras ou dos seus púlpitos lhe dão arrogantes lições de modéstia. Talvez concorde com eles no dia em que eu próprio tiver feito tanto quanto ele — o que temo não irá acontecer tão cedo. Sem comparação possível, o seu heroísmo e aquilo que simboliza parecem mais admiráveis e, para dizer a verdade, mais justos do que o daquele capitão de navio — capitão que, como terão compreendido, serve aqui de modelo emblemático para todos os grandes sacrifícios mortíferos que, ao longo do aterrador século xx, ensanguentaram a humanidade como nunca acontecera no passado. E nós, simples cidadãos que não temos de sacrificar-nos pelos outros nem arriscamos constantemente as nossas vidas — o que não é forçosamente mau, temos de confessar... —, por que motivo afinal deveríamos subestimar o tempo que mesmo assim dedicamos aos outros nas nossas vidas quotidianas em prol de uma qualquer pseudocausa superior? A um amigo deprimido, a um pai no fim da vida, a um filho que não está bem ou, porque não, àqueles que não conhecemos, ao próximo que nem por isso nos é chegado, mas que não pode viver sem a ajuda de outros homens, como constantemente as associações caritati- vas relembram? O que significam estes sacrifícios, modestos, é certo, mas contudo reais, a não ser que o sentido das nossas vidas desceu definitivamente do céu para instalar-se na terra? E por que razão deveríamos envergonhar-nos e preferir as entidades sacrificiais de uma época que não hesitou, sem o mínimo proveito para quem quer que fosse, provocar dezenas de milhões de mortos sobre os edifícios da Nação ou da «Causa do povo», a estas novas figuras de um sagrado com rosto humano? Eis, a meu ver, algumas interrogações que merecem pelo menos que nos detenhamos nelas. Como se reflecte tudo isso na política (Capítulo IV)? Como é que uma actividade que visa por excelência a esfera pública poderá tomar em consideração, ou mesmo tirar partido, das revoluções que abalam o seu opositor natural, a esfera privada? A questão resume-se a isto e não é nada simples. Os efeitos desta revolução da intimidade, por ser menos violenta e ruidosa do que as outras, são muito mais profundos e estendem-se ao longo do tempo, sem que ninguém possa avaliá-los à partida. Este livro convida modestamente o seu leitor a reflectir sobre esta questão. No seu conjunto, a política moderna, desde finais do século xviii, para não mencionar as épocas precedentes, colocou a esfera pública muito acima da esfera privada. Em caso de conflito, é sempre a segunda a sacrificar-se em prol da primeira, como tivemos oportunidade de o constatar durante as guerras, to- das elas, aliás, levadas a cabo por homens. Mesmo no Maio de 1968 — que foi, apesar de tudo, o primeiro grande movimento social e político a colocar em primeiro plano esses valores da intimidade libertos graças a um século de desconstrução das tradições —, a política manteve-se prioritária: a intenção não era colocá-la ao serviço dos indivíduos mas conseguir que cada um deles passasse do estatuto de «cidadão passivo» ao de «cidadão activo». Mesmo entre os espíritos mais democratas de 1968 — os libertinos anticomunistas, antimaoístas e antitrotskistas — a convicção era a de que «tudo era político» ou deveria sê-lo. Tal como dizia Benjamin Constant, «a liberdade dos Antigos», quer dizer, a participação activa nas questões públicas, continua a ser um ideal muito superior ao da «liberdade dos modernos», ao direito que cada qual tem de fazer o que bem entender da sua vida. Ora, a tendência actual — que se arrasta há já longas décadas sem que sequer tenhamos consciência disso — caminha no sentido oposto. Hoje, para a maioria dos indivíduos, o verdadeiro sentido da existência, aquilo que lhe dá sentido, sabor e valor, situa-se essencialmente na vida privada. E esta evolução só é compreensível se a situarmos no seio de uma história, a da família moderna, segundo a qual a família não é de todo exclusivamente um tema de «direita», como muitas vezes se afirma de forma irreflectida e mecânica, mas pelo contrário o florão de uma aventura democráti- ca. A vida amorosa ou afectiva sob todas as suas formas, os elos que se tecem com os filhos através da educação, a escolha de uma actividade profissional enriquecedora também no plano pessoal, a relação com a felicidade bem como com a doença, o sofrimento e a morte, ocupam um lugar infinitamente mais importante do que a consideração de utopias políticas, de resto inalcançáveis. Entre a justiça e a mãe, já Camus escolhera a segunda. Dir-me-ão que este dilema é absurdo, que na vida real as questões políticas não se colocam nestes termos, e decerto terão toda a razão. Trata-se apenas de uma metáfora. Contudo, ela engloba uma realidade profunda: a de uma política que, dia após dia, tem tendência a tornar-se antes de mais um auxiliar da vida privada, não a sua única finalidade, e muito menos algo sobre cujo altar deva ser sacrificada, mas um simples instrumento ao serviço da libertação e do sucesso da vida das pessoas. O que tentarei demonstrar ao longo deste livro é que esta nova forma de dar não exclui de todo, contrariamente uma vez mais a uma ideia preconcebida, a tomada de consciência dos horizontes longínquos, exigindo aliás que nos reconciliemos, mas de uma forma bem diferente, com as figuras mais grandiosas da política tradicional. Mas está na hora de aprofundarmos antes de mais o seu percurso retomando os três termos que lhe servem de marcos.
Carlos Augusto Serbena e Rafael Rafaelli Publicaram Um Artigo em 2003 Discorrendo Sobre Os Problemas Epistemológicos e Ideológicos Da Alma para A Psicologia