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A “NECROPOLÍTICA” E O BRASIL DE
ONTEM E DE HOJE
Considerado “um dos poucos teóricos que consegue pensar o contexto mundial contemporâneo
a partir da provincialização da Europa”, é autor de vários livros, alguns já traduzidas para o
português. Entre as suas várias obras, quero destacar nesta pequena resenha o seu trabalho
“Necropolítica”, publicado no Brasil pela Editora N-1 Edições.
Neste ensaio, o autor parte do pressuposto “que a expressão máxima da soberania reside em
grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, razão
pela qual “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos
fundamentais.”
Assim, ao final e ao cabo, “ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida
como a implantação e manifestação de poder.” Logo, neste sentido, “a soberania é a capacidade
de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é.”
Rejeitando a crença “romântica” da soberania como algo em “que o sujeito é o principal autor
controlador do seu próprio significado”, Mbembe preocupa-se, sob uma ótica inteiramente
diversa, “com aquelas formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas
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Relacionando a noção de biopoder (Foucault) com dois outros conceitos – estado de exceção e
estado de sítio (Agamben) -, Mbembe mostra de forma bastante clara como “o estado de
exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa do direito de matar”, e como o
poder “apela à exceção, à emergência e a uma noção ficcional do inimigo” para justificar o
extermínio de outrem.
Desde este ponto de vista, o ensaísta africano considera que a escravidão “pode ser
considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica”, razão pela qual
“qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão.”
Para ele, “a condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de um ‘lar’, perda de direitos
sobre seu corpo e perda de estatuto político”, ocasionando “uma dominação absoluta, uma
alienação de nascença e uma morte social (que é expulsão fora da humanidade).” Assim, ele “é
mantido vivo, mas em ‘estado de injúria’, em um mundo espectral de horrores, crueldade e
profanidade intensos.” A sua vida, portanto, “é uma forma de morte-em-vida” e “propriedade de
seu senhor” (Susan Buck-Morss).
Voltando os olhos para o fenômeno da colonização, Mbembe entende – e concordo com ele –
que “as colônias são semelhantes às fronteiras, habitadas por ´selvagens`, não organizadas de
forma estatal e não criaram um mundo humano; são o local por excelência em que os controles
e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos – a zona em que a violência do estado de
exceção supostamente opera a serviço da ‘civilização’.”
Por conseguinte, “aos olhos do conquistador, ‘vida selvagem’ é apenas outra forma de ‘vida
animal’, carecendo os selvagens do caráter específico humano, da realidade especificamente
humana, de tal forma que, ‘quando os europeus os massacravam, de certa forma não tinham
consciência de cometerem um crime’.” (Arendt).
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Talvez para ilustrar, Mbembe cita o caso palestino como “a forma mais bem-sucedida de
necropoder”, quando “populações inteiras são o alvo do soberano, vilas e cidades sitiadas são
cercadas e isoladas do mundo, a vida cotidiana é militarizada e é outorgada liberdade aos
comandantes militares locais para usar seus próprios critérios sobre quando e em quem atirar.”
Esta população sitiada experimenta “uma condição permanente de ‘viver na dor’: estruturas
fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar.” A desastrosa – sob todos os
aspectos – intervenção militar no Rio de Janeiro talvez sirva para ilustrar esta afirmação.
O livro também trata das guerras contemporâneas, as guerras da era da globalização, que
“visam forçar o inimigo à submissão, independentemente de consequências imediatas, efeitos
secundários e ‘danos colaterais’ das ações militares.” Nestes conflitos, citando Bauman (“Wars of
the Globalization Era”), “os pilotos convertidos em computadores quase nunca têm a chance de
olhar suas vítimas no rosto e avaliar a miséria humana que têm semeado. Militares profissionais
do nosso tempo não veem cadáveres nem ferimentos. Talvez eles durmam bem; nenhuma
pontada em suas consciências os manterá acordados.”
A obra também faz referência ao surgimento das Máquinas de Guerra, “surgidas na África
durante o último quarto do século XX”, com “características de uma organização política e de
uma empresa comercial, podendo operar mediante capturas e depredações e até mesmo cunhar
seu próprio dinheiro”, tornando-se “rapidamente mecanismos predadores extremamente
organizados.”
Ao contrário das guerras convencionais, quando a lógica “consiste em querer impor a morte aos
demais, preservando a própria vida”, aqui, na lógica do “mártir”, “a vontade de morrer se funde
com a vontade de levar o inimigo consigo, ou seja, eliminar a possibilidade de vida para todos”,
certamente a partir “de um processo de abstração com base no desejo de eternidade.” Neste
sentido, “o corpo sitiado é transformado em mera coisa, matéria maleável, e depois, a maneira
como é conduzido à morte – suicídio – lhe proporciona seu significado final.” Este corpo
converte-se “em uma peça de metal cuja função é, pelo sacrifício, trazer a vida eterna ao ser.”
Enfim, trata-se de um livro de atualidade impressionante, e serve para refletirmos sobre o caso
brasileiro – de ontem e de hoje. Lembremos, por exemplo, que uma das principais propostas do
então candidato ao Governo do Rio de Janeiro – hoje eleito – foi instruir as forças de segurança
a “abaterem” suspeitos que sejam vistos portando fuzis, mesmo que eles não atirem contra os
policiais.
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Já em São Paulo, o então candidato – também o escolhido – alertava que “não façam
enfrentamento com a Polícia Militar nem a Civil, porque, a partir de 1º. de janeiro, ou se rendem
ou vão para o chão. Se fizer o enfrentamento com a polícia e atirar, a polícia atira. E atira para
matar.”
Na Bahia, o atual Governador – reeleito -, comentando acerca de uma ação da Polícia Militar
durante um confronto no bairro do Cabula, em Salvador – fato ocorrido na madrugada do dia 06
de fevereiro de 2015, que resultou na morte de doze pessoas, episódio que conhecido como “A
Chacina do Cabula”, e que foi objeto de um pedido de federalização feito ao Superior Tribunal de
Justiça pela Procuradoria Geral da República -, afirmou o Governador, numa comparação
estúpida!, que o policial “é como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns
segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol. Depois que a jogada
termina, se foi um golaço, todos os torcedores da arquibancada irão bater palmas e a cena vai
ser repetida várias vezes na televisão. Se o gol for perdido, o artilheiro vai ser condenado,
porque se tivesse chutado daquele jeito ou jogado daquele outro, a bola teria entrado.”
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20 de dezembro de 2018
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