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I) DO RELAXAMENTO DA PRISÃO/ILEGALIDADE DA

APREENSÃO DO ADOLESCENTE EM RAZÃO DA NULIDADE DA


BUSCA PESSOAL E/OU DOMICILIAR

Como é cediço, as garantias constitucionais da proteção da intimidade e vida


privada e da inviolabilidade do domicílio estão no rol das mais importante da CRFB/88:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação;
XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo
penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante
delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por
determinação judicial”
A Constituição Federal também prevê como objetivo fundamental da República
Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação (art. 3º, I e IV).
Trata-se, portanto, de direitos fundamentais que merecem especial proteção do
Estado, mormente para garantir o cotidiano sadio das pessoas em sociedade. Tanto é
assim, que possuem proteção inclusive em diplomas internacionais, como na Convenção
Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), a qual prevê a
proteção contra "ingerências arbitrárias ou abusivas" em sua vida privada ou em seu
domicílio1, e no art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem2.

1
“Artigo 11. Proteção da honra e da dignidade (...) 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências
arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua
correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”.
2
1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da
sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito
senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade
democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar
econômico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais, a proteção da saúde ou da
moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.
Assim, a obtenção de provas colhidas em desacordo com tais direitos deve
ser reputada ilícita, não sendo, por conseguinte, admissíveis no processo, tal como
preconiza o art. 5o, inciso LVI, da CRFB/88.
Conforme restará demonstrado a seguir, a busca pessoal/domiciliar, sem
mandado judicial, que ensejou a prisão do custodiado/apreensão e internação do
adolescente carece de justa causa, uma vez que originada de mera suspeição calcada
em parâmetros subjetivos, preenchidos das características físicas do abordado, mas
precisamente sua cor de pele, sem nenhum elemento objetivo e concreto prévio que
justifique a abordagem policial.
Porém, a suspeita que legitima a busca pessoal ou domiciliar não pode ser
preenchida a partir de estereótipos baseados em raça, cor, etnia, religião, idioma,
descendência, ou qualquer combinação desses fatores, sob pena da ampla chancela a
práticas policiais institucionalmente racistas e da sistemática violação de direitos
fundamentais de cidadãs e cidadãos negros diuturnamente. Vejamos.

I.1) Do Necessário Enfrentamento De Práticas Institucionalmente Racistas


Das Polícias Brasileiras: Cenário De Discriminação Racial Indireta
A pesquisa científica no campo das ciências sociais tem revelado que, apesar de
o racismo intersubjetivo ser condenado socialmente e não obstante inexistam (ou sejam
raros) no Brasil mecanismos institucionais explícitos de segregação racial, as relações
sociais no país seguem marcadas por hierarquias raciais que organizam situações
estruturais de poder e desigualdade.3
Na seara da segurança pública, esta realidade é sensível. Vigora um cenário de
discriminação contra a população negra, que além de ser alvo preferencial da atuação
das forças de segurança, é o grupo mais intensamente atingido pela violência, seja ela
praticada por agentes estatais, seja por agentes privados.
Mesmo com a pandemia de covid-19 restringindo a movimentação de pessoas,
nunca a necropolítica foi tão bem empreendida pelas forças policiais brasileiras quanto
em 2020, segundo dados do Anuário de Segurança Pública. A publicação, organizada
pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), destaca que os negros foram as
maiores vítimas de policiais — correspondem a 78,9% das 6.416 pessoas mortas
por policiais no ano de 2020. O número de mortos por agentes de segurança aumentou
3
NUNES, Sylvia da Silveira. Racismo contra negros: um estudo sobre o preconceito sutil. Tese de
Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano apresentada em 2010 na Universidade
de São Paulo, p. 28.
em 18 das 27 unidades da federação, revelando um espraiamento da violência policial
em todas as regiões do país4.
O recorte das violações de direitos praticadas por funcionários do Estado aponta
igualmente para padrões raciais. Na recente publicação “O Bom Policial Tem Medo” 5, a
organização Human Rights Watch, revelou que, nos últimos 10 anos, as Polícias do
Estado do Rio de Janeiro mataram mais de 8.000 (oito) mil pessoas. Enquanto cerca de
metade da população do Rio de Janeiro é negra, os negros somam mais de três
quartos das pessoas mortas pela polícia em 2015.
Por outro lado, a violência não letal, traduzida por exemplo pela prática de
tortura no momento da detenção também afeta de maneira sistemática a população
negra. Segundo o Relatório do segundo ano das audiências de custódias no Estado do
Rio de Janeiro6, elaborado pela Diretoria de Estudos de Acesso à Justiça da Defensoria
Pública, as agressões durante o momento da detenção recaem predominantemente sobre
pessoas negras. O levantamento apurou, a partir do relato dos detidos, que foram
reportados 2107 casos de agressão do total de 6374 detenções (o que equivale a 35,9%)
e que as pessoas negras representavam 79,7% do total de vítimas de tortura ou
maus tratos.
Apesar de o racismo não se apresentar de forma explícita e institucionalizada no
discurso das autoridades ou nos protocolos formais de atuação dos agentes estatais, as
práticas levadas a cabo pelos órgãos da segurança incidem com maior intensidade e
materializam consequências mais gravosas sobre a população negra, notadamente a
situada em regiões periféricas ou empobrecidas dos grandes centros urbanos brasileiros.
Todavia, ao confrontar-se com as restrições de direitos fundamentais impostas
pelas agências oficiais contam, em regra, com a fragilidade na aplicação das garantias
penais e processuais no âmbito do sistema de justiça, quando ocupa o banco dos réus a
figura do negro, do favelado, do estereótipo perturbador da ordem pública.
De forma indireta, a postura sistemática adotada pelas instituições da justiça, ao
relativizar direitos e garantias fundamentais em nome da promoção de “interesses
públicos” no delicado campo da segurança e prevenção da criminalidade, acaba por
legitimar e – mais do que isso – incentivar padrões racistas de policiamento, abordagem,

4
Disponível em:https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/07/15/letalidade-policial-e-a-
mais-alta-da-historia-negros-sao-78-dos-mortos.htm?cmpid=copiaecola .
5
ACEBES, C. M. O bom policial tem medo, HUMAN RIGHTS WATCH, 2016. Disponível em:
https://www.hrw.org/pt/report/2016/07/07/291589, acesso em 02/08/2017, às 19h03min.
6
Disponível http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/c2f0263c194e4f67a218c75cfc9cf67e.pdf.
detenção, custódia e até mesmo execuções sumárias. Confira-se, sobre o tema, as
considerações tecidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos na sentença do
caso Favela Nova Brasília vs. Brasil7 (16 de fevereiro de 2017)
Tem-se um cenário de discriminação racial indireta, cujo conceito normativo
pode ser extraído da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação
Racial e Outras Formas Correlatas de Intolerância (CIR) - relevantíssimo instrumento
do Direito Internacional dos Direitos Humanos, promulgado pelo Decreto Presidencial
n.˚ 10.932/2022, que pretende erradicar as desigualdades estruturais que afetam grupos
sociais subjugados nos países da OEA por conta de sua raça, cor, ascendência, origem
nacional ou étnica.
Dispõe o artigo 1.2 da Convenção:
Artigo 1
2. Discriminação racial indireta é aquela que ocorre, em qualquer
esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou
critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma
desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo
específico, com base nas razões estabelecidas no Artigo 1.1, ou as
coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou
critério tenha um objetivo ou justificativa razoável e legítima à luz do
Direito Internacional dos Direitos Humanos. (Grifamos).
No marco do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o tema do racismo
institucional foi enfrentado no Relatório de Mérito n˚. 66/06 8 (Caso 12.001, Simone
André Diniz vs. Brasil), no qual a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) se debruçou sobre o funcionamento desigual do sistema de justiça brasileiro,
segundo modulações relacionadas à raça/cor, especialmente quanto ao
funcionamento dos mecanismos penais e das agências policiais:
48. Pesquisas sobre o sistema criminal judicial brasileiro dão conta do
acesso diferencial de brancos e negros à justiça criminal. Na cidade

7
(...) 102. De acordo com informações de órgãos estatais, a violência policial representa um problema de
direitos humanos no Brasil, em especial no Rio de Janeiro (...). 103. Entre as vítimas fatais de violência
policial, estima-se uma predominância de jovens, negros, pobres e desarmados. Segundo dados oficiais,
os homicídios são a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos, e atingem especialmente jovens
negros do sexo masculino, moradores de periferias e áreas metropolitanas de centros urbanos. (...) Na
cidade do Rio de Janeiro, aproximadamente 65% das pessoas que morreram em 2015 são negras (negros
e mulatos). No Estado do Rio de Janeiro, estudos mostram que a oportunidade de um jovem negro morrer
por ação da polícia é quase 2,5 vezes maior do que a de um jovem branco. Disponível na íntegra em:
<http://www.itamaraty.gov.br/images/Banco_de_imagens/SENTENCIA_FAVELA_NOVA_PORTUGU
ESfinal.pdf >.
8
Disponível na íntegra em:< http://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm> .
de São Paulo, que no ano de 1980 contava com uma população branca
de 72,1% e negra (pretos e pardos) de 24,6%, havia uma maior
proporção de réus negros condenados (68,8%) do que réus brancos
(59,4%). A absolvição favorecia preferencialmente brancos (37,5%),
comparativamente a negros (31,2%).
49. Da mesma forma, réus negros condenados estão
proporcionalmente muito mais representados do que sua participação
na distribuição racial da população do município de São Paulo. Não
sendo o mesmo cenário quando se trata de réus brancos. Neste caso, a
proporção de condenados brancos é inferior à participação dessa etnia
na composição racial da mesma população. A pesquisa concluiu que
tal contexto “sugere uma certa afinidade eletiva” entre “raça e
punição”.
50. De outra maneira, a violência policial no Brasil vitimiza
desproporcionalmente pretos e pardos. A Comissão tomou
conhecimento de que no Brasil, o perfil racial determina um alto
número de detenções ilegais e que a população negra é mais
vigiada e abordada pelo sistema policial, sendo este tema objeto de
recomendação pela Comissão não somente em relatório geral sobre o
país, mas também em relatório de mérito.
51. Com efeito, de acordo com outro levantamento, ficou manifesto
que “no Rio de Janeiro, o perfil das crianças e adolescentes
assassinados, em um conjunto de 265 investigações, é de pobre, sexo
masculino, negro e mulato”. Em outra investigação, concluída pelo
ISER, comprovou-se que “a incidência da raça no uso da força policial
letal talvez seja a fonte de violações mais graves dos direitos humanos
no Brasil”.
52. Depois de avaliar mais de 1000 homicídios cometidos pela Polícia
do Rio de Janeiro nos anos de 1993 a 1996, o relatório concluiu que
a raça constitui um fator que incide na polícia – seja
conscientemente ou não – quando atira para matar. Quanto mais
escura a pele da pessoa, mais suscetível está de ser vítima de uma
violência fatal por parte da polícia”. Conclui dizendo que a violência
policial é discriminatória, pois alcança em maior número e com
mais violência os negros. Com efeito, em seu relatório para o CERD,
o governo brasileiro reconheceu a letalidade da ação policial no Brasil
quando a vítima era não branca. (Grifos nossos).
É relevante ainda no contexto da discriminação racial de natureza estrutural
mencionar o Relatório produzido pelo Grupo de Trabalho de experts das Nações Unidas
para Afrodescendentes, publicado em 04 de setembro de 2014, após visita ao Brasil, no
qual concluiu a ONU que:
77. A polícia é responsável por manter a segurança pública como
estabelecido na Constituição Federal, apesar disso, o racismo
institucional, a discriminação e a cultura de violência conduzem a
práticas de filtragem racial, sobrepoliciamento, chantagem,
tortura, extorsão e humilhação particularmente contra afro-
brasileiros. O uso da força e da violência para o controle da
criminalidade e segurança pública tornou-se socialmente aceito em
grande parte porque são praticadas contra um setor da sociedade cujas
vidas não são consideradas como tuteláveis. O Grupo vê este cenário
como fabricação de um inimigo interno que justifica o uso de táticas
militares para controlar a condutas criminosas e reduzir liberdades
públicas e privadas9. Grifamos.
A necessidade de o Poder Judiciário abordar, enfrentar e reprimir de forma ativa
práticas que legitimam o perfilhamento racial de pessoas negras em buscas policiais foi
recentemente abordada pelo Ministro Edson Fachin, em seu voto vista, nos autos do
Habeas Corpus 208.240/SP, o qual, ao final, propôs a fixação de tese pelo Plenário
da Corte para melhor definir o controle sobre a legalidade dessas medidas
cautelares excepcionais. Confira-se:
“(...) Por fim, com o escopo de coibir o perfilamento racial em buscas
policiais e por caber ao Poder Judiciário assumir papel ativo nessa
tarefa, proponho a fixação das seguintes teses:
1) A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar
fundada em elementos concretos e objetivos de que a pessoa esteja na
posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo
de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na
raça, cor da pele ou aparência física;
2) A busca pessoal sem mandado judicial reclama urgência para a
qual não se pode aguardar uma ordem judicial;

9
Report of the Working Group of Experts on People of African Descendent on its fourteenth session,
tradução livre, p. 21. Disponível
em:<ehttp://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/RegularSessions/Session27/Documents/
A.HRC.27.68.Add.1_AUV.doc>.
3) Os requisitos para a busca pessoal devem estar presentes
anteriormente à realização do ato e devem ser devidamente
justificados pelo executor da medida para ulterior controle do Poder
Judiciário”. (Grifamos)

I.2) Da Inconstitucionalidade e Inconvencionalidade da Prática de


Filtragem Racial
Como consequência do quadro de desigualdade estrutural e racismo institucional
enfrentado pela população negra brasileira, o pacto político que estabeleceu como um
dos objetivos da República Federativa do Brasil a erradicação das desigualdades de
raça/cor (art. 3o, inciso IV, da CRFB/1988 e Lei n ̊. 12.288/2010) e os compromissos
internacionais firmados pelo país impõem uma mudança de postura do sistema de
justiça, que se traduza rigorosa proteção dos direitos fundamentais de todos os cidadãos
e cidadãs, diante das violações praticadas pelos braços policiais do Estado em nome da
segurança publica.
Nesse contexto, a filtragem racial adotada nas rotinas de policiamento ostensivo
para identificar “indivíduos suspeitos” e justificar a realização de buscas pessoais e de
detenções a partir do etiquetamento baseado em raça/cor, deve ser duramente
combatida como medida ilegal e inconstitucional, sobretudo porque “tende a isolar
indivíduos ou grupos de forma discriminatória com base na suposição errônea de que
pessoas com tais características são propensas a se envolver em crimes específicos”10.
É possível colher da literatura especializada11 as seguintes definições para o
fenômeno do “racial profiling” ou filtragem racial:
“uso da raça ou etnia como razão para suspeitar que alguém
tenha cometido uma infração penal” (HUTCHINS, 2017, p. 99);
“qualquer prática de policiamento que sujeita indivíduos a um
escrutínio maior, baseada integralmente ou em parte na raça”
(HUTCHINS, 2017, p. 103).
A prática, que resulta do alto grau de discricionariedade dos agentes estatais
na definição do elemento “FUNDADA SUSPEITA” exigido na lei processual penal
(art. 240, CPP), representa uma das mais graves formas de violação de direitos

10
CIDH, Afrodescendentes nas Américas (2011), parágrafo 143.
11
HUTCHINS. R. Racial profiling: the law, the policy and the practice, in DAVIS, A. (org.) Policing the
Black Man: arrest, prosecution and imprisonment, Pantheon Books, New York, 2017.
humanos, proscrita pela Constituição de 1988 (art. 5º, XLII) e ainda tipificada
penalmente pela Lei nº. 7.716/89 (art. 20).
No plano internacional, o Estado Brasileiro, assumiu o compromisso de
erradicar todas as formas de discriminação racial, tal como se extrai da Convenção
Para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial das Nações Unidas
(internalizada por meio do Decreto n ̊. 65.810, de 8 de dezembro de 1969), que prevê:
Artigo V
De conformidade com as obrigações fundamentais
enunciadas no artigo 2, Os Estados Partes comprometem-se a
proibir e a eliminar a discriminação racial em todas suas formas
e a garantir o direito de cada uma à igualdade perante a lei sem
distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica,
principalmente no gozo dos seguintes direitos(...).
Já no plano regional, a já citada Convenção Americana sobre Direitos
Humanos impõe, em seu artigo 1.1, o dever dos Estados de respeitar os direitos
humanos sem discriminação:
Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos
1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se
a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir
seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua
jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor,
sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra
natureza, origem nacional ou social, posição econômica,
nascimento ou qualquer outra condição social.
No mesmo sentido a Convenção Interamericana contra o Racismo, a
Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (CIR), que aprofunda as
obrigações dos Estados parte no enfrentamento do racismo, para prescrever obrigações
específicas (Decreto n.˚ 10.932/2022):
Artigo 3. Todo ser humano tem direito ao
reconhecimento, gozo, exercício e proteção, em condições de
igualdade, tanto no plano individual como no coletivo, de todos
os direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados na
legislação interna e nos instrumentos internacionais aplicáveis
aos Estados Partes.
Artigo 4. Os Estados comprometem-se a prevenir,
eliminar, proibir e punir, de acordo com suas normas
constitucionais e com as disposições desta Convenção, todos os
atos e manifestações de racismo, discriminação racial e formas
correlatas de intolerância, inclusive:
v. qualquer ação repressiva fundamentada em
qualquer dos critérios enunciados no Artigo 1.1, em vez de
basear-se no comportamento da pessoa ou em informações
objetivas que identifiquem seu envolvimento em atividades
criminosas;
vii. qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência
aplicada a pessoas, devido a sua condição de vítima de
discriminação múltipla ou agravada, cujo propósito ou resultado
seja negar ou prejudicar o reconhecimento, gozo, exercício ou
proteção, em condições de igualdade, dos direitos e liberdades
fundamentais;
viii. qualquer restrição racialmente discriminatória do
gozo dos direitos humanos consagrados nos instrumentos
internacionais e regionais aplicáveis e pela jurisprudência dos
tribunais internacionais e regionais de direitos humanos,
especialmente com relação a minorias ou grupos em situação de
vulnerabilidade e sujeitos à discriminação racial;
(Grifamos).
Vale lembrar ainda o conteúdo da sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos no caso Fernandez Prieto & Tumbeiro vs. Argentina, que debruçou-se
diretamente sobre a prática da filtragem racial e entendeu que a pertença racial não
pode ser legitimamente mobilizada por agentes policiais, em caráter exclusivo,
para a formação de suspeição e motivação de abordagens, revistas e buscas, sob
pena de violação dos direitos previstos na Convenção12.
I.3) Necessário Controle de Legalidade da Busca Pessoal e/ou Domiciliar
Baseada na Raça/Cor do Indivíduo. Da Nulidade Da Prova Colhida em Busca
Pessoal e/ou Domiciliar Fundada em Filtragem Racial

12
Disponível em:< https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_411_esp.pdf>.
Como disposto pela lei processual penal brasileira, a busca e a apreensão pessoal
e domiciliar constituem-se em medidas instrumentais de colheita de prova e com
natureza de cautelar penal, restritivas de direitos e liberdades fundamentais
(inviolabilidade domiciliar, intimidade e vida privada, incolumidade física e moral etc. –
art. 5o, incisos X, XI, XLIX, CRFB/88).
Por esta razão, tais medidas exigem o cumprimento de determinados requisitos
que o legislador erigiu, a fim de legitimar as limitações que implicam à liberdade e à
esfera privada do indivíduo.
Lê-se do Código de Processo Penal que, tanto a busca domiciliar, quanto a busca
pessoal, exigem a constatação de razões objetivas que indiciem práticas ilícitas:
“Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal.
§ 1o Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a
autorizarem, para:
a) prender criminosos;
b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos;
c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e
objetos falsificados ou contrafeitos;
d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na
prática de crime ou destinados a fim delituoso;
e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa
do réu;
f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em
seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu
conteúdo possa ser útil à elucidação do fato;
g) apreender pessoas vítimas de crimes;
h) colher qualquer elemento de convicção.
§ 2o Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada
suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos
mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior”.
Grifamos.

Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de


prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa
esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que
constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada
no curso de busca domiciliar.

Repousa no elemento “fundadas razões” ou “fundada suspeita” a margem de


discricionariedade que a autoridade competente para a busca dispõe para avaliar seu
cabimento, sempre sujeita ao controle de legalidade/razoabilidade.
O conteúdo da “fundada suspeita” ou “fundadas razões” tem sido tema de
profundas discussões por parte da doutrina processualista penal e crescentemente objeto
de análise da jurisprudência.
Encontramos em Aury Lopes Jr. apontamentos críticos à vagueza da cláusula
“fundada suspeita” e uma defesa do rígido controle judicial da
legalidade/constitucionalidade das buscas:

“É interessante a manifestação do STF no HC 81.304-


4/Goiás, da relatoria do Min. Ilmar Galvão, que determinou o
arquivamento de termo circunstanciado realizado pela suposta
prática do crime de desobediência. O imputado negou-se a
submeter-se a revista pessoal pela polícia militar, tendo sido
realizado termo circunstanciado. Como apontou o Ministro, ‘a
fundada suspeita, prevista no art. 244 do CPP, não pode
fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo
elementos concretos que indiquem a necessidade da revista,
em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de
elementos dessa natureza, que não se pode ter configurado na
alegação de que trajava, o paciente, ‘blusão’ suscetível de
esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas
arbitrárias, ofensivas a direitos e garantias individuais e
caracterizadoras de abuso de poder’. (...) Claro, em tese, há a
possibilidade de o policial ser responsabilizado pelo crime de
abuso de autoridade, previsto na Lei n. 4.898, quando não
houver ‘fundada suspeita’. O problema é que, ao dar-se tal
abertura para o uso da autoridade, fica extremamente difícil a
demonstração de que houve abuso. O que separa o uso do abuso
quando há tal indefinição da lei? O problema de medidas assim,
com amplo espaço para abusos, poderia ser atenuado com
maior rigor no preparo técnico dos policiais e, principalmente,
efetivo controle da validade dos atos por parte dos juízes e
tribunais. Infelizmente nada disso ocorre e, com ampla
complacência dos julgadores, os abusos são frequentes. Não
raras vezes, os próprios juízes legitimam as buscas de “arrastão”
e sem qualquer critério legítimo, sob o argumento de que são
“meros dissabores, justificados pelos altos índices de violência
urbana” (claro, até porque eles estão imunes a tais dissabores...).
Outros ainda, com precários subterfúgios discursivos, recorrem
à lógica de que os fins justificam a (ilegalidade) dos meios”.
(LOPES JR, A. Direito Processual Penal e sua Conformidade
Constitucional, vol. I, 2A ed., rev. e atual., Lumen Juris: Rio de
Janeiro, 2009, edição digital, pp.519-520). Grifamos.

Na doutrina de Tourinho Filho sustenta-se também a necessidade de controle


da motivação indicada pela autoridade para proceder à busca:

“Fundadas razões, exige a lei. Se não as houver, não


pode ser realizada a diligência. A expressão, entretanto, implica,
naturalmente, como adverte Manzini, uma apreciação
discricionária de quem é competente para determinar a busca,
mas, como também e possível o abuso ou excesso de poder a
respeito do que seja ‘discricionário’, se o motivo da busca foi
manifestamente infundado com referencia ao momento em
que se determinou a diligência (e não apenas quanto ao seu
êxito negativo), quem a executou, abusivamente, responderá
penal e disciplinarmente” (TOURINHO FILHO, F. Processo
Penal, 3o volume, 31 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009,
p. 392-399). Grifamos.

Recentemente, o conteúdo da categoria "fundadas razões" tem sido objeto da


jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros, em especial quanto à busca
domiciliar, como vimos no julgamento, em repercussão geral, do RE 606613, relatado
pelo ilustre Ministro Gilmar Mendes.
No julgado, o Supremo Tribunal Federal assentou a necessidade de que os
agentes estatais apontem elementos indiciários mínimos que sinalizem a existência
de fundadas razões (justa causa) para uma medida de busca domiciliar e ainda
consignou que a situação de flagrância posterior não convalida a medida de busca
arbitrariamente decretada:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 603.616/RONDÔNIA


RELATOR MINISTRO GILMAR MENDES
ÓRGÃO JULGADOR: PLENÁRIO
DATA DE JULGAMENTO: 05/11/2015
Ementa. Recurso extraordinário representativo da
controvérsia. Repercussão geral. 2. Inviolabilidade de domicílio
– art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado
judicial em caso de crime permanente. Possibilidade. A
Constituição dispensa o mandado judicial para ingresso forçado
em residência em caso de flagrante delito. No crime permanente,
a situação de flagrância se protrai no tempo. 3. Período noturno.
A cláusula que limita o ingresso ao período do dia é aplicável
apenas aos casos em que a busca é determinada por ordem
judicial. Nos demais casos – flagrante delito, desastre ou para
prestar socorro – a Constituição não faz exigência quanto ao
período do dia. 4. Controle judicial a posteriori. Necessidade
de preservação da inviolabilidade domiciliar. Interpretação da
Constituição. Proteção contra ingerências arbitrárias no
domicílio. Muito embora o flagrante delito legitime o ingresso
forçado em casa sem determinação judicial, a medida deve ser
controlada judicialmente. A inexistência de controle judicial,
ainda que posterior à execução da medida, esvaziaria o
núcleo fundamental da garantia contra a inviolabilidade da
casa (art. 5, XI, da CF) e deixaria de proteger contra
ingerências arbitrárias no domicílio (Pacto de São José da
Costa Rica, artigo 11, 2, e Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos, artigo 17, 1). O controle judicial a
posteriori decorre tanto da interpretação da Constituição,
quanto da aplicação da proteção consagrada em tratados
internacionais sobre direitos humanos incorporados ao
ordenamento jurídico. Normas internacionais de caráter
judicial que se incorporam à cláusula do devido processo legal.
5. Justa causa. A entrada forçada em domicílio, sem uma
justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a
constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que
justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar
que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões
(justa causa) para a medida. 6. Fixada a interpretação de que a
entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita,
mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas
razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem
que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob
pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou
da autoridade e de nulidade dos atos praticados. 7. Caso
concreto. Existência de fundadas razões para suspeitar de
flagrante de tráfico de drogas. Negativa de provimento ao
recurso.
Grifos nossos.

Os mesmos parâmetros devem ser aplicados ao controle de constitucionalidade


categoria "FUNDADA SUSPEITA", de forma a PROSCREVER o elemento raça/cor
como elemento apto configuração da base objetiva que permite justificar legalmente
uma medida de busca e apreensão. Tudo à luz do princípio constitucional da
igualdade previsto no art. 3˚, inciso IV, e art. 5˚, ambos Constituição de 1988,
assim como dos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é
signatário, acima citados.
Não atoa que o Supremo Tribunal Federal, em decisão da lavra do Ministro
Ilmar Galvão, afirmou que a fundada suspeita prevista no art. 244 do CPP, não pode
basear-se em parâmetros exclusivamente subjetivos, sob pena de autorizar atuações
arbitrarias, violadoras de direitos e caracterizadoras de abuso de poder, senão vejamos:
HABEAS CORPUS 81305 / GO - GOIÁS
RELATOR MIN. ILMAR GALVÃO
ÓRGÃO JULGADOR: PRIMEIRA TURMA
JULGAMENTO 13/11/2001

EMENTA: HABEAS CORPUS. TERMO


CIRCUNSTANCIADO DE OCORRÊNCIA LAVRADO
CONTRA O PACIENTE. RECUSA A SER SUBMETIDO A
BUSCA PESSOAL. JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL
RECONHECIDA POR TURMA RECURSAL DE JUIZADO
ESPECIAL. Competência do STF para o feito já reconhecida
por esta Turma no HC n.º 78.317. Termo que, sob pena de
excesso de formalismo, não se pode ter por nulo por não
registrar as declarações do paciente, nem conter sua assinatura,
requisitos não exigidos em lei. A "fundada suspeita", prevista
no art. 244 do CPP, não pode fundar-se em parâmetros
unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que
indiquem a necessidade da revista, em face do
constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos
dessa natureza, que não se pode ter por configurados na
alegação de que trajava, o paciente, um "blusão" suscetível
de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas
arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e
caracterizadoras de abuso de poder. Habeas corpus deferido
para determinar-se o arquivamento do Termo.

GRIFOS NOSSOS

Igualmente, o Superior Tribunal de Justiça firmou jurisprudência no sentido de


que a fundada suspeita (justa causa), que justifica a realização da busca pessoal sem
mandado judicial, deve estar lastrada em elementos concretos e objetivos que indiquem
de forma clara a ocorrência de crime no momento da abordagem, não preenchendo o
standard probatório dessa cláusula parâmetros subjetivos, não constatáveis de forma
segura e manifesta, de determinadas atitudes ou aparência como suspeita (raça, cor da
pele, aparência física) ou de certa reação ou expressão corporal, ainda que seja
constatada situação de flagrância posterior à revista do individuo. Confira-se:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE


DROGAS. BUSCA PESSOAL. AUSÊNCIA DE FUNDADA
SUSPEITA. ALEGAÇÃO VAGA DE ATITUDE SUSPEITA.
INSUFICIÊNCIA. ILICITUDE DA PROVA OBTIDA.
TRANCAMENTO DO PROCESSO. RECURSO PROVIDO.
1. Exige-se, em termos de standard probatório para
busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência
de fundada suspeita (justa causa) baseada em um juízo de
probabilidade, descrita com a maior precisão possível,
aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos
indícios e circunstâncias do caso concreto de que o indivíduo
esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou
papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a
urgência de se executar a diligência.
2. Entretanto, a normativa constante do art. 244 do CPP
não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso,
também, que esteja relacionada à posse de arma proibida ou de
objetos ou papéis que constituam corpo de delito. Vale dizer, há
uma necessária referibilidade da medida, vinculada à sua
finalidade legal probatória, a fim de que não se converta em
salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias (fishing
expeditions), baseadas em suspeição genérica existente sobre
indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a
posse de arma proibida ou objeto (droga, por exemplo) que
constitua corpo de delito de uma infração penal. O art. 244 do
CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como rotina ou
praxe do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e
motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com
finalidade probatória e motivação correlata.
3. Não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras
informações de fonte não identificada (e.g. denúncias
anônimas) ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e
não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas,
por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a
ausência de descrição concreta e precisa, pautada em
elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada
atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou
expressão corporal como nervosa, não preenche o standard
probatório de fundada suspeita exigido pelo art. 244 do CPP.
4. O fato de haverem sido encontrados objetos ilícitos
independentemente da quantidade após a revista não
convalida a ilegalidade prévia, pois é necessário que o
elemento fundada suspeita de posse de corpo de delito seja
aferido com base no que se tinha antes da diligência. Se não
havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de
arma proibida, droga ou de objetos ou papéis que
constituam corpo de delito, não há como se admitir que a
mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à
revista do indivíduo, justifique a medida.
5. A violação dessas regras e condições legais para
busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em
decorrência da medida, bem como das demais provas que
dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de
eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s)
que tenha(m) realizado a diligência.
6. Há três razões principais para que se exijam elementos
sólidos, objetivos e concretos para a realização de busca pessoal
vulgarmente conhecida como dura, geral, revista, enquadro ou
baculejo, além da intuição baseada no tirocínio policial:
a) evitar o uso excessivo desse expediente e, por
consequência, a restrição desnecessária e abusiva dos direitos
fundamentais à intimidade, à privacidade e à liberdade (art. 5º,
caput, e X, da Constituição Federal), porquanto, além de se
tratar de conduta invasiva e constrangedora mesmo se realizada
com urbanidade, o que infelizmente nem sempre ocorre,
também implica a detenção do indivíduo, ainda que por breves
instantes;
b) garantir a sindicabilidade da abordagem, isto é,
permitir que tanto possa ser contrastada e questionada pelas
partes, quanto ter sua validade controlada a posteriori por um
terceiro imparcial (Poder Judiciário), o que se inviabiliza quando
a medida tem por base apenas aspectos subjetivos, intangíveis e
não demonstráveis;
c) evitar a repetição ainda que nem sempre consciente de
práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na
sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto
do racismo estrutural.
7. Em um país marcado por alta desigualdade social e
racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos
marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais
suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade,
cor da pele, gênero, classe social, local da residência,
vestimentas etc. Sob essa perspectiva, a ausência de
justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos
agentes públicos diante da discricionariedade policial na
identificação de suspeitos de práticas criminosas pode fragilizar
e tornar írritos os direitos à intimidade, à privacidade e à
liberdade.
8. Os enquadros se dirigem desproporcionalmente aos
rapazes negros moradores de favelas dos bairros pobres das
periferias. Dados similares quanto à sobrerrepresentação desse
perfil entre os suspeitos da polícia são apontados por diversas
pesquisas desde os anos 1960 até hoje e em diferentes países do
mundo. Trata-se de um padrão consideravelmente antigo e que
ainda hoje se mantém, de modo que, ao menos entre os
estudiosos da polícia, não existe mais dúvida de que o racismo é
reproduzido e reforçado através da maior vigilância policial a
que é submetida a população negra. Mais do que isso, os
policiais tendem a enquadrar mais pessoas jovens, do sexo
masculino e de cor negra não apenas como um fruto da dinâmica
da criminalidade, como resposta a ações criminosas, mas como
um enviesamento no exercício do seu poder contra esse grupo
social, independentemente do seu efetivo engajamento com
condutas ilegais, por um direcionamento prévio do controle
social na sua direção (DA MATA, Jéssica, A Política do
Enquadro, São Paulo: RT, 2021, p. 150 e 156).
9. A pretexto de transmitir uma sensação de segurança à
população, as agências policiais em verdadeiros "tribunais de
rua" cotidianamente constrangem os famigerados elementos
suspeitos com base em preconceitos estruturais, restringem
indevidamente seus direitos fundamentais, deixam-lhes graves
traumas e, com isso, ainda prejudicam a imagem da própria
instituição e aumentam a desconfiança da coletividade sobre ela.
[...]
11. Mesmo que se considere que todos os flagrantes
decorrem de busca pessoal o que por certo não é verdade , as
estatísticas oficiais das Secretarias de Segurança Pública
apontam que o índice de eficiência no encontro de objetos
ilícitos em abordagens policiais é de apenas 1%; isto é, de cada
100 pessoas revistadas pelas polícias brasileiras, apenas uma é
autuada por alguma ilegalidade. É oportuno lembrar, nesse
sentido, que, em Nova Iorque, o percentual de eficiência das
stop and frisks era de 12%, isto é, 12 vezes a porcentagem de
acerto da polícia brasileira, e, mesmo assim, foi considerado
baixo e inconstitucional em 2013, no julgamento da class action
Floyd, et al. v. City of New York, et al. pela juíza federal Shira
Scheindlin.
12. Conquanto as instituições policiais hajam figurado no
centro das críticas, não são as únicas a merecê-las. É preciso
que todos os integrantes do sistema de justiça criminal
façam uma reflexão conjunta sobre o papel que ocupam na
manutenção da seletividade racial. Por se tratar da porta de
entrada no sistema, o padrão discriminatório salta aos olhos, à
primeira vista, nas abordagens policiais, efetuadas
principalmente pela Polícia Militar. No entanto, práticas como a
evidenciada no processo objeto deste recurso só se perpetuam
porque, a pretexto de combater a criminalidade, encontram
respaldo e chancela, tanto de delegados de polícia, quanto de
representantes do Ministério Público a quem compete, por
excelência, o controle externo da atividade policial (art. 129,
VII, da Constituição Federal) e o papel de custos iuris, como
também, em especial, de segmentos do Poder Judiciário, ao
validarem medidas ilegais e abusivas perpetradas pelas agências
de segurança.
13. Nessa direção, o Manual do Conselho Nacional de
Justiça para Tomada de Decisão na Audiência de Custódia
orienta a que:
"Reconhecendo o perfilamento racial nas abordagens
policiais e, consequentemente, nos flagrantes lavrados pela
polícia, cabe então ao Poder Judiciário assumir um papel ativo
para interromper e reverter esse quadro, diferenciando-se dos
atores que o antecedem no fluxo do sistema de justiça criminal".
14. Em paráfrase ao mote dos movimentos antirracistas,
é preciso que sejamos mais efetivos ante as práticas autoritárias
e violentas do Estado brasileiro, pois enquanto não houver um
alinhamento pleno, por parte de todos nós, entre o discurso
humanizante e ações verdadeiramente transformadoras de certas
práticas institucionais e individuais, continuaremos a assistir,
apenas com lamentos, a morte do presente e do futuro, de nosso
país e de sua população mais invisível e vulnerável. E não
realizaremos o programa anunciado logo no preâmbulo de nossa
Constituição, de construção de um Estado Democrático,
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos
de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.[...]
(RHC n. 158.580/BA, relator Ministro Rogerio Schietti
Cruz, Sexta Turma, julgado em 19/4/2022, DJe de 25/4/2022.)
NOSSOS GRIFOS

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS


SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. CRIME DE
TRÁFICO DE DROGAS NULIDADE DA BUSCA PESSOAL.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. HABEAS
CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE
OFÍCIO. REVALORAÇÃO JURÍDICA DOS FATOS
INCONTROVERSOS. POSSIBILIDADE. AGRAVO
REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. Como é de conhecimento, esta Corte Superior firmou
o entendimento jurisprudencial no sentido de que: "Não
satisfazem a exigência legal, por si sós [para a realização de
busca pessoal/veicular], meras informações de fonte não
identificada (e. g. denúncias anônimas) ou intuições e
impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de
maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo,
exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência de
descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a
classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência
como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como
nervosa, não preenche o standard probatório de 'fundada
suspeita' exigido pelo art. 244 do CPP" (RHC n. 158.580/BA,
Relator Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma,
julgado em 19/4/2022, DJe 25/4/2022).
2. Na hipótese, não houve nenhuma referência à
investigação preliminar ou menção a situações outras que
poderiam caracterizar a justa causa para a revista pessoal, visto
que decorreu de parâmetros subjetivos, embasados no fato de
que o paciente foi avistado por policiais militares, que estavam
em patrulhamento em local conhecido como ponto de tráfico de
drogas, saindo de um mato situado do outro lado da calçada em
direção a um bar, no qual havia mais pessoas.
Ademais, pairam dúvidas quanto à suposta "confissão
informal" do paciente, que teria informado aos policiais
espontaneamente o local onde estaria o restante das drogas,
notadamente porque fora proferida em clima de estresse policial.
No ponto, merece relevo o depoimento prestado pelo paciente
em juízo no sentido de que os policiais foram extremamente
agressivos e, inclusive, agrediram-o.
3. Ressalta-se, a propósito, que não é necessário revolver
o material fático-probatório para reconhecer a ilegalidade da
busca pessoal, em total afronta ao artigo 244 do Código de
Processo Penal, uma vez que, no caso, os fatos incontroversos já
estão delineados nos autos.
4. Por conseguinte, deve ser mantida a decisão que
reconheceu a ilicitude das provas obtidas em busca pessoal
(86,27 gramas de cocaína), com a consequente absolvição do
paciente, nos autos da ação penal n. 1500728-
62.2022.8.26.0594, do crime tipificado no art. 33, caput, da Lei
n. 11.343/2006, nos termos do art. 386, II, do CPP.
5. Agravo regimental do Ministério Público do Estado de
São Paulo a que se nega provimento.
(AgRg no HC n. 807.446/SP, relator Ministro Reynaldo
Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 27/4/2023, DJe
de 3/5/2023.)

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO


REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
TRÁFICO DE DROGAS. REVISTA PESSOAL. AUSÊNCIA
DE FUNDADA SUSPEITA. APLICAÇÃO DO
ENTENDIMENTO FIRMADO NO RHC N. 158.580/BA.
NULIDADE RECONHECIDA. ABSOLVIÇÃO.
1. Nos termos do art. 240, § 2º, do CPP, para a realização
de busca pessoal pela autoridade policial, é necessária a
presença de fundada suspeita no sentido de que a pessoa
abordada esteja na posse de drogas, objetos ou papéis que
constituam corpo de delito.
2. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de
que "não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras
informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas)
ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não
demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por
exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência
de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos,
a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência
como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como
nervosa, não preenche o standard probatório de 'fundada
suspeita' exigido pelo art. 244 do CPP" (RHC n. 158.580/BA,
relator Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA
TURMA, julgado em 19/4/2022, DJe 25/4/2022).
3. Os meros informes anônimos e o fato de o acusado ser
conhecido pela polícia como frequentador de local onde
comumente ocorre tráfico de drogas, além de corroborarem
apenas estereótipos, presunções e impressões subjetivas, não
constituem fundadas razões para a realização de busca pessoal,
sem a devida apuração.
4. A descoberta de objetos ilícitos a posteriori não
convalida a abordagem policial. Se não havia fundada suspeita
de que a pessoa estava na posse de droga ou de objetos ou
papéis que constituam corpo de delito, não há como se admitir
que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior
à revista do indivíduo, justifique a medida.
5. Agravo regimental improvido.
(AgRg no AREsp n. 2.142.037/SP, relator Ministro
Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª
Região), Sexta Turma, julgado em 27/9/2022, DJe de
30/9/2022.)

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PROVA


ILÍCITA. REVISTA PESSOAL. AUSÊNCIA DE FUNDADAS
SUSPEITAS. ILEGALIDADE. OCORRÊNCIA.
ABSOLVIÇÃO. HABEAS CORPUS CONCEDIDO.
1. Considera-se ilícita a revista pessoal realizada sem
a existência da necessária justa causa para a efetivação da
medida invasiva, nos termos do art. § 2º do art. 240 do CPP,
bem como a prova derivada da busca pessoal.
2. Se não havia fundadas suspeitas para a realização de
busca pessoal no acusado, não há como se admitir que a mera
constatação de situação de flagrância, posterior à revista do
indivíduo, justifique a medida. Assim, o fato de o acusado se
amoldar ao perfil descrito em denúncia anônima e ter
empreendido fuga ante a tentativa de abordagem dos policiais
militares, não justifica, por si só, a invasão da sua privacidade,
haja vista a necessidade de que a suspeita esteja fundada em
elementos concretos que indiquem, objetivamente, a ocorrência
de crime no momento da abordagem, enquadrando-se, assim, na
excepcionalidade da revista pessoal.
3. Habeas corpus concedido para reconhecer a nulidade
das provas obtidas a partir da busca pessoal realizada, bem como
as delas derivadas, anulando-se a sentença para que outra seja
prolatada, com base nos elementos probatórios remanescentes.
(HC n. 625.819/SC, relator Ministro Nefi Cordeiro,
Sexta Turma, julgado em 23/2/2021, DJe de 26/2/2021.)

Faz-se mister também registrar que, para conferir legitimidade às buscas, além
da existência de justa causa anterior à realização da medida, o Plenário do STF, em
Repercussão Geral, no Recurso Extraordinário n. 603.616, exige rígido controle
judicial. Para tanto é imprescindível que os elementos que evidenciem a fundada
suspeita/razão anterior à busca pessoal e/ou domiciliar constem de forma precisa e
objetiva na descrição do auto de prisão/apreensão em flagrante ou no respectivo
relatório de diligência policial para ulterior controle por parte do Poder Judicial.
Necessária, ainda, a caracterização da urgência para a realização da busca
pessoal e /ou domiciliar sem mandado judicial, a fim de assegurar a excepcionalidade da
medida e evitar buscas pessoais/domiciliar arbitrárias, casuais, aleatórias, com escopo
vexatórios, humilhantes, discriminatório, originadas em critérios subjetivos e ou em
verdadeiras abordagens praticadas como rotina ou praxe do policiamento ostensivo,
com finalidade preventiva e motivação exploratória (fishing expeditions).
Ausentes, portanto, as razões objetivas requeridas pela lei processual penal para
a restrição dos direitos fundamentais operada in casu, é imperioso que este juízo
reconheça a ilegalidade da abordagem baseada em filtragem racial, por contrariar o art.
3º, IV, e art. 5˚, da CRFB/88, assim como o artigo V da Convenção Para Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial; o artigo 1.1 da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos; e, por fim, os artigos 1, 3, e 4, itens v, vii e viii, da Convenção
Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de
Intolerância (CIR).
No caso em tela, verifica-se dos elementos de informação constantes do auto de
prisão em flagrante/ auto de apreensão do adolescente que a abordagem policial na
origem foi motivada pela cor do custodiado/adolescente apreendido. Isto é, foi a cor da
pele o fator que primeiramente despertou a atenção e suspeita do agente de
segurança pública, o que não pode ser admitido.
Conforme relato das testemunhas: XXXXX(complementar conforme cada caso
concreto).
Ainda que, no caso concreto, os agentes de segurança não tenham afirmado de
forma expressa e categórica que decidiram abordar o custodiado/adolescente apreendido
apenas pela sua cor de pele, fato é que uma tal exigência não seria razoável, sob pena de
se reservar o remédio da nulidade da prova apenas para os casos em que o perfilamento
racial equivale ao crime de racismo, o que seria um erro.
Isso porque, em casos de perfilamento a cor da pele dificilmente será assumida
como o único elemento que levou a abordagem policial. Geralmente, o elemento racial
vem conjugado com outros fatores subjetivos relativo ao local do crime – “ponto
conhecido como venda de drogas”, “local suspeito”, “área conflagrada”, e em
suposições consentidas em deduções estereotipadas: o “como se estivesse
vendendo/comprando algo”, o “como se estivesse portando uma arma ou algum objeto
ilícito”.
Como já esclareceu o Ministro Edson Fachin, em seu voto complementar, no HC
208240/SP, afetado recentemente ao Pleno do STF: o “perfilamento é também a
abordagem justificada a partir de uma suposta maior probabilidade de que uma pessoa
tenha cometido uma infração e que a sua cor de pele influenciou na pratica do ato: o
negro em local suspeito, o negro com carro, o negro com roupa de marca, o negro e o
seu semblante”.
Não podemos mais admitir que a abordagem policial se fundamente em uma
generalização cujo único elemento para a busca seja o fato de a pessoa abordada ser
“um individuo de cor negra”, em “local suspeito”.
Nesse contexto, considerando que a situação apresentada não evidencia a
existência de elementos concretos a caracterizar a fundada suspeita/razão para revista
pessoal/busca domiciliar sem mandado judicial, deve esta ser declarada nula, assim
como todos os elementos de informação e provas colhidos que dela derivem diretas ou
indiretamente, porque decorrem de apreensão ilegal realizada em violação ao previsto
no art. 5º, X/XI da CRFB/88 e não se enquadram nas exceções legais previstas no
paragrafo 1º do art. 157 do CPP.
Por conseguinte, por não haver outros elementos de provas hígidos a lastrear a
presente persecução penal/representação ministerial contra o acusado/representado,
impõe-se o relaxamento da prisão do custodiado/apreensão do adolescente e o
trancamento da ação penal/representação ministerial, o que ora se requer.

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