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O pobre no

direito e
processo penal

René Ariel Dotti


Dossiê Justiça brasileira

RESUMO ABSTRACT

A pobreza é condição que deve ser trata- Poverty is a condition that should be discus-
da não apenas do ponto de vista sociopolí- sed not only from a socio-political point of
tico, mas, também, jurídico. Existem várias view, but also from a legal standpoint. The-
garantias históricas, hoje na Constituição re are several historical rights, nowadays
Federal brasileira, destinadas às pessoas enshrined in the Brazilian Federal Constitu-
nessa condição. O direito penal e o pro- tion, intended for people in such condition.
cessual penal comungam de muitas delas, The criminal law and criminal procedural law
com o apoio de iniciativas estatais como share many of them, and they are supported
a estruturação das defensorias públicas. by State initiatives such as, for example, the
Porém, apesar dos claros avanços textu- structuring of offices for public defenders.
ais das leis, a rotina dos processos e dos However, despite the great advances in the
presídios denuncia uma realidade muito manner in which laws are worded, the daily
diferente. routine during lawsuits and in penitentiaries
bespeaks a very different reality.
Palavras-chave: direito penal; acusado;
condenado; pobreza; direitos fundamen- Keywords: criminal law; defendant; con-
tais; sistema penitenciário; crítica; possi- vict; poverty; fundamental rights; peniten-
bilidades. tiary system; criticism; possibilities.

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A EXTREMA

O
RELEVÂNCIA DO TEMA

sedutor e generoso CONTRA A POBREZA


tema sobre a situ-
ação jurídica da A Constituição Federal promete, entre os ob-
pessoa pobre no jetivos fundamentais da República, “erradicar a
contexto da justi- pobreza e a marginalização e reduzir as desigual-
ça criminal exige dades sociais e regionais”, bem como “promover
algumas observa- o bem-estar de todos, sem preconceitos de origem,
ções preliminares. raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
A primeira delas é discriminação” (art. 3o, III e IV).
sobre os conceitos É certo que iniciativas e projetos positivos do
sociológico e jurí- governo federal, como o programa “Minha casa,
dico de pobreza. minha vida”, entre outros, revelam a melhoria de
Quanto ao primei- condições humanas e sociais de contingentes das
ro, Johnson (1997, p. 176) esclarece que, em sentido pessoas pobres. Mas, em relação aos suspeitos, in-
geral, essa é “uma situação na qual as pessoas care- diciados e réus pobres, o sistema legal contém so-
cem daquilo de que têm necessidade para viver. Os mente proclamações otimistas. Há um descompasso
limites de ‘necessidade para viver’, no entanto, são flagrante entre as declarações de direitos e garantias
matéria de definição”. Percebe-se, desde logo, que constantes da Carta Política e da legislação ordi-
este é um enunciado dependente de complemen- nária com o estado das prisões e o tratamento dos
tação. E, relativamente ao segundo, Helena Diniz presos. Especialmente dos presos pobres.
(1998, p. 615) nos diz que o vocábulo tem acepções
variadas segundo o ramo jurídico específico: civil, OS DIREITOS E AS
processual e canônico. No plano penal, a pobreza
pode dispensar da cobrança da multa diretamen- GARANTIAS FUNDAMENTAIS (I)
te no vencimento do apenado quando ela afetar os
“recursos indispensáveis ao sustento do condenado Há um princípio, de tempos imemoriais, de que
e de sua família” (Código Penal – CP, art. 50, § 2o).
E, relativamente ao processo penal, a obrigação de
pagar fiança será substituída por medida cautelar
diversa da prisão (Código do Processo Penal – CPP, RENÉ ARIEL DOTTI é professor titular de Direito
art. 325, § 1o, I, c/c o art. 350). Penal da Universidade Federal do Paraná, corredator
dos anteprojetos convertidos nas leis 7.209 e 7.210,
de 1984 (reforma da Parte Geral do CP e Lei de
A SUPOSTA PROTEÇÃO Execução Penal), e autor de, entre outros, Curso de
Direito Penal – Parte Geral (Revista dos Tribunais).

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toda pessoa acusada de um delito tem o direito à tegridade física e moral;


defesa. Em textos clássicos dos direitos fundamen- L – às presidiárias serão asseguradas condições
tais, essa garantia está ligada a outros princípios: o para que possam permanecer com seus filhos
devido processo legal e a presunção de inocência. durante o período de amamentação;
Na Declaração dos Direitos do Homem e do Ci- […]
dadão (1789), que consagrou o movimento revolu- LIV – ninguém será privado da liberdade ou de
cionário francês da república contra a monarquia, seus bens sem o devido processo legal;
os arts. 7o e 9o dispõem: LV – aos litigantes, em processo judicial ou admi-
nistrativo, e aos acusados em geral são assegurados
“Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão o contraditório e ampla defesa, com os meios e
nos casos determinados pela lei e de acordo com recursos a ela inerentes;
as formas por esta prescritas […]; LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas
Todo acusado se presume inocente até ser de- obtidas por meios ilícitos;
clarado culpado e, se se julgar indispensável LVII – ninguém será considerado culpado até o
prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda trânsito em julgado da sentença penal condenatória;
da sua pessoa deverá ser severamente reprimido […]
pela lei”. LXI – ninguém será preso senão em flagrante de-
lito ou por ordem escrita e fundamentada de auto-
Na Declaração Universal dos Direitos Huma- ridade judiciária competente, salvo […];
nos (Paris, 1948), que subsidiou a Convenção de LXII – a prisão de qualquer pessoa e o local onde
Roma (1950) e declarações latino-americanas, se encontre serão comunicados imediatamente ao
está posto: juiz competente e à família do preso ou à pessoa
por ele indicada;
“Todo homem tem direito, em plena igualdade, LXIII – o preso será informado de seus direitos,
a uma justa e pública audiência por parte de um entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe
tribunal independente e imparcial, para decidir de assegurada a assistência da família e de advogado;
seus direitos e deveres ou do fundamento de qual- LXIV – o preso tem direito à identificação dos
quer acusação criminal contra ele” (art. X). responsáveis por sua prisão ou por seu interroga-
tório policial;
“Todo homem acusado de um ato delituoso tem LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada
o direito de ser presumido inocente até que a sua pela autoridade judiciária;
culpabilidade tenha sido provada de acordo com LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela man-
a lei, em julgamento público no qual lhe tenham tido, quando a lei admitir a liberdade provisória,
sido asseguradas todas as garantias necessárias à com ou sem fiança;
sua defesa” (art. XI, no 1). […]
LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica
OS DIREITOS E AS integral e gratuita aos que comprovarem insufici-
ência de recursos;
GARANTIAS FUNDAMENTAIS (II) LXXV – o Estado indenizará o condenado por erro
judiciário, assim como o que ficar preso além do
Os direitos e as garantias fundamentais que tempo fixado na sentença;
a Constituição declara em favor de todos os acu- […]
sados são, lamentavelmente, descurados em rela- LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e admi-
ção aos pobres nos procedimentos rotineiros da nistrativo, são assegurados a razoável duração do
investigação policial, da instrução judicial e da processo e os meios que garantam a celeridade de
execução da pena. Seguem alguns mandatos de sua tramitação”.
proteção do art. 5o:
DIREITOS E
“XLIX – é assegurado aos presos o respeito à in-

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GARANTIAS LEGAIS no início da instrução judicial;
8) “nenhum acusado, ainda que ausente ou foragi-
A Lei no 11.900/2009, modificativa de disposi- do, será processado ou julgado sem defensor”
tivos do Código de Processo Penal, estabelece, em (CPP, art. art. 261);
favor dos acusados em geral e, em especial, dos 9) “A defesa técnica, quando realizada por defen-
acusados pobres, os seguintes direitos e garantias: sor público ou dativo, será sempre exercida atra-
vés de manifestação fundamentada” (CPP, art.
1) presença do defensor, constituído ou nomeado, 261, parágrafo único).
no ato do interrogatório em liberdade ou na pri-
são, bem como a publicidade do ato (art. 185, A DEFENSORIA PÚBLICA
caput e § 1o);
2) antes do interrogatório por videoconferência1, o Tornou-se conhecida, entre os profissionais
preso poderá acompanhar, pelo mesmo sistema da advocacia, no fórum criminal, a frase “quem
tecnológico, a realização de todos os atos da garante as garantias?”. Essa responsabilidade, em
audiência única de instrução e julgamento (art. princípio, é tanto do juiz quanto do agente do Mi-
185, § 4o); nistério Público e do defensor. Mas o órgão que
3) em qualquer modalidade de interrogatório, o tem o maior dever institucional e humano de pro-
juiz garantirá ao réu o direito de entrevista pré- teger os pobres é a Defensoria Pública. Inovando
via e reservada com o seu defensor. E, quando em relação a todas as cartas políticas anteriores,
realizado por videoconferência, fica também a Constituição Federal de 1988 criou essa “insti-
garantido o acesso a canais telefônicos reser- tuição essencial à função jurisdicional do Estado,
vados para a comunicação entre o defensor que incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa,
esteja no presídio e o advogado presente na sala em todos os graus, dos necessitados, na forma do
de audiência do fórum e entre este e o preso (art. art. 5o, LXXIV” (art. 134).
185, § 5o); O editorial de O Estado de S. Paulo de 17 de
4) a sala reservada no estabelecimento prisional abril do corrente ano revela o saldo positivo da
para a realização de atos processuais por siste- Defensoria Pública da União, com a publicação do
ma de videoconferência será fiscalizada pelos
corregedores e pelo juiz de cada causa, como “[…] mais completo relatório sobre sua insta-
também pelo Ministério Público e pela Ordem lação, há quase vinte anos. Atuando como uma
dos Advogados do Brasil (art. 185, § 6o); instituição autônoma nos planos funcional e ad-
5) os direitos e as garantias previstos nos §§ 2o, 3o, ministrativo, a exemplo do Ministério Público,
4o e 5o do art. 185 devem ser observados, no que a Defensoria foi instituída pela Constituição de
couber, para a realização de outros atos proces- 88 com o objetivo de democratizar o acesso
suais que dependam da presença da pessoa pre- aos tribunais, defender as liberdades públicas
sa, como acareação, reconhecimento de pessoas e salvaguardar direitos individuais e coletivos
e coisas e inquirição de testemunhas ou tomada de cidadãos carentes, ajudando a melhorar as
de declarações do ofendido (art. 185, § 8o); condições de desenvolvimento econômico e
6) o direito constitucional de permanecer cala- social do país”.
do não importará confissão e nem poderá ser
interpretado em prejuízo da defesa (art. 186 Mas, apesar da excelente estatística de bons re-
e parág. ún.); sultados, o artigo adverte que, tanto em relação à
7) o interrogatório do acusado constitui o último União como em relação às unidades federativas, há
ato da audiência de instrução e julgamento (art. necessidade de maior número de advogados para
400), ao contrário do ancién regime, quando a que o acesso à jurisdição se mostre amplamente
palavra do denunciado ou querelado era colhida satisfatório.

1 O interrogatório de réu preso pelo sistema de videoconfe- AS SUCURSAIS DO INFERNO


rência é excepcional e motivado (CPP, art. 185, § 2o).

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Em seu nome pessoal e em nome da seção para-


Em texto elaborado para o Seminário Nacional
naense da Ordem dos Advogados do Paraná, a dra
de Segurança Pública e Execução Penal, promovi-
Beloni tem aberto muitas clareiras nas paliçadas
do pela OAB-PR (Curitiba, 7-9 de julho de 2011),
da indiferença, da hostilidade e do desprezo cons-
tive oportunidade de afirmar:
truídas justamente por aqueles agentes públicos
“A denúncia apresentada neste artigo constitui,
que assumiram os cargos funcionais ligados aos
lamentavelmente, um lugar-comum que, pela sua
sistemas policial, judiciário e penitenciário.
recorrência, não desperta mais qualquer reação da
Com a lucidez de quem enxerga para muito além
sociedade, com exceção de alguns movimentos re-
das grades da tragédia que envolve a população
ligiosos e de algumas pessoas que fazem de seu
carcerária e com a força de espírito que anima as
ofício a luta permanente em favor da dignidade
suas ações humanitárias, ela é uma fervorosa devo-
humana e da missão de confortar as vítimas de um
ta de princípios e de ideias que sempre animaram
sistema carcerário injusto e opressivo.
os grandes projetos de estímulo em favor de quem
Entre essas pessoas, está a advogada Lucia Beloni
sofre, no corpo e na alma, a marca da infâmia, mas
que, há muitos anos, desempenha notável luta de
que ainda conservam, na solidão e no sofrimento,
resistência contra as misérias e os tormentos das
a esperança da liberdade.
cadeias públicas em nossa cidade, as quais rotinei-
ramente se converteram em sucursais do inferno.
A proclamação otimista

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‘As cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, as proclamações otimistas da Constituição e das
havendo diversas casas para separação dos réus, leis em estátuas de areia.
conforme suas circunstâncias e natureza de seus Há problemas que, em sua gravidade humana e so-
crimes.’ Esta foi a proclamação da Carta Política cial, transcendem os limites previstos na rotina dos
de 25 de março de 1824 (art. 179, §21). acontecimentos. Fatos naturais, como o terremoto
Do Império que estava surgindo, após a coloni- ou o dilúvio, assumem proporções apocalípticas
zação portuguesa (1500-1822), e até a República que levam populações ao desespero e dominam os
Federativa, constituída em estado democrático de espaços da mídia internacional. Há muitos eventos
direito e que tem, em seu primeiro artigo e como humanos que também revelam imensa carga de
um de seus fundamentos, ‘a dignidade da pessoa sofrimento e de dor, como a guerra e as revoluções
humana’, o que mudou? Entre o texto da Carta armadas. A natureza e o homem não raramente
Política outorgada por Dom Pedro I (1824), que se acumpliciam para a produção de espetáculos
declarou abolidos ‘os açoites, a tortura, a marca de terror, fazendo com que a vida imite a arte da
de ferro quente e todas as demais penas cruéis’ e tragédia. O espectador, o leitor e o ouvinte alter-
os dispositivos da Constituição Cidadã (1988), ao nam os objetos de visão e de escuta e compõem
afirmar que ‘é assegurado aos presos o respeito um imaginário e sussurrante coro de testemunhas
à integridade física e moral’ e que ‘a pena será impotentes. São milhões de pessoas que ficam à
cumprida em estabelecimentos distintos, de acor- frente da televisão, ao lado do rádio, ou passam os
do com a natureza do delito, a idade e o sexo do olhos pelos jornais e revistas para, fechado o pano
apenado’, qual foi a mudança? desse teatro do absurdo, retornar ao seu mundo
Nenhuma. Nem mesmo o conteúdo do discurso doméstico, à rotina de seus cotidianos, ao centro
religioso e da pregação dos apóstolos dos direi- do carrossel por onde passam as emoções dos dias
tos humanos. Salvo quanto às embalagens que e das noites.
cobrem as mesmas e antigas promessas. A pro-
pósito, o art. 300 do Código de Processo Penal, O terrível abandono de seres humanos
com a redação que lhe deu a novíssima Lei no Mas, além dos fatos gigantes nos cenários de hor-
12.403/2011, adverte: ‘As pessoas presas proviso- ror, existem acontecimentos que revelam, com no-
riamente ficarão separadas das que já estiverem tável frequência, as sucursais do inferno por onde
definitivamente condenadas, nos termos da lei de desfilam seres abandonados (crianças, velhos,
execução penal’. doentes, presidiários) que são destinatários dos
dejetos da sociedade e, com grande frequência,
A triste realidade cotidiana vítimas de um universo feito de injustiça, indi-
Como contraste entre a informação do governo e ferença, preconceito e marginalização que fun-
a realidade carcerária, surge a pessimista obser- cionam como pontos cardeais das viagens para
vação do delegado de polícia, Rockemback, do portos desconhecidos.
Grupo Especial Tigre, da Secretaria de Segurança Uma reportagem publicada há alguns anos em
Pública do Paraná, após ouvir, durante a negocia- jornal de ampla divulgação em nossa cidade, sob
ção entre policiais militares e presos, as queixas o título realista ‘Estamos Fabricando Monstros’,
da situação desumana em que vivem e da grande coloca em ponto alto não somente a miséria da
quantidade de seres humanos no mesmo local in- promiscuidade vivida pelos encarcerados como
fecto e pestilento: ‘Essa é infelizmente a realida- também a sensibilidade e o vigor do jornalismo
de do sistema carcerário brasileiro, é nossa rotina investigativo. A matéria, assinada por Mara Cor-
conviver com esse tipo de situação. Agora a gente nelsen, distribui em página inteira as imagens e os
volta para a unidade imaginando quando vai ser a dados estatísticos que impressionam não somente
próxima rebelião’. o público leitor como também as próprias autori-
É muito importante denunciar que o grave dades policiais e seus agentes. Aliás, as primei-
problema das cadeias públicas – de Curitiba e de ras palavras denunciando esses campos de con-
inúmeras cidades do país – constitui modelo de centração vêm dos delegados, que lamentaram
sacrifício moral e físico dos presos e transformou o quadro de extermínio moral e físico quando

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foram entrevistados: ‘Estamos fabricando mons- PESSOAS PRESAS


tros, que mais tarde serão devolvidos à sociedade’.
E prossegue o texto: ‘Esta é a opinião unânime O terceiro fundamento do estado democrá-
dos delegados de polícia que atuam nos distritos tico de direito é a dignidade da pessoa humana,
de Curitiba quando se referem ao problema da jurada no primeiro ar tigo da Constituição
superlotação carcerária. Projetados para receber, Federal. Há um imenso número de presos e
no máximo, 40 presos – nos casos das delega- condenados pobres que sofrem as agruras da
cias maiores – e por apenas alguns poucos dias, prisão em escala muito maior que outros pre-
as delegacias distritais existentes nos bairros da sidiários que contam com algum recurso finan-
capital acabaram virando minipresídios superlo- ceiro proporcionado por familiares. E são fisi-
tados, que abrigam até três vezes mais pessoas do camente maltratados quando transportados para
que a sua capacidade normal. Sem infraestrutu- as delegacias policiais ou varas criminais. Vem
ra e sem segurança, as cadeias se assemelham a muito a propósito o artigo de Renata Almeida da
verdadeiras bombas, prestes a explodir a qualquer Costa, que merece transcrição de alguns trechos.
momento’ (Gazeta, 29/12/2005, p. 8). Após comentar a supressão da obrigatoriedade
Essas bombas, se não forem desativadas, vão do uso de algemas, a autora diz que:
estourar também no colo dos funcionários e dos
vizinhos desses depósitos de seres humanos. A “[…] poucos no país questionam ou se insurgem
caótica situação, como, por exemplo, a convivên- contra uma ação tão ou muito mais grave, mais
cia imposta entre delinquentes perigosos e acu- violenta e mais ilegal: a condução de pessoas
sados primários ou simples suspeitos, derruba presas (condenadas ou não, mas também não im-
um dos fundamentos da República, que é a dig- porta) no porta-malas dos veículos estatais. Al-
nidade da pessoa humana, e desmente o princí- gemados, jogados de lado, sem assento, sem cinto
pio da presunção de inocência, estabelecido em de segurança, são conduzidos, espetacularmente
nossa Carta Política: ‘ninguém será considerado diante dos olhos públicos, famosos ou anônimos.
culpado até o trânsito em julgado da sentença O que mais estarrece, para além do simbólico da
penal condenatória’. ‘Evangélicos Doam Comi- feitura da prisão (naquilo que Jacinto Coutinho
da’; ‘Em Cinco Anos Houve Aumento de 30% refere não bastar o uso da força, ser preciso o
no Número de Presos no Brasil’; ‘Cada Detento escárnio para o gozo da massa) e de todos os seus
Só Tem 0,67 m 2 para Viver’ e outros subtítulos efeitos estigmatizantes, é a violação explícita re-
da reportagem são ilustrados por fotografias que alizada pelo Estado de seus próprios princípios,
invadem as grades e desnudam a miséria dos insculpidos na Constituição Federal e no próprio
encarcerados: ‘Aqui vivemos num verdadeiro Código de Trânsito brasileiro. No documento de
inferno’, diz um deles. 1997, o Estado se preocupou em estabelecer os
As cadeias de Curitiba são servidões de passa- objetivos básicos do Sistema Nacional do Trânsi-
gem para o terror. Um mural infinito onde se to. Ali, no artigo 6o, está dito que as diretrizes da
desenham, à imagem das antigas inscrições, o Política Nacional do Trânsito devem ter em vista a
sofrimento e o desespero. Assim como nos re- segurança, a fluidez, o conforto, a defesa ambien-
corda a palavra imortal de um ex-presidiário: tal e a educação das atividades para o trânsito. E,
‘Para lá do portão ficava o mundo luminoso da antes mesmo de ser objetivo básico, a segurança
liberdade, que do lado de cá se imaginava como é apontada como disposição preliminar. O pará-
uma fantasmagoria, uma miragem. Para nós, o grafo 2o do artigo 1o assim determina: O trânsito,
nosso mundo não tinha nenhuma analogia com em condições seguras é um direito de todos […].
aquele; compunha-se de leis, de usos, de hábitos Se é assim, o emprego de viaturas para transporte
especiais, de uma casa morta-viva, de uma vida de pessoas custodiadas pelo Estado sem a obser-
à parte e de homens à parte’ (Fiódor Dostoievski, vância desse fundamento significa o quê? A ex-
Recordações da Casa dos Mortos)”. pressão ‘todos’ foi mal empregada? Ou será que,
pelos costumes e pelos sentimentos de vingança
O TRANSPORTE DAS outorgamos ao Estado o direito de descumprir

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as suas normas, ou de relativizá-las dependendo
plicitamente, o transporte de seres humanos nos
de quem é o seu destinatário? Será que o Estado
porta-malas dos veículos oficiais” (Costa, 2011).
abandonou as máximas latinas, sinal de erudição
do ordenamento jurídico racional, para assumir
uma máxima popular simplória (‘Faça o que eu ADVOCACIA E
digo, não faça o que eu faço!’)? A despeito da
SOLIDARIEDADE HUMANA
vigência da Constituição Federal (local em que
princípios como dignidade da pessoa humana e
O Código de Ética e Disciplina da Ordem dos
princípio da inocência, e os direitos à vida e à
Advogados do Brasil declara, entre as suas regras
integridade física ganharam status de imutabi-
fundamentais: “O Advogado, indispensável à ad-
lidade e de garantia de um contra a violência de
ministração da Justiça, é defensor do Estado De-
todos), as viaturas ao estilo ‘camburão’ segui-
mocrático de Direito, da cidadania, da moralidade
ram sendo utilizadas pelos órgãos da segurança
pública, da Justiça e da paz social, subordinando
pública. Possivelmente alicerçado nas situações
a atividade do seu Ministério Privado à elevada
regulamentadas pelo Contran, o descumprimen-
função pública que exerce” (art. 2o).
to do artigo 65 do CTB (É obrigatório o uso de
Essa relevante afirmação de princípio contém,
cinto de segurança para condutor e passageiros
implicitamente, o dever de solidariedade humana
em todas as vias do território nacional) adquiriu
como sentimento que anima um dos fundamentos
aparência de legalidade. […] Por outro lado, é ri-
da república, ou seja, a cidadania.
sível (não fosse trágico) que a lei federal brasileira
Na defesa de direitos e interesses que lhe são
(de número 8.653/93) destinada a regulamentar o
confiados, esse profissional deve exercer o seu
transporte de presos no Brasil (e que, jocosamen-
ministério com habilitação técnica e sensibilida-
te, dá outras providências), tenha apenas quatro
de para confortar aqueles que o procuram. Inde-
dispositivos. O primeiro afirma que ‘É proibido
pendentemente da natureza do problema exposto,
o transporte de presos em compartimento de
o cliente é um ser humano que sofre, em maior
proporções reduzidas, com ventilação deficiente ou
ou menor intensidade, a inquietação própria dos
ausência de luminosidade’. O segundo foi vetado.
desafios de sua vida privada ou pública. O gabi-
O terceiro determinou a entrada em vigor na data
nete de trabalho é, muitas vezes, um confessio-
de sua publicação. O quarto revogou as disposi-
nário que obriga o ouvinte a guardar o segredo e
ções em contrário. O riso se torna uma gargalhada
atenuar, quando não eliminar, a ansiedade e não
estupefata porque a malfadada norma específica
raro a angústia ou depressão. O causídico é, nesses
ainda está em vigor. Foi publicada após a Consti-
momentos, conselheiro e amigo.
tuição Federal e não se adequou àquela Carta de
O dever de ouvir é essencial na relação entre o
Princípios. É como se proporções medianas, com
profissional e o cliente. Muitas vezes, a informação
furos na lataria e vidros que deixem passar a luz (e
prestada ou o documento exibido podem ser dis-
a imagem de quem está dentro, muito importante
pensáveis para a defesa da causa. Mas é necessário
para o escárnio), fossem suficientes para assegurar
avaliar com prudência qualquer contribuição ofer-
a dignidade e a segurança da pessoa transportada.
tada porque não são raras as decisões judiciais que
Ao mesmo tempo, o Código de Trânsito Brasilei-
surpreendem os prognósticos mais acreditáveis.
ro não se preocupou em disciplinar a matéria. Ao
Prestar solidariedade humana é uma das qua-
contrário. Estabeleceu uma série de limitações à
lidades indispensáveis à boa advocacia. E lembra
condução dos veículos automotores, previu outra
os trechos do poema de Francisco Otaviano (1825-
série de sanções (especialmente as de caráter pe-
89), que, além de político e jornalista, foi também
cuniário destinatárias ao particular) e delegou ao
advogado:
Contran a responsabilidade de dizer o que ali não
foi dito. Esse, a seu turno, seguiu estabelecendo
“Quem não sentiu o frio da desgraça,
uma série de outros requisitos de proteção aos
Quem passou pela vida e não sofreu;
ocupantes dos veículos. Mas nenhum vedou, ex-
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu”.

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Dossiê Justiça brasileira

Bibliografia

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