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Nome: Mateus Leite de Sousa RA: 817125314

OFICINA DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO – Profº Sidnei Vares

A Importância do Trabalho numa


Segunda-feira ao Sol

Segunda-feira ao Sol, filme dirigido por Fernando León de Aranoa, conta a estória de quatro

personagens – Santa, Jose, Lino e Amador – que foram demitidos do principal estaleiro na

Espanha, do qual passava por uma crise financeira. Desempregados, vivem uma situação do

qual buscam sobreviver, pois as dívidas aparecem para todos e a busca por qualquer tipo de

emprego torna-se uma exigência. Os quatro passam por problemas relacionadas a suas

condições materiais: Santa é um homem endividado, Jose é sustentado pela sua esposa, Lino

busca por trabalhos que não encaixam no seu perfil, mas crê que possa ser contratado e, por

fim, Amador sofre de alcoolismo e passa por um estágio avançado de depressão. Assim vivem

esses homens assolados pelo desemprego. O presente texto refletirá sobre duas questões: qual

é a importância do trabalho na configuração da personalidade dos indivíduos e de que forma

as políticas neoliberais impactam sobre nossas relações macrossociais e microssociais?

Antes de respondê-las, uma explicitação se faz necessária sobre o que é entendido com

a categoria trabalho e seu reflexo na construção da personalidade dos seres humanos, e como

as consequências das políticas neoliberais refletem na (destituição) dos indivíduos nas

relações de trabalho e de luta política.

Karl Marx, em O Capital, concebe o trabalho como


[…] um processo1 entre o homem e a natureza, processo este em que o
homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo
com a natureza. Ele se confronta com a matéria natural como com uma
potência natural [Naturmacht]. A fim de se apropriar da matéria natural de
uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças
naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e
mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse
movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele
desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete o jogo de suas
forças a seu próprio domínio. (MARX, 2017, p. 255)

Encarado de modo não estranhado pelo processo de produção capitalista, do qual

reduz a atividade laboral num ato repetitivo, o trabalho é entendido dialeticamente como um

meio de transformação entre o homem e a natureza, na medida em que a criação dos objetos

pelo trabalho não modifica apenas a natureza, mas também modifica as condições materiais

dos homens e a si próprios, isto é,

a natureza não é compreendida como algo que é determinado a priori. A


potência da natureza se atualiza quando o ser humano, por meio de sua ação,
estabelece uma relação metabólica com o meio natural. É impossível separar
o humano do natural em Marx. Não se entrevê, outrossim, redutibilidade de
um ao outro. […] esse movimento tanto naturaliza o ser humano quanto
humaniza a dimensão natural sem apagar as diferenças existentes entre
ambos (PETO; VERISSIMO, 2018, p. 5)

De tal forma, que Marx compreende esta categoria como algo que distingue o homem

dos outros animais. A atividade vital dos animais com a natureza é restringida unicamente por

fatores biológicos, diferentemente dos homens que “a atividade vital […] não é determinada

pela necessidade. Ela é um processo consciente” (ibid., p. 7), do qual não somente são

satisfeitas as necessidades biológicas, mas também põem uma finalidade no processo de

trabalho que é o seu produto – num trecho d’O Capital, essa diferença essencial é

exemplificada:

Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao


homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma

1 David Harvey explica que Karl Marx não compreende as categorias da economia política de uma forma
estagnada que não sofre mudanças históricas, mas “o que Marx pretende é recuperar o poder intuitivo do
método dialético, que permite compreender que tudo está em processo, tudo está em movimento. Ele não
fala simplesmente de trabalho, mas do processo de trabalho. O capital não é uma coisa, mas um processo
que só existe em movimento. […] muitos de seus conceitos são formulados mais como relações do que
como princípios isolados; eles se referem a uma atividade transformadora” (2013, pp. 23-4).
abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém,
o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de
que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera.
No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava
presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um
resultado que já existia idealmente. (MARX, op. cit., pp. 255-6)2

Dado que o pensamento marxiano entende o processo de trabalho como uma relação

sui generis com a natureza, de que forma tal categoria tem a ver com a nossa personalidade,

ou seja, a maneira que nós nos enxergamos enquanto indivíduos diante de nossas relações

sociais? Em primeiro lugar, não é possível pensar a individualidade isoladamente, isto é, um

homem apartado de quaisquer relações (tanto com a natureza, quanto com outros homens),

pois é uma forma de “[…] atribuir ao ser humano uma natureza a-histórica e, dessa maneira,

absolutizar o indivíduo […]” (PAIVA; OLIVEIRA; VALENÇA, 2018, p. 1799), como se cada

homem fosse um Robinson Crusoé em sua ilha, porém a realidade nos mostra algo

completamente diferente: não há relações sociais por um mero capricho ou decisão arbitrária,

mas nos relacionamos porque não somos autossuficientes. Todavia, por último lugar, isto não

significa que o trabalho seja o único fator determinante para a formação da personalidade dos

indivíduos. As relações que nós fazemos durante toda nossa vida mostram todo o processo de

autoconhecimento dos seres humanos. Tais relações não são de identidade – “você é o seu

trabalho!” –, também não são de subtração – “você perde sua personalidade quando trabalha!”

–, mas sim de adição: “na medida que você transforma o meio, este transforma você!”. Em

outras palavras, o trabalho não configura completamente a nossa personalidade, não obstante

a categoria dá os meios significativos para que aflore a individualidade dos seres humanos.

O que nos impede de reconhecer tal relação transformadora? É o impacto que

sofremos pelas políticas neoliberais. Primeiramente, explicitaremos com o que quero dizer

2 Cf. MARX; ENGELS, 2007, p. 87., segundo o qual compreende o trabalho como o que realmente distingue
o homem dos outros animais do que a consciência, religião, etc. (num sentido meramente abstrato).
pelo termo políticas “neoliberais”. Há uma tensão sobre o que é definido como

“neoliberalismo”. Alfredo Saad Filho diz que, somente na literatura marxista, existem

[…] quatro maneiras distintas [de compreender o neoliberalismo], porém


intimamente relacionadas: como um conjunto de ideias inspiradas nas escolas
econômicas austríaca e de Chicago e no ordoliberalismo alemão, e elaboradas
sob a égide da Sociedade do Mont Pèlerin; como um conjunto de políticas,
práticas e instituições inspiradas e/ou validadas por essas ideias; como uma
ofensiva de classe liderada pelo Estado contra os trabalhadores e os pobres,
em nome da burguesia em geral ou das finanças em particular; e como uma
estrutura material de reprodução econômica, social e política, implicando
que o neoliberalismo é o modo de existência do capitalismo contemporâneo
ou um sistema de acumulação (2015, p. 59, itálicos do autor)

Portanto, dado que há uma complexidade imanente numa análise das políticas

neoliberais e seus impactos nas sociedades, o presente texto apenas quer ressaltar um aspecto

de tais políticas, pois além de ser um exemplo contrário sobre o que entendemos com a

categoria trabalho na configuração da personalidade, também é o pano de fundo do filme

Segunda-feira ao Sol, a saber: o desemprego.

Quando o neoliberalismo (enquanto um conjunto de políticas) começa a vingar na

Europa, segundo Perry Anderson (1995, p. 14), “a taxa média de desemprego nos países da

OCDE [Organização Européia para o Comércio e Desenvolvimento], que havia ficado em

torno de 4% nos anos 70, pelo menos duplicou na década de 80”. E o que era o centro do

desemprego no início da década de 1970, agrava-se em países de capitalismo periférico –

juntamente a um aumento de trabalhadores que, se não estão desempregados, estão num

subemprego (ALENCAR, 2011). E esse crescimento do desemprego não é uma exceção do

sistema, isto é, encarada como um problema a ser resolvido pelo próprio sistema de produção

capitalista, mas tornava-se um aspecto defendido pela ideologia neoliberal, segundo o qual
naturalizava o problema como uma parte do alto crescimento produtivo existente 3 – uma visão

que combatia tanto a URSS, quanto os Estados de bem-estar social.

Como vimos acima, a relação entre o neoliberalismo (enquanto um conjunto de ideias)

e o desemprego estrutural tem um “verniz” ideológico. Na medida em que o trabalho, no

sistema capitalista de produção, é reduzido para uma atividade repetitiva e,

consequentemente, as potencialidades humanas não se efetivam plenamente, na metade do

século XX e que perdura no século XXI, há uma

“[…] ideologia da autorresponsabilidade tem sido especialmente importante,


ao privar os cidadãos de suas capacidades coletivas, eviscerar a cultura das
classes trabalhadoras, colocar o mérito do sucesso e o peso do fracasso sobre
os indivíduos isolados, e sugerir que a solução de todos os problemas sociais
requer uma nova rodada de individualização […]” (Ibid., p. 67).

O toyotismo é um exemplo que apresenta as características dessa ideologia que

atomiza os trabalhadores e provoca uma diluição de sua classe, enquanto uma força política –

pela ideia da “autorresponsabilidade”. Para além de ser um “singelo” modelo japonês,

segundo Giovanni Alves, “seus princípios de gestão da produção e do trabalho, entretanto,

disseminaram-se pelas mais diversas técnicas de administração flexível do capital” (2011, p.

44). Através do criador do Sistema Toyota de Produção, Taiichi Ohno, pelo qual utiliza

diversas analogias entre esportes e o trabalho (que dividiam-se entre esportes praticados em

grupo para classe trabalhadora como, por exemplo, o beisebol; o capitalista era comparado

com os praticantes de esportes individuais, como o xadrez) que propagaria uma espécie de

“união” entre os funcionários de quaisquer empresas que seguissem a “filosofia” do

3 Como aponta Perry Anderson (op. cit., p. 10). a proposta das políticas neoliberais eram “manter um Estado
forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em
todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema
de qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos
com bem-estar, e a restauração da taxa ‘natural’ de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva
de trabalho para quebrar os sindicatos. Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis, para incentivar os
agentes econômicos. Em outras palavras, isso significava reduções de impostos sobre os rendimentos mais
altos e sobre as rendas.”.
toyotismo, não encontramos um sistema de produção em massa (como o fordismo, por

exemplo) mas a sua inovação é a noção de sistema de produção flexível, a saber:

A produção difusa é o que o toyotismo irá salientar por meio da constituição


das redes de colaboradores, ampliando a terceirização e as redes de
subcontratação. O espírito do toyotismo impulsiona o aumento da utilização
da terceirização e do trabalho por encomenda, ou ainda, das formas marginais
de trabalho: trabalho em domicílio, trabalho clandestino. […] O que
consideramos cerne essencial do toyotismo é a busca do “engajamento
estimulado” do trabalho, principalmente do trabalhador central, o assalariado
estável. É por essa “captura” da subjetividade que o operário ou empregado
consegue operar, com eficácia relativa, a série de dispositivos técnico-
organizacionais que sustentam a produção fluída e difusa (Ibid., pp. 48-9).

Em resumo, quanto mais a tecnologia para produção avança, a flexibilidade não afeta

apenas a atividade laboral, mas os salários também são afetados, pois é incentivado “o

afrouxamento das condições jurídicas (legais ou convencionais) que regem o contrato de

trabalho (basicamente as condições de contratação e de demissão)” (Ibid., p. 51). Ao pedir um

“engamento” absurdo por um salário que não condiz com seu trabalho, a classe trabalhadora é

diluída. Por quê? As condições de luta por melhores salários, por exemplo, deixam de ser uma

alternativa quando as condições de trabalho incentivam uma atomização dos homens (pela

proposta de flexibilização do trabalho), pois tudo é incerto e amanhã podem ocorrer

demissões, de tal forma que quaisquer tentativas de greve tornam-se inócuas, porque sempre

há alguém que aceita (por necessidade) trabalhar mesmo em condições insalubres. Tudo isso é

efeito da flexibilidade dos salários feita a partir de uma nova legislação que pudesse “passar

por cima” dos sindicatos – tal como acontece, por exemplo, na Inglaterra pós-guerra de

Margaret Thatcher4.

4 “O modelo inglês foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais puro. Os governos Thatcher contraíram a
emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos
altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram
greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente – esta foi uma
medida surpreendentemente tardia –, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por
habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a
água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em
países de capitalismo avançado” (ANDERSON, op. cit., p. 11).
No século XXI, nossa paisagem misturam as cores do individualismo extremo com o

desemprego e subemprego estruturais. No ponto de fuga deste péssimo quadro, vemos o

sofrimento das pessoas a estágios avançados de doenças físicas e mentais. Cada um dos

personagens de Segunda-feira ao Sol vivenciam tais situações. Desse modo, não é possível ter

uma personalidade se as condições materiais são destrutivas. Não há vida (e, por isso, o

afloramento da individualidade) se a nossa expectativa é a sobrevivência. Sem isto, a

“Austrália” continua como um ideal – nossa Antípoda!

Referência Bibliográfica:

ALENCAR, Mônica M. T. de. O desemprego contemporâneo como elemento da acumulação

capitalista e da luta de classes. O Social em Questão, v. 25-26, p. 97-117, 2011.

ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade – o espírito do toyotismo na era do capitalismo

manipulatório. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo

(orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1995, pp. 9-23.

HARVEY, David. Para entender O Capital: Livro I. Trad. Rubens Enderle. São Paulo:

Boitempo Editorial, 2013.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do

capital. Trad. Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.

__________. ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã

em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus


diferentes profetas. Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano.

São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

PAIVA, I. L.; OLIVEIRA, I. F.; VALENÇA, D. A.. Marxismo e psicologia: aportes para uma

reflexão materialista sobre o indivíduo. REVISTA DIREITO E PRÁXIS, v. 9, pp. 1794-1811,

2018.

PETO, L. C.; VERISSIMO, D. S.. Natureza e Processo de Trabalho em Marx. PSICOLOGIA

& SOCIEDADE (ONLINE), v. 30, pp. 1-11, 2018.

SAAD FILHO, A. (2015) Neoliberalismo: Uma Análise marxista. Marx e o Marxismo –

Revista do NIEP-Marx, (3) 4, pp. 58-72, 2015.

SEGUNDA-FEIRA ao Sol. Direção: Fernando León de Aranoa. França, Itália, Espanha:

Sogepaq, 2002. (113 min.)

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