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Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea. Doutor em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro -
PUC-Rio. Mestre em Economia pela Fundação Getúlio Vargas.
daniel.cerqueira@ipea.gov.br
Helder Ferreira
Técnico de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea. Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP. Especialista em Segurança
Pública e Cidadania pela Universidade de Brasília - UnB.
helder.ferreira@ipea.gov.br
Resumo
Neste artigo analisou-se a evolução das notificações de estupro no país, entre 2011 e 2014, com base nos dados do Sistema
de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. Caracterizou-se ainda o fenômeno segundo esses
registros administrativos. Especificamente descreveram-se o perfil de vítimas e autores, os vínculos entre eles, além de outros
elementos situacionais. Verificou-se uma estabilidade estatística inaceitável ao longo do período analisado, em que 69,9%
das vítimas eram crianças e menores de idade, e mais de 10,0% das pessoas agredidas sofriam de alguma deficiência física
e/ou mental. Ao mesmo tempo, aumentou a proporção de casos de estupro coletivo que, em 2014, responderam por 15,8%
do total de casos, e esta proporção correspondeu a 25,6% quando os autores eram desconhecidos da vítima. Outro dado
estarrecedor mostrou que cerca de 40,0% dos estupradores das crianças pertenciam ao círculo familiar próximo, incluindo
pai, padrasto, tio, irmão e avô. Os dados chamam a atenção para a gravidade do problema de violência de gênero no país
e para a necessidade de se produzirem informações mais acuradas, de modo a possibilitar a elaboração de políticas públicas
mitigadoras que envolvam as muitas agências do Estado, sobretudo no campo educacional.
Palavras-Chave
Estupro. Brasil. Violência. Sinan. Gênero.
24 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 11, n. 1, 24-48, Fev/Mar 2017
Dossiê
Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução
das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014
Daniel Cerqueira, Danilo Santa Cruz Coelho e Helder Ferreira
Introdução1
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conhece sobre a questão no Brasil, em termos nas dados administrativos sobre a questão, que
da sua prevalência, regularidade temporal e es- revelam faces parciais do fenômeno. Os dados
pacial e fatores subjacentes. Isso ocorre diante policiais são desencontrados e só foram reuni-
Dossiê
da indisponibilidade quase geral de dados e in- dos nos últimos anos, a partir do esforço do
formações precisas, o que, por sua vez, é con- Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Outra
sequência da invisibilidade do fenômeno e da exceção à regra de inexistência de informações
condescendência social com ele, o que começou vem da área da saúde, com a criação do Siste-
a ser problematizado apenas nos últimos anos. ma de Informação de Agravos de Notificação
(Sinan), que é gerido pelo Departamento de
Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução
das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014
Daniel Cerqueira, Danilo Santa Cruz Coelho e Helder Ferreira
De fato, até os anos 1980, na doutrina ju- Análise de Situação de Saúde (Dasis), da Secre-
rídica é debatido se o marido pode ser sujeito taria de Vigilância em Saúde (SVS), do Minis-
ativo do crime de estupro contra a sua própria tério da Saúde (MS).
esposa2. Mesmo após a Constituição Cidadã,
apenas em 1995 a Lei n° 9.520 revogou o Essa base de dados possibilitou que Cerquei-
Artigo 35 do Código de Processo Penal, que ra e Coelho (2014) fizessem o primeiro trabalho
estabelecia que a mulher casada não poderia acerca da incidência do estupro no plano nacio-
exercer o direito de queixa sem a autorização nal, tomando como referência o ano de 2011.
do marido, salvo quando fosse contra ele, ou O presente artigo retoma tal análise e objetiva,
quando estivesse separada. Apenas a partir em primeiro lugar, estudar a evolução das noti-
de agosto de 2009, com a sanção da Lei n° ficações de casos ocorridos no país e a expansão
12.015, o estupro passa a ser um crime contra da cobertura do Sinan, entre 2011 e 2014. Fi-
a dignidade e à liberdade sexual. nalmente, buscou-se caracterizar as vítimas de
estupro, os autores, suas relações e os elemen-
Ainda hoje, muito pouca informação de tos associados, bem como as consequências,
qualidade foi produzida sobre a incidência e tomando como referência o período assinalado.
prevalência do estupro. Nunca houve pesquisas
domiciliares nacionais a respeito e o único survey Além desta introdução, o artigo tem mais
regional, com padrão de qualidade metodológica cinco seções. Na segunda seção, traça-se um bre-
internacional, é a PCSVDFMulher, produzido ve histórico da implementação do Sistema de
pela Universidade Federal do Ceará em parceria Vigilância de Violências e do levantamento dos
com o Instituto Maria da Penha. Segundo a pes- dados sobre estupros na área de saúde, quando
quisa, 2,4% das mulheres entre 15 e 49 anos so- se discutiram possíveis limitações das informa-
freram agressões sexuais nas capitais do Nordeste ções e a expansão da cobertura do sistema. Em
em 2015. Caso a prevalência relativa nacional seguida, analisou-se em que medida o aumento
fosse igual à verificada nas localidades estudadas, dos casos notificados de estupro no Sinan, no
mais de 1.350.000 mulheres seriam vítima de período analisado, se deve à variação na preva-
violência sexual no país a cada ano. lência do fenômeno no país ou à diminuição na
taxa de subnotificação, ocasionada pela expansão
Contudo, no âmbito nacional existem ape- do sistema. Na quarta seção, caracterizam-se os
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estupros a partir dos dados disponíveis, quando 2016). Este procedimento universaliza a notifi-
descreveremos os perfis dos prováveis autores, das cação para todos os serviços de saúde. Com isso,
vítimas e dos fatores associados. Finalmente, con- o Ministério da Saúde pretende que todos os ca-
Dossiê
cluímos com um resumo dos achados e reflexões sos de estupros atendidos nos serviços de saúde
para as políticas públicas. de todo o país sejam registrados, por meio da
Ficha de Notificação de Violência Interpessoal
O Viva, o Sinan e as notificações de e Autoprovocada, e, depois, inseridos no Sinan.
estupro
Num rápido histórico, o Ministério da Saú- Feita esta pequena digressão histórica, cabe
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No caso de menores de idade, qualquer Com base em indicadores produzidos a partir
evidência de que o incidente tenha ocorrido das informações constantes do Sinan, analisou-se
(como fissuras e ruptura de órgãos genitais) em que medida a cobertura do sistema avançou
Dossiê
força o médico (por lei) a fazer o devido regis- entre as unidades federativas. O primeiro indi-
tro, independentemente do depoimento de cador se refere ao percentual de municípios em
familiar. No caso de mulheres adultas, se não cada unidade federativa em que houve pelo me-
há outras violências físicas, muitas vezes a ví- nos um centro de saúde com capacidade para no-
tima não vai ao hospital e sequer busca apoio tificar agravos de violência. O segundo indicador
entre familiares e em órgãos de Justiça, em considera a proporção da população coberta por
Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução
das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014
Daniel Cerqueira, Danilo Santa Cruz Coelho e Helder Ferreira
consequência do tabu envolvido e do medo serviços de saúde com capacidade para notificar
de dupla vitimização, em que a vítima termi- os incidentes. Para produzir estes dois indica-
na sendo injustamente culpabilizada, seja por dores, lançou-se mão de uma hipótese bastante
suas relações pessoais, seja por seu compor- conservadora, no sentido de superestimar a co-
tamento, seja pelas vestes que usa. Com isso, bertura do serviço. A premissa foi de que se no
acredita-se que a prevalência relativa de casos município houve algum caso notificado, então
de estupro observada no Sinan seja enviesada o município inteiro estaria coberto pelo serviço.
no sentido de subestimar a proporção de ca- Em termos do segundo indicador, isso implica
sos com mulheres adultas. que a população toda do município teria acesso
a centros de saúde com o sistema de agravos de
De fato, como arguido anteriormente, notificação de violências funcionando.
uma das causas de subnotificação é a in-
completa capilaridade do Viva. Se, a partir De fato, em algumas situações, os indicadores
de 2011, o componente de vigilância con- trazem grandes limitações. Um bom exemplo é
tínua do Viva começou a ser universalizado, o município de São Paulo, que consta como co-
o próprio Ministério da Saúde reconheceu berto pelo Sinan, mas que em 2014 recebeu no-
suas limitações: tificações de apenas cinco centros de saúde, o que
a estratégia de implantação da notificação não totalizou apenas 79 casos de agravos de violência.
vem ocorrendo de modo simultâneo em to-
dos os municípios, pois há, por parte do MS, A Tabela 1 aponta a evolução dos dois in-
a orientação para que essa implantação ocor- dicadores, entre 2011 e 2014. Pode-se observar
ra mediante a existência, no âmbito local, de um crescimento substancial no primeiro indi-
uma estratégia de atenção integral às pessoas cador, para a maioria das unidades federativas.
em situação de violência, baseada na articula- No Brasil este índice aumentou de 38,0% para
ção e integração das redes intra e intersetorial 62,8%. O segundo índice mostra que, em 2014,
de atenção e proteção. (BRASIL, 2014, p. 11). 87,6% da população estaria coberta pelo Sinan.
No entanto, conforme a tabela deixa registrado,
Com isso, é possível que vítimas de estupro vários estados do Nordeste possuem taxas ainda
sejam atendidas em unidades de saúde, sem relativamente baixas, que não chegam a atingir
que haja a correta notificação. sequer metade dos seus municípios.
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Tabela 1 – P
roporção de municípios com ao menos uma
notificação ao Sinan ao Sinan, por UF e ano
Brasil, 2011-2014
Dossiê
Indicador 1 (municípios atendidos) Indicador 2 (população atendida)
UF 2011 2012 2013 2014 2011 2012 2013 2014
Acre 31,8% 31,8% 68,2% 77,3% 65,2% 69,0% 86,3% 91,9%
Alagoas 35,3% 50,0% 61,8% 54,9% 64,5% 73,7% 83,4% 81,6%
Amapá 18,8% 43,8% 62,5% 56,3% 78,4% 85,9% 86,4% 86,9%
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Painel 1 – C
onjunto de Municípios com SINAN entre 2011 e 2014
Dossiê
2011 2012
Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução
das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014
Daniel Cerqueira, Danilo Santa Cruz Coelho e Helder Ferreira
2013 2014
Não
Sim
Fonte:
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Gráfico 1 – N
otificações de violências e de estupro no SINAN,
Brasil, 2011-2014
Dossiê
220.000 22.000
Notificações totais no Sinan
Notificações de estupro
200.000 20.000
180.000 18.000
160.000 16.000
120.000 12.000
100.000 10.000
2011 2012 2013 2014
Gráfico 2 – N
úmero de centros de saúde e de municípios com ao
menos uma notificação no Sinan,
Brasil, 2011-2014
12.000
10.988
10.000
9.918
8.000
8.214
6.000
5.898
4.000
3.466
3.309
2.810
2.000
2.114
-
2011 2012 2013 2014
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Para responder à questão sobre o aumento de virtual estabilidade entre 2013 e 2014. Não
notificações e sua relação com a expansão do Si- obstante, fica ainda aberta a questão se o au-
nan, dois indicadores foram propostos, conforme mento de registros observado em 2011 refletiu
Dossiê
o Gráfico 3. O primeiro deles considera o nú- um crescimento nos casos de estupro no país,
mero anual de notificações de estupro, tomando ou deveu-se à maior difusão entre a população e
como base apenas aqueles municípios em que os órgãos de saúde sobre a compreensão do que
houve alguma notificação de agravo de violências constitui o estupro, cujo tipo penal mudou com
em 2011. O segundo indicador leva em conta a Lei n° 12.015, de 2009.
apenas a evolução anual dos casos de estupro na-
Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução
das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014
Daniel Cerqueira, Danilo Santa Cruz Coelho e Helder Ferreira
queles centros de saúde onde já havia sido feita Uma última análise sobre a expansão do Si-
notificação de qualquer violência em 2011. nan no registro de casos de estupro se dá pela
comparação com os registros administrativos de
Enquanto o aumento das notificações de casos de estupro feitos nas polícias estaduais.
estupro foi de 66,1%, entre 2011 e 2014, o
número de estupros, considerando apenas os Em 2014, enquanto o Sinan registrou
municípios e ainda os centros de saúde em que 20.085 casos de estupro, os órgãos de segu-
já havia informações em 2011, cresceu 56,5% e rança pública registraram 47.646 ocorrências
27,1%, respectivamente. De acordo com o últi- de estupros3 (FÓRUM BRASILEIRO DE
mo indicador, aparentemente elevou-se a preva- SEGURANÇA PÚBLICA, 2015, p. 36). No
lência, sobretudo entre 2011 e 2012, com uma entanto, cabe destacar, conforme a Tabela 2,
Gráfico 3 – N
úmero de notificações de estupro no Sinan,
Brasil, 2011-2014
220.000
20.085
200.000 19.129
18.922
180.000
16.104 18.194
160.000
15.679 15.366
15.684
140.000
14.454
120.000
12.087
100.000
2011 2012 2013 2014
Notificações de estupro
Notificações de estupro em centros de saúde que notificaram em 2011
Notificações de estupro em municípios que notificaram em 2011
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Tabela 2 – C
omparação entre o número de vítimas de estupro
registradas no Sinan e o número de crimes de estupro
coligidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública –
Dossiê
Brasil, 2014
UF Sinan FBSP
Espírito Santo 406 238
Amazonas 1.365 971
Minas Gerais 1.912 1.475
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que em alguns estados a captação de dados Abaixo analisam-se os casos de estupro
via saúde já supera a via da segurança pública. ocorridos nesse período, com a caracterização
das vítimas, do vínculo entre vítima e agressor
Dossiê
Tabela 3 – D
istribuição das notificações de estupro, segundo
número de agressores
Brasil, 2011-2014
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Gráfico 4 – D
istribuição das vítimas de estupro, segundo faixa etária
Brasil , 2011-2014
Dossiê
60,0%
50,7% 52,0% 52,6%
50,1%
50,0%
40,0%
29,9% 29,7% 28,6% 30,1%
30,0%
19,4% 18,3% 18,8% 19,8%
20,0%
0,0%
2011 2012 2013 2014
Fonte: Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Sinan – microdados; elaboração própria.
Gráfico 5 – D
istribuição das vítimas de estupro no total de casos e
nos estupros coletivos, segundo fases da vida da vítima
Brasil, 2011-2014
60,0%
50,1%
50,0%
40,3%
40,0% 35,6%
30,1%
30,0%
24,1%
19,8%
20,0%
10,0%
0,0%
Crianças Adolescentes Maior de idade
Fonte: Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Sinan – microdados; elaboração própria.
Nota: Estupros coletivos correspondem àqueles cometidos por dois ou mais agressores.
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Gráfico 6 – D
istribuição das vítimas de estupro, segundo raça/cor
Brasil, 2011-2014
Dossiê
50,0%
44,5%
45,0% 42,0% 42,0%
40,8%
40,0% 37,7% 37,3%
35,7%
34,3%
35,0%
30,0%
25,0%
20,0%
Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução
das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014
Daniel Cerqueira, Danilo Santa Cruz Coelho e Helder Ferreira
15,0%
9,2% 9,1% 9,0% 9,8% 9,3%
10,0% 8,5% 8,5% 8,8%
Gráfico 7 – D
istribuição das vítimas de estupro, segundo faixa etária
Brasil, 2011-2014
35,0%
30,0% 28,2%
29,4% 29,0% 28,4%
25,0%
0,0%
2011 2012 2013 2014
Fonte: Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Sinan – microdados; elaboração própria.
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Tabela 4 – N
úmero de deficientes vítimas de estupro, por condição
de recorrência do estupro, segundo tipo de deficiência
Brasil, 2011-2014
Dossiê
Tipo de deficiência/
transtorno / Repetição Primeira vez Outras vezes Sem informação Total geral
do Evento
Deficiência física 60 61 23 144
Deficiência mental 261 307 173 741
Deficiência visual 25 28 13 66
Fonte: Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Sinan – microdados; Ipea.
timas seguiu aproximadamente a distribuição 28,0% da vítimas possuíam ensino médio com-
da população residente, com exceção das ví- pleto ou escolaridade superior. Outro ponto
timas amarelas e indígenas, que apresentaram digno de nota foi a estabilidade das proporções
relativamente um alto índice de registros de por escolaridade ao longo do tempo.
estupro. Se os dados do Sinan de 2014 fossem
traduzidos em taxas por 100 mil mulheres das Por fim, a caracterização das vítimas de estupro
respectivas cores/raças, a população indígena no Sinan trouxe um aspecto duplamente odioso.
teria sofrido uma taxa de 42,9 estupros por Além da vulnerabilidade das vítimas relacionada
100 mil mulheres, seguida da população ama- à idade (uma vez que 70% delas eram menores
rela (20,4), negra4 (17,5) e branca (12,5). de idade, em 2014), mais de 10% apresentavam
deficiências de ordem física ou mental. A Tabela 4,
Os crimes violentos contra os homens aco- além de apresentar o número de vítimas por defi-
metem em especial os indivíduos com o ensino ciência, mostra outro dado inquietante. Enquan-
fundamental incompleto, o que não se verificou to, em geral, 36,2% das vítimas possuíam um
para as vítimas de estupro, que se distribuíram histórico de estupros anteriores, entre as pessoas
por todas as faixas de escolaridade. Em particu- que apresentavam alguma deficiência, as vítimas
lar, no que diz respeito ao Gráfico 7, cerca de recorrentes de estupro eram 42,4%5.
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Tabela 5 – P
roporção de vítimas de estupro, por faixa etária da
vítima, segundo vínculo com o agressor
Brasil, 2011-2014
Dossiê
Fonte: Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Sinan – microdados; Ipea.
Nota: As colunas não somam 100% pois para um mesmo estupro pode haver mais de um agressor.
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O vínculo entre vítima e agressor Uma última questão diz respeito à recor-
No que se refere ao vínculo entre vítimas rência do estupro quando o agressor faz par-
e autores, os tipos mais apontados variam te ou não das relações da vítima. Enquanto
Dossiê
com a idade da vítima. Com efeito, cerca de 14,0% das pessoas violentadas por desconhe-
40,0% dos estupradores das crianças perten- cidos haviam sofrido estupro anteriormente,
ciam ao círculo familiar próximo (incluindo 56,5% das vítimas cujos algozes eram conheci-
pai, padrasto, tio, irmão e avô). Digno de nota dos sofreram estupros repetidos.
ainda é o fato de que 8,8% dos estupros de
crianças foram perpetrados por namorados ou Incidência temporal
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Gráfico 8 – P
roporção de vítimas de estupro, segundo vínculo com
agressor, por faixa etária da vítima
Brasil – 2011-2014
Dossiê
25,00%
20,00%
12,59%
Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução
das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014
Daniel Cerqueira, Danilo Santa Cruz Coelho e Helder Ferreira
5,00%
0,00%
2011 2012 2013 2014
Amigos/conhecidos Desconhecido(a) Padrasto Pai Namorado(a) ou ex
20,00%
15,00% 11,89%
11,65% 11,67%
10,14%
10,00% 8,40% 8,60% 8,11%6,71% 7,84%
6,23% 8,04%
5,32%
5,00%
0,00%
2011 2012 2013 2014
Desconhecido(a) Amigos/conhecidos Namorado(a) ou ex Padrasto Pai
Maiores de idade
70,00%
60,51%
60,00%
55,34% 55,98% 53,61%
50,00%
40,00%
30,00%
18,48% 18,67% 17,05%
20,00% 15,40%
9,29% 8,73% 8,87% 8,50%
10,00% 5,38% 3,95%
4,34%3,31% 5,34% 4,04% 4,76% 3,92%
0,00%
2011 2012 2013 2014
Desconhecido(a) Amigos/conhecidos Cônjuge Ex-cônjuge Namorado(a) ou ex
Fonte: Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Sinan – microdados; Ipea.
40 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 11, n. 1, 24-48, Fev/Mar 2017
bem definida tal informação (9.705), hou- enquanto os homicídios ocorrem com maior
ve razoável incidência em todos os momen- intensidade nos períodos de maior interação
tos, ao longo do dia, sendo que para autores social, sobretudo nos meses de verão e nos
Dossiê
conhecidos foi maior o número de casos à finais de semana, aparentemente os casos de
noite e no período da tarde. Já quando os estupro seguem outra dinâmica temporal,
autores eram desconhecidos, os estupros acontecendo com maior intensidade nos me-
aconteceram com maior frequência à noite ses de inverno e nos dias de semana.
e de madrugada.
Local, meio utilizado, presença de álcool e es-
Tabela 6 – D
istribuição das vítimas de estupro, por condição
de conhecimento do agressor, segundo condição de
recorrência do estupro
Brasil – 2011-2014
Fonte: Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Sinan – microdados; Ipea.
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Gráfico 9 – E
volução mensal do número de estupros
Brasil, 2011-2014
Dossiê
2000
1800
1600
Número de registros
Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução
das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014
Daniel Cerqueira, Danilo Santa Cruz Coelho e Helder Ferreira
1400
1200
1000
800
jan/11 jul/11 jan/12 jul/12 jan/13 jul/13 jan/14 jul/14
Fonte: Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Sinan – microdados; elaboração própria.
A suspeita de uso de álcool pelo provável dois ou mais autores foi quase duas vezes maior
autor, no momento da ocorrência, também para autores desconhecidos (25,6%), em com-
variou segundo a tipologia “conhecido/desco- paração àqueles em que havia um agressor co-
nhecido”. Em geral, o uso de álcool se inseriu nhecido da vítima (13,5%).
em 35,7% do total de casos com informação
disponível. Os prováveis autores desconheci- Os meios de agressão mais empregados
dos estariam sob efeito de álcool em 46,8% foram a força corporal/espancamento e a
do total de casos com informação disponível. ameaça. Isso se manteve para qualquer tipo
Já para os autores conhecidos, a proporção foi de provável autor. No entanto, os meios de
bem inferior, 31,3%. agressão definidos (exceto outros) foram mais
observados quando os autores eram desco-
A presença de mais de um agressor também nhecidos. A utilização de arma de fogo foi
se modificou conforme o conhecimento entre proporcionalmente quase dez vezes maior
vítima e autor. A proporção de estupros com pelos desconhecidos (16,6/1,7), enquanto os
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Tabela 7 – D
istribuição das vítimas de estupro, por condição de
conhecimento do agressor, por mês, dia da semana e
período do dia
Dossiê
Brasil, 2011-2014
Fonte: Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Sinan – microdados; Ipea.
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Tabela 8 – P
roporção de vítimas de estupro, por condição de conhecimento
do agressor, segundo local de ocorrência, suspeita de uso de álcool
pelo agressor, número de prováveis autores e meios de agressão
Dossiê
Brasil, 2014
Variáveis
Geral Conhecido Desconhecido
Local de ocorrência
Residência (n=11701) 63,8 79,5 25,6
Via Pública (n=3378) 18,4 6,3 48,7
Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução
das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014
Daniel Cerqueira, Danilo Santa Cruz Coelho e Helder Ferreira
Meios de agressão
Força corporal/espancamento (n=8222) 46 39,2 59,5
Ameaça (n=6966) 39,6 35,8 48,4
Arma de fogo (n=1114) 6,6 1,8 18,4
Objeto pérfuro-cortante (n=990) 5,9 3,4 12
Enforcamento (n=626) 3,8 2,8 6
Objeto contundente (n=338) 2,1 1,7 2,7
Substância/objeto quente (n=88) 0,5 0,5 0,7
Envenenamento/Intoxicação (n=71) 0,4 0,3 0,7
Outros (n=1654) 11,1 11,3 9
Fonte: Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Sinan – microdados; Ipea.
Nota: O total de cada coluna não soma necessariamente 100% devido a dados ignorados.
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objetos perfuro-cortantes (10,8/3,2) foram ocorridas em 2011 no Sinan. Em linhas
mais de três vezes e enforcamento, (5,4/2,6), gerais, ao observar a evolução dos registros
mais de duas. Nos casos em que os prováveis da saúde entre 2011 e 2014, para além da
Dossiê
autores eram conhecidos, a utilização de ar- positiva expansão do sistema, que passou a
mas e objetos foi menos comum, mesmo por- alcançar 68,2% dos municípios brasileiros,
que, conforme relatado, a maioria das agres- verificou-se uma inaceitável estabilidade es-
sões acomete pessoas vulneráveis. tatística nos eventos, em que as agressões
registradas acometem pessoas em todas as
Conclusões e reflexões para políticas faixas de escolaridade e atingem, sobretu-
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 11, n. 1, 24-48, Fev/Mar 2017
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veram dois ou mais agressores, ao passo que discutido anteriormente, os fatos assinalados
quando a vítima não conhecia os agressores, dão conta da gravidade do problema da vio-
essa parcela correspondeu a 25,6%. lência de gênero no país, que deve contar com
Dossiê
1. Agradecemos ao trabalho de apoio do George Melo e as sugestões de vários colegas do Ipea, bem como aos participantes da mesa sobre
violência sexual que ocorreu no X Encontro do Fórum brasileiro de Segurança Pública.
2. Conforme assinala Jesus (1990) [apud Motter, 2011]: “[...] Assim, sempre que a mulher não consentir na conjunção carnal e o marido a obrigar
ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a negativa”
[Jesus, 2000 apud Motter (2011)]. Já Noronha entende que “o marido não pode ser acusado do crime de estupro de sua própria mulher, uma
vez que o Código Civil traz como umas das consequências do casamento o dever dos cônjuges de manter relações sexuais, assim na hipótese
de recusa poderá o marido forçá-la ao ato sexual sem responder pelo crime de estupro” [Noronha, 1990, apud Motter (2011)].
3. Os dados não são a princípio comparáveis, porque os casos do Sinan se referem a vítimas e os casos reunidos pelo FBSP são de crimes. No
entanto, tornam-se comparáveis porque a quase totalidade dos crimes de estupro registrados se referem a apenas uma vítima.
5. Por fim, vale a pena registrar que as fichas de notificação apresentam campos sobre identidade de gênero e orientação sexual, no entanto,
tais informações não estavam disponíveis na base de dados analisada.
6. Como já apontado antes, este fato decorre de a análise se basear em dados administrativos, com vítimas que buscaram auxílio em
estabelecimentos de saúde. Certamente, esses dados embutem uma sub-representação de mulheres adultas afligidas pela violência sexual
que ficaram invisíveis aos olhos da sociedade, pelo fato de não terem procurado ajuda, tendo em vista os tabus envolvidos.
7. A partir da informação da hora de ocorrência, os casos foram agrupados em quatro períodos: manhã (ocorridos de 6h00 até 11h59), tarde
(de 12h00 até 17h59), noite (de 18h00 até 23h59) e madrugada (de 0h00 até 5h59).
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Referências bibliográficas
Dossiê
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-sinan-5-1--vers--o-final-15-01-2016.pdf>. tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf>.
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Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores
situacionais e evolução das notificações no
sistema de saúde entre 2011 e 2014
Dossiê
Resumen Abstract
Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução
das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014
Daniel Cerqueira, Danilo Santa Cruz Coelho e Helder Ferreira
Violación en Brasil: víctimas, autores, factores Rape in Brazil: Victims, perpetrators, situational factors and
situacionales y evolución de las notificaciones en el notifications in the health system between 2011 and 2014
sistema de salud entre 2011 y 2014 In this article, the rape notifications registered in Brazil
En este artículo se analizó la evolución de las notificaciones de between 2011 and 2014 were analyzed based on data from
violación en el país, entre 2011 y 2014, con base en los datos the Notifiable Conditions Information System (Sinan) of the
del Sistema de Información de Agravios de Notificación (Sinan), Ministry of Health. The phenomenon was also characterized
del Ministerio de la Salud. Se caracterizó aún el fenómeno according to these administrative records. More specifically,
según esos registros administrativos. Específicamente se the profiles of victims and perpetrators were described, along
describió el perfil de víctimas y autores, los vínculos entre with the relationship between them and other situational
ellos, además de otros elementos situacionales. Se verificó elements. An unacceptable unchanging statistical pattern over
una estabilidad estadística inaceptable a lo largo del período the period analyzed was noted, in which 69.9% of victims
analizado, en que 69,9% de las víctimas eran niños y menores were children and minors, and over 10% of victims had
de edad, y más del 10,0% de las personas agredidas sufrían physical and/or mental disabilities. In parallel, there was an
de alguna deficiencia física y/o mental. Al mismo tiempo, increase in the proportion of gang rape cases, which in 2014
aumentó la proporción de casos de violación colectiva que, accounted for 15.8% of all cases, where perpetrators were
en 2014, respondieron por el 15,8% del total de casos, y esta not known to the victim in 25.6%. Another alarming finding
proporción correspondió al 25,6% cuando los autores eran was that 40.0% of child rapists were close family members,
desconocidos de la víctima. Otro dato terrorífico mostró que including the father, stepfather, uncle, brother and grandfather.
cerca del 40,0% de los violadores de los niños pertenecían The data draws attention to the seriousness of the problem of
al círculo familiar próximo, incluyendo padre, padrastro, tío, gender violence in Brazil and highlights the need to produce
hermano y abuelo. Los datos llaman la atención sobre la more accurate information allowing mitigating public policies
gravedad del problema de violencia de género en el país to be devised that involve several State agencies, particularly
y sobre la necesidad de se produzcan informaciones más in the educational field.
cuidadosas, para así posibilitar la elaboración de políticas
públicas mitigadoras que involucren las muchas agencias del Keywords: Rape. Brazil. Violence. Sinan. Gender.
Estado, sobretodo en el campo educacional.
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