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Crítica da violência: crítica do poder*

WALTER BENJAMIN

A tarefa de uma crítica da violência pode mais marcante. O direito natural não vê
ser definida como a apresentação de suas problema nenhum no uso de meios
relações com o direito e a justiça. Pois violentos para fins justos; esse uso é tão
qualquer que seja o efeito de uma natural como o “direito” do ser humano
determinada causa, ela só se transforma de locomover seu corpo até um
em violência, no sentido forte da palavra, determinado ponto desejado. Segundo
quando interfere em relações éticas. essa concepção (que serviu de base
Esfera de tais relações é designada pelos ideológica ao terrorismo na Revolução
conceitos de direito e justiça. Quanto ao Francesa), a violência é um produto da
primeiro, é evidente que a relação natureza, por assim dizer, uma matéria-
elementar de toda ordem jurídica é a de prima utilizada sem problemas, a não ser
meios e fins. A violência, inicialmente, que haja abuso da violência* para fins
só pode ser procurada na esfera dos injustos. Se, de acordo coma teoria
meios, não na dos fins. Posto isso, temos política do direito natural, todas as
mais dados para a crítica da violência** pessoas abrem mão do seu poder* em
do que talvez pareça. Pois se a violência prol do estado, isso se faz, por que se
é um meio, pode parecer que já existe um pressupõe (como mostra explicitamente
critério para sua crítica. Tal critério se Spinoza no Tratado teológico- político)
impõe com a pergunta, se a violência é, que, no fundo, o indivíduo – antes de
em determinados casos, um meio para firmar esse contrato ditado pela razão –
fins justos ou injustos. Sua crítica, exerce também de jure qualquer tipo de
portanto, estará implícita num sistema de poder que, na realidade, exerce de fato.
fins justos. Mas, não é bem assim. Pois (...)
esse tipo de sistema – supostamente
À tese, defendida pelo direito natural, do
acima de quaisquer dúvidas – não poder* como dado da natureza, se opõe
incluiria um critério da própria violência diametralmente a concepção do direito
como princípio, mas apenas um critério positivo, que considera o poder* como
para os casos em que ela fosse usada. algo que se criou historicamente. Se o
Ficaria em aberto a pergunta, se a direito natural pode avaliar qualquer
violência em si, como princípio, é moral, direito existente apenas pela crítica de
mesmo como meio para fins justos. Para seus fins, o direito positivo pode avaliar
decidir a questão, é preciso ter um qualquer direito que surja apenas pela
critério mais exato, uma distinção na crítica de seus meios. Se a justiça é o
esfera dos próprios meios, sem levar em critério dos fins, a legitimidade é o
consideração os fins a que servem. A critério dos meios. No entanto, não
eliminação deste tipo de pergunta crítica obstante essa contradição, ambas as
e mais exata caracteriza uma das grandes escolas estão de acordo num dogma
correntes da filosofia o direito – o direito básico comum: fins justos podem ser
natural – e talvez seja sua característica
obtidos por meios justos, meios justos do indivíduo um perigo de subversão da
podem ser empregados para fins justos. ordem judiciária. Um perigo no sentido
O direito natural visa, pela justiça dos de impedir os fins jurídicos e a executiva
fins, “legitimar” os meios, o direito judiciária? Não; pois nesse caso
positivo visa “garantir” a justiça dos fins condenar-se-ia não simplesmente o
pela legitimidade dos meios. poder, mas apenas o poder voltado para
fins contrários à lei. Poder-se-ia dizer
A antinomia se revelaria insolúvel, se o
que um sistema de fins jurídicos é
pressuposto dogmático comum fosse
insustentável quando, em algum lugar,
falso, se meios legítimos de um lado e
fins naturais ainda podem ser
fins justos do outro lado estivessem
perseguidos por meio da violência. Mas
numa contradição inconciliável. Sua
isso, por enquanto, é um simples dogma.
compreensão não seria possível sem sair
Por outro lado, talvez deva se levar em
do círculo, estabelecendo critérios
consideração a surpreendente
independentes para fins justos e para fins
possibilidade de que o interesse do
legítimos.
direito em monopolizar o poder diante do
Para tal investigação, se exclui por indivíduo não se explica pela intenção de
enquanto a esfera dos fins e com isso garantir os fins jurídicos, mas de garantir
também a busca de um critério da justiça. o próprio direito. Possibilidade de que o
A questão central passa a ser a da poder, quando não está nas mãos do
legitimidade de determinados meios que respectivo direito, o ameaça, não pelos
constituem o poder*. Ela não pode ser fins que possa almejar, mas pela sua
decidida por princípios de direito natural, própria existência fora da alçada do
que apenas levariam a uma casuística direito. De modo mais drástico, a mesma
sem fim. Pois, se o direito positivo é cego suposição pode ser sugerida pela
para o caráter incondicional dos fins, o reflexão, quantas vezes a figura do
direito natural é cego para o “grande” bandido não suscita a secreta
condicionamento dos meios. No entanto, admiração do povo, por mais
a teoria do direito positivo é aceitável repugnantes que tenham sido seus fins.
como base hipotética no ponto de partida Isso é possível não por causa de seus
da investigação, uma vez que estabelece efeitos, mas apenas por causa do poder*
uma distinção básica quanto aos tipos de que se manifesta nesses feitos. Nesse
poder, independentemente dos casos de caso, portanto, o poder – que o direito
seu uso. Distingue entre o poder* atual procura retirar do indivíduo em
historicamente reconhecido, o chamado todas as áreas de atuação – se manifesta
poder sancionado e o não- sancionado. realmente como ameaça e, mesmo sendo
(...) subjugado, ainda assim suscita a
antipatia da multidão contra o direito.
Uma máxima geral da legislação (...)
europeia atual pode ser formulada nestes
termos: todos os fins naturais das pessoas Pois o direito positivo, quando está
individuais entram em colisão com fins consciente de suas raízes, reivindicará o
jurídicos, quando perseguidos com fato de reconhecer em cada indivíduo o
maior ou menor violência. (A interesse da humanidade e de fomentá-
contradição do direito à legítima defesa lo. Tal interesse consistiria na
com esta máxima deve se explicar por si apresentação e conservação de uma
mesma no decorrer das considerações ordem de destino. Se, por um lado, não
seguintes.) O corolário desta máxima é se deve poupar críticas a essa ordem, que
que o direito considera o poder na mão o direito pretende conservar com razão,
por outro lado, qualquer interpelação qual se apresenta na forma da ordem
dessa ordem é impotente, quando se jurídica –, as origens do poder - violência
apresenta apenas em nome de uma interferem de maneira representativa na
“liberdade” sem rosto e incapaz de ordem existente e ali se manifestam de
apontar uma ordem de liberdade forma terrível. Coerentemente, em
superior. Sua impotência é total, quando contextos jurídicos primitivos, a pena de
não questiona o próprio corpo da ordem morte é decretada também no caso de
jurídica, mas apenas leis ou costumes delitos contra a propriedade, em relação
jurídicos isolados, que então serão aos quais parece totalmente
protegidos pelo direito com o seu poder, “desproporcional”. Seu sentido não é
que consiste na alegação de que só existe punir a infração da lei, mas afirmar o
um único destino e que justamente o novo direito. Pois o exercício do poder
status quo e o elemento ameaçador sobre vida e morte, o próprio direito se
pertencem à sua ordem de maneira fortalece, mais do que em qualquer outra
irrevogável. Pois o poder* mantenedor forma de fazer cumprir a lei. Mas ali se
do direito é um poder ameaçador. Só que manifesta também um elemento de
sua ameaça não tem o sentido de uma podridão dentro do direito, detectável
intimidação, como costumam interpretá- por uma percepção mais sensível, que se
lo teóricos liberais desinformados. A distancia de relações nas quais o destino
intimidação no sentido exato exigiria em pessoa apareceria majestosamente
uma definição contrária à essência da para fazer cumprir a lei. A razão e a
ameaça e não atingida por lei nenhuma, inteligência, porém, devem aproximar-se
uma vez que existe a esperança de dessas relações da maneira mais
escapar a seu braço. A lei se mostra decidida, se quiserem levar a termo a
ameaçadora como o destino, do qual crítica do poder* instituinte e do poder*
depende se o criminoso lhe sucumbe. O mantenedor do direito.
sentido mais profundo da indefinição da
ameaça do direito se revelará somente Os dois tipos de poder estão presentes
pela consideração posterior da esfera do em outra instituição do Estado moderno:
destino, de onde ela se origina. Um a polícia, numa relação muito mais
indício precioso se encontra na área das contrária à natureza que a pena de morte,
punições. Dentre elas, mais do que numa mistura por assim dizer espectral.
qualquer outra, a pena de morte suscitou É verdade que a polícia é um poder para
críticas, desde o momento em que se fins jurídicos (com direito de executar
questionou a validade do direito positivo. medidas), mas ao mesmo tempo com a
Embora, na maioria dos casos, os autorização de ela própria, dentro de
argumentos da crítica tenham sido mal amplos limites, instituir tais fins
fundamentados, seus motivos têm sido jurídicos (através do direito de baixar
questões de princípio. Sentiam os decretos). A infâmia dessa instituição –
críticos, talvez sem poder explicá-lo e sentida por poucos, por que raramente a
sem querer senti-lo, que uma contestação competência da polícia é suficiente para
da pena de morte não ataca uma medida praticar intervenções mais grosseiras,
punitiva, nem as leis, mas o próprio podendo, no entanto, investir cegamente
direito na sua origem. Pois se a sua nas áreas mais vulneráveis e contra
origem for a violência*, a violência cidadãos sensatos, sob a alegação de que
coroada pelo destino, não está longe a contra eles o Estado não é protegido
suspeita de que na instituição do poder* pelas leis – consiste em que ali se
supremo – o poder sobre vida e morte, o encontra suspensa a separação entre
poder* instituinte e poder* mantenedor
do direito. Do primeiro se exige a Todo poder* enquanto meio é, ou
legitimação pela vitória, do segundo, a instituinte ou mantenedor de direito. Não
restrição de não se proporem novos fins. reivindicando nenhum desses dois
O poder* da polícia se emancipou dessas atributos, renuncia a qualquer validade.
duas condições. É um poder* instituinte Portanto, qualquer poder* enquanto
do direito – cuja função característica meio, mesmo no caso mais favorável,
não é promulgar leis, mas baixar tem a ver com a problemática geral do
decretos com expectativa de direito – e direito.
um poder* mantenedor do direito, uma (...) Quando a consciência da presença
vez que se põe à disposição de tais fins. latente da violência dentro de uma
A afirmação de que os fins do poder* instituição jurídica se apaga, esta entra
policial seriam sempre idênticos aos do em decadência. Um exemplo disso, no
direito restante ou pelo menos ligados a momento atual, são os parlamentos. Eles
eles, é falsa. Na verdade, o “direito” da oferecem esse espetáculo notório e
polícia é o ponto em que o estado – ou lamentável porque perderam a
por impotência ou devido às inter- consciência das forças revolucionárias às
relações imanentes a qualquer ordem quais devem sua existência. Assim,
judiciária – não pode mais garantir, sobretudo na Alemanha, a última
através da ordem jurídica, seus fins manifestação de tais poderes*
empíricos, que deseja atingir a qualquer
transcorreu sem conseqüências para os
preço. Por isso, “por questões de parlamentos. Falta-lhes o sentido para o
segurança”, a polícia intervém em poder instituinte de direito, representado
inúmeros casos, em que não existe por eles; assim, não é de estranhar que
situação jurídica definida, sem falar dos não consigam tomar decisões que sejam
casos em que a polícia acompanha ou
dignas desse poder,* mas cultivem, com
simplesmente controla o cidadão, sem a prática dos compromissos, uma
qualquer referência a fins jurídicos, maneira supostamente não violenta de
como um aborrecimento brutal ao longo tratar de assuntos políticos. Ora, o
de uma vida regulamentada por decretos. compromisso permanece “um produto
Ao contrário do direito que, na “decisão” que, apesar de repelir qualquer
fixada no espaço e no tempo, reconhece violência* aberta, se situa dentro da
uma categoria metafísica, graças à qual mentalidade da violência,* porque o
ele faz jus à crítica, a observação da impulso que leva a fazer um
instituição da polícia não encontra compromisso não parte dele mesmo, mas
nenhuma essência. Seu poder* é amorfo, vem de fora, justamente do impulso
como é amorfa sua aparição espectral, contrário, porque em qualquer
inatacável e onipresente na vida dos compromisso, mesmo quando aceito de
países civilizados. E, apesar de a polícia bom grado, não se pode fazer abstração
amiúde ter o mesmo aspecto em toda a do caráter compulsório. ‘Uma solução
parte, não se pode negar que seu espírito diferente seria melhor’ – eis o sentimento
é menos arrasador na monarquia que está na base de qualquer
absoluta – onde ela representa o poder* compromisso”1 [3] – É significativo que
do soberano, que reúne plenos poderes talvez o mesmo número de pessoas que,
legislativos e executivos – do que nos por causa da guerra, optaram pelo ideal
regimes democráticos, onde sua de uma solução não - violenta de
existência, não sublimada por nenhuma conflitos políticos, tenha-se afastado
relação desse tipo, testemunha a maior desse ideal por causa da decadência dos
degenerescência imaginável do poder*. parlamentos. (...)
Será que a solução não-violenta de acima mencionados, que afetam todo e
conflitos é em princípio possível? Sem qualquer poder* judiciário. Mas como
dúvida. As relações entre pessoas qualquer idéia, qualquer solução
particulares fornecem muitos exemplos. imaginável das tarefas humanas – sem
Um acordo não- violento encontra-se em falar de uma salvação do círculo
toda parte, onde a cultura do coração deu compulsório de todas as situações
aos homens meios puros para se existenciais já ocorridas na história
entenderem. Aos meios legítimos e mundial – é irrealizável, quando se
ilegítimos de toda espécie – que são, exclui por princípio todo e qualquer
todos, expressão da violência* – podem poder,* impõe-se a pergunta se existem
ser confrontados como meios puros os outros tipos de poder,* além daqueles
não- violentos. A atenção do coração, a focalizados pela teoria do direito. Ao
simpatia, o amor pela paz, a confiança e mesmo tempo impõe-se a pergunta se é
outras qualidades a mais são seu verdadeiro o dogma básico, comum
pressuposto subjetivo. Sua manifestação àquelas teorias: fins justos podem ser
objetiva é determinada pela lei (cujo obtidos por meios legítimos, meios
enorme alcance não pode ser discutido legítimos podem ser usados para fins
aqui) de que meios puros não sirvam justos. O que aconteceria, se esse tipo de
jamais a soluções imediatas, mas sempre poder,* dependente do destino e usando
a soluções mediatas. Por isso, nunca se meios legítimos, se encontrasse num
referem à solução de conflitos entre duas conflito inconciliável com os fins justos
pessoas de maneira imediata, mas pelo em si, e se, ao mesmo tempo, aparecesse
intermédio das coisas. Quando os um poder* de outro tipo, o qual então,
conflitos humanos se referem, da evidentemente, não pudesse ser nem o
maneira mais objetiva, a bens, abre-se o meio legítimo nem ilegítimo para
campo dos meios puros. Por isso, a aqueles fins, mas se relacionaria com os
técnica, no sentido mais amplo da fins não como um meio mas como algo
palavra, é sua área mais própria. Seu diferente? Assim se lançaria luz sobre a
exemplo mais profundo talvez seja a experiência singular e em princípio
conversa, considerada como uma técnica desanimadora de que, em última
de mútuo entendimento civil. Ali, um instância, é impossível “decidir”
acordo não- violento não apenas é qualquer problema jurídico – apoiaria
possível, mas a eliminação por princípio que talvez só possa ser comparada com a
da violência* pode ser explicitamente impossibilidade de uma decisão taxativa
comprovada com um tipo de relação sobre o que é “certo” ou “errado” em
importante: a impunidade da mentira. linguagens que têm uma evolução
Talvez não exista no mundo nenhuma histórica. Afinal, quem decide sobre a
legislação que originalmente puna a legitimidade dos meios e a justiça dos
mentira. Quer dizer que existe uma fins não é jamais a razão, mas o poder*
esfera de entendimento humano, não- do destino, e quem decide sobre este é
violenta a tal ponto que seja totalmente Deus. É uma maneira de ver incomum,
inacessível à violência: a esfera mas apenas porque existe o hábito
propriamente dita do “entendimento”, a arraigado de pensar os fins justos como
linguagem. (...) fins de um direito possível, ou seja, não
apenas universalmente válidos (o que
Em toda a esfera dos poderes,* que se seria uma conseqüência analítica do
orientam ou pelo direito natural ou pelo elemento justiça), mas passíveis de
direito positivo, não se encontra nenhum universalização – o que está em
que esteja a salvo dos graves problemas
contradição com esse elemento, como se ambígua do destino. Ela não é
poderia demonstrar. Pois, fins que são propriamente destruidora. Embora traga
justos, universalmente reconhecíveis, a morte sangrenta aos filhos de Níobe,
universalmente válidos para uma ela se detém diante da vida da mãe,
determinada situação, não o são para deixando-a – apenas mais culpada do que
nenhuma outra, por parecida que seja sob antes, por causa da morte dos filhos –
outros aspectos. Uma função não como suporte mudo eterno da culpa, e
mediata da violência, tal como está também como marco do limite entre
sendo discutida aqui, aparece na homens e deuses. Se esse poder*
experiência de vida cotidiana. Quanto ao imediato quer mostrar, em manifestações
ser humano, a ira, por exemplo, o leva às míticas, que é parente próximo do
mais patentes explosões de violência, poder* instituinte do direito ou lhe é
uma violência que não se refere como idêntico, ele focaliza um problema deste
meio a um fim proposto. Ela não é meio, poder, na medida em que este tinha sido
e sim manifestação. É verdade que esse caracterizado – na apresentação anterior
tipo de violência tem suas manifestações da violência* da guerra – como um
objetivas, onde ela é sujeita à crítica. poder* apenas dos meios. Ao mesmo
Elas se encontram, antes de mais nada e tempo, esta relação promete esclarecer
de maneira altamente significativa, no melhor o destino que em todos os casos
mito. está subjacente ao poder* jurídico, e,
num grande esboço, levar sua crítica a
O poder* mítico em sua forma termo. A função do poder- violência, na
arquetípica é mera manifestação dos institucionalização do direito, é dupla no
deuses. Não meio para seus fins, quase sentido de que, por um lado, a
não manifestação de sua vontade, antes institucionalização almeja aquilo que é
manifestação de sua existência. Disso, a instituído como direito, como o seu fim,
lenda de Níobe oferece um excelente usando a violência* como meio; e, por
exemplo. É verdade que ação de Apolo e outro lado, no momento da instituição do
Ártemis pode parecer uma mera punição fim como um direito, não dispensa a
da transgressão de um direito existente. violência,* mas só agora a transforma,
A hybris de Níobe conjura a fatalidade, no sentido rigoroso e imediato, num
não por transgredir a lei, mas por desafiar poder* instituinte do direito,
o destino – para uma luta na qual o estabelecendo como direito não um fim
destino terá de ser o vencedor, podendo livre e independente de violência
engendrar, na vitória, um direito. Até que (Gewalt), mas um fim necessário e
ponto o poder divino, no sentido da intimamente vinculado a ela, sob o nome
Antigüidade, não era o poder do poder (Macht). A institucionalização
mantenedor da punição, fica patente nas do direito é institucionalização do poder
lendas, onde o herói, por exemplo e, nesse sentido, um ato de manifestação
Prometeu, desafia o destino com digna imediata da violência. A justiça é o
coragem, luta contra ele, com ou sem princípio de toda instituição divina de
sorte, e acaba tendo a esperança de um fins, o poder (Macht) é o princípio de
dia levar aos homens um novo direito. É, toda institucionalização mítica do
no fundo, esse herói e o poder jurídico do direito. (...)
mito incorporado por ele que o povo
tenta tornar presente, ainda nos dias de A crítica da violência, ou seja, a crítica
hoje, quando admira o grande bandido. do poder, é a filosofia de sua história. É
A violência* portanto desaba sobre a “filosofia” dessa história, porque
Níobe a partir da esfera incerta e somente a idéia do seu final permite um
enfoque crítico, diferenciador e decisivo puro e imediato, é garantida, também
de suas datas temporais. Um olhar além do direito, fica provada a
dirigido apenas para as coisas mais possibilidade do poder revolucionário,
próximas perceberá, quando muito, um termo pelo qual deve ser designada a
movimento dialético de altos e baixos mais alta manifestação do poder puro,
nas configurações do poder* enquanto por parte do homem. A decisão, porém,
instituinte e mantenedor do direito. A lei se o poder puro, num determinado caso,
dessas oscilações consiste em que todo era real, não é possível da mesma
poder mantenedor do direito, no decorrer maneira, nem igualmente urgente para o
do tempo, acaba enfraquecendo homem. Pois com certeza, apenas o
indiretamente o poder instituinte do poder mítico será identificado com a
direito representado por ele, através da violência, não o poder divino, a não ser
opressão dos antipoderes* inimigos. através de efeitos incomensuráveis, já
(Alguns sintomas disso foram apontados que o poder que absolve da culpa é
ao longo desta análise.) Isso dura até que inacessível ao homem. De nono, o puro
novos poderes* ou os anteriormente poder divino dispõe de todas as formas
oprimidos vençam o poder* até então eternas que o mito transformou em
instituinte do direito, estabelecendo bastardos do direito. O poder divino
assim um novo direito sujeito a uma pode aparecer tanto na guerra verdadeira
nova decadência. A ruptura dessa quanto no juízo divino da multidão sobre
trajetória, que obedece a formas míticas o criminoso. Deve ser rejeitado, porém,
de direito, a destituição do direito e dos todo poder* mítico, o poder* instituinte
poderes* dos quais depende (como eles do direito, que pode ser chamado de um
dependem dele), em última instância, a poder que o homem põe (schaltende
destituição do poder do Estado, Gewalt). Igualmente vil é também o
fundamenta na nova era histórica. Se a poder* mantenedor do direito, o poder*
dominação do mito em alguns pontos já administrado (verwaltete Gewalt) que
foi rompida, na atualidade, o Novo não lhe serve. O poder divino, que é insígnia
se situa num ponto de fuga tão e chancela, jamais um meio de execução
inconcebivelmente longínquo, que uma sagrada, pode ser chamado de um poder
palavra contra o direito seja supérflua. Se de que Deus dispõe (waltende Gewalt).
a existência do poder, enquanto poder

*
Walter Benjamim, “Zur Kritik der Gewalt”, in: G. S. II, pp. 179-203. Trad. Willi Bolle, N. da R.: Os
trechos aqui publicados fazem parte do capítulo “Crítica da Violência – crítica do poder”, da obra de Walter
Benjamim Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos, seleção e apresentação de
Willi Bolle, tradução de Celeste H. M. Ribeiro de Souza et al., São Paulo, Cultrix/Editora da Universidade
de São Paulo, 1986. A numeração original das notas foi mantida, tendo sido suprimido o texto referente à
Nota 2.
FONTE: Revista Religião & Sociedade, 15/1 1990, pp. 132-140.
**
Optei por esta tradução do original “Zur Kritik der Gewalt”, uma vez que todo o ensaio é construído
sobre a ambigüidade da palavra Gewalt, que pode significar ao mesmo tempo “violência” e “poder”. A
intenção de Benjamim é mostrar a origem do direito (e do poder judiciário) a partir do espírito da violência.
Portanto, a semântica de Gewalt, neste texto, oscila constantemente entre esses dois pólos; tive que optar,
caso por caso, se “violência” ou “poder” era a tradução mais adequada, colocando um asterisco quando as
duas acepções são possíveis. (N.T.)
1
Erich Unger, Politik und Metaphysik. (Die Theorie. Versuche zu philosophischer Politik). Berlim, 1928,
p. 8.

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