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Márcio de Oliveira*
Rigorosamente, não há uma sociologia da imigração na obra de Gilberto Freyre. Contudo o fenômeno da
imigração não está ausente das análises sobre o modelo freyriano de amálgama e sobre os processos de mis-
cigenação social e racial. Está presente ainda em conferências e livros sobre a civilização luso-tropical, em
seu interesse e viagens por outras culturas e países. Ele pode ser observado ainda em sua atuação parlamen-
tar em defesa da lusofonia durante a Assembleia Constituinte de 1946. Esse paper discute a contribuição
de Freyre à sociologia da imigração no Brasil, em relação à discussão mais geral sobre o luso-tropicalismo.
Colocando em perspectiva comparada as definições sobre o luso-tropicalismo e as análises dos processos
de assimilação, conclui-se que os estudos nos quais Freyre analisa aspectos da imigração foram contrapar-
tida decisiva para o desenvolvimento de suas ideias sobre a civilização luso-tropical, além de constituírem
importantes contribuições para a sociologia da imigração no Brasil.
Palavras-chave: Gilberto Freyre. Sociologia da imigração. Imigração. Assimilação. Civilização luso-tropical.
1
INTRODUÇÃO gração em momentos históricos particularmen-
te delicados. No período do entreguerras, em O
Gilberto Freyre (1900-1987) tratou do fe- mundo que o português criou (1940),2 estendeu
nômeno da imigração em momentos distintos a hipótese, desenvolvida em Casa Grande &
de sua obra. Fez menções ao estrangeiro em Senzala, sobre as consequências vantajosas
A história de um engenheiro francês no Bra- dos imigrantes portugueses em relação aos
sil (1941), Ingleses no Brasil (1948) e O Brasil europeus “puros, dólico-louros” – a ausência
em face das Áfricas negra e mestiça (1962), ou de preconceito e plasticidade – nas sociedades
ainda em O Brasileiro entre outros hispanos coloniais portuguesas. Antes mesmo disso, em
(1975). Em sua atuação política, como depu- Sobrados e Mucambos, Freyre (1968b, p. 344,
tado eleito pela União Democrática Nacional tomo 1) havia abordado tanto a “assimilação da
1 2
Temos aqui a reunião, em livro, de conferências reali-
* Universidade Federal do Paraná. Departamento de So- zadas no Kings College (Londres) e nas universidades de
ciologia. Lisboa, Coimbra e Porto em 1937. Para a edição de 1940,
Rua General Carneiro, 460. Centro. Cep: 80060-150. Curi- as conferências foram revistas pelo autor.
tiba – Paraná – Brasil. marciodeoliveira62@gmail.com
1
Registro aqui meu agradecimento à leitura cuidadosa e 3
Esse livro é a compilação de vários artigos publicados
propositiva dos pareceristas indicados pela revista. entre os anos de 1910 e 1930.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792017000300011 561
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referiu-se ao papel regionalmente diferenciado 155). Em outro trabalho, agora dedicado à con-
dos imigrantes na formação da cultura nacio- tribuição das ciências sociais brasileiras ao fe-
nal, ao dizer que o Nordeste, em consequência nômeno da imigração, Seyferth (2004) aparen-
da “desvantagem” de não ter recebido os novos temente concorda com a tese da inexistência
imigrantes, tornou-se “refúgio da alma do Bra- de uma sociologia da imigração na obra de Gil-
sil” (Freyre, 1968,4 p. 197-198).5 berto Freyre, da qual cita apenas dois trabalhos
Os processos sociais de integração e de – Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira e
miscigenação, comumente relacionados à so- Região e tradição –, não estabelecendo, nesse
ciologia da imigração, estão presentes em li- texto, relações entre a dimensão assimilacio-
vros como Ordem e Progresso (1959) e O luso e nista e miscigenadora das práticas sociais no
o trópico (1961). Da mesma forma, Freyre pu- Brasil com os processos sociais de igual monta,
blicou, em 1971, Nós e a Europa Germânica: típicos de sociedades imigrantistas. Já no tra-
em torno de alguns aspectos das relações do balho sobre o caráter multidisciplinar dos es-
Brasil com a cultura germânica no decorrer do tudos da imigração no Brasil, Seyferth (2007)
século XIX, quando retornou ao tema da cultu- não faz nenhuma referência à contribuição
ra e da imigração alemã no Brasil, assunto que de Freyre. Além disso, não há referências te-
já havia abordado 31 anos antes em Uma cultu- óricas aos conceitos clássicos da sociologia da
ra ameaçada: a luso-brasileira (1940).6 Final- imigração, tais como assimilação,7 aculturação
mente, em Novo Mundo nos Trópicos (1972), ou integração8 no livro dedicado à sociologia
afirmou, sem ambiguidade, que a assimilação como ciência (Sociologia: introdução ao estudo
do outro era característica principal da socie- dos seus princípios, de 1945). Em conclusão,
dade brasileira, assumindo como fundamen- não há razões para se falar em um Freyre, soci-
tais os processos sociais clássicos presentes ólogo da imigração, porém, como demonstro,
em sociedades imigrantistas. o mestre pernambucano analisou processos de
Não obstante as evidências acima, a assimilação e fez referências ao fenômeno da
questão da imigração parece secundária na imigração a partir de situações empíricas bem
vida e na obra freyriana. Dentre seus intér- específicas, o que nos coloca diante do seguin-
pretes, reunidos por Kominsky, Lépine e Pei- te paradoxo.
xoto (2003), apenas Seyferth dedicou espaço De um lado, temos a importância con-
à questão. No capítulo intitulado “Naciona- ferida aos processos de miscigenação, aos
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qual retornamos) sugerem familiaridade tanto verno Português, presidida pelo Cônsul Geral
com o tema da interpenetração cultural quan- de Portugal e, apesar de ter sido realizada no
do com aquele da imigração. Por que, então, Brasil, foi organizada no âmbito das comemo-
não estendeu essa preocupação e conhecimen- rações do “III Centenário da Fundação de Por-
to ao Brasil, dedicando à imigração brasileira tugal” (Restauração de 1640). Falar, portanto,
estudo específico? O presente artigo retoma em ameaça da cultura luso-tropical no Brasil,
essa questão, demostrando que o fenômeno da justamente o país onde residia a maior colô-
imigração é efetivamente importante na obra nia portuguesa, diante de membros do gover-
de Freyre, em especial (embora não apenas) no português, embora pudesse soar exagerado,
quando relacionado às análises que fez sobre a não era incoerente. Porém, o texto tinha tam-
civilização luso-tropical. Para isso, analisamos bém outro interlocutor: o geólogo e botânico
os trabalhos Uma cultura ameaçada: a luso- alemão Reinahrd Maack (1892-1969)10 e seu
-brasileira (1980b) e Nós e a Europa Germâni- artigo, The Germans of South Brazil: a German
ca: em torno de alguns aspectos das relações do view (1939), citado por Freyre (1980, p. 61-64)
Brasil com a cultura germânica no decorrer do e sobre o qual ele já havia escrito para o jornal
século XIX (1987). Além desses trabalhos, ana- O Estado de São Paulo no mês de abril daquele
lisamos os discursos pronunciados durante a mesmo ano de 1940.
Assembleia Constituinte de 1946 e os livros ou Em seu artigo, Maack (1939) afirma
conferências O mundo que o português criou: que os cidadãos germânicos residentes no sul
aspectos das relações sociais e de cultura do do Brasil estariam organizando associações
Brasil com Portugal e as colónias portuguesas nacional-socialistas no intuito de demons-
(1940), Região e Tradição (1968a), Integração trar solidariedade ao nazismo. As análises de
Portuguesa nos Trópicos (1966), Uma política McCann Jr. (1995), Magalhães (1998) e Lopes
transnacional de cultura para o Brasil de hoje (2008) mostram que, efetivamente, Hitler se
(1960) e O Luso e o Trópico (1961). Como de- interessou pelo Cone Sul e fez planos para
monstramos a seguir, nesses trabalhos, há pas- os descendentes germânicos que aí viviam.
sagens e referências sobre o tema da imigração, Porém até que ponto Freyre estava ciente de
em especial sobre o caráter assimilador e assi- tudo isso? O fato é que, citando rapidamente
milado do português, que são essenciais ao de- o trabalho de Maack, conferiu grande crédito
senvolvimento das análises sobre o luso-tropi- às suas análises. Estaria realmente ameaçada
calismo e constituem importante contribuição a cultura luso-brasileira no sul do Brasil. Em
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artigo intitulado “Os alemães no Sul do Brasil uma imagem positiva dos imigrantes e, em
(ponto de vista brasileiro)”,12 Câmara (1940, p. sentido contrário, negativa dos brasileiros, em-
33) afirma que a análise de Maack errava ao bora essas não necessariamente atentassem ou
ligar os alemães e descendentes que vivem no ameaçassem a soberania nacional. Apesar dis-
sul do Brasil ao nazismo: “não há tal”. Ao con- so, os autores, “dada a gravidade do momento
trário de Freyre, Câmara afirma que não havia internacional” (ou seja, antevéspera da Segun-
nem mesmo problemas de integração. Para pro- da Guerra Mundial), propõem ações de nacio-
var sua afirmação, reproduziu uma carta com nalização, cujo objetivo seria “ fazê-los amar e
o pedido de cidadania brasileira que “centenas respeitar o Brasil [...] sem que sejam feridos os
de estrangeiros” endereçaram às autoridades interesses econômicos dessas zonas” (Câmara;
(Câmara, 1940, p. 34). Embora reconhecendo Neiva, 1941, p. 107-108). O problema era tão
certo isolamento e autonomia em algumas co- somente adaptá-los “ao meio nacional”.14
lônias, mormente no Vale do Itajaí (estado de Seyferth (2004, p. 8) estranha que um
Santa Catarina), mostra que alguns descenden- autor “[...] assumidamente pluralista, como Gil-
tes – Lauro Muller e Felipe Schmidt – destaca- berto Freyre, tenha condenado o germanismo
ram-se na vida nacional. Rebatendo pouco a do Sul em nome da unidade nacional”. Nos cír-
pouco os argumentos de Maack, Câmara con- culos imigrantes germânicos, não era incomum
cluiu seu artigo citando passagem do próprio manter-se próximo da cultura alemã, advogan-
Maack, para quem “[...] as gerações mais novas do a justeza da identidade teuto-brasileira. Isso
de teuto-brasileiros, sendo cidadãos do Brasil, não implicava, porém, recusar-se à assimilação
se entusiasmam grandemente com a ideia de ou à nacionalização. Contudo, naquele contexto
um Brasil maior, e nenhuma acusação pode ser dos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial,
mais injusta que a de lhes atribuir ideias de estava difundido o temor em relação à integri-
separatismo” (Câmara, 1940, p. 43). dade do território brasileiro,15 fato que apenas
Em novo artigo, publicado na citada legitimava as ideias contidas na conferência.
Revista de Imigração e Colonização e escrito Não há evidências que demonstrem o conheci-
conjuntamente com o engenheiro e bacharel mento de Freyre sobre os trabalhos de Câmara
em Direito Arthur Hehl Neiva (1909-1969), e (ou) de Arthur Neiva,16 nem mesmo sobre os
após viagem que ambos realizaram a diversas planos nazistas para o Brasil. Seyferth (2003, p.
colônias de imigrantes (alemãs e japonesas) 165) afirma, sem apresentar dados precisos, que
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localizadas nas regiões sudeste e sul do Bra- esse texto seria uma reação de Freyre aos prin-
sil, Câmara e Neiva (1941) apresentam uma cípios nazistas. Em uma entrevista ao Diário de
radiografia da realidade encontrada. Afirmam, Pernambuco, quando questionado sobre o que
inicialmente, que, devido ao histórico descaso lhe parecia ser a capacidade de assimilação da
dos governos brasileiros, havia claros elemen- cultura brasileira, tomando a imigração alemã
tos desnacionalizadores, como o lar, a escola, como referência, Freyre (1942, p. 5) apresenta
a igreja e as associações.13 Resistir à perda da outro argumento:
identidade havia se tornado uma prática legí-
A língua alemã falada por colonos alemães no Sul ra-
tima e necessária. Além disso, tanto as inicia-
tivas governamentais alemãs quanto as inicia- 14
Essas ações seriam finalmente organizadas no interior
da chamada Campanha de Nacionalização, conjunto de
tivas de religiosos alemães haviam construído decretos publicados entre 1938 e 1940, que visavam à na-
cionalização compulsória de estrangeiros e à erradicação
dos chamados “quistos étnicos”. Para maiores detalhes,
12
A expressão “ponto de vista brasileiro” é uma inequívo- ver Ribeiro (2012).
ca resposta ao artigo de Maack, que traz, em seu subtítulo,
a expressão “A german point of view”. 15
Para uma análise sobre a agenda do nazismo para a Amé-
rica do Sul, ver Lopes (2008).
13
Para uma análise detalhada do relatório de Câmara e
Neiva e das ações de religiosos alemães no sul do Brasil, 16
Temos aqui, efetivamente, fatos históricos concomitan-
ver Schulze (2014, p. 115-138). tes e não relações histórico-causais.
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pidamente se enche de palavras portuguesas. Velhas do Sul não foi resultado de ampla pesquisa.
festas do catolicismo luso-brasileiro como a da laranja, Como afirma Silveira ([200-]), Freyre não dedi-
em Santa Catarina, acabam atraindo colonos alemães
cou “mais do que alguns ensaios ao Rio Gran-
de formação protestante. Entretanto, esse poder de
assimilação correrá o risco de tornar-se de todo inefi-
de do Sul”. Dois deles parecem ter sido frutos
ciente cada vez que o imigrante se encontre em con- de viagens consecutivas, realizadas em 1939 e
dições econômicas e higiênicas largamente superiores 1940, a primeira delas a convite do interven-
às do brasileiro velho. Foi para esse ponto que chamei tor do estado do Rio Grande do Sul, Cordeiro
a atenção dos meus amigos do Rio Grande do Sul e de de Farias, no exato momento da deflagração
Santa Catharina, inclusive os interventores dos dois
da citada Campanha de Nacionalização. Se-
Estados que me dão a impressão de administradores
atentos aos problemas sociais mais sérios do governo
gundo Nedel (2007, p. 86), o interesse político
e não apenas aos burocráticos e urbanísticos. dos gaúchos com esse convite era “[...] se faze-
rem representar, a qualquer preço, dentro de
As autoridades precisavam manter-se limites luso-brasileiros.” Esse desejo se ajus-
atentas aos “problemas sociais mais sérios”, ou tava como uma luva às ideias que o próprio
seja, aos impasses que obstruíam “o poder de Freyre desenvolveria não apenas nos artigos
assimilação” da cultura luso-brasileira, sempre “gaúchos”, mas também em sua tese sobre o
que o colono alemão se encontrasse “em condi- luso-tropicalismo.17 No primeiro dos artigos,
ções econômicas e higiênicas largamente supe- Narcisismo gaúcho, Freyre demonstra inequí-
riores ao brasileiro velho”. O temor em relação voco apreço pela singularidade gaúcha. Porém,
à não miscigenação entre os grupos imigrantes ao analisar os processos de assimilação entre
e o “brasileiro velho” aparece aí relacionado ao as populações antigas e as imigrantes, é rela-
desequilíbrio econômico regional entre as áre- tivamente ambíguo. Ora afirma que os adven-
as imigrantes e “brasileiras”. Para setores in- tícios se assimilavam ao peso da cultura dos
telectuais e grupos militares, a relativa homo- “donos da terra”, ora diz que a falta de “poder
geneidade étnica das colônias de imigrantes, de assimilação” estava no “...desequilíbrio en-
nos estados do Sul, era conhecida, alardeada, tre condições de vida das duas populações – a
até justificando os decretos nacionalizadores tradicionalmente brasileira, e a neobrasileira
(Magalhães, 1998). Mas, ao fim e ao cabo, se [...]” (Freyre, 1968a, p. 250). O desequilíbrio em
cuidada fosse a questão econômico-sanitária, questão era rodoviário – falta de estradas –, mas
Freyre não parece duvidar do sucesso da cul- também de assistência sanitária e social. A insu-
tura brasileira em assimilar a cultura alemã ou ficiente malha rodoviária produziria isolamen-
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las características regionais “genuínas” que ele neobrasileiros (Freyre, 1943, p. 53, grifo do autor).
via em risco de descaracterização no âmbito de
Nesse ano de 1940, Freyre apresenta ar-
processos nacionalizadores, fato semelhante
gumentos próximos do multiculturalismo atu-
àquele encontrado no carnaval da “Praça Quin-
al, oscilando entre a importância da regionali-
ze” (Rio de Janeiro). Como compreender o final
dade e da nacionalidade, embora sempre em
do texto? O fenômeno da imigração não valeria
proveito do projeto luso-brasileiro. A compa-
como tal, mas apenas como antessala ao resgate
ração das análises do gaúcho com aquelas de-
do tema da regionalidade?
dicadas ao nordestino é ilustrativa. Em Região
O segundo artigo sobre o Rio Grande,
e Tradição, no capítulo dedicado ao narcisismo
intitulado “Sugestões para o Estudo Histórico
gaúcho, Freyre (1968a) defende, sem citar re-
e Social do Sobrado no Rio Grande do Sul”, de-
ferência alguma, a mesma tese já apresentada
veu-se à segunda viagem ao estado, em 1940,
na conferência “Continente e Ilha”: o “gaúcho
e possibilitou ao autor apresentar ideias para o
atual” seria um elemento híbrido, consequ-
estudo do sobrado gaúcho.18 Além disso, nes-
ência da assimilação dos imigrantes alemães
sa segunda viagem, Freyre proferiu, durante o
e italianos (Freyre, 1968a, p. 243). O nordes-
III Congresso de História e Geografia,19 a con-
tino, por sua vez, é descrito como avesso ao
ferência “Continente e Ilha”, quando retomou
nomadismo, e “estranhamente sensível às suas
suas ideias sobre a assimilação dos imigran-
raízes” (Freyre, 1968a, p. 128). Numa palavra,
tes no sul do Brasil. Após fazer referências
nada seria mais oposto à mobilidade conceitu-
às “ilhas de colonização”, ou seja, às cidades,
al do migrante do que o nordestino, exemplo
Freyre (1943, p. 27-28) afirma que o “sentido
inverso do gaúcho, novamente definido como
de continente”, ou seja, de unidade, deveria
neobrasileiro.
prevalecer sobre os “excessos da ilha” sem,
Freyre realizaria ainda outras viagens ao
contudo, abafá-las. Referindo-se a Porto Alegre
Rio Grande do Sul até o ano de 1969. Além des-
e à cultura gaúcha, assim se exprime:
ses contatos e escritos, ofereceu-se, no que foi
Que se sintam aqui, como em nenhuma outra cida- atendido, a fazer o prefácio da obra “A contri-
de grande do Brasil, o gaúcho, no pitoresco como buição teuta à formação da nação brasileira”.20
no essencial de sua cultura, inclusive culinária; o
Apesar disso e de ter sido convidado a presi-
missioneiro; a influência chamada indistintamente
dir21 o Iº Colóquio de Estudos Teuto-Brasilei-
castelhana; a influência dessas duas ricas culturas
ros em 1963, aí não compareceu, tendo apenas
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germânica projetou-se sobre o Brasil meridional de última feita, porém, já em 1974, tratou apenas
modo, sob alguns aspectos, considerável; mas sem de abrir esse segundo colóquio, realizado em
que deixasse aquela Europa de receber do Brasil –
Recife, fazendo referências a ilustres alemães,
produtor de tabaco, de café de cacau, de excelentes
madeiras de marcenaria – influências que lhe modi-
germanófilos brasileiros e obras literárias cujo
ficariam hábitos e que lhe inspirariam novas pers- assunto geral era a imigração ou a cultura ale-
pectivas do trópico e até novos modos de artistas de mã no Brasil. Concluiu sua conferência inau-
tratarem o material, das suas respectivas artes, de gural de forma positiva, enfatizando o novo
origem brasileira. campo de estudos que se abria cada vez mais:
Freyre opõe aí, sem nuances, dois blo- “O elemento alemão na formação cultural do
cos culturais. A cultura brasileira não se deixa Brasil continua, sob vários aspectos, assunto
dominar, antes influencia. Nesse livro, não há virgem para sociólogos brasileiros da Cultu-
análise de processos reais de interação, mas ra, da Arte, das Letras. É assunto magnífico”
apenas comentários gerais sobre as contribui- (Freyre, 1974, p. 11).
ções positivas do imigrante alemão – “colabo- Finalmente, em 1980, no prefácio da 2ª
rador valioso”, diz Freyre –, trazidas para uma edição de Uma cultura ameaçada: a luso-bra-
cultura brasileira considerada como consolida- sileira, Freyre surpreendeu ao apresentar o li-
da de norte a sul do país. Não obstante a apo- vro como um “clamor filosófico”. Defendeu a
logia tradicional da cultura brasileira, Freyre “resistência” da cultura luso-brasileira ao “im-
incita o leitor ao estudo de personagens histó- perialismo cultural, representado por cultura
ricos, como a milionária Elizaberth Lundgren, centro-europeia, na qual se encarnaram valo-
ou literários, como a “fraulein governante” de res e desígnios opostos aos social e cultural-
Mário de Andrade, em Amar verbo intransitivo. mente luso-brasileiros” (Freyre, 1980b, p. 16).
Cita ainda o Meyer do livro Inocência, além de Da ameaça nazista de 1940, passando, contu-
outros personagens que eram objeto de estudo do, pelas positivas contribuições germânicas
nos “Colóquios de Estudos Teuto-brasileiros”, dos anos 1970, em 1980 a cultura luso-brasi-
organizados na cidade de Porto Alegre. leira voltava a ser objeto de genéricas ameaças
Dos nove capítulos que compõem o li- estrangeiras, então relacionadas ao imperialis-
vro, quatro são dedicados aos contatos de mo europeu.
Pernambuco com a “Europa germânica”. No Se a imigração alemã ora contribuía,
capítulo sobre Graça Aranha – “um germa- ora ameaçava, o mesmo não pode ser dito da
nizado que se desgermanizou”, Freyre tenta imigração italiana. As referências a essa imi-
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[...] latino e católico, em particular, da civilização por alguns teóricos de Chicago. Todas elas são,
que aqui vinha se desenvolvendo, de certo modo ainda, muito próximas das que estão presentes
ameaçadas pela presença alemã tanto no Rio Grande
nas páginas da Revista de Imigração e Coloni-
do Sul e em Santa Catarina, como em São Paulo e no
Espírito Santo. Verificou-se esse reforço étnico-cul-
zação. Em termos cronológicos, os escritos de
tural em período agudo de desapreço, da parte do Freyre sobre o fenômeno da imigração acom-
brasileiro médio, pelas suas origens hispano-católi- panham o momento político-institucional do
cas – particularmente luso-católicas – sob a sedução país de 1946 – quando apresentou projetos
de evidências de superioridade técnica de anglo-sa- como deputado constituinte – até 1972, quan-
xões e alemães, predominantemente protestantes:
do publicou O luso e o trópico. Talvez devido
superioridade interpretada pela gente simplista de
então, até na França, como absoluta ou total (Freyre,
à importância dos objetivos práticos persegui-
1962, p. 335). dos durante esse período, a contribuição teó-
rica pareça menos relevante. O fundamental,
A imigração italiana, também ela, tem porém, é a ideia principal que Freyre defende
valor relacional e funcional: é positivamente constantemente: o fenômeno da imigração não
avaliada porque, sendo latina, se opunha “às se bastava, antes servia. Funcionava como es-
seduções de superioridade” de anglo-saxões pécie de trampolim para alcançar outros obje-
e germânicos. Reconhece-se, ali, a posição do tivos. Se quisermos pôr nesses termos, trata-se
autor em relação ao fenômeno da imigração: de uma sociologia da imigração teoricamente
tudo e todos que supostamente reforçavam o robusta, porém limitada a apenas uma questão
padrão luso-brasileiro eram bem-vindos. que, aparentemente, muito incomodava. Seu
Tomando esses trabalhos em seu con- objetivo era prático e normativo: a imigração
junto, pode-se afirmar a existência de uma alemã poderia ameaçar, caso não fosse contro-
sociologia da imigração na obra de Gilberto lada. Era bem-vinda, se assimilada. Já a imigra-
Freyre? Rigorosamente falando, não. Segun- ção italiana foi positivamente analisada, por-
do Seyferth (2000), o projeto regionalista é que, frente às supostas ameaças germânicas ou
mais importante do que a questão migratória superioridades anglo-saxônicas, os italianos
em Freyre. Nele, a preocupação central era a revigoravam a cultura lusa nos trópicos.
nacionalização excessiva das manifestações
culturais regionais. É possível enquadrar os
escritos gaúchos nessa perspectiva, deslocan- A IMIGRAÇÃO E A CIVILIZAÇÃO
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te. A “ameaça à cultura luso-brasileira”, para vro, que não chega a 100 páginas, encontra-se
além do contexto da Segunda Guerra, pode ser a tese do português com “... seu passado étni-
compreendida, em sentido contrário, como a co, ou antes, cultural de povo indefinido entre
defesa do projeto civilização luso-tropical. Em a Europa e a África”. Como se sabe, Freyre via-
que momento, porém, teria surgido o luso-tro- jou à África apenas ao final de seu mandato na
picalismo? Segundo o próprio Freyre, surgiu Câmara Federal. Portanto, ainda que seminal,
durante as diversas conferências proferidas na O mundo que o português criou é livro funda-
Europa nos anos 1930, no King´s College. O mentalmente ensaístico. A título de exemplo,
sentido geral delas foi inicialmente sintetiza- Freyre apresentava, aí, a sociedade brasileira
do em O mundo que o português criou (1940). como “um processo de alongamento de uma
Segundo o próprio autor, após sua criação, a cultura antiga numa nova” (Freyre, 1940, p.
expressão teria sido discutida por diversos es- 32). A cultura lusa, no Brasil, tinha mantido,
pecialistas. Foi retomada em diversas outras da matriz portuguesa, a citada capacidade de
conferências ainda na década 1950, em parti- assimilação. É fundamentalmente “transnacio-
cular na conferência “Uma cultura moderna: nal” e apresenta “vigor híbrido” (Freyre, 1940,
a luso-tropical”, proferida em Goa (Índia) em p. 55). Naquele momento, porém, as evidên-
1951,23 e em Integração Portuguesa nos Trópi- cias empíricas da capacidade assimiladora lu-
cos, publicado originalmente como livro em sitana tinham como lastro apenas as observa-
1958 (Freyre, 1960, p. 9-36). Exatamente entre ções feitas durante a viagem ao Rio Grande do
o primeiro livro de 1940 e as conferências e li- Sul, quando apresentou o processo de “abrasi-
vros dos anos 1950, se situa a atuação política leiramento” dos colonos europeus.
de Freyre na Constituinte de 1946.
No extremo sul do Brasil, onde acabo de estar em
O objetivo geral dos trabalhos que Freyre viagem de contato rápido com a gente e a paisagem
dedica à questão – O mundo que o português daquela região neobrasileira, impressionaram-me
criou, Aventura e Rotina, Integração portugue- certas evidências de abrasileiramento, do alemão e
sa nos trópicos, Ordem e Progresso, O luso e o de outros colonos, pelo gesto, pelo ritmo de andar,
trópico e Novo mundo nos trópicos – era com- pela prática de atos tradicionalmente brasileiros
(Freyre, 1940, p. 33).
preender a diferença dos métodos da coloniza-
ção portuguesa daqueles de outros europeus.24 Citando Durkheim, acredita Freyre estar-
Dessa diferença advinha a singularidade da mos diante da pressão do social sobre o indi-
civilização luso-tropical. Seria demasiado res- víduo, das práticas brasileiras que lentamente
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é central. Braga (1998, p. 506-507) afirma que processos de assimilação (“escapa a qualquer
se trata de seu discurso mais longo, 20 páginas, garantia por antecipação”) e de sua importância
cujo teor central girou em torno de duas ques- social permite que Freyre proponha a supressão
tões: a assimilação do imigrante e o status jurí- dessa exigência. Na continuação do discurso,
dico do português. Propondo a supressão par- encontra-se a afirmação mais instigante: “os
cial do § 16 do art. 164, Capítulo III, Título V, portugueses não são estrangeiros, são portu-
Freyre (apud Chacon, 1994, p. 83) afirma: gueses”. Freyre não duvida da singularidade do
português frente aos outros estrangeiros. Como
Diz-se aí: ‘A entrada de imigrantes estará condicio-
nada à sua capacidade física e civil, assim como à
prova disso, diferencia, dentre os processos de
garantia de sua assimilação’. É evidente que a as- assimilação, aqueles decorrentes do contato
similação de imigrantes escapa a qualquer garantia entre povos (indivíduos) decorrentes de civi-
por antecipação, podendo quando muito prever-se, lizações distintas e aqueles oriundos de uma
por ocasião da entrada de imigrantes, que os de certa mesma civilização27. Por isso, caberia à Cons-
procedência venham a ser assimilados mais fácil e ra-
tituição reconhecer e promover essa “realida-
pidamente pelo meio brasileiro, que os de outra ori-
gem25. Garantir antecipadamente essa assimilação é
de sociológica”. A principal ação seria, assim,
que ninguém pode. Proponho, assim, que se suprima “preparar-se” para que os novos imigrantes não
no referido §16 art. 164, Capítulo III, Título V ‘assim modificassem a “origem predominantemente
como à garantia de sua assimilação’. lusitana”. Contudo, isso não deveria ser feito
Creio que a Constituição pode consagrar, na parte separando “brasileiros natos” dos “neobrasilei-
referente à imigração ou à naturalização, é a situação
ros”, para depois “nos queixar [que] resistem à
especial do português no Brasil. Como já salientou
em lúcido discurso nesta Assembleia o ilustre de-
assimilação”. Por isso, “no interesse da naciona-
putado por São Paulo Sr. Aureliano Leite, para os lidade”, havia a necessidade do “reconhecimen-
brasileiros, os portugueses não são estrangeiros: são to da situação especial do português em nosso
portugueses. Esta é a realidade sociológica que cabe meio” (Freyre apud Chacon, 1994, p. 83-86).
à Constituição consagrar e confirmar, no interesse do O final da passagem acima (e não do dis-
desenvolvimento das relações entre o Brasil, Portu-
curso, que se estende por mais 10 páginas) não
gal e as comunidades neoportuguesas da África, da
Ásia e das Ilhas: comunidades que a cada dia cons-
surpreende. Freyre advoga, primeiro, a tese da
tituem um bloco transnacional mais forte, de cultura transnacionalidade (ou “sobrenacionalidade”)
e de população orientadas por tradições e destinos portuguesa. Como parâmetro da imaginada
comuns e servidas pela mesma língua, também trans- adaptabilidade (ou supremacia) portuguesa
nacional ou sobrenacional, e por isso mesmo, nem em qualquer região do Brasil, cita artigo em
571
EM TORNO DA CIVILIZAÇÃO LUSO-TROPICAL ...
(1980), retomando o “manifesto político”, es- tinos e tradições supostamente comuns. Como
boçado em O mundo que o português criou, de assinala Palhares-Burke (2005), apoiando-se
exaltação do colonialismo português, do qual em Skidimore (1999), Freyre havia aprendido
seria, à tort et à raison, defensor. A plástica cul- com Boas e com intelectuais brasileiros, como
tura lusa ganharia contornos claros e não se Roquette-Pinto,29 a diferenciar raça e cultura.
limitaria a incorporar aqueles que, porventura, Eventualmente, raça e cultura poderiam estar
com ela entram em contato. Iria ao encalço do mescladas, mas não a favor de qualquer tipo
outro para nele se fundir, para unificar toda di- de hierarquia racial. Ao insistir, após a viagem
versidade, o “... Português, criando um novo ao estado gaúcho, no “abrasileiramento” de ale-
mundo não só na América, como na Ásia, na mães e italianos no sul do Brasil, Freyre tanto
África e até na Oceania, fez desse mundo, sob se oporia às teses raciais quanto reforçaria as
todos os aspectos, uma combinação de diversi- qualidades assimiladoras da formação luso-tro-
dade com unidade” (Freyre, 1980, p. 309). pical. Assim fazendo, contudo, Freyre rompe
Em Integração portuguesa nos trópicos,28 (in)conscientemente com a questão central dos
Freyre (1966, p.73), afirma que a superação estudos migratórios: o debate em torno da hie-
da “condição étnica pela cultural caracteriza a rarquia entre quem assimila e quem é assimila-
civilização luso-tropical”. A mesma tese con- do; entre a sociedade de origem e a sociedade
tinuou presente nos ensaios publicados em O hospedeira. No caso luso, ambas, inicialmente
luso e o trópico: “Miscigenação acompanhada distintas, findariam por estabelecer interações
de interpenetração de culturas. Integração em sociais em nível de igualdade, porque originá-
seu sentido mais amplo” (Freyre, 1961, p. 53). rias da mesma unidade civilizacional. Como
A civilização luso-tropical seria, enfim, antes, assinalou Green (2006), essa unidade analítica
um processo do que um todo rígido: “Homogê- não teria grande posteridade dentro dos estudos
neo em suas formas principais de organização sobre imigração, seja nas ciências sociais, seja
e de cultura. Uno pela sua língua supranacio- na história. Foi, porém, a perspectiva adotada
nal. Mas vário pelas linguagens nacionais e até por Freyre. Devido ao partido teórico escolhi-
subnacionais” (Freyre, 1961, p. 79). O agente do – afastar-se da unidade indivíduo e adotar
responsável por todo esse processo era, é claro, a unidade de análise civilização luso-tropical,30
o luso e sua capacidade de assimilação, aparen- criada especialmente para esse fim – a contri-
temente infinita. buição freyriana para os estudos migratórios
Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 81, p. 561-578, Set./Dez. 2017
Restava, porém, um último problema: ficou ali parcialmente obscurecida. Mas, afora
como estudar processos de assimilação tendo a experiência gaúcha, onde mais teria Freyre
por unidade esse mundo português miscige- buscado evidências empíricas para afirmar essa
nado e em eterno processo de expansão? Em civilização?
termos teóricos, isso foi possível deslocando a
unidade da análise sociológica do conceito de
“indivíduo” para o conceito de civilização lu- O LUSO-TROPICALISMO EM
so-tropical. Em Freyre, a noção de indivíduo re- QUESTÃO
metia tanto aos debates de superioridade racial
quanto aos debates eugenistas, esses últimos O luso-tropicalismo freyriano foi objeto de
muito próximos dos ideais de branqueamento inúmeras análises, tanto no Brasil quanto no ex-
apresentados por muitos como o norte da polí-
tica imigratória brasileira. Já o conceito de civi-
29
Sobre a importância de Roquette-Pinto para os debates
imigrantistas no Brasil e sua oposição à política de bran-
lização, remetendo à ideia de cultura e de inte- queamento, ver Stepan (2005) e Lima & Sá (2008).
rações sociais, trazia à tona a hipótese de des- 30
Seria possível ver nessa noção de Civilização luso-tropical
fenômeno próximo aos atuais debates sobre o transnaciona-
28
Nessa edição de 1966, o texto aparece como “apenso”. lismo? Fica o registro e o convite para outras pesquisas.
572
Márcio de Oliveira
terior (Cabaço, 2007; Cabral, 2010; Castelo, 1999, espécie de ponte entre dois países egressos de
2011; Conceição Neto, 1997; Medina, 2000; Ri- regimes fortes, Brasil e Portugal. Conceição
beiro, 2001; Dávila, 2011; Schneider, 2012). As Neto (1997, p. 330-331) acentua a “cegueira e a
interpretações variam. As críticas ao luso-tropi- incapacidade analítica de Freyre em África, di-
calismo, realizadas antes da viagem às colônias ficilmente explicáveis” e a desilusão causada
portuguesas, são diferentes daquelas produzidas em africanos nacionalistas. Segundo Castelo
em período posterior, quando se reconhece (2011, p. 269-270):
o apoio ambíguo do mestre pernambucano
[...] a civilização que Gilberto Freyre descreve e in-
à política colonialista portuguesa. O caráter terpreta não existe, é antes uma aspiração, um des-
literário do luso-tropicalismo está presente em tino. Ancorando-a em pressupostos psicológicos e
O mundo que o português criou, já analisado. históricos, o autor vai nos falando das suas carac-
Para esse, vale a crítica à inconsistência das evi- terísticas, para no fim agendar a sua plena concre-
dências, prática científica que Skidmore (1999) tização para os próximos decênios. A “integração”
inscrita no título do livro de 1958 refere-se ao pro-
identifica também em Casa Grande & Senzala.
cesso simbiótico, iniciado no século XV, de união
Schneider (2012, p. 82) afirma que O mundo que dos portugueses com os trópicos, ou melhor, de fu-
o português criou é, contudo, inferior a este “[...] são, sob a égide de Portugal, de elementos diversos,
porque repete a tese de Casa-grande e Senzala, em termos geográficos, biológicos e culturais, numa
mas sem a sofisticação analítica e empírica do nova civilização, a civilização luso-tropical.
livro de 1933”.
A transposição do modelo de explicação
Segundo Arenas (2010),
da sociedade brasileira para os países africa-
[...] a teoria luso-tropical ganha corpo e nome pró- nos parece ter sido feita de maneira linear, sem
prio a partir do périplo realizado por Freyre a Por- a necessária pesquisa bibliográfica e consulta
tugal e a diversos territórios do ultramar português
aos documentos existentes. Segundo Medi-
(e não só) entre 1951-52, amplamente documentado
na (2000), citando Andrade,31 não teria havido
no seu ‘diário de bordo’ intitulado ‘Aventura e roti-
na’ (1953). Esta viagem suscitou igualmente a pu- miscigenação nas colônias portuguesas em
blicação de uma série de obras, hoje em dia pouco África. Como prova, afirma que a população de
lidas, sendo pelo menos duas delas encomendadas “assimilados”32 era de apenas 4.349 habitantes,
pelo governo português, pretendendo ampliar e até para uma população portuguesa de 15.599 ha-
‘stematizar’ os seus pressupostos teóricos (ver Um
bitantes, números insignificantes em relação à
brasileiro em terras portuguesas [1953] já mencio-
população angolana total de 5.732.317 habitan-
nado, ‘Integração portuguesa nos trópicos’ [1958] e
573
EM TORNO DA CIVILIZAÇÃO LUSO-TROPICAL ...
pela cultural”. Mas, fundamentalmente, a “ci- não tiveram outra função senão legitimar o
vilização não existe”. É “uma aspiração”. Com imaginado luso-tropicalismo.
efeito, o projeto ou o desejo (“aspiração”) de
Freyre fê-lo esquecer dos elementos que deve-
riam compor sua imaginada civilização. Não há PALAVRAS FINAIS
menção às unidades, ou seja, aos grupos étni-
cos (portugueses, autóctones africanos, escra- Como dito, no livro Sociologia (1957),
vos, imigrantes...) que compunham a civiliza- nos três capítulos dedicados às “sociologias
ção. Talvez porque esses grupos findariam por especiais”,33 não há um único tópico específico
ser “superados”. Assim, interessava somente dedicado à questão da imigração. Os conceitos
explicar as relações sociais, pretensamente centrais da sociologia para tratar o fenômeno
harmoniosas, que formavam a nova cultura e a da imigração – assimilação e aculturação – es-
inusitada civilização. Resumindo: há consenso tão igualmente ausentes do primeiro capítulo,
em relação ao paradoxal apoio que teria feito intitulado “Limites da Sociologia” e também
Freyre ao colonialismo português, justamente do último, intitulado simplesmente “Sociolo-
quando sopravam ventos de liberdade entre as gia”.34 No índice de assuntos, derradeira au-
antigas colônias em África. Da mesma forma, sência. Contudo, no índice onomástico, perso-
sobram reparos ao teor jornalístico e superfi- nagens como William Thomas e Florian Zna-
cial (sobretudo para um antropólogo) presente niecki, autores do clássico The Polish Peasant
nas considerações sobre a África portuguesa. in Europe and America, estão devidamente ci-
A construção do conceito de Civilização tados tanto quanto seus conceitos “situações”
luso-tropical em Freyre teria ocorrido, então, e “atitudes”.35
em dois tempos, antes e depois das viagens às Bastos (2006, p.166) afirma que a trilo-
colônias portuguesas; antes e depois da expe- gia interpenetração etnias e cultura, patriarca-
riência parlamentar. Em ambos, contudo, o fio do e trópico são uma chave de leitura para se
condutor foi a tese da “combinação de diversi- compreender a obra de Freyre. Dessa trilogia, o
dade com unidade”, em proveito da segunda. item interpenetração etnias e cultura apresen-
A ideia de unidade teve por objetivo consolidar ta interfaces evidentes com o par imigração e
a supremacia lusa no Brasil, ou seja, tropicali- assimilação. Seyferth (2003, p. 171) concorda:
zada. A ideia de não deixar espaços para iden- “O tema da interpenetração supõe penetração
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574
Márcio de Oliveira
Casa Grande & Senzala e Sobrados & Mucam- CABAÇO, J. L. de O. Moçambique: identidades,
colonialismo e libertação. 2007. 475 f. Tese (Doutorado
bos, são, a esse respeito, esclarecedores. En- em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
contram-se, neles, a tese da capacidade assimi- 2007.
ladora da cultura lusa em exemplos (a questão CABRAL, T. P. O luso tropicalismo: reflexões sobre a
cultura política luso-brasileira. 2010. 135 f. Dissertação
do hibridismo linguístico, por exemplo) bem (Mestrado em Relações Internacionais e Ciencia Poítica)
mais detalhados do que aqueles retirados das – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade
Nova de Lisboa, Lisboa, 2010.
visitas aos países africanos. Da mesma forma, CÂMARA, A. de L. Os alemães no Sul do Brasil – ponto de
lá estão analisados, teórica e empiricamente, vista brasileiro. Revista de Imigração e Colonização, Rio de
Janeiro, ano I, n. 1, p. 33-46, 1940.
os processos de assimilação do imigrante.
CÂMARA, A. de L.; NEIVA, A. H. Colonizações nipônica
Freyre não é um sociólogo da imigração. e germânica no sul do Brasil. Revista de Imigração e
Colonização, Rio de Janeiro, ano 2, n. 1, p. 39-119, 1941.
Não há dúvida nisso. Contudo, o fenômeno
CASTELO, C. O modo português de estar no mundo: o
da imigração não está ausente de sua obra. É luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa: 1933-
possível pensar que o tema o incomodou e o 1961. Porto: Afrontamento,1999.
CASTELO, C. Uma incursão no luso-tropicalismo de
inspirou. A demonstração disso pode estar no Gilberto Freyre. Blogue de História Lusófona, Lisboa, ano
uso quase intercambiável que operou entre os 6, 2011. Disponível em <http://www2.iict.pt/archive/doc/
bHL_Ano_VI_16_Claudia_Castelo__Uma_incursao_no_
termos cultura e indivíduo, tomando-os como lusotropicalismo.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2015.
elementos de ligação entre a ideia de civiliza- CHACON, V. Discursos parlamentares/Gilberto Freyre:
seleção, introdução e comentários de Vamireh Chacon.
ção luso-tropical e os escritos sobre imigração.
portugueses haviam sido (ou estavam sendo) DÁVILA, J. Hotel trópico: o Brasil e os desafios da
descolonização africana, 1950-1980. São Paulo: Paz e
assimilados era comprovar a existência e o mo- Terra, 2011.
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consequência, pode-se afirmar que tanto seus nação brasileira. 4. ed. Rio de Janeiro: Presença, 1985. v.
1, p. 13-17.
escritos sobre os imigrantes europeus quanto
FREYRE, G. Aventura e rotina: sugestões de uma viagem à
sobre as práticas assimilacionistas no mundo procura das constantes portuguesas de carácter e ação. 2.
luso-tropical são importantes contribuições à ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980a. (Coleção
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Aceito em 05 de outubro de 2017 FREYRE, G. Integração portuguesa nos trópicos. In:
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EM TORNO DA CIVILIZAÇÃO LUSO-TROPICAL ...
Strictly speaking, there isn’t a sociology of Il est certain qu’il n’y a pas de sociologie de
immigration in the works of Gilberto Freyre. l’immigration dans l’œuvre de Gilberto Freyre. Le
Nonetheless, immigration isn’t a topic absent from phénomène de l’immigration existe cependant
analyses on the freyrian model of amalgam and on dans ses analyses du modèle d’amalgame et des
social and racial miscegenation. It is present also in processus de miscégénation sociale et raciale. Ce
lectures and books on the luso-tropical civilization, phénomène est aussi présent dans ses conférences
and in his interest and travels through other et ses livres sur la civilisation luso-tropicale, dans
cultures and countries. It can also be observed in son intérêt et ses voyages pour d’autres cultures
his parliamentary acting in defense of lusophony et dans d’autres pays. On peut encore l’observer
during the Assembleia Constituinte [Constituent dans son action parlementaire pour la défense de
Assembly] of 1946. This paper discusses Freyre’s la lusophonie lors de l’Assemblée Constituante de
contribution to the sociology of immigration in 1946. Cet article traite de la contribution apportée
Brazil, with regards to a more general discussion par Freyre à la sociologie de l’immigration au Brésil
on luso-tropicalism. Putting into a comparative en ce qui concerne la discussion plus générale sur le
perspective the definitions of luso-tropicalism luso-tropicalisme. La mise en perspective comparée
and analyses of assimilation processes, the paper des définitions du luso-tropicalisme et des analyses
concludes that the studies in which Freyre analyses des processus d’assimilation, permet d’en arriver
aspects of immigration were a decisive counterpart à la conclusion que les études dans lesquelles
to the development of his ideas on the luso- Freyre analyse les aspects de l’immigration furent
tropical civilization, in addition to being important une contrepartie décisive pour le développement
contributions to the sociology of immigration in de ses idées sur la civilisation luso-tropicale, sans
Brazil. compter les importantes contributions apportées à
la sociologie de l’immigration au Brésil.
Keywords: Gilberto Freyre. Sociology of Immigration. Mots-clés: Gilberto Freyre. Sociologie de l’immigration.
Immigration. Assimilation. Luso-tropical civilization. Assimilation. Civilisation luso-tropicale.
Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 81, p. 561-578, Set./Dez. 2017
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