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nos acena com a possibilidade de tra-

zer o movimento da diferença para o


interior do con ceito; de s e fazer da
antropolo gia um diálogo es tranho e GRYPHO Razão e Diferença

Razão e
inquietante, e não um monólogo edifi-
cante sobre o estranho. Se a psicaná- Marcio Go ldman
lise conheceu seu Anti-Édipo, a filoso-
fia deveria reconhecer, no pensamen-
to de Lév y-Br uhl, uma d as figur as
mais radicais deste Anti-Narciso que
Atualidade de Lévy-B ruhl? S im,
a antropologia lhe propõe.

Diferença
mas talvez mais que iss o — perma-
O livro d e Marcio Goldman no s nência de um pens amento s empre
indica como se pode retomar a antro- capaz de reproblematizar a antropolo-
pologia a partir de Lévy-Bruh l, em- gia, dis ciplina que s e cons tituiu em
preendendo um resgate que não traz torno das mes mas antinomias que o
qualquer nostalgia de um retorno; tra- marcam: universalismo e relativismo,
ta-s e de um ir adiante, us ando um semelhança e diferença, razão e emo-
caminho bloqueado há long o tempo ção, experiência e crença, nós e os
por um processo sistemático de exclu- outros, o civilizado e o primitivo… As
são e simplificação. Ao desmontar a questões que acompanham toda a lon-
imagem de Lévy-Bru hl que n os foi ga trajetória deste pensador constitu-
legada pela vulg ata antrop ológica, em o cerne do que se poderia chamar
Razão e Diferença faz bem mais, ou a fetivida de , “anthropologia perennis”: o esforço de
outra coisa, que uma história das idéi- heterogeneização da Razão, tarefa im-
racionalidade e relativismo
as — faz antropologia, reinjetando nos perativa para todo conhecimento do
debates atuais da disciplina a singu- no pensamento de humano que aspire a ser outra coisa
laridade de u m autor q ue, du rante Lévy-Bruhl que u ma tranq üilização d o s ujeito.
uma carr eira marcada por uma in - P ermanência então, mas intempes ti-
trans igente hones tidad e intelectual, va: s e Raz ão e D ifer ença mos tra o
jamais se contentou com as soluções poder repr oblematizador de Lévy -
que propôs, ciente de que o conheci- Bruhl, é porque sua obra, ao mesmo
mento não pode ser senão um processo tempo que recorda as antinomias ori-
de aproximação contínua a um ponto ginárias, perturba as respos tas fáceis
sempre em deslocamento. Sobre Lévy- que a dis ciplina tem avançado para
Bruh l, mas s obretu do com Lévy - elas. Reproblematizar a antropologia
Bruh l, es te livro é u ma ref lexão significa aqui sus peitar das “s upera-
antropo lógica s obre a antrop ologia, ções dialéticas ” das antinomias em
reflexão modelar p or s ua er udição, favor de alguma unidade superior, de
rigor e criatividade. um lugar pseudo-geométrico que mal
es conde s ua mis s ão es pecular; mas
Eduardo Viveiros de Castro
Marcio Goldman significa também recusar seu conge-
lamento em um dualismo preguiçosa-
mente s olipsis ta, uma celebração do
Marcio G oldman é pr ofes s or do
inefável e do incomens urável que é
P rograma de P ós -Graduação de A n- outra forma de silenciar a dissonância
tropologia Social do Museu Nacional
e a defas agem que trabalham por
da U nivers idade F ederal do R io de
Janeiro e pesquisador do CN Pq. dentro a Razão. A obra de Lévy-Bruhl

Capa Livro 1 17/02/06, 9:45 AM


MARCIO GOLDMAN

RAZÃO E DIFERENÇA
AFETIVIDADE, RACIONALIDADE E RELATIVISMO
NO PENSAMENTO DE LÉVY-BRUHL

Rio de Janeiro
1994
Copyright © 1994 by Marcio Goldman

Ficha Catalográfica elaborada pela Divisão de


Processamento Técnico — SIBI/UFRJ
G 618r Goldman, Marcio
Razão e diferença: afetividade, racionalidade e
relativismo no pensamento de Lévy-Bruhl / Marcio
Goldman. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Editora
GRYPHO, 1994

Bibliografia: p 383-394
ISBN 85-7108-106-9

1. Antropologia Social. Teoria I. Lévy-Bruhl,


Lucien. II. Título
CDD 306.01

Editora Grypho
Rua Maria I. Braune Portugal 376 parte — CEP 26650-000
Eng. Paulo de Frontin – RJ

Universidade Federal do Rio de Janeiro


Forum de Ciência e Cultura
Editora UFRJ
Conselho Editorial
Darcy Fontoura de Almeida, Gerd Bornheim, Gilberto Velho,
Giulio Massarani, José Murilo de Carvalho, Margarida Souza
Neves, Silviano Santiago, Wanderley Guilherme dos Santos.
Editora UFRJ
Forum de Ciência e Cultura
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Rio de Janeiro
Tel: (021) 295 1595 r. 18/19 FAX: (021) 295 2346

Apoio

Fundação Universitária José Bonifácio


Para Tânia
ÍNDICE

Notas Preliminares
1 — “O Caso Lévy-Bruhl”.......................................................1
2 — Clássico e Romântico
— História da Filosofia................................................45
3 — O Sábio como Astrônomo
— Ciência e Moral......................................................111
4 — Malentendido sobre a Vida Filosófica
— Psicologia e Sociologia..........................................159
5 — Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão
— Etnologia e Antropologia......................................247
6 — As Duas Direções........................................................323
7 — O Final e a Finalidade.................................................371
Bibliografia...........................................................................383
Índice Remissivo..................................................................395
Notas Preliminares

Este trabalho consiste em um remanejamento de minha tese


de doutorado em antropologia social, escrita entre 1990 e 1991 e
defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro em
dezembro de 1991. Elaborada sob a orientação do Dr. Eduardo
Batalha Viveiros de Castro, sua defesa contou, na banca examina-
dora, com a presença dos Drs. Otávio Velho, Rubem César
Fernandes, Roberto Cardoso de Oliveira e José Carlos Rodrigues —
além do Dr. Afrânio Raul Garcia Jr. como suplente.
No início de 1992, procurei redimensionar e reescrever em
parte a tese visando sua publicação. Dificuldades editoriais adiaram,
contudo, esta publicação até que o interesse da Editora da UFRJ e
da Editora Grypho a tornassem possível. Voltado há mais de um ano
para outro objeto de pesquisa, não me pareceu aconselhável
empreender uma nova revisão. Gostaria, portanto, de contar com a
boa vontade do leitor para com um trabalho cujas referências
explícitas cessam há cerca de dois anos, mas cujo interesse, espero,
continua absolutamente atual.
O CNPq, a CAPES e o PPGAS forneceram, em diferentes perío-
dos, as bolsas de estudo que tornaram materialmente possível a efe-
tivação do trabalho. O Departamento de Antropologia da Universida-
de Federal Fluminense, onde trabalhava na ocasião da elaboração
da tese, concedeu minha liberação das atividades docentes e de pes-
quisa a fim de que eu pudesse me dedicar integralmente a esta atividade.
Ana Beatriz Freire, David Hess, Débora Danowski, Eduardo
Correia do Prado, Francisco Teixeira Portugal, Gilberto Velho,
Guilherme Teixeira Portugal, Janice Caiafa, Júlio Silveira, Kátia
Maria Pereira de Almeida, Neila Soares, Otávio Velho, Ronaldo dos
Santos Sant’Anna, Sérgio Augusto Ligiero, Sulamita Danowski e
Wanderley Guilherme dos Santos me auxiliaram de diferentes
maneiras na redação do trabalho e na publicação do livro.
Roberto DaMatta, Luiz Fernando Dias Duarte, Wagner Neves
Rocha, Ovídio Abreu Filho, Otávio Velho, José Carlos Rodrigues,
Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima foram, ao longo de
muito tempo, os principais interlocutores que tornaram possível, às
vezes involuntariamente, a elaboração das idéias aqui desenvolvidas.
A todas as instituições e pessoas citadas sou profundamente
grato. E embora isso seja supérfluo, gostaria de recordar que a
responsabilidade pelos erros inevitáveis que este trabalho certa-
mente contém é exclusivamente minha.

A
Todas as citações em língua estrangeira foram traduzidas por
mim para evitar que a exposição se tornasse pesada demais. As
referências bibliográficas foram efetuadas com a data original da
obra, visando fornecer uma contextualização histórica mais precisa
do momento em que os trabalhos analisados e citados foram
produzidos. A edição efetivamente utilizada, quando não coincide
com a original, é mencionada na bibliografia final. Os textos de
Lévy-Bruhl mais utilizados serão citados por meio das seguintes
abreviaturas:
IR: L’Idée de Responsabilité (1884)
AL: L’Allemagne Depuis Leibniz — Essai sur le Dévelloppement
de la Conscience Nationale en Allemagne (1890)
PJ: La Philosophie de Jacobi (1894)
HF: History of Modern Philosophy in France (1899)
PC: La Philosophie d’Auguste Comte (1900)
MM: La Morale et La Science des Mœurs (1903)
OH: L’Orientation de la Pensée Philosophique de David Hume
(1909)
FM: Les Fonctions Mentales dans les Sociétés Inférieures (1910)
MP: La Mentalité Primitive (1922)
BP1: Communication sur “la Mentalité Primitive” (Bulletin de la
Société Française de Philosophie — 1923)
AP: L’Âme Primitive (1927)
BP2: Communication sur “l’Âme Primitive” (Bulletin de la Société
Française de Philosophie — 1929)
SN: Le Surnaturel et la Nature dans la Mentalité Primitive (1931)
LE: Lettre au Professeur Evans-Pritchard (1934) (Revue
Philosophique de la France et de l’Étranger — 1957)
MyP: La Mythologie Primitive - Le Monde Mythique des Australiens
et des Papous (1935)
EM: L’Expérience Mystique et les Symboles chez les Primitifs
(1938)
CL: Les Carnets de Lucien Lévy-Bruhl (1949)
1
“O Caso Lévy-Bruhl”

Todo pensador profundo teme mais ser bem do que mal


compreendido. No segundo caso sua vaidade sofre
talvez; mas no primeiro é seu coração, sua simpatia
que repetem sem cessar: “Por que vocês querem viver
tão duramente quanto eu próprio vivi?”
Além de Bem e Mal

Durante uma aula de história, Paulo Leminski intuiu as


implicações de uma vinda de René Descartes ao Brasil. Tendo
pertencido à guarda pessoal de Maurício de Nassau, o filósofo
poderia de fato ter sido trazido pelo príncipe, ansioso por povoar
a Nova Holanda de sábios. Essa intuição deveria se converter em um
“romance-idéia” fascinante, Catatau. Escrito em primeira pessoa,
como uma meditação, descreve as peripécias do fundador de nosso
racionalismo contemplando atônito a realidade dos trópicos. Con-
templando-a? Evitando-a, antes. Sentado sob uma árvore, fumando
uma erva misteriosa, observa a paisagem com uma luneta, esperan-
do um amigo que, imagina, poderá explicar o que acontece diante
de seus olhos. As lentes da luneta são trocadas sem cessar, visando
ora aproximar a realidade exótica — curiosidade — ora, mais
freqüentemente, afastar os seres estranhos e ameaçadores que a
povoam. “Quantos vidros, lentes vai querer entre si e os seres?”,
indaga-se Descartes enquanto exorciza os índios e os animais que
passam na frente de sua luneta. “Duvido se existo, quem sou eu se
esse tamanduá existe?”, proclama, refazendo seu cogito. Leminski
sustenta que seu livro pretende mostrar “o fracasso da lógica
cartesiana branca no calor”; denunciar o esforço aí contido para
“exorcizar a golpes de lógica, tecnologia, mitologia, repressões” o
aparente absurdo que afrontava o europeu; revelar a “inautenticida-
de” de uma lógica que se supõe neutra, mas que “não é limpa, como
pretende a Europa, desde Aristóteles. A lógica deles, aqui, é uma
farsa, uma impostura”. Não nos apressemos contudo em considerar
Catatau um manifesto irracionalista. Trata-se antes de apontar “a
2 Razão e Diferença

eterna inadequação dos instrumentais, face à irrupção de realidades


inéditas”. Não estamos às voltas tampouco com um libelo naciona-
lista, invocando um Brasil transcendente e irredutível a modelos
supostamente importados. Afinal de contas, a entidade “Brasil” é
apenas semi-real, sua outra metade repousando em algumas
fantasias historicamente muito variáveis.
A fábula de Descartes no Brasil tem outro sentido. Aquele a
quem se atribui a invenção da lógica analítica, do racionalismo
triunfante, da nossa modernidade mental e tecnológica, se dá conta
a duras penas da violência a ser necessariamente exercida para que
uma realidade outra se acomode aos moldes pré-estabelecidos da
razão ocidental. Fábula, ou história, das exclusões e golpes de força
não simplesmente lógicos sem os quais o mundo não se dobraria tão
docilmente a certas categorias do pensamento e a certas ações da
práxis. De certo modo, Descartes continua no Brasil, e em toda
parte, observando com suas lentes domesticadoras um real que
teima em só se deixar subjugar pela força. Ou, se quisermos
abandonar o simbolismo do livro de Leminski, podemos dizer que
a razão ocidental prossegue em seu trabalho secular de controle e
exclusão da diferença. Movimento que não é estranho — muito pelo
contrário — àquele executado na mesma direção pelas forças
econômicas e políticas até hoje triunfantes.
Setenta anos antes de Catatau, Lucien Lévy-Bruhl publicou
uma História da Filosofia Moderna na França, encomendada por
um editor norte-americano interessado em apresentar nos Estados
Unidos os princípios da filosofia francesa. A exposição vai, grosso
modo, de Descartes a Comte; nela o cartesianismo é encarado tanto
como a origem cronológica e teórica desta filosofia quanto como
uma espécie de “espírito geral” que impregnaria há muito tempo o
pensamento filosófico francês. Privilégio das matemáticas, método
dedutivo, universalismo, ruptura com os preconceitos tradicionais,
poder do homem sobre a natureza: estes seriam os princípios
fundamentais que Descartes teria legado a toda a filosofia, princí-
pios aos quais o pensamento francês sobretudo teria permanecido,
de um modo ou de outro, especialmente fiel.
Nascido em Paris, em 1857, Lévy-Bruhl cursou a École
Normale Supérieure entre 1876 e 1879, tendo defendido sua tese de
Doutorado de Estado em 1884. Conhece-se bem o ambiente
intelectual francês deste período: uma coexistência não muito
pacífica entre neo-kantismo, criticismo, espiritualismo, positivismo
e algumas tendências epistemologizantes. Seria quase impossível
imaginar que um intelectualismo bem forte não tivesse marcado sua
O Caso Lévy-Bruhl 3

formação intelectual. É isso aliás que vários depoimentos de


testemunhas diretas confirmam. Como disse Maurice Leenhardt
(1949: VI), Lévy-Bruhl fazia parte do grupo de intelectuais que “crê
no homem moderno, formado por uma cultura secular, pleno de
respeito por todos os valores que fazem sua dignidade”. Cartesianis-
mo, positivismo e uma certa forma de neo-kantismo, eis as três
grandes tendências que se reúnem em boa parte dos intelectuais
desta época. Pode-se avaliar o impacto sobre alguém formado nesse
meio de uma viagem à América. Qual poderia ter sido a reação desse
intelectualista inveterado ao choque que as informações relativas às
sociedades ditas primitivas com certeza nele provocou? Choque de
violência singular, que fez com que um famoso historiador da
filosofia, requintado filósofo de gabinete contando já com 46 anos
de idade, decidisse passar os trinta e seis últimos anos de sua vida
examinando um estranho material que lhe chegava de todas as
partes do mundo. Choque que acabou produzindo seis volumes,
totalizando nada menos que 2.500 páginas, inteiramente dedicadas
a esses “primitivos” que ele jamais encontrou diretamente se
excetuarmos algumas poucas e curtas viagens de valor etnográfico
nulo.
Em última instância, o objetivo deste trabalho é tentar transpor
para uma linguagem supostamente mais objetiva — e certamente
mais pobre — a fábula narrada por Leminski. “Fábula ou história”,
uma vez que é óbvio que Descartes realmente veio ao Brasil; é óbvio
que a razão ocidental se defrontou desde sua constituição histórica
primeira com o fantasma da alteridade e da diferença. Isso é tão
verdadeiro que chega a ser inútil recordar que o Ocidente acabou
por reservar, na segunda metade do século XIX e depois de longas
peripécias, um compartimento no domínio que lhe é mais precioso,
o da ciência, onde a questão da diferença deveria ser inventariada,
delimitada e explicada. A antropologia científica nascente prometia
ainda mais. Não se tratava apenas de submergir uma realidade outra
(coisas, seres, modos de vida concretos) em um esquema lógico
explicativo, mas de tentar justamente uma explicação racional da
razão dos outros, ou de sua ausência entre eles. No lugar de um
confronto entre realidade e razão, os antropólogos buscaram
estabelecer as modalidades de relação entre duas formas de razão
na aparência tão diferentes, tão irredutíveis uma à outra.
A antropologia — Pierre Clastres (1968: 36-38) tem razão —
está enraizada em um “paradoxo”: nascida da “grande partilha”,
poderia consistir, contudo, na “única ponte entre a civilização
ocidental e as civilizações primitivas”. Ciência e diferença se
4 Razão e Diferença

encontrariam estranhamente nesta disciplina. Não é difícil perceber,


entretanto, que esse encontro pode produzir resultados variados.
Que a razão ocidental, manipulada neste caso pelo antropólogo,
simplesmente digira a razão do outro (o que pode ser feito
considerando-a uma forma apenas involuída da primeira ou proje-
tando-a inteiramente para fora do campo do razoável), nada terá
sido de fato alterado. A diferença, reduzida a simples aparência ou
a mero objeto, não terá servido para nada além de nutrir o apetite,
bastante considerável, da nossa própria razão. Estaríamos às voltas
com o que Clastres denomina com toda propriedade “um discurso
sobre as civilizações primitivas”.
Existe contudo uma outra alternativa. Se esse “discurso sobre”
se transformar em um “diálogo com”, uma nova perspectiva poderá
ser alcançada. Clastres apenas não menciona, o que não significa
que não tenha considerado a possibilidade, que esse diálogo pode,
ele também, assumir duas formas bem distintas. De um lado, a razão
ocidental pode se transformar — transformação que é a condição
óbvia para que um diálogo que mereça esse nome realmente se
estabeleça — apenas para melhor saciar seu apetite canibal.
Flexibilizemos nossos esquemas, sofistiquemos nossas categorias, e
aquilo que parecia tão difícil de ser incorporado poderá ser
tranqüilamente assimilado por nosso pensamento sem que este
corra na realidade um risco muito grande. A outra possibilidade é
que esse diálogo realmente nos transforme. Aqui há um risco a
correr, o de uma incapacidade de atingir completamente o outro,
renúncia mesmo a absorvê-lo em nossas categorias, ainda que
transformadas e alargadas. A recompensa, contudo, também pode
valer a pena: romper os quadros de um racionalismo sempre
estreito, subverter a razão não em nome de seu contrário — o
“irracional” — mas na esperança de que um pensamento outro
possa ser lentamente construído em um processo no qual par-
ticipam também parceiros inesperados. Esta é a aposta que faz com
que o jogo da antropologia realmente valha a pena. Ainda que essa
seja uma opinião muito pessoal, estou certo de que não é solitária.
Ao longo de toda sua história, essa forma de conhecimento parece
ter estado sempre dilacerada entre essas alternativas. Não se trata de
um progresso na direção de pontos de vista supostamente mais
adequados e “científicos”, nem mesmo de uma linha que dividiria
os “bons” e os “maus” autores. A dilaceração é interna, intrínseca a
quase todos os antropólogos e seus antepassados. Basta analisar
com cuidado a obra do mais racionalista dentre eles para que
princípios dialógicos bem subversivos sejam revelados.
O Caso Lévy-Bruhl 5

Aqui não é, contudo, o lugar para narrar essa longa história.


Contentar-me-ei com algumas breves evocações e indicações que
têm alguma importância para o trabalho que se segue. Hélène
Clastres (s/d) observou com exatidão a “reviravolta completa” que
se produziu entre os séculos XVI e XVII, de um lado, e o XVIII, de
outro, no que diz respeito ao que fazer com os “selvagens”. Pagando
o preço de um certo esquematismo, pode-se resumir essa oposição
dizendo-se que para os observadores e escritores desses dois
primeiros séculos de contato mais intenso com o “outro”, o
fundamental é o espanto: rios, jibóias, abacaxis e tupinambás se
misturam nas crônicas, aparecendo como faces de uma mesma
realidade estranha e, até certo ponto, inverossímil. Acima de tudo,
os selvagens. Quando lemos os cronistas, a fábula de Descartes no
Brasil parece cada vez mais histórica. Não há dúvida que uma reação
tranqüilizadora se esboça simultaneamente, na forma de neutraliza-
ções de ordem sobretudo teológica: a questão da alma dos índios,
da tribo perdida de Israel…, são discussões que visam encontrar um
lugar nos esquemas da história santa para esses selvagens tão
absurdos. Nesse contexto, o século XVIII irá marcar um ponto de
inflexão decisivo, abrindo um espaço do qual é duvidoso que nós
próprios tenhamos saído completamente. O iluminismo racionalista
não poderia ter permanecido estranho a essas realidades ainda
muito recentemente reveladas, nem poderia ter se contentado com
os esquemas puramente religiosos dos séculos passados. O antigo
“selvagem”, doravante “primitivo”, pode ser não apenas descrito
como também julgado e, talvez, explicado; pode servir sobretudo
como instrumento de crítica da sociedade ocidental. É justamente
aqui que tudo se complica: para exercer essa função de meio de
crítica, as sociedades primitivas devem ser despojadas de sua
especificidade para que se permaneça apenas com o substrato
especificamente humano, mais aparente nessas sociedades do que
na nossa, ainda que igualmente presente em todas elas. Dessa
forma, no mesmo golpe, a singularidade, a diferença, o espanto e
a possibilidade de que o conhecimento desses “primitivos” pudesse
realmente nos comprometer, tudo isso é eliminado. Um dos preços
a pagar pela doutrina da unidade do homem é ter que considerar
este homem, excluídos alguns desvios e degenerações, como a pura
imagem de nós mesmos.
O evolucionismo social da segunda metade do século XIX não
parece, deste ponto de vista, ter trazido qualquer modificação mais
profunda. Como disse Lévi-Strauss (1973: 385), “trata-se de uma
tentativa de suprimir a diversidade das culturas fingindo reconhecê-
6 Razão e Diferença

las plenamente”, a conversão de uma diferença real em uma


desigualdade simplesmente temporal sendo, como se sabe, o
operador de tal supressão1. Na verdade, é o princípio do relativismo
cultural que surge como marca de uma virada, talvez profunda, na
história da antropologia. Esse é, sem dúvida, um tema complicado
que será objeto de discussão em diversas oportunidades ao longo
deste trabalho. Por ora, gostaria simplesmente de evocar o depoi-
mento de Clifford Geertz (1988: 6), para quem o relativismo significa
a maior perturbação introduzida pela antropologia na “paz intelec-
tual geral”. Geertz tem mesmo um modo muito próprio de compre-
ender esse princípio, bem como o transtorno que teria provocado.
Seriam sobretudo os dados etnológicos — “costumes, crânios,
escavações e léxicos” — os responsáveis por essa perturbação, não
as teorias antropológicas tão divergentes e contraditórias. Não se
trata aqui de uma reedição antropológica do princípio de Jean
Rostand (“As teorias passam. A rã permanece”): o “anti anti-
relativismo” de Geertz toca em um ponto mais fundamental. Talvez
seja possível levá-lo ainda mais longe, sustentando que em inúmeras
ocasiões as teorias antropológicas — e mesmo pré-antropológicas
— têm a função ao menos subsidiária de neutralizar a perturbação
introduzida pelos dados etnológicos. “Costumes, crânios, escava-
ções e léxicos” são assim acomodados em quadros e esquemas que
se encarregam logo de esvaziá-los do potencial explosivo que
inegavelmente possuem.
“Tranqüilizar”, diz Geertz, “tem sido a tarefa dos outros; a
nossa tem sido a de inquietar”. O próprio debate, ainda bem longe
de estar concluído, acerca do relativismo testemunha talvez a favor
dessa posição. Ele pode também indicar que a questão está um
pouco deslocada, que insistindo numa discussão virtualmente
infinita acerca dos benefícios e paradoxos do relativismo, estejamos
nos condenando a caminhar em círculos e a não entrever novas
direções. O princípio do relativismo cultural é, sem sombra de
dúvida, um instrumento metodológico poderoso sem o qual a
antropologia não poderia ter ido tão longe quanto efetivamente foi.
Ocorre que ele talvez seja também um limite que o pensamento
antropológico terá, um dia, que enfrentar e ultrapassar. Voltarei a
esse ponto, mas devo logo dizer que não se trata aqui absolutamente
de uma possível defesa do “anti-relativismo” que Geertz acertada-
mente ataca. Trata-se, isso sim, de uma tentativa de superação do
próprio debate, ao menos nos termos em que tem sido tradicional-
mente colocado.
A
O Caso Lévy-Bruhl 7

Que a razão cartesiana tenha se defrontado com o Novo


Mundo, que tenha se surpreendido com este encontro, tentando
“exorcizar a golpes de lógica, tecnologia, mitologia, repressões” o
aparente absurdo com o qual se havia posto em relação, tudo isso
parece, portanto, evidente e claro. Esta viagem, contudo, também
se realizou de outra maneira, mais pessoal que o choque genérico
de um Ocidente sempre impreciso com um outro mundo sempre
meio mítico. Muitos foram sem dúvida esses encontros pessoais,
mas, como já se sabe, é de apenas um dentre eles que se tratará aqui.
Escrevendo em 1939 o necrológio de Lévy-Bruhl, Marcel Mauss
(1939: 561) afirmava que sua vida “mereceria uma verdadeira
biografia”. Este não é, contudo, o lugar para tal empreendimento.
E isso por uma série de razões, algumas de ordem pessoal, outras
de ordem teórica, outras ainda de ordem empírica. “O mais sábio,
é falar de si o mínimo possível quando não se é a isto obrigado” (CL:
164). Não é nada fácil fazer falar um autor que se exprime com tanta
clareza sobre este ponto. De qualquer forma, é sempre possível,
aproveitando também os depoimentos dos que o conheceram
pessoalmente, tentar restituir um certo quadro da vida intelectual de
nosso autor. Tentemos inicialmente, pois, recuperar o que ele tem,
apesar de tudo, a dizer sobre si mesmo: um pouco de Lucien Lévy-
Bruhl “par lui-même”.
Em 15 de fevereiro de 1923, a Sociedade Francesa de Filosofia
se reunia para debater os dois primeiros livros “etnológicos” de
Lévy-Bruhl, os que tratam das “funções mentais nas sociedades
inferiores” e da “mentalidade primitiva” em geral. O autor, presente
ao debate, aproveita a ocasião para tentar esclarecer “como me vi
conduzido a mergulhar, por uns vinte anos, em estudos an-
tropológicos para os quais meus trabalhos anteriores não pareciam
haver me preparado” (BP1: 20). Confessa inicialmente uma admira-
ção, passageira e já ultrapassada, pelos trabalhos de Spencer e
Frazer, sustentando, contudo, que o impulso decisivo para sua nova
carreira teria se dado mais devido ao “acaso” que a uma trajetória
intelectual contínua. Conta que em 1903 recebeu de um amigo que
se encontrava em Pequim a tradução de três livros de um historiador
chinês. Ele os lê por pura curiosidade, mas a surpresa é grande:
embora a tradução seja “irrepreensível”, o encadeamento das idéias
do autor é impossível de ser acompanhado e compreendido. É nesse
momento que formula para si mesmo a questão que será decisiva
para todo o seu futuro intelectual: será que “a lógica dos chineses
coincidia com a nossa?”. Após uma rápida tentativa de explorar essa
questão a partir de materiais e informações relativos à sociedade
8 Razão e Diferença

chinesa, ele se dá conta de sua incapacidade para realizar tal tarefa,


ao menos se conduzida desta forma. Seria preciso, admite, conhecer
a língua, os textos, os sábios do país. Essa mesma dificuldade se
manifestaria no estudo de qualquer das “grandes civilizações” — “a
Assíria, o Egito, a Índia…” (BP1: 21). A solução? Debruçar-se sobre
os dados provenientes das “sociedades ditas primitivas”, documen-
tos que seriam acessíveis, já elaborados em línguas ocidentais e nos
quais a ausência de questões históricas facilitaria a penetração:
“evidentemente, se existe uma lógica diferente da nossa, é aí que eu
tinha mais oportunidade de descobri-la, e mais facilidade para
analisá-la” (BP1: 21).
A “estória dos três livros chineses” é uma das raras ocasiões
em que Lévy-Bruhl se permite “falar de si mesmo” e, ainda assim,
nós o percebemos, “o mínimo possível”. Que ela resuma a trajetória
e o destino reais do autor é coisa de que poderíamos legitimamente
duvidar. Que um acadêmico já consagrado modifique todo o seu
percurso intelectual em função de uma leitura que ele mesmo
considera casual não parece coisa muito comum ou mesmo
verossímil. Além disso, todos conhecem o princípio segundo o qual
um dado ou uma revelação só são realmente decisivos e inteligíveis
para aquele que está preparado para compreendê-los; caso contrá-
rio, e no limite, ele poderia nem mesmo chegar a percebê-los
enquanto tais. De fato, num certo sentido, toda a vida intelectual
anterior de Lévy-Bruhl, não importa o que ele próprio diga, o
preparava para esta “revelação” e para as pesquisas que a ela deviam
se seguir. Seu “doutorado de Estado” foi obtido, já o dissemos, em
1884: a “grande tese” tratava da Idéia de Responsabilidade enquanto
a “pequena tese latina” tinha como tema a Idéia de Deus em Sêneca.
Professor de “história das idéias políticas e do espírito público na
Alemanha e na Inglaterra”, na Escola Livre de Ciência Políticas a
partir de 1886, seus cursos o levam a publicar, em 1890, um livro
sobre “o desenvolvimento do caráter nacional na Alemanha” (A
Alemanha desde Leibniz…). A partir de 1896, leciona história da
filosofia na Escola Normal Superior e na Sorbonne: os cursos aí
ministrados sobre Hume, Schopenhauer, Descartes, Jacobi, Comte,
entre outros, logo se tornam bastante famosos em Paris. Três livros
— A Filosofia de Jacobi, de 1894, História da Filosofia Moderna na
França, de 1899 e A Filosofia de Augusto Comte, de 1900 — bem
como um artigo sobre “a orientação do pensamento filosófico da
David Hume”, de 1909, estão relacionados com este período de
atividade intelectual e profissional. Em 1903, publica A Moral e a
Ciência dos Costumes, marca de seu encontro com Durkheim e a
O Caso Lévy-Bruhl 9

Escola Sociológica Francesa. A partir de 1910, enfim, começam a ser


publicadas suas obras tradicionalmente consideradas como perten-
cendo ao campo da etnologia — até 1938, um ano antes de sua
morte. Como podemos perceber — como o próprio Lévy-Bruhl
escreveu em 1934 numa carta endereçada a Evans-Pritchard — sua
formação “foi filosófica não antropológica: provenho de Spinoza e
Hume mais que de Bastian e Tylor, se ouso evocar aqui tão grandes
nomes” (LE: 413).
Voltemos, contudo, a colocar a questão de partida: o que um
historiador da filosofia preocupado com a linha intelectual que vai
de Descartes a Comte, passando por Kant, pôde enxergar de tão
interessante e perturbador na “estória dos três livros chineses”? Ora,
se há alguma coisa de comum a todos os trabalhos filosóficos de
Lévy-Bruhl é que os autores e problemas analisados estão, de uma
forma ou de outra, relacionados com a questão da racionalidade. Ou
antes, todos parecem estar às voltas com a aparente impossibilidade
de eliminar de forma absoluta o irracional. Isso é verdadeiro tanto
em intelectualistas, ainda que muito diferentes, como Kant (em
quem a oposição entre o relativo racionalmente cognoscível e o
absoluto inacessível à razão pura cumpre esse papel de tematizar
uma certa fissura na racionalidade) ou Comte (para quem a
necessidade de manter a religião enquanto fundamento da sociabi-
lidade é que desempenhará esta função), quanto em filósofos, como
Jacobi, que oporão as certezas do sentimento às eternas dúvidas da
razão. Questão delicada para um intelectualista convicto: por que
tamanha dificuldade em ultrapassar o irracional? Por que esse
aparente fracasso da linearidade do progresso racional? Basta, por
ora, evocar estas questões que serão detidamente analisadas
adiante, sublinhando o fascínio que parecem sempre ter exercido
sobre Lévy-Bruhl a sobrevivência das “filosofias do sentimento”, o
caráter eminentemente anti-racionalista de movimentos como o
Romantismo e, mesmo, os resíduos aparentemente não-racionais
nos filósofos mais racionalistas.
Podemos desconfiar portanto, com mais razão ainda, do
caráter fundamental que Lévy-Bruhl atribui à leitura dos livros
chineses. Se acrescentarmos sua preocupação com a crítica das
“morais teóricas”, com sua necessária substituição por uma “ciência
dos costumes”, que deveria abandonar o postulado ingenuamente
defendido pelas primeiras acerca da “unidade da natureza humana”,
fica ainda mais difícil acreditar na suposta força decisiva de uma
motivação tão fugidia e casual. Não obstante, se encararmos a
questão de outro modo, a “estória dos três livros chineses” pode
10 Razão e Diferença

deixar de parecer tão tola ou insignificante. Não há dúvida que


inúmeros contemporâneos, filósofos ou não, tiveram uma formação
intelectual muito semelhante à de Lévy-Bruhl; muitos passaram por
Descartes, Kant e Comte; muitos poderiam sustentar provirem de
Spinoza e Hume; muitos também, certamente, entraram em contato,
senão com livros chineses, ao menos com materiais que poderiam
ter o efeito de colocar em questão alguns postulados centrais da
lógica ocidental. Poucos, contudo, poderiam afirmar: “dou mostras
de uma obstinação, provavelmente condenável, em escrever livros
sobre a mentalidade primitiva” (BP2: 108). E nenhum, de fato,
parece ter experimentado essa espécie de obsessão pela possibili-
dade da existência de uma diversidade de lógicas.
Solidão de Lévy-Bruhl? Imagem paradoxal, já que durante
toda sua vida jamais deixou de participar das instituições acadêmi-
cas e da vida pública em geral. Recebeu todos as honrarias e títulos
universitários; participou de forma bastante ativa no caso Dreyfus;
reuniu-se ao esforço de guerra, tanto como redator de panfletos e
boletins quanto como adido de gabinete do Ministério das Muni-
ções; viajou como membro da Aliança Francesa por todo o mundo
para difundir a cultura francesa. No comovente relato que Maxime
Leroy faz das “últimas horas de Lucien Lévy-Bruhl” (1957: 430-1), é
impressionante a insistência com que, apenas dois dias antes de
morrer, Lévy-Bruhl enfatiza a importância de ter se associado “às
coisas da Cidade”. Aconselha Leroy a permanecer “em comunhão
com seus amigos que trabalham nos mesmos estudos que você”,
acrescentando: essa é “minha última recomendação”. Consciente da
proximidade da morte, é com o trabalho — “será que trabalhei tanto
quanto devia?”, “há tantas coisas que nessas últimas horas eu
gostaria de retomar, de levar a fundo…” — e com a vida pública que
Lévy-Bruhl se preocupa. Apesar de tudo, trata-se mesmo, creio, de
um solitário. G. Monod (1957: 428), ex-aluno na Sorbonne, descreve
o espanto dos estudantes com o esforço do mestre em “dissociar em
si mesmo o professor e o pesquisador”, a submissão aos textos e a
liberdade de pensamento: ensinando Descartes e Comte em 1909,
nenhuma palavra sobre As Funções Mentais…, livro que deveria ser
publicado logo no ano seguinte. Monod acredita retrospectivamen-
te ter pressentido algo do “prelogismo” e da “lei de participação” na
exposição do sentido do estado teológico para Comte, ressaltando
ao mesmo tempo a “reserva”, a “prudência”, com que a aproximação
teria sido feita.
“Dissociar em si mesmo o professor e o pesquisador…”. Jean
Cazeneuve (1963: 8-9) conta que em 1927, Lévy-Bruhl teria feito
O Caso Lévy-Bruhl 11

absoluta questão de requerer sua aposentadoria à Sorbonne quando


a tradição permitiria que permanecesse desempenhando suas
funções ainda por um bom período de tempo. Ele desejava contudo
dedicar-se integralmente a suas pesquisas sobre a “mentalidade
primitiva”, decisão marcada, entretanto, por algumas tensões. Em
uma carta endereçada a Lévy-Bruhl, Durkheim comenta a decisão
deste em “renunciar ao ensino superior e ao trabalho científico” para
dedicar-se ao ensino no liceu (in Davy 1973: 316). Embora a data
desta carta pareça um pouco incerta — Davy estabelece a de 27 de
agosto de 1917, mas isso é duvidoso — ela revela de toda a forma
a dificuldade experimentada para conciliar o ensino de teorias
estabelecidas com pesquisas que se encontravam em andamento e
que o autor considerava de resultados ainda muito precários. O
sofrimento e a insônia a que Durkheim também faz alusão estão
certamente relacionados a essa angústia. Tudo se passa como se
Lévy-Bruhl fizesse parte dessa categoria de pensadores que, como
diz Deleuze, buscam separar o “professor público” do “pensador
privado”. Autores como Spinoza, Hume, Nietzsche, que preferem
reservar o pensamento para o exame crítico dos postulados mais
aceitos — e isso até as últimas conseqüências. Não será significativo
que Lévy-Bruhl tenha escolhido justamente Spinoza e Hume para
definir sua ascendência intelectual? Um solitário e um cético,
qualidades que Lévy-Bruhl jamais confessou compartilhar, mas que
estão nele presentes, mais do que ele próprio sem dúvida gostaria
de admitir.
Existe de modo difuso uma versão meio trivial acerca do
desenvolvimento da carreira de Lévy-Bruhl. Um filósofo que jamais
construiu uma filosofia própria, contentando-se em expor os
sistemas de outros pensadores, se transforma em um etnólogo que
jamais fez etnologia ou etnografia, contentando-se também em
compilar meio anedoticamente as informações que conseguia pilhar
aqui e ali das obras dos verdadeiros pesquisadores. Na verdade, não
se trata disso: a leitura, a perplexidade e o impasse frente aos livros
chineses constituíram para ele uma verdadeira revelação, a desco-
berta do lugar onde poderia, enfim, construir sua filosofia. Não ao
modo de Durkheim, que se limitou a substituir as categorias e as
antinomias da filosofia tradicional por outras cuja diferença residia
unicamente no fato de terem uma origem pretensamente sociológi-
ca (cf. Bréhier 1945: 1130). Trata-se, ao contrário, de empregar os
dados etnográficos como instrumento crítico do pensamento filosó-
fico dominante, de apontar novos caminhos que o pensamento
poderia seguir. É por isso que um filósofo como Emmanuel Lévinas
12 Razão e Diferença

(1957: 556-9) pôde sustentar que foram justamente os trabalhos


propriamente etnológicos de Lévy-Bruhl que acabaram por exercer
uma influência decisiva na filosofia contemporânea. E que o próprio
Husserl (1935: 67) pôde acreditar, por outro lado, que estes
trabalhos eram “obras de base clássicas de uma etnologia científica
rigorosa”. O próprio autor tem uma certa clareza sobre este ponto.
Na carta a Evans-Pritchard, recusa-se a aceitar, como sugeriu o
segundo, que seus mal-entendidos com os antropólogos britânicos
pudessem se dever exclusivamente a problemas de terminologia.
Recorda sua formação filosófica, pedindo para ser lido com este
pressuposto, o que não deve deixar margem para equívocos. Lévy-
Bruhl não está simplesmente se afirmando “filósofo” em oposição
aos “antropólogos”; lembra apenas sua formação filosófica, afir-
mando, ao final da carta, que “o que me fez compor minhas obras
[foi] a ambição de acrescentar alguma coisa ao conhecimento
científico da natureza humana utilizando os dados da etnologia”.
Filósofo, sem dúvida, mas nesse sentido que pensador profundo
não o seria?

A
Lévy-Bruhl parece assim ter refeito por conta própria toda
uma trajetória típica do saber ocidental. Tudo indica que seu
intelectualismo sofreu um considerável abalo ao confrontar-se com
o mundo primitivo, abalo do qual ele seguramente jamais se
recuperou por inteiro. É possível, conseqüentemente, indagar se
essa história aparentemente tão pessoal não possui também um
valor de modelo, no duplo sentido da palavra. Pois o Ocidente como
um todo também foi abalado pelo encontro com os “primitivos”,
reagindo, como diz Leminski, “a golpes de lógica, tecnologia,
mitologia, repressões”. Na realidade, como afirma desta vez Hélène
Clastres (s/d: 194), “ainda hoje, é possível o espanto (…) o debate
sobre os índios não foi concluído, ele apenas se transformou”. A
questão, portanto, é saber se a experiência pessoal de Lévy-Bruhl
pode nos ensinar alguma coisa, se é possível através dela resgatar
parte de um saber um pouco esquecido que o conhecimento das
sociedades primitivas nos legou ou poderia ter legado.
Aqui se introduz, queiramos ou não, o sempre delicado tema
das relações entre a vida e a obra de um autor. Mencionei acima não
ser este o lugar para uma “verdadeira biografia” de Lévy-Bruhl,
biografia que, como diz Mauss, ele sem dúvida merece. O problema
O Caso Lévy-Bruhl 13

é saber se uma compreensão justa da obra pode realmente dispensar


o conhecimento detalhado da biografia, da vida. Devo confessar
que esta relação me parece bem problemática. Podemos ler num
livro que se tornou modelar para a exposição da “vida e obra” dos
cientistas sociais (Lukes 1981: 44, nota 2), que Durkheim teria
experimentado um “grande remorso” por ocasião da primeira vez
em que provou carne de porco. A informação, fornecida por
Georges Davy que conheceu Durkheim pessoalmente, é evidente-
mente verdadeira, não havendo qualquer motivo para duvidar dela.
O problema começa quando Lukes remete, logo após narrar o fato,
para o “uso” que o autor faz em sua obra “das leis de restrição
alimentar para ilustrar o caráter moral, obrigatório das regras
religiosas”, indicando os textos em que Durkheim faz esta aproxi-
mação. Embora Lukes não afirme explicitamente uma influência
decisiva da formação judaica de Durkheim em sua obra teórica, esta
fica mais que sub-entendida. Não se trata absolutamente de negar
que esta influência possa existir e ter um peso considerável no
desenvolvimento das idéias do autor; a questão é sua real relevância
para a compreensão das teses durkheimianas, o que já me parece
bastante duvidoso. Ou, como disse Georges Canguilhem (1975:
107), “não é talvez um problema que careça de interesse, mas sim,
de qualquer modo, de importância”.
De minha parte, prefiro o belo texto de Merleau-Ponty (1965)
sobre Cézanne. A vida de um artista, de um autor, não é mais que
o “texto” que herda e deve decifrar. Fornece, talvez, o sentido literal
da obra. Ainda assim, porque só atingimos a vida através dessa obra.
Lévy-Bruhl, como Cézanne, como todo mundo, só recebe aquilo
que tem que viver, não o modo de vivê-lo: “é certo que a vida não
explica a obra, porém certo é que se comunicam. A verdade é que
esta obra a fazer exigia esta vida”. É certo pois que a educação
judaica, a IIIª República, o caso Dreyfus, os estudos acadêmicos e
toda uma série de episódios que dificilmente poderíamos recuperar,
“influem” na obra e no pensamento de Lévy-Bruhl. Também é certo
que, por mais interessante que tudo isso possa ser, o mais
importante é tentar reconstituir a grade de deciframento que Lévy-
Bruhl aplicou a todas essas circunstâncias que de algum modo a ele
se impuseram. Não se trata de negar a relação entre vida e obra, mas
de tentar buscar a maneira particular através da qual, neste caso, elas
“se comunicam”.
Já vimos como é difícil extrair do próprio autor informações
mais pessoais a seu respeito. Obediente a seu próprio preceito —
“falar de si o mínimo possível” — Lévy-Bruhl jamais se expõe. É
14 Razão e Diferença

possível, por outro lado, prestar atenção aos depoimentos de alguns


contemporâneos que o conheceram pessoalmente ou de forma
indireta. Leenhardt, como já foi observado, traça seu perfil de adepto
da modernidade e da racionalidade. Todas as informações corrobo-
ram esse retrato. Apesar de tudo, parece haver um outro lado nessa
imagem. O mesmo Leenhardt (1949: VIII) alude à única insatisfação
que Lévy-Bruhl teria tido enquanto pensador, uma insatisfação
consigo mesmo. Insatisfação muito profunda na verdade, se levar-
mos em conta o que o mesmo comentador relata em outra ocasião
(Leenhardt 1957: 415): “é preciso tomar partido”, teria escrito Lévy-
Bruhl às vésperas da morte — tomar partido entre a razão e o afeto.
“Ele, contudo”, conclui Leenhardt, “não havia tomado partido”. É
difícil não estar de acordo com essa observação. Em 1949, Leenhardt
publicou sob o título de Les Carnets de Lucien Lévy-Bruhl, os
apontamentos que o autor costumava fazer durante seus passeios
no Bois de Boulogne ou na costa norte da França. Na verdade, trata-
se dos únicos que sobreviveram à IIª Guerra Mundial, excepcionais
portanto apenas nesse sentido, já que este é um hábito que Lévy-
Bruhl parece ter adotado durante toda a vida. Os “carnets” recupe-
rados são os últimos que escreveu, as primeiras notas datando de
20 de janeiro de 1938 e as derradeiras de 13 de fevereiro de 1939,
exatamente um mês antes da morte do autor. Mais impressionante
ainda é o fato de as observações finais do último “carnet” estarem
redigidas sob o título “dificuldades não resolvidas” (CL: 251-2). Não
é comum que um grande professor de 82 anos, formado no
ambiente reconhecidamente tradicional da academia francesa no
final do século XIX demonstre tanta modéstia. Ou talvez não se trate
aqui simplesmente de modéstia, rigor e objetividade, mas também,
e principalmente, do efeito — misto de entusiasmo e espanto — que
certas idéias podem provocar naqueles mesmos em quem elas se
desenvolveram. Os depoimentos sobre Lévy-Bruhl, assim como
suas próprias e poucas confissões, podem não ser muito extensos
ou completos. Tocam contudo, parece-me, no essencial: o espanto,
o entusiasmo, a obstinação, a insatisfação do autor.
Georges Bataille (1967: 52) tem certamente razão ao conside-
rar “um jogo fácil opor a opiniões novas objeções irrefutáveis”.
Apontar os “erros” de Lévy-Bruhl, inventariar seus “preconceitos”,
criticar seu “método”, demonstrar sua pertinência a uma etapa
ultrapassada do desenvolvimento de uma disciplina hoje científi-
ca…: “tornou-se tradição muito explorada em uma certa forma
superficial de acatar opiniões estabelecidas atacarem-se impiedosa-
mente as idéias centrais das concepções etnológicas de Lévy-Bruhl”
O Caso Lévy-Bruhl 15

(Fernandes 1954: 121). Não que isso não seja legítimo. O problema
é indagar, como o faz também Florestan Fernandes, se não é de
“escasso interesse” insistir nos possíveis “equívocos” de um autor,
equívocos em geral passíveis de serem localizados justamente
naquilo que não há de original em sua obra. Talvez valha mais a
pena investir justamente em sua originalidade, prontos a captá-la lá
onde menos se espera. No caso específico de Lévy-Bruhl, essa
originalidade bem poderia ser buscada do lado daquilo que
Florestan Fernandes denominou “correção intelectualista do inte-
lectualismo” (idem: 127). Ou talvez num plano mais profundo onde
o que esteja em jogo seja mais que um simples “alargamento do
racionalismo”, como supõe Pierre-Maxime Schul (1957: 400), ao
tentar resumir a questão de Lévy-Bruhl como a de um “intelectua-
lista” que teria descoberto “a potência da afetividade” (idem: 398).
É bem verdade que ele próprio costumava, em tom de brincadeira,
atribuir a Aristóteles e suas categorias a “culpa” por termos levado
tanto tempo para descobrir as emoções (idem: 399). O problema me
parece, contudo, mais complicado e a solução exigida, conseqüen-
temente, mais radical. Pois se por um lado, Lévy-Bruhl jamais
abandonou realmente sua posição intelectualista, é preciso reco-
nhecer por outro, com Emmanuel Lévinas, que ele acabou por
efetuar, intencionalmente ou não, pouco importa, uma crítica do
próprio intelectualismo. Ou, para voltar aos termos de Merleau-
Ponty, a herança que Lévy-Bruhl recebeu dos séculos XVIII e XIX
acabaram por ser não mais que o texto que ele soube decifrar a seu
modo, usando-o mesmo de forma revolucionária ao atacar a própria
“ossatura do naturalismo intelectualista” (Lévinas 1957: 558). Que
essa crítica do intelectualismo tenha sido efetuada em nome apenas
da “potência da afetividade” é duvidoso; que seu resultado se limite
a isso, desembocando numa espécie de glorificação das emoções,
é inteiramente falso.

A
Quais seriam, então, as motivações para este trabalho? Em
primeiro lugar, não há dúvida que Lévy-Bruhl é um autor “esque-
cido” pela antropologia e seus historiadores. Dominique Merllié
(1989a: 419-22) revelou com muita precisão este fato, cabendo aqui
apenas acrescentar alguns detalhes importantes. Se excetuarmos os
trabalhos já antigos de Evans-Pritchard, o único estudo mais
sistemático dedicado a ele — mesmo assim apenas parcialmente —
16 Razão e Diferença

é o que Rodney Needham publicou em 1972 acerca da “crença”, da


“linguagem” e da “experiência”2. Essa situação tem evidentemente
seus motivos, que não podem, contudo, ser resumidos ao caráter
“antiquado” ou “ultrapassado” do autor. Afinal de contas, continu-
amos a ler e a prestar atenção em textos tão ou mais antigos que os
de Lévy-Bruhl. Merllié tentou determinar algumas das razões para
o que denomina “desnaturação, esquecimento, recalque” do pen-
samento deste autor (idem: 420-31) — voltarei a elas adiante. Por
ora, vale mais a pena insistir no valor e no sentido que um trabalho
sobre Lévy-Bruhl pode ter no quadro atual de desenvolvimento da
antropologia social e cultural.
Há um tema que parece percorrer toda a história do pensa-
mento antropológico, que recentemente adquiriu novas dimensões:
o de uma “crise da antropologia”. Conhece-se a advertência de
Frazer, ao pronunciar, ainda em 1908, a aula inaugural da primeira
cátedra que em todo o mundo recebeu o título de “Antropologia
Social”. Trata-se aí de lembrar os riscos corridos por um saber que
apenas constituído já contemplava a desaparição de seu objeto . Este
tipo de observação é bastante comum e podemos encontrá-la de
Morgan e Tylor a Lévi-Strauss e outros autores ainda mais recentes.
O próprio Lévi-Strauss, escrevendo em 1961 (Lévi-Strauss 1962c: 19-
22), tratou contudo de reduzir o alcance desse tipo de “crise”, que
poderíamos denominar “de objeto”. De um lado, o material etnográ-
fico já acumulado seria tão extenso que poderia nutrir a reflexão
teórica por muito tempo ainda; por outro, novas populações
continuariam a ser descobertas ou ao menos tornadas acessíveis aos
pesquisadores; além disso, a antropologia poderia voltar seu olhar
para sociedades de volume bem superior ao daquelas que tradici-
onalmente têm constituído seu objeto de estudo, inclusive para a
própria sociedade do observador. Para Lévi-Strauss, o único proble-
ma realmente grave residiria na desconfiança que populações
recentemente libertadas do domínio colonialista demonstrariam em
relação aos antropólogos. Tratar-se-ia neste caso, não de uma “crise
de objeto”, mas de uma crise “de relação” entre o investigador e seu
objeto de estudo. Essa outra modalidade da “crise da antropologia”
foi explorada mais sistematicamente por uma série de autores
preocupados em diagnosticar os efeitos da situação colonial sobre
a prática da antropologia. A partir desta perspectiva, essa ciência
estaria comprometida com o colonialismo e o imperialismo, com-
promisso que impediria seu acesso à objetividade. A salvação,
acredita-se, estaria do lado de um realinhamento dos antropólogos
com os povos que estudam e da denúncia incansável da exploração
O Caso Lévy-Bruhl 17

ocidental. Trata-se, pois, de uma versão um pouco transformada de


uma certa interpretação do marxismo que insiste em que apenas o
ponto de vista do oprimido pode elevar-se ao nível da objetividade
científica. Conhece-se também as críticas a essa associação fácil
demais entre a antropologia e o colonialismo e imperialismo
ocidentais.
Para os objetivos aqui propostos, é a um terceiro tipo de
“crise”, ou de diagnóstico, que devemos nos dirigir. Talvez fosse
possível denominá-la, depois de uma “crise de objeto” e de uma
“crise de relação”, de uma “crise de sujeito (do conhecimento)”. Já
em 1959, Leach chamava a atenção para a necessidade de “repensar
a antropologia”, embora sua advertência visasse sobretudo um
debate metodológico que se propunha fornecer instrumentais mais
adequados para a explicação antropológica. Este tipo de trabalho
crítico é evidentemente comum a qualquer disciplina e a própria
história da antropologia contém vários exemplos dessa posição. O
título, provocativo como sempre, da conferência de Leach sugere,
contudo, que mais alguma coisa poderia estar em jogo. Vejamos
muito rapidamente alguns sintomas deste terceiro tipo de crise. Em
1972, Needham publica um livro que se encerra melancolicamente
constatando que “o único fato compreensível sobre a experiência
humana é que ela é incompreensível” (1972: 246). Do outro lado do
Canal, em 1986, a tradicional revista de antropologia L’Homme
comemora seu 25º aniversário com um volume especial intitulado
“Anthropologie: état des lieux”, onde um terço dos artigos discute
questões relativas à crise epistemológica da antropologia. Enfim,
muito recentemente, toda uma corrente teórica da antropologia
norte-americana parece ter se especializado na discussão das
dificuldades e impasses fundamentais que o trabalho do antropólo-
go enfrentaria (cf., por exemplo, Clifford e Marcus 1986).
Esse sentimento contemporâneo de uma “crise da antropolo-
gia” parece diferir dos diagnósticos mais tradicionais no sentido de
que é a própria validade da pretensão em estabelecer um conheci-
mento científico das outras sociedades que é geralmente colocada
em questão. Podemos perceber de fato — sem entrar ainda no
debate acerca da realidade ou não da “crise” — alguns fenômenos
relacionados ao trabalho antropológico que poderiam perfeitamen-
te ser considerados sintomáticos. Em primeiro lugar, tanto no
interior quanto no exterior da disciplina surgiram discussões acerca
dos pressupostos históricos que determinariam a própria existência
da antropologia social e cultural. Para além dos trabalhos já
mencionados a respeito do enraizamento deste saber no processo
18 Razão e Diferença

de expansão ocidental, um outro tipo de perspectiva se desenvol-


veu, tentando delimitar as condições históricas de possibilidade
para a constituição da antropologia no interior do campo ocupado
pelos saberes ocidentais. As Palavras e as Coisas, de Michel Foucault
(1966: 388-93, em especial), seria o exemplo clássico desse tipo de
análise, mas alguns textos de antropólogos profissionais caminham
na mesma direção, com a vantagem de em geral acrescentarem às
condições de possibilidade puramente “epistêmicas” de que fala
Foucault uma série de constrangimentos de ordem histórico-política
(cf., por exemplo: Clastres 1968 e 1978; Asad 1983; Rabinow 1983;
Scholte 1984 e 1986; Jorion 1986).
Em segundo lugar, sintomas dessa possível crise também
podem ser discernidos no interior da prática antropológica propri-
amente dita. A antropologia clássica, dos evolucionistas a Franz
Boas, mal ou bem, sempre soube se colocar na área de interesse das
principais correntes do pensamento ocidental e, mesmo, da “cultura
geral” dos segmentos mais sofisticados da população. Temas como
totens e tabus, fetichismo e religiões, raças e racismo, tal qual
refletidos pelos antropólogos, sempre encontraram boa repercus-
são. A antropologia contemporânea, ao contrário, vem se caracte-
rizando por uma espécie de enclausuramento, de encerramento em
si mesma. Os esforços visando participar nos debates contemporâ-
neos não são capazes de esconder o fato de que uma hiper-
especialização ao mesmo tempo temática e geográfica (conseqüência
talvez inevitável do acúmulo de materiais) parece recusar a ambição
totalizadora da antropologia clássica. Além disso, uma exacerbada
discussão endogâmica acerca de conceitos e postulados tidos
outrora como acima de dúvida (racionalidade, relativismo, anti-
etnocentrismo, etc…) costuma afugentar o leitor não especializado
— e, devemos confessar, algumas vezes mesmo o especializado.
Não se trata, é claro, de dizer que esses dois processos, hiper-
especialização e endo-discussão, sejam absolutamente negativos;
pelo contrário, ambos possuem inúmeros aspectos positivos funda-
mentais. Tentei apenas delimitá-los como característicos de uma
disciplina um pouco insegura de si mesma e que — esse é o ponto
— parece sofrer de uma espécie de “complexo de culpa” por essa
insegurança que contudo, e afinal de contas, não é obrigatoriamente
negativa.
Há ainda, em relação a essa “crise de sujeito” da antropologia,
uma terceira dimensão, um pouco mais delicada, a ser considerada
como sintomática de tal processo. Trata-se do desenvolvimento de
pesquisas antropológicas sobre as chamadas sociedades comple-
O Caso Lévy-Bruhl 19

xas, em especial a própria sociedade ocidental. Não que este


interesse em si esteja necessariamente ligado a algum tipo de crise,
como parece sugerir Lévi-Strauss. A virtual ausência de modifica-
ções mais profundas na teoria antropológica acarretadas por este
tipo de pesquisas pode, contudo, fazer crer que se trate mais de uma
solução de compromisso do que de uma alternativa que pudesse
efetivamente renovar a antropologia não apenas em termos de seus
objetos de estudo, mas também no plano dos princípios teóricos e
epistemológicos mais gerais. Em outros termos, com as devidas
ressalvas e exceções, nada até hoje parece indicar que a antropo-
logia das “sociedades complexas” tenha acarretado uma modifica-
ção profunda na história da disciplina. Ao menos até agora, ela tem
consistido sobretudo, para usar uma expressão de Lévy-Bruhl
cunhada para outro propósito, numa espécie de “doutrina de
compensação”, destinada mais a contornar que a enfrentar e superar
certos impasses da antropologia em geral.
Sintomas e diagnósticos de uma “crise da antropologia” não
parecem pois faltar. A questão é saber se eles efetivamente indicam
um processo real e se este seria de fato, para permanecer na
metáfora médica, “patológico”. A primeira constatação é que se crise
existe ela nem é privilégio da antropologia nem, como vimos, é
fenômeno recente. Todas as chamadas ciências humanas oferecem
o espetáculo de um olhar continuamente voltado para o interior de
si mesmas, de uma autocrítica ininterrupta que inclui quase sempre
um sentimento de crise interna. Mais do que isso, essa situação
parece contemporânea à própria constituição histórica desses
saberes: desde seu nascimento, a sociologia, a psicologia, tanto
quanto a antropologia, têm insistido sobre seu próprio estatuto
incerto e sobre as perturbações internas que continuamente as
ameaçariam. Talvez Michel Foucault (1966: 366) tenha razão em
atribuir este caráter das ciências humanas em geral a seu lugar no
conjunto dos saberes ocidentais: sua posição “hipo-epistemológi-
ca”, sua dependência face a outros saberes mais seguros de si e a
incerteza acerca de seu próprio objeto seriam os responsáveis por
essa situação. A partir de uma perspectiva semelhante, André Akoun
(1973: 99-105) coloca à sociologia uma interrogação que alcança
todas as ciências humanas: teriam elas, de fato, rompido com suas
condições históricas de emergência? Nascidas simultaneamente
como saberes destinados a compreender o surgimento de um novo
tipo de sociedade e como técnicas voltadas para a administração
dessa mesma sociedade, bem como para a adaptação de seus
membros a ela, até que ponto essas ciências ainda trariam consigo
20 Razão e Diferença

as marcas dessa origem dupla? Sua aparente objetividade, seus


métodos e técnicas de pesquisa cada vez mais sofisticados e mesmo
a utilização de aparatos lógicos e matemáticos muito desenvolvidos,
as teriam livrado definitivamente desse seu caráter originário?
Esses questionamentos, o de Foucault tanto quanto o de
Akoun, não deveriam ser mal entendidos e rejeitados em bloco
pelos cientistas humanos. São antes questões decisivas que não
devem ser colocadas para serem respondidas de uma vez, afirmativa
ou negativamente. Eu diria que estamos aqui às voltas com desafios
e que se as ciências humanas, em especial a antropologia, desejam
realmente se renovar, deveriam tentar enfrentá-los seriamente. Isso
significa, em primeiro lugar, que as respostas devem ser específicas
para cada disciplina do campo, dependendo de uma avaliação da
estrutura teórica e da história de cada uma delas. No caso específico
da antropologia, eu gostaria de avançar algumas sugestões que
funcionarão sobretudo como orientações para o trabalho a ser
desenvolvido e como forma de evitar todo maniqueísmo prejudicial.
Na complexa e variada trama que constitui uma disciplina como a
antropologia, trata-se mais de explorar e desenvolver certas tendên-
cias e pensamentos que de tentar julgá-la em bloco, embora isso só
possa ser feito em detrimento de outros tipos de desenvolvimento
que poderiam nos conduzir em outras tantas direções. Eu não
repetiria pois, com Paul Jorion (1986: 335), que é preciso “reprendre
a zéro” o saber antropológico; sequer aceitaria completamente sua
opinião de que “há muito tempo nada se passa em antropologia”;
não seria possível tampouco compartilhar com ele a idéia de que,
excetuados o evolucionismo e o estruturalismo, o discurso antropo-
lógico consistiria num terrível “vazio”. Não se trata de opor boas e
más correntes de pensamento, bons e maus autores: trata-se de
determinar, no campo antropológico, linhas de força que coexistem
mais ou menos desapercebidamente em qualquer antropologia.
Creio que a expressão de Leach, ainda que mais antiga e aparente-
mente mais conservadora, marca melhor do que rupturas estrondo-
sas o caminho que poderíamos seguir. Trata-se, de fato, de tentar
“repensar a antropologia”.
Assim, se é realmente um pouco ingênuo considerar a “crise”
apenas como manifestação de uma pretensa riqueza e efervescência
de uma disciplina afinal de contas bastante jovem, isso não significa,
por outro lado, que tal situação seja intrinsecamente negativa e que
certas lições e orientações não possam ser dela extraídas. É evidente
que o que denominei acima “crise de objeto” demarca um caminho
muito apreciável para as pesquisas antropológicas. Primeiro, por-
O Caso Lévy-Bruhl 21

que esse tipo de crise é mais aparente que real e uma ciência que
visse efetivamente seu objeto concreto desaparecer teria que ser
muito ingênua para considerar este desaparecimento um obstáculo
insuperável, não um estímulo catalizador. Ao lado disso, como
também já foi sugerido, “a intrusão do olhar etnológico nas
sociedades civilizadas” (Barthes 1961: 140) está muito longe de ter
esgotado suas possibilidades. Ao contrário, uma radicalização do
projeto de uma antropologia das sociedades complexas poderia
sem dúvida levar bem longe o desejo do próprio Jorion (1986: 340)
de que essa disciplina efetuasse uma verdadeira crítica de nós
mesmos, revelando-nos enfim não apenas “como nós pensamos”,
mas também como agimos.
Por outro lado, a “crise de relação” entre sujeito e objeto de
conhecimento pode também ter um valor análogo, talvez superior.
Pois se de fato parece um pouco simplista e redutor tentar invalidar
a antropologia denunciando suas inegáveis conexões com o proces-
so de expansão ocidental, o mesmo não ocorreria se esta conexão
fosse convertida no objeto de pesquisas empíricas. Empreender
desta forma uma verdadeira “genealogia da antropologia”, no
sentido que Foucault (1984: 17-8) empresta ao termo: análise da
formação de certas “formas de problematização” a partir das
“práticas e de suas modificações”. Tentar mostrar não como o
colonialismo e o imperialismo, em todas as suas dimensões, agiram
como impulso ou como álibi de um saber que deveria, de direito,
desenvolver-se sobre outro plano, mas como práticas muito concre-
tas relacionadas com a descoberta, a conquista e a administração de
novos mundos e de outros homens puderam constituir e objetivar
a própria matéria-prima de um saber que depois de muito tempo
ofuscado pelo brilho desse objeto volta enfim seu olhar para o
processo mais opaco que tornou possível a existência de ambos,
objeto e saber. O belo livro de Todorov sobre “a conquista da
América” (1982) marca talvez um dos possíveis inícios de tal
empreendimento.
Podemos agora definir o espaço em que este trabalho buscará
alojar-se. Isolei acima uma terceira dimensão da chamada crise da
antropologia, dimensão mais contemporânea e, do ponto de vista
aqui adotado, mais fundamental. Trata-se do questionamento do
próprio sujeito do conhecimento antropológico, ou seja, de um
questionamento, mais que das técnicas e métodos da disciplina, de
seu próprio projeto básico: o conhecimento do “outro”. Repensar os
próprios pressupostos da antropologia é o que está em questão
neste caso, tarefa que pode, sem dúvida, ser cumprida de diferentes
22 Razão e Diferença

maneiras: através de uma revisão de certos conceitos fundamentais


da antropologia (cf. Needham 1972, por exemplo); da análise
renovada de objetos tradicionais (cf. Lévi-Strauss 1962a; Clastres
1974 e 1980; entre outros); ou ainda de um mergulho crítico na
história do próprio pensamento antropológico. Esta última possibi-
lidade é a escolha que fiz, escolha que tem também, é claro, seus
problemas. Esses problemas se devem em parte ao fato da produção
mais recente na área da antropologia social e cultural ter se mostrado
bastante pródiga em termos de um interesse renovado pela história
da disciplina — preocupação constante durante todo o desenvolvi-
mento da antropologia, mas que recentemente parece ter conhecido
uma considerável expansão. As dificuldades colocadas para este
trabalho derivam do caráter desses estudos, que bem poderiam
oferecer um quarto exemplo dos sintomas da crise que a antropo-
logia estaria atravessando. É fato mais que sabido que todo saber
mais ou menos inseguro costuma buscar se legitimar e regenerar
através de um contínuo mergulho em suas fontes. Minha posição
pode, neste contexto, tomar ares de paradoxo: tentar delimitar um
campo onde a renovação do pensamento antropológico poderia se
esboçar através de um caminho que seria ele próprio sinal da
necessidade de renovação. É preciso analisar mais de perto essa
questão. A resposta antecipada e algo óbvia ao que é um paradoxo
apenas em aparência, é que tudo depende da forma de se conceber
o que é escrever a história da teoria antropológica e, é claro, do
modo como esta é efetivamente escrita.

A
É quase inútil lembrar que existem inúmeros modos de se
relatar a história das idéias em geral e a história da antropologia em
particular. Grosso modo, todas essas formas parecem se debater
entre as alternativas de uma “história interna”, na tradição dos
principais trabalhos relativos às ciências exatas e naturais, e de uma
“história exterior”, que utilizaria métodos e princípios desenvol-
vidos pelas próprias ciências humanas. Há, é claro, todo um
gradiente entre essas duas posições extremas e nenhum trabalho
concreto neste domínio poderia ser integralmente enquadrado em
uma ou outra dessas categorias. As análises “internas” esbarram
numa grave dificuldade. Ainda que empreguem sofisticadas noções
extraídas da epistemologia, tais como “corte epistemológico” ou
O Caso Lévy-Bruhl 23

“episteme”, raramente conseguem escapar ilesas da ameaça de uma


certa forma de evolucionismo imanente a várias correntes da história
das idéias. Quando o conseguem, em geral é para recair em certos
modos bem limitadores de sociologismo e psicologismo. Apesar de
suas inegáveis vantagens intrínsecas, creio que vale a pena um
esforço para tentar ultrapassá-las com uma abordagem mais abran-
gente, capaz de integrar o que pode haver aí de positivo. As histórias
ditas exteriores enfrentam, por seu lado, outro tipo de obstáculo.
Além de, ao aplicarem métodos extraídos muitas vezes da própria
prática antropológica, emitirem implicitamente juízos de valor
acerca do mérito diferencial das várias correntes que pretendem
analisar, tais histórias correm o risco de deixar escapar o essencial,
ou seja, o próprio conteúdo das teorias e idéias historiadas.
Independente de seu igualmente inegável valor intrínseco, este tipo
de abordagem acaba sendo de limitado alcance para uma discussão
que pretende justamente tentar recuperar teoricamente alguns dos
impasses e caminhos possíveis da antropologia. Para escapar destas
dificuldades superficialmente mapeadas, não me pareceu haver
outra alternativa senão tentar dirigir um olhar especificamente
etnológico para este tipo de questão. Não se trata propriamente,
portanto, de aplicar, como se costuma fazer nas histórias “externas”
da disciplina, métodos ou mesmo teorias antropológicas. Dirigir um
“olhar etnológico” significa basicamente encarar a história da
antropologia e a história das idéias em geral a partir de certos
pressupostos muito abrangentes, sobre os quais algumas tendências
da antropologia se constituíram e que outras continuam adotando
até hoje.
Deste ponto de vista, a “história da história da filosofia” que
Émile Bréhier (1945: 12-37; ver também Bréhier 1950) esboça na
“Introdução” de sua monumental História da Filosofia tem um valor
inestimável. Demonstra-se aí que essa história tal como é ainda, ao
menos em parte, concebida, é um tema próprio aos séculos XVIII
e XIX. Tema relacionado sobretudo com as doutrinas do progresso
do espírito humano ou da evolução das sociedades, típicas do
pensamento deste período intelectual. Tanto nos autores iluministas
quanto em Hegel ou Comte, a sucessão dos sistemas filosóficos só
poderia significar um avanço global na direção da verdade, verdade
que, é claro, cada um desses pensadores imagina finalmente
revelada por seu próprio sistema. Isso significa dizer que a história
da filosofia é congenitamente evolucionista, permitindo também
adivinhar que as ciências humanas herdaram esse preconceito que
costumam demonstrar quando escrevem sua própria história justa-
24 Razão e Diferença

mente desse seu antepassado ilustre. Bréhier acaba, entretanto, por


nos colocar frente a outro impasse: ou continuar relatando o
aparente progresso das teorias ou permanecer restritos a um
ecletismo que se contentaria em simplesmente justapor as doutri-
nas, conduzindo à construção de tipologias bem pouco úteis.
Quase trinta anos depois de Bréhier, François Châtelet
organizou outra História da Filosofia, cujas premissas, expressas na
“Introdução Geral” da obra, manifestam as transformações ocorridas
neste período. Trata-se explicitamente de escapar ao evolucionismo
imanente a esse tipo de trabalho, construindo uma história que não
pretende ser “nem progressista, nem neutra, mas crítica”; que seja
realmente informativa, capaz portanto de “registrar diferenças”; que
torne “legíveis”, através de uma “análise estrita e argumentada”, um
certo número de pensadores importantes para a nossa atualidade
(Châtelet 1972/3: 10-11). É justamente nesse sentido que o próprio
Châtelet se interrogou alguns anos mais tarde a respeito da “questão
da história da filosofia hoje”. Foi este pequeno ensaio — ao lado,
certamente, do Catatau de Leminski — que forneceu as pistas do
caminho a seguir neste trabalho. O problema decisivo é aí colocado
com toda a clareza possível: “por que e como, em nossa época, se
referir aos autores do passado?” (Châtelet 1976: 33). É apenas
respondendo preliminar e adequadamente a essa questão que se
torna possível enfrentar a posição — um pouco preconceituosa, é
verdade, mas nem por isso menos relevante — que insiste em que
este tipo de trabalho de investigação do passado acaba sempre
resvalando para uma erudição algo estéril ao nos desviar das
exigências da pesquisa concreta. Ora, escapar da erudição vazia e
da esterilidade significa encontrar sentido e valor para as investiga-
ções acerca da história da antropologia, sentido e valor que se farão
sentir sempre na atualidade.
A resposta de Châtelet consiste em transformar a tradicional
história das idéias em uma geografia das idéias. Isto significa, acima
de tudo, abandonar a ilusão cronológica e sempre um pouco
evolucionista de uma sucessão de doutrinas que se encaminhariam
para algum destino. Significa também reconhecer a atualidade
virtual e potencial de qualquer pensador, ou ao menos admitir que
seu estatuto de membro de um passado pretensamente morto é uma
questão sempre em aberto. Significa, enfim, que as idéias não são
como seres vivos que nasceriam e se desenvolveriam apenas para
morrer em seguida de velhice. Pelo menos boa parte delas está, de
direito, sempre viva, podendo ser reativada no e para o presente3.
Com que intuito isso deveria ser feito? Châtelet fala de uma
O Caso Lévy-Bruhl 25

“dessacralização, de uma desmitologização dos discursos atuais do


poder” (idem: 34); de uma “história política” conseqüentemente
(idem: 49). Mas, além desse valor crítico, acredito que essa história
“geográfica”, quando aplicada ao caso particular da antropologia,
pode permitir uma renovação das questões tradicionais e uma
abertura em debates que correm o risco de permanecer fechados
demais em sua constante auto-referência. Em outros termos, penso
que esse tipo de trabalho comporta, para além de seu valor
intrínseco, a possibilidade de demarcar novas questões e encami-
nhar novas pesquisas — e isso em áreas aparentemente muito
afastadas de toda preocupação histórica. Nada de erudição vazia e
estéril portanto.
Nos termos do próprio Châtelet, “a referência ao passado nos
permite pensar nossa atualidade (e quem sabe: imaginar nosso
futuro) através do diferencial” (idem: 40). E é justamente na
antropologia que acredita ter encontrado a inspiração fundamental
para tal perspectiva:
Os etnólogos, depois que se liberaram do positivismo
grosseiro que falseava sua visão da alteridade, nos forne-
cem elementos de método. A apreensão da diferença
inaugura, segundo penso, uma relação com o passado
que preserva sua originalidade e lhe confere uma impor-
tância pelo menos igual àquela que atribuímos ao presen-
te que exibe, sob nossos olhos, por exemplo, a existência
de sociedades ordenadas desprovidas de poder (Châtelet
1976: 40).
A referência, explicitada em nota ao texto, é evidentemente
a Pierre Clastres e A Sociedade Contra o Estado. Pode parecer, desse
modo, que caminhei em círculos ao pedir a um filósofo um quadro
de referências que ele mesmo confessa ter extraído de um antropó-
logo. Mas é justamente essa espécie de cegueira que a antropologia
demonstra em relação a certos aspectos e a algumas conquistas do
pensamento antropológico que eu gostaria que esse trabalho
servisse também para tematizar. Aqui já seria possível concordar em
parte com Jorion (1986: 340): os antropólogos muitas vezes deixam
de lado desenvolvimentos cruciais de sua disciplina, que permane-
cem aí em estado potencial ou como simples esboços até que são
retomados, completados e empregados em outras áreas do saber.
De tal forma que, na maior parte dos casos, esquece-se completa-
mente sua origem etnológica.
Châtelet vai um pouco mais longe, chegando a propor um
esquema metodológico para a prática desta geografia das idéias que
26 Razão e Diferença

visa mais captar as “transmutações” dos conceitos que suas supostas


evoluções ou involuções (Châtelet 1976: 52). Para ele, este trabalho,
quer diga respeito a um campo global do saber quer se refira à obra
de um determinado autor, deveria:
1. “Restaurar a coerência interna de um sistema” (idem: 47).
Ou seja, examinar, antes de tudo, a “ordem das razões” que este
sistema ou que uma obra comportam. Neste ponto, deveríamos ser
capazes de responder por que um texto afirma pertencer a um
gênero determinado e é reconhecido como pertencendo a ele.
Trata-se da sempre difícil questão dos limites entre os gêneros do
discurso (idem: 44-6).
2. Interrogar os “problemas políticos” que o texto, obra ou
sistema coloca (idem: 47). Em primeiro lugar, aqueles estritamente
imanentes ao objeto considerado. Político tem aqui, portanto, um
sentido bem mais amplo do que aquele que se costuma atribuir ao
termo. Assim como a Teoria das Idéias de Platão, tão aparente e
puramente metafísica, articula-se direta ou indiretamente com a
organização política da Cidade grega (idem: 48) — e evidentemente
com tudo o que há de platônico no pensamento e na prática
contemporâneos — também uma teoria tão aparentemente abstrata
quanto a da “mentalidade primitiva” de Lévy-Bruhl deve de alguma
forma refletir, e refletir-se em, um real dito, apenas por economia,
exterior.
3. Integrar os “contextos empíricos precisos” a que envia a
obra em questão, as “lutas políticas reais” articuladas com o
pensamento e os textos (idem: 49).
Estes pontos constituem etapas que é preciso percorrer
progressivamente e eu diria que a intenção deste trabalho é cobrir
de maneira extensiva apenas o primeiro passo proposto por
Châtelet. O segundo e o terceiro serão objeto de incursões muito
mais rápidas, aparecendo mais nas entrelinhas que de forma
explícita. De qualquer forma estarão delimitados para uma possível
investigação futura.

A
Evoquei acima a possibilidade de os estudos acerca das
relações entre a antropologia e suas condições históricas e políticas
de constituição e existência (em especial o colonialismo e o
imperialismo) se transformarem em verdadeiras “genealogias da
antropologia”. Nesse caso, teses excessivamente generalizantes e
O Caso Lévy-Bruhl 27

princípios que se convertem rapidamente em puros “slogans”


poderiam ser substituídos por investigações concretas de aconteci-
mentos e documentos muitas vezes esquecidos. A partir da resposta
dada por Châtelet à “questão da história da filosofia hoje”, abre-se
um outro tipo de perspectiva, complementar à abordagem genea-
lógica. Esta, já o vimos, consistiria na análise de “formas de
problematização” a partir das “práticas e suas modificações”. É
preciso, contudo, esclarecer o sentido preciso de tais termos.
“Formas de problematização”, ou seja, o modo através do qual
determinado tema, determinado objeto, parecem se impor num
certo momento como aquilo que há para ser pensado, debatido e
decidido (Foucault 1984: 16); “práticas e suas modificações”, o que
quer dizer, todos os jogos de poder que “objetivam” o fenômeno e
o propõem ou impõem como alvo de reflexão e de ação aparente-
mente obrigatório e quase natural (idem: 16-7). Foucault sugere,
entretanto, que ao lado da análise genealógica, existe também uma
“dimensão arqueológica [que] permite analisar as próprias formas da
problematização” (idem: 17). Em outros termos, a “arqueologia do
saber” pretende investigar um determinado campo discursivo
tomado em sua imanência; a “genealogia”, por sua vez, deve
completar essa investigação com uma análise das relações de poder
que constituem esse campo e que, ao mesmo tempo, o impõem
como aquilo que deve ser pensado.
Se fosse necessário definir o espaço ocupado por este
trabalho, talvez fosse possível dizer, por falta de termo melhor, que
consiste em uma incursão por uma “arqueologia da antropologia”.
O que não significa em absoluto qualquer fidelidade maior ao
pensamento de Foucault. Basta folhear A Arqueologia do Saber para
se dar conta de que ele jamais concordaria em denominar arqueo-
lógica uma análise que toma como unidade de trabalho a “obra” de
um “autor”. Se eu quisesse permanecer fiel, talvez pudesse dizer que
a obra e o autor aqui em questão não serão encarados como
unidades fechadas e auto-suficientes; que, ao contrário, tentarei
isolar temas e problemas muito gerais, não apenas na antropologia
social e cultural como em vários pontos do pensamento ocidental
— temas e problemas que fazem na obra de Lévy-Bruhl uma
irrupção particularmente aguda e notável. Mas, como já foi dito, não
é de fidelidade que se trata. O que pretendo é, simultaneamente,
mapear algumas armadilhas colocadas pelo e ao pensamento
antropológico e apontar possíveis saídas e alternativas.
Divórcio excessivo face à prática antropológica concreta? De
modo algum, eu diria. Pois o próprio Foucault (in Caruso 1967: 73)
28 Razão e Diferença

não se encarregou de definir a arqueologia como “uma análise de


fatos culturais que caracterizam nossa cultura” e que, neste sentido,
“tratar-se-ia de algo como uma etnologia da cultura a que pertence-
mos” ? E Michel Serres (1966: 204), justamente num comentário ao
trabalho de Foucault, não afirmava também que “daqui para a
frente, nada se oporá a que a arqueologia se apresente como uma
etnologia do saber europeu, e a história das idéias como uma
epistemologia do espaço e não do tempo, das fibras de um espaço
invisível e não das gêneses evolutivas”? Já mencionei também
Barthes e a “intrusão do olhar etnológico nas sociedades civiliza-
das”. Isso talvez fosse mais que suficiente para voltar a indagar se,
como com Châtelet e Clastres, eu não estaria, aqui ainda, andando
em círculos, ao pedir a um filósofo elementos já presentes em
pesquisas propriamente antropológicas e que ele próprio confessa
ter extraído delas. No fundo, isso não tem qualquer importância e
é cada vez menor o número dos que confundem o desenvolvimento
histórico de um saber — que casualmente (ou em função de
determinações institucionais e políticas) se deu de forma
compartimentalizada — com o próprio exercício deste saber no
presente, que pode e deve dispensar essa compartimentalização,
lançando mão de todos os recursos disponíveis para a solução dos
problemas que se coloca. Ocorre apenas que em determinadas
ocasiões os recursos a serem mobilizados podem provir de campos
rotulados diferentemente, o que em nada modifica o cerne da
questão. De qualquer forma, é inegável que a antropologia realmen-
te desenvolveu uma série de elementos que permitem uma análise
arqueológica no sentido em que estou propondo compreender este
termo. O fato é que no campo das ciências humanas, os antropó-
logos, em virtude dos pressupostos relativizadores necessariamente
implicados em seu trabalho, sempre se mostraram mais dispostos do
que a média a flexibilizar, por um lado, e a radicalizar, por outro,
suas investigações e seus próprios instrumentais.
Dentro do próprio campo da antropologia, um dos instrumen-
tos de trabalho mais interessantes que foram recentemente propos-
tos para esse tipo de investigação é o que Geertz (1983) batizou de
“etnografia do pensamento”. Eu acrescentaria apenas que esta
noção pode ser levada ainda mais longe, ultrapassando a simples
tarefa de descrever o “mundo no qual [o pensamento] faz qualquer
sentido que possa fazer” (1983: 152). Isso porque, é o próprio Geertz
quem o diz, o pensamento é de fato alguma coisa tão material
quanto objetos como “adoração, ou casamento, ou governo, ou
troca” (idem); devemos desafiar o “medo do relativismo” (idem:
O Caso Lévy-Bruhl 29

154), admitindo que pensar é algo tão socialmente produzido


quanto esses temas clássicos da reflexão antropológica. O único
perigo, comum aliás à etnografia de qualquer instituição, é cair
numa forma simplificadora de sociologismo que Geertz deseja com
toda justiça evitar (idem: 152). É paradoxal portanto, que ao propor
uma metodologia para esta “etnografia do pensamento”, enfatize
exclusivamente o estudo exterior do fenômeno, deixando aparen-
temente de lado sua rede de articulações internas e imanentes
(idem: 155-9). Ora, é justamente neste ponto que a aproximação
com o projeto de Foucault pode ajudar, não deixando de ser
significativo que desde 1978 Geertz tenha demonstrado interesse
por este autor. Foucault (1984: 16) define seu trabalho como uma
“história do pensamento, em oposição à história dos comportamen-
tos ou das representações: definir as condições nas quais o ser
humano ‘problematiza’ o que ele é, o que faz e o mundo no qual
vive”. Já conhecemos também o duplo método, ao mesmo tempo
arqueológico e genealógico, a ser seguido para cumprir esta tarefa.
De um certo ponto de vista, a etnografia do pensamento de Geertz
está muito próxima da análise genealógica de Foucault: o estudo das
forças sociais que modelam o pensamento se assemelha à análise
das práticas que objetivam as formas de problematização. Talvez
falte a essa etnografia justamente a dimensão arqueológica — a
definição das formas de problematização em si mesmas — dimen-
são na qual este trabalho pretende justamente se alojar, tomando
como objeto um caso particular, a obra e o pensamento de Lévy-
Bruhl.
É possível articular Châtelet e Clastres com Foucault e Geertz.
A história da filosofia proposta pelo primeiro, a história e a
etnografia do pensamento apresentadas pelos dois últimos com-
partilham de algo que Châtelet, fazendo menção explícita aos
trabalhos de Clastres, definiu com precisão. Trata-se, como vimos,
de “pensar nossa atualidade (e quem sabe: imaginar nosso futuro)
através do diferencial”. Ora, é deste ponto de vista que o “caso Lévy-
Bruhl”, como a ele se refere Merllié (1989a), me pareceu exemplar.
Em primeiro lugar, em virtude de nosso aparente afastamento em
relação a seu pensamento; em seguida, porque a questão do
“diferencial” é aí levada talvez até suas últimas conseqüências, por
mais dramáticas que possam ser. Eu quase me perguntaria se nossa
dificuldade em compreender realmente a obra de Lévy-Bruhl não se
assemelha aos problemas que ele próprio enfrentava para compre-
ender os “seus primitivos”. Exagero? O fato é que se a questão da
diferença é central para uma história das idéias que não pretenda ser
30 Razão e Diferença

puramente descritiva nem triunfalista, a obra e o pensamento de


Lévy-Bruhl podem constituir um objeto mais que adequado.
O método a seguir? É mais difícil de responder a essa questão.
Os esquemas metodológicos propostos tanto por Châtelet quanto
por Geertz são na verdade apenas indicativos dos campos e
problemas que devem ser integrados na investigação. Foucault, por
seu turno, sempre esteve muito longe de propor um verdadeiro
método: “cuidados”, “regras de prudência”, sem dúvida, mas
método…. Ele chegou mesmo, em alguma parte, a definir o
“método” da arqueologia como uma simples “desenvoltura aplica-
da” e confesso que fiquei tentado a segui-lo. Na verdade, não é
preciso ir tão longe. O próprio Lévy-Bruhl sempre sofreu nas mãos
dos críticos por esse mesmo motivo e as repetidas censuras à
utilização de um método comparativo já em desuso na época em
que escrevia encobrem na verdade uma dificuldade mais profunda,
justamente a da ausência de um método propriamente dito. Apesar
de tudo, Poirier (1957: 510) foi capaz de determinar com absoluta
precisão seu verdadeiro espírito metodológico. Ao denominá-lo
simplesmente “relativismo sistemático”, demarcou o caminho que
eu próprio gostaria de seguir aqui. “O observador não deve
considerar como absurdo um fato que o choca”, deve buscar “uma
coerência nos fatos superficialmente disparatados”, explicar “a
variabilidade das escalas de valores”, mostrar “que o observador
deve despojar-se do velho homem que é se pretende compreender
os comportamentos”, fazer “desaparecer os julgamentos de valor
peremptórios”. Trata-se em suma, senão de método, ao menos do
olhar da própria antropologia. Seria possível dirigi-lo para ela
mesma? E isso não apenas no sentido de aplicar mecanicamente
certos procedimentos que na verdade fazem parte mais das técnicas
de pesquisa que do método propriamente dito, mas, de forma bem
mais radical, explorando os princípios mais fundamentais do
pensamento antropológico despidos de qualquer preconceito?
Tentar repetir o que Lévy-Bruhl buscou fazer durante toda a vida e
que sem dúvida conseguiu, já próximo da morte, ao fazê-lo consigo
mesmo em seus Carnets 4.
Este procedimento (já que admito que seja menos que um
método, embora pretenda que oriente a incursão por uma obra de
forma não superficial) implica conseqüentemente um certo número
de escolhas. Em primeiro lugar, evitar julgar o pensamento em
questão — e mesmo as críticas e defesas de que foi objeto. Quando
muito, trata-se de discutir certas interpretações tidas às vezes como
definitivas, avaliando se são inteiramente justas, ou seja, se podem
O Caso Lévy-Bruhl 31

continuar sendo sustentadas se forem selecionados outras passa-


gens e outros ângulos da obra. Algumas dessas interpretações
parecem perfeitas para determinados aspectos da obra, apenas com
o incoveniente de se apresentarem como visões gerais e únicas. Isso
é válido tanto no caso das que pretendem rechaçar a obra quanto
no das que desejam sinceramente aceitá-la. Não pretendo portanto
“defender” o autor que escolhi analisar das críticas que sempre lhe
foram dirigidas, mesmo quando estas são claramente limitadas ou
mesmo mal intencionadas. Merllié (1989a) já se encarregou de fazê-
lo e não desejo repetir seu enfoque, independente dos resultados
a que possa ou não ter chegado. Não se trata, tampouco, de tentar
defender o autor de si mesmo — como ocorre freqüentemente.
Pretendo, no máximo, cotejar a obra em questão com as diferentes
interpretações, tentando acima de tudo apreender os fluxos que a
atravessam. Evitar conseqüentemente todo maniqueísmo que pro-
cure distinguir as “boas” das “más” interpretações, ou ainda os
“bons” dos “maus” aspectos e trechos da obra. Como diz Deleuze
(1990: 118), “é preciso tomar a obra inteira, segui-la e não julgá-la,
apreender suas bifurcações, seus titubeios, seus avanços, seus
buracos, aceitá-la, recebê-la por inteiro. Caso contrário, não se
compreende nada”5. É por isso que não se tratará aqui deste ou
daquele desenvolvimento particular de Lévy-Bruhl, mas de captar
o “espírito” ou, em termos mais modernos, o conjunto das articula-
ções que presidem sua obra. É por isso também que, com uma ou
outra exceção, os exemplos concretos trabalhados diretamente pelo
autor não serão objeto de qualquer discussão maior. Preferi reservar
o espaço para as análises propriamente teóricas e a discussão dos
grandes temas que este pensador levanta.
Eu não gostaria tampouco — essa é outra escolha — de
permanecer nas intermináveis discussões a respeito do pretenso
caráter auto-suficiente de uma obra em oposição a suas determina-
ções exteriores, ou acerca de sua sistematicidade absoluta em
oposição a suas possíveis rupturas internas. Continuidade e descon-
tinuidade são noções inteiramente relativas na medida em que
aquele que “continua”, sob pena de não chegar realmente a elaborar
uma obra que mereça este nome, sempre inova em alguma coisa,
tanto em relação a seu trabalho anterior quanto frente a outros
pensamentos. Do mesmo modo, os cortes e rupturas sempre se dão
em relação a algo preexistente ou contemporâneo, seja uma teoria
ou um conjunto de práticas. Procurarei, assim, evitar termos
problemáticos como “influência”, de um lado, “corte epistemológi-
co”, de outro. Reinserir um pensamento em seu contexto intelectual
32 Razão e Diferença

e histórico não é simplesmente supor que seja determinado por


circunstâncias externas. Tratá-lo em bloco não é presumir que seja
absolutamente contínuo e sistemático. O que cumpre tentar atingir,
para voltar a Deleuze (1990: 118), é “o conjunto do pensamento”,
“aquilo que o força a passar de um nível para outro”.
O próprio Deleuze insinua como isto pode ser feito. Não se
trata nem de reduzir um autor a mero reflexo ou sub-produto de sua
época, nem de elevá-lo artificialmente acima de seu tempo: “nem
o histórico nem o eterno, mas o intempestivo” (in Deleuze e Bene
1979: 96). Isso significa buscar o que pode haver de mais interessan-
te numa obra para uma determinada época (a nossa); reativar para
o presente algumas idéias, algumas intuições às vezes, que podem
funcionar como linhas de fuga e de força para nossos impasses
contemporâneos. É a isso que Deleuze dá o nome de “operação de
minorar” ou de “tratamento menor ou de minoração” (idem: 97). É
só assim, prossegue, que se torna possível recuperar “devires contra
a História, vidas contra a cultura, pensamentos contra a doutrina,
graças ou desgraças contra o dogma” (idem). Esse é o tema tão
deleuziano do “autor menor”, e Lévy-Bruhl parece se adequar com
perfeição a esta figura, ao menos como é usualmente concebida. Sua
obra poderia ser dita “menor” em vários sentidos: ausência de teoria,
na acepção mais forte do termo; caráter algo hesitante, não
conclusivo, com a aparência de um inacabamento radical; espaços
deixados vazios onde é possível alojar-se das mais variadas manei-
ras; possibilidade de múltiplas leituras; enfim — o mais importante
talvez — o fato de ter sido objeto de um certo esquecimento, ou
antes, de uma certa repressão exercida por obras e teorias tidas
como “maiores”6. O único problema é que esta leitura um pouco
simplista do que Deleuze diz ameaça ressuscitar o maniqueísmo —
menor = bom; maior = mau — que eu gostaria, como disse, de
afastar completamente. Se observarmos mais de perto esse “mani-
festo de menos” de Deleuze, poderemos abandonar definitivamente
esses resíduos maniqueístas.
Na verdade, o “menor” não é um dado, mas o resultado de
uma “operação”, de uma “cirurgia” (idem: 97). O que Deleuze diz
da linguagem, é sem dúvida válido também para os autores: “não
há língua imperial que não seja escavada, arrastada (…) por seus
usos menores (…), maior e menor qualificam menos línguas
diferentes do que usos diferentes da mesma língua” (idem: 101).
Qualquer autor, como qualquer língua, é simultaneamente maior e
menor, ou antes, toda obra pode ser explorada no que tem de maior
(“histórico, doutrinário, dogmático…”) ou de menor (“devir, pen-
O Caso Lévy-Bruhl 33

samento, graças ou desgraças…”). É esta a minha pretensão aqui:


apreender a obra de Lévy-Bruhl como obra menor, quer dizer, como
desafio e, conseqüentemente, como estímulo. Nem tudo do que foi
dito acerca de um pretenso caráter intrinsecamente “menor” desta
obra é, contudo, inteiramente falso. De fato, é muito difícil encontrar
um pensamento mais cuidadoso, mais tateante. Não por carência ou
fraqueza, mas simplesmente em virtude do postulado que parece
guiá-la: todos os pressupostos de seu pensamento, acredita Lévy-
Bruhl, devem ser contínua e minuciosamente escrutinados, relativi-
zados e, sempre que for o caso, abandonados. Não há nela nenhuma
certeza pré-estabelecida, nenhum dogmatismo, tudo devendo pas-
sar pelo crivo da análise e dos fatos. Isso é o que existe de mais
profundamente admirável nessa obra, para além de qualquer
adesão ou repúdio a ela. “Poder-se-ia dizer que uma língua é mais
ou menos dotada para esses usos menores” (idem: 101). Assim, os
autores.

A
De qualquer forma, existe uma relação do “menor” com certas
figuras da exclusão. Dupla relação, na verdade, uma vez que,
geralmente interessadas por essas figuras, as obras menores também
costumam ser alvo de exclusões semelhantes às praticadas contra
seus temas: Descartes e a América. Descartes, nome apenas
emblemático desses processos de exclusão; a América, signo
igualmente emblemático dessas figuras excluídas. Acerca do primei-
ro, conhece-se certamente a célebre análise de Foucault em a
História da Loucura…. A própria constituição da razão ocidental
dependeria de uma partilha, de uma exclusão. A loucura e a
desrazão devem ser sumariamente eliminadas por Descartes de sua
dúvida metódica para que a razão possa se instalar tranqüilamente
em toda a sua soberania doravante não contestada (Foucault 1961:
56-8). Esta operação intelectual é contemporânea de outra, efetuada
ao nível das práticas sociais mais concretas: o “grande enclausura-
mento” efetiva, nos espaços sociais e nas fronteiras empíricas, a
mesma partilha que Descartes proclama no plano do pensamento
— ou antes, que impõe como condição para o que considera ser o
pensamento. Para ele, “a loucura justamente é condição de impos-
sibilidade do pensamento” (idem: 57). Desde este momento, o
Ocidente jamais teria conseguido reencontrar a quase indiferença
que a Idade Média demonstrava frente à experiência da loucura.
34 Razão e Diferença

Desde então tornou-se possível levantar a questão sempre recalca-


da, embora jamais eliminada por completo, de “por que não é
possível manter-se na diferença da desrazão?” (idem: 372). A loucura
recebe nesse momento outro estatuto: absolutamente objetivada na
forma de “doença mental”, converte-se em simples tema científico
e em pretexto para a constituição de uma “ciência objetiva do
homem” (idem: 482). Doravante, “do homem ao homem verdadei-
ro, o caminho passa pelo homem louco” (idem: 544).
Esta objetivação e esta alienação seriam exclusivas da loucura
transformada em doença mental? Ou estes processos, tão ocidentais,
não possuiriam um campo de aplicação mais abrangente? O próprio
Foucault indica esta possibilidade, ao sustentar que a “experiência
da loucura” se estabelecerá sobre um espaço vazio, espaço “da
diferença”, outras experiências sendo, assim, possíveis. Serres, por
sua vez, apenas confirma a viabilidade dessa leitura quando, ao
comentar justamente a História da Loucura…, lembra que “o
positivismo sobre as doenças mentais é um caso especial (…) da
positividade em geral, do mesmo modo que a alienação médica é
um caso restrito (…) das alteridades” (Serres 1966: 194-5). Barthes,
enfim, também escreveu um belo comentário do texto de Foucault
— e é através dele que deixaremos Descartes e a América para
chegar a Lévy-Bruhl. Para Barthes, Foucault teria demonstrado que
“a loucura não dispõe de nenhum conteúdo transcendente”, que
talvez não seja nada além de uma “forma permanente” encontrada
em todas as figuras da exclusão, “o discurso da razão sobre a não-
razão” em suma (Barthes 1961: 144-5). Neste caso, caberia colocar
uma questão ao saber ocidental, “a todo saber, e não somente
àquele que fala da loucura” (idem: 145); caberia interrogá-lo em sua
pretensão de universalidade e objetividade, em sua suposta posição
de juiz acima das partes, que pretende, como terceira instância
exterior, julgar. Não seria este saber, ao contrário, “um partido
engajado (…) manifestando a própria história da divisão” e,
conseqüentemente, não podendo “dela escapar”? (idem). Neste
caso, como construir um discurso coerente que não seja apenas mais
uma força de exclusão?
É justamente a incidência dessas questões na antropologia
que Clastres denomina, como vimos, “paradoxo da etnologia”.
Aproximando as exclusões da “Loucura” e dos “Selvagens”, de-
monstra que seu parentesco, tema tão caro ao pensamento ocidental
durante tanto tempo, não deriva, é claro, de qualquer tipo de
homologia estrutural ou funcional entre os “loucos” e os “primiti-
vos”, mas do fato “que o Ocidente recusou a aliança com essas
O Caso Lévy-Bruhl 35

linguagens estranhas” (Clastres 1968: 35). A etnologia, enraizada no


saber e na ciência ocidentais, forças de exclusão, como poderia falar
com objetividade daquilo mesmo que este saber e esta ciência
devem excluir para poderem se constituir historicamente? Clastres
vê, contudo, uma solução para o paradoxo, solução que só pode ser
interior à própria etnologia, na medida em que, para o melhor ou
para o pior, essa disciplina “parece ser a única ponte lançada entre
a civilização ocidental e as civilizações primitivas” (idem: 37). Para
isso, também o vimos, a etnologia deveria se transformar, recusando
a partilha da qual ela própria é fruto, substituindo o sempre
excludente discurso sobre as outras culturas por um diálogo com elas
(idem). O anúncio de tal revolução estaria, conclui Clastres, na “obra
de Claude Lévi-Strauss: como inauguração de um diálogo com o
pensamento primitivo, ela encaminha nossa própria cultura para um
pensamento novo” (idem: 38). Ora, diálogo, neste sentido, só pode
significar que não há terceira posição exterior; que é preciso se situar
nos próprios limites da partilha; interrogar esses limites e, a partir
deles, os territórios vizinhos; reconhecer, para além da razão
clássica, o pensamento do outro e através dele, para nós, a
possibilidade de um “pensamento outro”. Isso deveria ser feito de
tal modo que fronteiras aparentemente muito sólidas pudessem
desaparecer, não em nome de uma unidade transcendente, mas de
uma nova forma de articulação com as diferenças. Isso também é o
que Barthes (1961: 145) indica ao falar de uma “vertigem” própria
ao projeto de Foucault: “vertigem do discurso (…) que não se revela
somente no contato com a loucura, mas cada vez que o homem,
tomando distância, olha o mundo como outra coisa” (idem: 147).
Vertigem imanente, portanto, ao projeto mais geral da antropologia
desde que seja radicalizado, desde que não se contente com o
relativismo fácil e o comparatismo vulgar7, desde que seja capaz de
aprofundar a questão da diferença e o tema da partilha até suas
últimas conseqüências.
Resta saber se há lugar para a obra de Lévy-Bruhl e para um
estudo a seu respeito no âmbito desse projeto de radicalização da
antropologia. Para mim não restou nenhuma dúvida de que há uma
verdadeira “vertigem” no pensamento de Lévy-Bruhl e espero ser
capaz de transmitir essa sensação. Que ele opere nos limites da
relação entre o mesmo e o outro é um fato tão evidente que já foi
por diversas vezes utilizado como crítica de suas posições. Lévy-
Bruhl tem sido mesmo encarado sistematicamente como um dos
principais promotores desta exclusão da “selvageria” a que se refere
Clastres, senão como o principal deles. Jean-Pierre Vernant (1981:
36 Razão e Diferença

220) chega a afirmar que “o pensamento selvagem é finalmente


relegado pelo sociólogo francês a uma espécie de gueto, encerrado
no estado do ‘prelógico’, como é internado em seu asilo o
esquizofrênico cujo delírio é em muitos aspectos parente da
mentalidade primitiva”. Veremos adiante que essa opinião extrema
não é inteiramente justa. De qualquer forma, é inegável que a
questão crucial de Lévy-Bruhl sempre foi essa dialética incerta entre
“nós” e “eles” (embora esse nós e esse eles possam significar muitas
coisas diferentes). Por ora, evitarei qualquer tipo de julgamento.
Basta aqui a evidência de que pensar a partilha e a diferença é um
problema inerente ao pensamento de Lévy-Bruhl, ocupe ele o lugar
de promotor ou advogado de defesa. Isso significa que sua obra não
pode ser estranha a qualquer tentativa de repensar a tematização da
alteridade efetuada pela antropologia social e cultural.
Cabe também indagar, por outro lado, acerca do lugar que um
trabalho a respeito dessa obra um tanto estranha pode ocupar no
interior dessa vasta problemática. Pareceu-me, de toda forma, que
o esforço para aí inseri-la valia a pena. Pensar um autor — e pensar
com ele — tido talvez como o mais preconceituoso da história da
antropologia; avaliar até que ponto tal acusação se sustenta;
investigar a proliferação quase obsessiva de termos e conceitos
sucessivamente criados para pensar essa distância em relação ao
outro; analisar e enfrentar sua confissão final de quase fracasso….
Tudo isso me pareceu uma tarefa ao mesmo tempo interessante e
importante. Para além do valor intrínseco do trabalho de Lévy-Bruhl,
espero poder demonstrar que a vertigem aí presente é compartilha-
da, de uma forma ou de outra, por todo o pensamento antropoló-
gico, mostrando como o que distingue as várias linhas de força no
interior da antropologia é justamente a posição assumida diante
desse problema. O pensamento de Lévy-Bruhl poderia ser encarado
como um desses “maxima” de que fala Mauss, um desses casos
“típicos”, no sentido de que nele se manifestam com toda a nitidez
processos e elementos apenas esboçados em outros autores ou que
permanecem aí um pouco ofuscados por desenvolvimentos usual-
mente tidos como mais importantes. Nesse sentido, eu chegaria a
dizer que há algo de Lévy-Bruhl em todo antropólogo, ainda que a
antropologia tenha tendido a se defender de suas idéias e a excluí-
lo de sua história. Eu gostaria de tentar reincluí-lo.

A
O Caso Lévy-Bruhl 37

Para encerrar estas observações iniciais, já um pouco longas,


é preciso ainda dizer algumas palavras acerca da estrutura deste
trabalho, da maneira como foi concebido e realizado. Antes disso,
contudo, gostaria que me fosse permitido acrescentar aos vários
motivos que mencionei para escrevê-lo, alguns de ordem pessoal.
Trata-se de uma confissão de admiração. Admiração que não exclui
os valores da objetividade e do distanciamento, que deve ser
entendida também em seu sentido etimológico de uma aproxima-
ção que não exclui a distância, bem como na acepção de um
espanto, de um assombro — condição, creio, de todo trabalho
intelectual. Admiração, em todos esses sentidos, pela capacidade de
transformar uma quase obsessão pessoal (o dilema razão/afetivida-
de, como lembra Leenhardt) em motivação para toda uma vida de
trabalho; pela força de um auto-questionamento infinito que o
acompanhou até a morte; por uma certa forma de insegurança que,
longe de trair uma fraqueza intelectual, parece o resultado de uma
decisão de recusar todas as posições de autoridade que se preten-
dam definitivas; por uma escrita, enfim, onde todos esses traços se
encontram e que parece ser a única unanimidade a respeito desse
autor tão controvertido8. Creio que foi esse tipo de admiração por
um homem nascido exatamente cem anos antes de mim que acabou
desempenhando o papel de motivação principal para que este
trabalho viesse a tomar a forma que tem: investigação sistemática do
pensamento do autor, abstenção de julgamentos maniqueístas e
definitivos, delimitação de suas dificuldades, confrontação com o
saber antropológico, mapeamento dos impasses comuns a este
saber e ao autor em questão, tentativa de apontar possíveis
alternativas e vias ainda abertas, embora não suficientemente
exploradas. Espero, sinceramente, que este livro possa fazer justiça
a um pensador tão angustiado e a uma obra tão aberta e inacabada.
De qualquer modo, a organização geral aqui adotada preten-
de efetivar, ainda que de forma parcial, o esquema sumariamente
proposto por Châtelet para a elaboração de pesquisas sobre a
história das idéias. Não que eu pretenda aplicar este esquema de
modo absolutamente linear e progressivo (“ordem das razões” —
“problemas políticos internos à obra” — “contextos empíricos
precisos”), nem efetuar uma análise disposta em forma cronológica
simples. Ao contrário, gostaria de trabalhar numa constante oscila-
ção entre o que Alquié (1969: 9-13) denomina “a ordem do tempo”
e “a ordem do sistema”. Trata-se, portanto, de empreender uma
análise interna exaustiva da obra de Lévy-Bruhl e de recuperar sua
trajetória intelectual, restituindo, ainda que parcialmente, o contex-
38 Razão e Diferença

to intelectual nos quadros do qual se deu essa trajetória e se


produziu essa obra. Para isso, sob uma organização aparentemente
cronológica da exposição do pensamento de Lévy-Bruhl, tanto os
conceitos básicos do sistema quanto a trajetória e o contexto
intelectuais irão sendo recuperados e analisados, ainda que para
isso alguns cortes temporais tenham que ser efetuados.
O segundo capítulo trata em bloco da obra filosófica de Lévy-
Bruhl, que na verdade é antes de tudo resultado do trabalho de um
historiador da filosofia. Há, contudo, nuances importantes neste
bloco. A Idéia de Responsabilidade (tese de doutorado de Estado
defendida e publicada em 1884), História da Filosofia Moderna na
França (publicada em inglês em 1899) e A Filosofia de Augusto
Comte (de 1900), formam um conjunto que permite reconstituir, de
acordo com os depoimentos e opiniões do próprio autor, o
panorama intelectual dentro do qual seu pensamento se formou. O
neo-kantismo, o intelectualismo francês pós-cartesiano e o positivis-
mo historicista ou evolucionista são, sem dúvida, os marcos gerais
deste panorama: cada uma dessas correntes está presente, ainda que
de forma diferenciada, nos três textos mencionados.
O trabalho de Lévy-Bruhl sempre apresentou, contudo, um
lado de sombra, uma espécie de “negativo” de seus ideais explici-
tamente racionalistas e progressistas. O Romantismo, as filosofias
ditas “do sentimento” e o ceticismo aparecem como o contra-ponto
de seu racionalismo global. A Alemanha desde Leibniz (1890), A
Filosofia de Jacobi (1894) e um ensaio sobre Hume (1909), represen-
tam este outro lado, devendo ser cotejados com os outros três textos
citados, confronto que poderá ser esclarecido algumas vezes com
o recurso a trechos de outras obras, algumas bem posteriores a esta
fase. Desse modo, um retrato que espero suficientemente fiel e
esclarecedor deste período de formação poderá ser traçado.
Em seguida, tratar-se-á de abordar o momento usualmente
concebido como transição do autor entre sua formação filosófica e
seu trabalho no campo da etnologia. Aí veremos que esses recortes
não são tão claros ou óbvios quanto podem parecer à primeira vista.
O texto essencial para esta tarefa deverá ser A Moral e a Ciência dos
Costumes, de 1903, ano aliás em que se passa também a “estória dos
três livros chineses”. Ao lado de algumas passagens de As Funções
Mentais nas Sociedades Inferiores (1910), da carta enviada a Evans-
Pritchard em 1934 e de alguns trechos de outros livros, a análise do
trabalho sobre a moral permitirá definir melhor o caminho que teria
conduzido Lévy-Bruhl a um encontro, segundo ele próprio bem
inesperado, com a etnologia e a antropologia.
O Caso Lévy-Bruhl 39

Será o momento de mergulhar definitivamente nas obras


propriamente antropológicas de Lévy-Bruhl. Dois capítulos serão
dedicados a isso: o quarto capítulo deverá proceder a uma análise
em profundidade do livro que marcou a passagem do autor para este
campo do saber, As Funções Mentais nas Sociedades Inferiores,
publicado em 1910. Isso porque é aí que serão fixadas as linhas
mestras e as noções centrais que, mesmo quando abandonadas no
futuro, continuarão a balizar de alguma forma o trabalho em curso.
O quinto capítulo, por seu turno, tentará uma apreensão mais
global, mais sistemática, do restante da obra de Lévy-Bruhl: A
Mentalidade Primitiva (1922) e A Alma Primitiva (1927) já iniciam
a revisão que prosseguirá até o fim da vida do autor, dos princípios
estabelecidos em 1910, inaugurando uma aventura intelectual mais
arriscada e, ao mesmo tempo, mais interessante. O Sobrenatural e
a Natureza na Mentalidade Primitiva (1931), A Mitologia Primitiva
(1935), A Experiência Mística e os Símbolos entre os Primitivos (1938)
e, principalmente, os Carnets póstumos (1949), aprofundarão esse
processo de revisão, levando quase às últimas conseqüências esta
aventura intelectual fascinante.
Este trabalho pretende combinar uma abordagem “textual”,
no sentido da utilização rigorosa dos textos, e uma de “improvisa-
ção”, no sentido musical e jazzístico do termo9, desenvolvendo as
virtualidades e as potências de Lévy-Bruhl, não simplesmente
interpretando-o. Neste sentido, será preciso abrir um espaço para
tentar sistematizar melhor o que terá sido avançado ao longo das
apresentações e comentários diretos. Além disso, a partir da fixação
dos eixos centrais da obra, será necessário indagar até que ponto
este pensamento tem algo a dizer à antropologia contemporânea.
Será necessário interrogá-lo a partir desta assim como interrogá-la
a partir daquele, a fim de medir o peso dos desafios e impasses que
coloca para a reflexão antropológica, bem como, o que sem dúvida
é mais importante, os possíveis caminhos alternativos que poderia
oferecer. Suponho desde já que esses desafios e impasses — tanto
quanto esses caminhos — não são, no fundo, muito distintos
daqueles imanentes ao próprio projeto da antropologia como um
todo. No caso de Lévy-Bruhl, contudo, podem aparecer, como foi
dito, com uma nitidez que por si só convida a um mergulho em sua
obra.
Enfim, será preciso dizer algo a respeito de certas questões
cruciais colocadas por Lévy-Bruhl e sobre ele, bem como pela
antropologia e sobre ela. Haveria de fato um dualismo e um
etnocentrismo exacerbados neste autor? Sua obra estaria realmente
40 Razão e Diferença

marcada por um corte radical que colocaria em questão seus


desenvolvimentos iniciais? Seu pensamento pertenceria ao passado
morto da disciplina ou continuaria a representar um desafio ainda
não inteiramente compreendido e, conseqüentemente, não resolvi-
do? As críticas efetuadas desde há muito tempo pelos antropólogos
contra Lévy-Bruhl são tão evidentes quanto parecem ou cada uma
delas toca em delicados problemas sobre os quais a própria
antropologia estaria ainda longe de um consenso tranqüilo? Gostaria
também que me acreditassem quando afirmo que ao iniciar a
redação deste trabalho não possuía respostas prontas para essas
questões e que não tenho sequer a certeza de que estas foram
atingidas no final. Procurarei de qualquer forma, do modo mais
radical possível, acatar o “relativismo sistemático” que Poirier
considera o “método” de Lévy-Bruhl. Parto apenas de um sentimen-
to de que os problemas explícita ou implicitamente levantados por
este autor continuam a perturbar a reflexão antropológica: raciona-
lidade e relativismo, compreensão e tradução, modernidade e
tradição, entre tantos outros temas, são questões que sem dúvida
parecem fazer parte do conjunto de problemas que “na antropologia
cultural são fundamentais e perenes” (Scholte 1984: 960). A origina-
lidade de Lévy-Bruhl foi ter levado esses problemas até seus limites,
submetendo-os em conjunto a uma questão mais geral, muito difícil
de ser resolvida de modo simples: como pensar a dialética entre
unidade e diversidade em suas últimas conseqüências? Como
pensar a diferença em si mesma? “Como compreender o outro sem
sacrificá-lo à nossa lógica e sem sacrificá-la a ele?” (Merleau-Ponty
1960: 147). E se este pensamento do outro nos for “inteiramente
estrangeiro”? (Jorion 1986: 339). Ou, em última instância, serão a
compreensão e a explicação do outro — a própria antropologia,
conseqüentemente — realmente possíveis? Outras tantas questões
para as quais é difícil dispor de respostas acabadas.
O Caso Lévy-Bruhl 41

Notas
1. Esta crítica não possuiria um alcance maior que o imaginado por Lévi-
Strauss? Não deveria, por conseguinte, ser incessantemente recolocada? Talvez
apenas o operador da supressão da diferença varie, sem que a própria
operação deixe de ser praticada.
2. Os trabalhos de Evans-Pritchard aqui considerados foram publicados
em 1965 e 1981, consistindo, contudo, em retomadas de um artigo clássico de
1934 que não pôde ser consultado. Além disso, o artigo de 1981 é idêntico ao
de 1965, com a exceção do último parágrafo, acrescentado pelo organizador
da edição póstuma que reúne diversos estudos de Evans-Pritchard sobre a
história do pensamento antropológico. Esta parece-me também a ocasião para
advertir que este trabalho já estava concluído quando recebi os originais de
“Razão e Afetividade — O Pensamento de Lucien Lévy-Bruhl”, de Roberto
Cardoso de Oliveira, que viria a ser publicado no final de 1991. Foi impossível,
portanto, incluir a análise aí efetuada nessa abordagem do confronto entre a
antropologia e o pensamento de Lévy-Bruhl. De qualquer forma, a exposição
coincide em inúmeros pontos com a aqui desenvolvida. Por outro lado, seu
intuito é “etnográfico” (no sentido de uma “etnografia do pensamento”) e
“hermenêutico” (na medida em que procura captar a significação intrínseca da
obra de Lévy-Bruhl como um todo). O meu é sobretudo “antropológico” (no
sentido de lançar um “olhar etnológico” sobre a própria antropologia) e
“geográfico” (no sentido proposto por Châtelet, analisado mais adiante, de
uma reativação para o presente de certas virtualidades e potencialidades
contidas em um pensamento). Esta diversidade de pontos de vista, talvez
complementares, fica bastante nítida na ligeira diferença entre os títulos dos
dois trabalhos: para mim, trata-se acima de tudo de mostrar que a noção de
afetividade empregada por Lévy-Bruhl é um “termo-refúgio” para a questão da
diferença.
3. Esta posição não é nova. Sabe-se que os trabalhos de história da
filosofia de Gilles Deleuze são, desde 1954, orientados por uma perspectiva
semelhante. Antes disso, como me indicou Eduardo Viveiros de Castro, Ezra
Pound já havia desenvolvido a noção de paideuma, que implica que a história
da literatura não deva ser analisada de um ponto de vista apenas diacrônico,
mas a partir de princípios de seleção que incorporem os interesses atuais do
analista ou do leitor: “não é possível extrair grande vantagem de uma
caracterização meramente cronológica, embora a relação cronológica possa
ser importante” (Pound 1970: 72). Como afirma Pound de modo sintético e
exemplar, “‘Literatura é novidade que PERMANECE novidade’” (idem: 33).
Posição que é válida tanto em literatura quanto em filosofia ou antropologia.
4. “O que há de mais difícil — e de mais necessário — quando se aborda
o estudo de um pensamento que não é mais o nosso, é (…) menos aprender
o que não se sabe, e que o sabia o pensador em questão, do que esquecer o
que nós sabemos ou acreditamos saber” (Koyré 1971: 77). Ou como diz o
próprio Lévy-Bruhl, “só é justo julgar trabalhos olhando-os do ponto de vista
de seu autor, e não do nosso” (HP: 194). Devo confessar, entretanto, que serei
apenas moderadamente fiel a esses princípios.
42 Razão e Diferença

5. “Eu não gosto das pessoas que dizem de uma obra: ‘até aqui tudo
bem, mas depois é ruim, ainda que volte a se tornar interessante mais tarde’”
(Deleuze 1990: 118).
6. Pierre-Maxime Schul (1957: 397-8) chega a afirmar que o trabalho de
Lévy-Bruhl foi “por vezes eclipsado há vinte anos por formas de pensamento
que lhe devem muito mais do que têm consciência”, supondo que seria preciso
salvá-la deste imerecido esquecimento (“é tempo que saia da zona de
penumbra em que mergulham as grandes criações no período que segue
imediatamente a morte de seu autor”). Jean Poirier (1957: 503) vai na mesma
direção ao falar de um “purgatório” ao qual parecem ser condenados escritores
e cientistas logo após sua morte. Já vimos como Merllié considera a “desnatu-
ração, esquecimento, recalque” da obra de Lévy-Bruhl. De fato, em uma
coletânea de textos de 1970 — significativamente intitulada, Racionalidade —
o organizador afirma logo em sua exposição introdutória que “o fantasma de
Lévy-Bruhl (…) é, para diversos escritores nesse livro, o que deve ser
exorcizado” (Wilson 1970: XIII-XIV).
7. “Num mundo clássico, a relatividade nunca é vertiginosa porque não
é infinita; ela logo se detém no coração inalterável das coisas: é uma segurança,
não uma perturbação” (Barthes 1961: 139-40). Quando afirmamos, por outro
lado, que aqui “as coisas funcionam assim, e nos outros tipos de sociedades
as coisas funcionam de outro modo, não se abandona o terreno do compara-
tismo mais vulgar” (Clastres, in Carrilho 1976: 74).
8. Meu francês poderia talvez levantar dúvidas sobre esse último
julgamento. A verdade é que todos, aliados ou críticos, parecem estar de
acordo sobre esse ponto. Citarei apenas dois testemunhos pouco suspeitos de
complacência e, seguramente, escritos por dois grandes estilistas: “quanto a
mim, o que prefiro em todos esses livros — aos quais resisti freqüente e
francamente — é a bela e clara erudição (…). Um belo modelo francês, com
uma ponta de espírito inglês” (Mauss 1939: 564); “um espírito excepcionalmen-
te claro e um estilo delicioso encantam a cada instante o leitor. Poucas obras
técnicas manifestam tanta leveza e prometem tanto agrado. Pode-se sentir
ainda em sua obra (…) toda a integridade, o charme e a generosidade de sua
alma” (Lévi-Strauss 1946: 540). O estilo tem sua importância, como veremos
bem mais adiante.
9. “Execução musical criada na medida em que é tocada, sem partitura
anotada nem preparação detalhada” (Griffiths, Paul: “Improvisation” in:
Arnold, Denis, org., Dictionnaire Encyclopédique de la Musique. Robert
Lafont, Paris, 1988). Para ser mais preciso, existem no jazz pelo menos três
formas de improvisação : “a paráfrase (que modifica, sem apagar, o discurso
de um tema), o traçado de uma melodia nova (que se desenvolve sobre os
acordes, conservados ou enriquecidos, de um texto-pretexto), a criação
libertária (sem referência a qualquer fundo harmônico)” (Malson, Lucien:
“Improvisation” in Carles, Philippe; Clergeat, André; Comoli, Jean-Louis, orgs.,
Dictionnaire du Jazz. Robert Lafont, Paris, 1988). Essas três técnicas serão
empregadas ao longo deste trabalho, cujo tema, é claro, foi fornecido pela obra
e pensamento de Lévy-Bruhl, espécie de standard que permaneceu oculto e
esquecido durante muito tempo. Esta obra e pensamento fornecem um todo
suficientemente rico e coerente para permitir uma “interpretação” de interesse
O Caso Lévy-Bruhl 43

e utilidade. O “tema” será exposto durante a maior parte do tempo, mas


“paráfrases” se introduzirão ao longo da exposição. Além disso, aqui e ali o
“traçado de uma melodia nova” será sugerido e desenvolvido até certo ponto.
Finalmente, em diversas ocasiões, uma “criação libertária” será esboçada,
criação que só de longe e para ouvidos treinados recorda os temas de Lévy-
Bruhl. Todavia, tais temas permanecerão sempre orientando a composição do
texto e é nesse sentido que espero que o uso das citações (que os músicos de
jazz denominam igualmente quotations) seja compreendido: como ponto de
apoio para os desenvolvimentos propostos e como forma de reconduzir o
leitor ao tema diretor.
44 Razão e Diferença
2
Clássico e Romântico
História da Filosofia

Os espíritos de tendência clássica tanto quanto os de


romântica (duas categorias que existem sempre ao
mesmo tempo) nutrem uma visão do futuro; mas os
primeiros apoiando-se sobre uma força de sua época,
os últimos sobre sua fraqueza.
Humano Demasiado Humano

Concluindo, em 1899, seu livro sobre a história da


filosofia francesa moderna, Lévy-Bruhl crê poder resumir esses
quase trezentos anos de pensamento filosófico lembrando que
trata-se aí de uma “longa luta pela emancipação” face a dogmas
e preconceitos de um passado ainda muito recente (HP: 481).
Mais do que isso, passado ainda presente, na medida em que
o próprio século XIX teria sido testemunha de “repetidas e
sérias tentativas de reação” (idem). Deveríamos acreditar con-
tudo, prossegue o autor, que essas reações não passam de
“meros incidentes (…) afetando de modo apenas temporário o
progresso geral do desenvolvimento humano” (idem). Elas
possuiriam mesmo um certo valor positivo já que servem para
minorar a “fricção dolorosa, e mesmo as lacerações violentas”
(HP: 482) inevitáveis num tal processo de desenvolvimento. É
nesse espírito que o livro conclui: “os incidentes desta disputa
estão refletidos no conflito de doutrinas que caracteriza nosso
tempo, e disso o estado atual da filosofia na França apresenta
um retrato fiel” (idem).
Acredita-se um pouco facilmente demais num racionalis-
mo generalizado que dominaria o país de Descartes. Por um
lado, “racionalismo” pode querer dizer muitas coisas diferen-
tes; além disso, também na França existem aqueles que não se
querem racionalistas ou, ao menos, que desejam submeter a
46 Razão e Diferença

razão a preceitos superiores que seria inútil discutir. O retrato


que Lévy-Bruhl traça do panorama filosófico francês na segun-
da metade do século XIX procura justamente dar conta dessa
diversidade pouco mencionada de correntes de pensamento e
autores. Se excetuarmos Renan e Taine, que cronologicamente
fazem parte deste período mas que são considerados à parte,
o “movimento contemporâneo na filosofia francesa” contaria
ainda com pelo menos seis grandes correntes doutrinárias.
Em primeiro lugar, o ecletismo, que, criado com este
nome por Victor Cousin em torno de 1830, teria continuado
após a morte deste a dominar boa parte do mundo universitário
francês. Vacherot e Paul Janet seriam, no final do século XIX,
os principais representantes dessa corrente. Por outro lado, a
influência positivista continuaria bastante forte, embora esta
maneira de conceber a filosofia esteja menos presente em suas
formas mais puras do que numa terceira corrente denominada
separatismo, que inclui basicamente trabalhos científicos cuja
base e repercussão se localizam, contudo, no âmbito da
filosofia. Claude Bernard em fisiologia, Berthelot na química,
Ribot em psicologia, Espinas, Tarde e especialmente Durkheim
na sociologia, seriam os principais representantes desta ten-
dência. Uma quarta corrente agruparia os evolucionistas, que
“claramente seguem Lamarck, Darwin e o Sr. Herbert Spencer”
(HP: 438). Em quinto lugar, filósofos como Secrétan e Ravaisson,
que formariam uma “corrente metafísica, uma reação contra o
Positivismo e contra as doutrinas críticas e relativistas em geral”
(idem), buscando sua inspiração principalmente em Leibniz,
Hegel e Scheling. Enfim, a corrente contemporânea a que Lévy-
Bruhl parece dirigir suas maiores simpatias, embora seu estilo,
discreto como sempre, permita entrever esta preferência mais
no modo de apresentação que em formulações explícitas.
Trata-se do que se convencionou chamar neo-kantismo francês
ou criticismo — nomes ao mesmo tempo abrangentes demais
e um pouco imprecisos. Imprecisos porque nenhum dos
autores que fariam parte desta tendência parece dedicar a Kant
uma fidelidade muito rigorosa, buscando antes desenvolver,
adaptar e mesmo criticar alguns pontos essenciais do seu
pensamento. Abrangentes, porque sob essas rubricas costu-
mam ser classificados autores que possuem apreciáveis dife-
renças entre si. Lachelier, Cournot e, especialmente, Renouvier
são os filósofos “críticos” a que Lévy-Bruhl dedica mais aten-
Clássico e Romântico 47

ção, embora Boutroux, Fouillée, Guayau, Brochand e outros


sejam mencionados como adeptos deste tipo de filosofia.
O que poderia caracterizar, em meio a uma diversidade
tão grande, essa pluralidade de correntes? Em primeiro lugar,
o fato aparentemente muito banal de que praticamente todos
os autores analisados ou apenas mencionados começaram suas
carreiras dedicando-se à história da filosofia, para só depois
buscar o desenvolvimento de seus próprios sistemas (HP: 437).
Além disso, alguns traços comuns mais profundos poderiam ser
isolados atrás da aparente diversidade desses sistemas: “o
espírito crítico que não reconhece barreiras (…); uma tendên-
cia para adotar o ponto de vista histórico e evolucionista;
respeito pela ciência positiva; um gosto pelos problemas
sociais; um esforço para construir uma psicologia positiva, e
para fundar uma ciência da metafísica que leve sinceramente
em conta as modernas teorias do conhecimento” (HP: 455). Na
verdade, esses traços parecem-lhe tão representativos da filo-
sofia de seu tempo que Lévy-Bruhl age como se duvidasse da
real diversidade de correntes a que faz alusão, atribuindo tal
aparência de heterogeneidade a uma “ilusão de ótica inevitável
para aqueles que tentam captar uma visão geral dos eventos
contemporâneos” (HP: 466-7). Em função disso, atribui ao
“historiador do próximo século” a tarefa de encontrar um
substrato comum a essas filosofias, mais sólido que os poucos
traços que crê ter isolado. Isso porque “o próprio espírito de
nosso tempo, do qual estamos todos imbuídos”, obscureceria
para o contemporâneo essas semelhanças entre pensadores
excessivamente próximos do próprio analista (HP: 467).
Retornemos aos pontos comuns isolados por Lévy-Bruhl.
O tema da história da filosofia teria sido revitalizado na França
pelos trabalhos de Cousin (HP: 437). Sabe-se que essa revita-
lização está articulada com a pretensão filosófica mais abran-
gente deste autor, que é fundar um sistema que reunisse
elementos dispersos por filosofias diferentes e aparentemente
antagônicas, conduzindo assim o espírito humano a seu apazi-
guamento e a própria tradição filosófica a uma síntese de
caráter superior que deixaria para trás a tendência dos filósofos
a se entredevorarem. O diagnóstico de Cousin acerca da
situação da filosofia deriva, é claro, de suas próprias posições
— entre elas, e principalmente, seus posicionamentos políti-
cos. No capítulo XII da História da Filosofia Moderna na
França, inteiramente dedicado a Cousin, Lévy-Bruhl detecta
48 Razão e Diferença

com precisão esse comprometimento político: tratava-se acima


de tudo para este filósofo, como para “todos os pensadores de
seu tempo”, de “reconstruir” (HP: 331). Reconstruir, em primei-
ro lugar, as bases da sociedade francesa abaladas pela Revolu-
ção. Mas, para isso — e este é o papel que Cousin atribuía aos
filósofos num tal processo — não seria necessário inicialmente
empreender a reconstrução dos dogmas e crenças que o
Iluminismo havia radicalmente questionado e comprometido?
O processo movido contra a filosofia das Luzes, recuado em
geral até Descartes, é um tema comum do início do século XIX
na França. A mensagem de Cousin é neste sentido bastante
clara: inútil prosseguir no questionamento dos valores; inútil
investir, em nome de uma pretensa Razão soberana e livre,
contra os fundamentos da ordem, seja ela individual, social, ou
mesmo cósmica; inútil, portanto, esgotar-se na construção de
mais um sistema filosófico que apenas se acrescentaria aos já
existentes, contribuindo melhor para sua aniquilação recípro-
ca. Melhor tentar, através da história da filosofia, reunir os
elementos invariantes, os valores supremos, os pontos acerca
dos quais toda discussão só poderia ser suicida. Melhor tentar
sistematizar tudo isso em uma doutrina coerente a ser ensinada
nas escolas e universidades e que, trazendo a paz aos espíritos,
garantiria simultaneamente a boa ordem social: “a filosofia não
deve ser procurada; ela está feita”1. Compreende-se facilmente
que o ecletismo tenha se convertido em uma espécie de
filosofia oficial do ensino francês. Cousin e seus discípulos
detiveram por quase cem anos os postos administrativos que
determinavam a forma e o conteúdo de todo o ensino de
filosofia na França (inspetor geral de filosofia, presidente do
júri da agregação, etc…). Parece que o próprio Napoleão,
tentando suprimir a influência dos “ideólogos”, herdeiros
diretos do pensamento iluminista, favoreceu a implantação de
um tipo de ensino de filosofia com o qual o ecletismo logo se
identificou 2. Isso significa que a inclinação da filosofia francesa
da segunda metade do século XIX pela história do pensamento
filosófico não é nem banal nem neutra, correspondendo a uma
articulação bastante precisa entre o desenvolvimento da filoso-
fia na França e os processos políticos que, remontando até a
Revolução, abalaram o país por mais de um século.
O segundo tema recorrente nas várias tendências da
filosofia francesa do final do século XIX consistiria no conjunto
de traços comuns citados acima. Ora, aqui Lévy-Bruhl parece
Clássico e Romântico 49

ter introduzido um ligeiro deslocamento, pois não há dúvida


que as características por ele isoladas correspondem muito
pouco aos gostos teóricos e políticos do ecletismo, pelo menos
o de Cousin. De fato, espírito crítico ilimitado, historicismo e
cientificismo não são os temas preferidos por essa filosofia
essencialmente conservadora e espiritualista. Se Lévy-Bruhl
reservou um lugar para o ecletismo no “movimento contempo-
râneo”, pode-se suspeitar que o tenha feito movido apenas por
razões de ordem cronológica e institucional, já que, para ele,
a força de sua época parece concentrar-se em outro lugar. Se
o mesmo argumento for aplicado ao que denomina “corrente
metafísica”, afastada em demasia dos desenvolvimentos cientí-
ficos, e se admitirmos que o evolucionismo e o positivismo ou
o separatismo colocam-se neste momento do lado da constitui-
ção ou da purificação de determinados ramos de um saber que
tende mais para a ciência que para a filosofia, poderemos dizer
com razoável grau de precisão que o movimento propriamente
filosófico característico do pensamento francês no final do
século XIX se concentra naquelas correntes mais ou menos
tributárias do kantismo. Trata-se do que Lévy-Bruhl considera
a redescoberta do pensamento kantiano na França (HP: 444).
Após ter sido rejeitado por muito tempo como um “cético”, Kant
é relido como o autor de “um dos mais poderosos esforços
jamais efetuados pela mente humana para medir o alcance de
suas próprias faculdades e reconciliar as exigências da ciência
com as da moralidade” (idem). Diversos sistemas surgirão sob
o signo desse racionalismo sofisticado. Em alguns deles, como
nos de Lachelier ou Boutroux, o kantismo será utilizado
fundamentalmente como instrumento polêmico contra “a influ-
ência difusa do Positivismo” e do empirismo inglês (HP: 445).
O lado arquitetônico de tais sistemas é, contudo, menos
marcadamente inspirado por Kant, de modo que pouca atenção
lhes será dedicada . São Renouvier e Cournot os autores que
mais o interessam, interesse que deixará marcas perceptíveis
durante toda a vida intelectual de Lévy-Bruhl.
Filósofo da “anti-Universidade”, como diz Verdenal (1973:
40), Renouvier só poderia ser um adversário aberto do ecletis-
mo: “o ecletismo não investiga mais; apenas ensina” (citado em
HP: 439). É em Kant que Renouvier irá encontrar os elementos
que lhe permitirão tanto a crítica desse sistema quanto a
construção de sua própria doutrina. Esta, na verdade, se afasta
em muitos pontos do kantismo propriamente dito: crítica das
50 Razão e Diferença

noções de “coisa-em-si” e substância; recusa das antinomias


kantianas que contrariariam a “lei lógica suprema de nosso
pensamento chamada princípio de contradição” (HP: 449);
revisão do quadro das categorias com a eliminação da distinção
entre formas da sensibilidade e categorias do entendimento;
ênfase maior que a de Kant na preponderância da moral sobre
a especulação pura, com a especial inclusão da ética social.
Lévy-Bruhl pode assim sustentar que o criticismo de Renouvier
“é claramente a forma de neo-kantismo que melhor se aclima-
tou neste país” (HP: 451), e isso de tal forma que acabou por
penetrar no meio universitário depois de ter combatido vigoro-
samente a filosofia até então hegemônica, o ecletismo justa-
mente.
O outro neo-kantiano que interessa especialmente a
Lévy-Bruhl é Cournot. Se de Renouvier ele parece ter retido
sobretudo as mencionadas modificações introduzidas no kantismo,
Cournot será o responsável pela concepção de ciência com a
qual trabalhará por toda a vida. É neste sentido que já
reconhecia em 1899 que, “apesar de claramente aparentada ao
Positivismo e ao Criticismo”, a obra de Cournot diferia destas
filosofias exatamente por não pretender ser uma filosofia, já
que seu autor desejava limitá-la a uma espécie de advertência
contra os perigos que a razão correria ao aceitar tranqüilamente
demais certas afirmações e conjecturas improcedentes. Deste
ponto de vista, mesmo o positivismo e o criticismo poderiam e
deveriam ser criticados uma vez que insuficientemente preci-
sos. Lévy-Bruhl parece desconfiar desta posição excessivamen-
te rigorosa: “uma doutrina filosófica só pode ser uma hipótese;
isto pode ser uma fraqueza, mas é também a razão principal de
sua existência” (HP: 459). Acredita que foi justamente esse
excesso que fez com que a obra de Cournot tivesse sido
condenada a uma compreensível, embora injustificada, obscu-
ridade. O mais importante neste autor seria, contudo, a análise
do tema crucial dos fundamentos do conhecimento, assim
como as conclusões a que essa análise original conduziria. Em
lugar de seguir o tradicional caminho kantiano, investigando a
“faculdade do conhecimento”, Cournot prefere dedicar sua
atenção, bem mais do que Kant o teria feito, às ciências
concretas tal qual efetivamente funcionam. Não se trata de
buscar a determinação de suas condições formais de possibili-
dade, mas de isolar nestas ciências “um grupo de idéias
fundamentais (…) [que] constituirão sua filosofia” (HP: 458). As
Clássico e Romântico 51

três idéias a que Cournot chega são as de ordem, acaso e


probabilidade. As ciências tratariam o universo como um todo
ordenado cuja ordem, entretanto, só poderia ser atingida
indireta e aproximadamente, levando à formulação de leis
inevitavelmente probabilísticas uma vez que devem respeitar o
acaso, igualmente constituinte deste universo. Essas são, pare-
ce-me, a ontologia e a epistemologia que marcarão por muito
tempo o pensamento de Lévy-Bruhl.
Esta confiança no criticismo e no neo-kantismo em geral
será reafirmada na conclusão do trabalho sobre a filosofia
francesa moderna. Remontando a Kant, Lévy-Bruhl manifesta a
esperança de que “uma teoria do conhecimento, cientificamen-
te estabelecida” poderia enfim ser construída após dois séculos
de pesquisas e de tentativas, e de que apenas essa teoria do
conhecimento poderia conduzir a “uma nova ciência da meta-
física” (HP: 481). Adivinha-se o lugar que a filosofia francesa
estaria destinada a ocupar neste processo global: oriunda de
Descartes, fiel por trezentos anos ao “espírito cartesiano”, este
pensamento deveria desempenhar o papel de defensor do
racionalismo, sustentando o privilégio da teoria do conheci-
mento na formulação de qualquer sistema filosófico. Este
caminho ainda não inteiramente percorrido está longe, contu-
do, de ser linear e tranqüilo. E é no interior da própria filosofia
francesa que se pode observar, a partir do final do século XVIII,
uma decidida reação contra o espírito iluminista, e mesmo
cartesiano, bem como uma negação dos pretensos poderes
ilimitados da razão. Tradicionalistas como Bonald ou De
Maistre, espiritualistas como Biran, ecléticos como Cousin,
insurgem-se sucessivamente contra o voluntarismo libertário
das Luzes. Para Lévy-Bruhl, a reação não deixa de ser bastante
compreensível e, até certo ponto, justificável. Ela lembraria,
afinal de contas, os perigos de um apriorismo excessivo, os
impasses a que o esquecimento do valor da tradição pode
conduzir, as dificuldades a que leva a obliteração das diferen-
ças e a busca exclusiva dos universais e das semelhanças. Por
outro lado, ele não deixa de ser taxativo: tratar-se-ia apenas de
uma reação episódica, por mais salutar que tenha sido. Lévy-
Bruhl acredita que depois de Comte ter efetuado a síntese entre
o “progresso” iluminista e a “ordem” tradicionalista, são os
elementos racionalistas e científicos que deveriam, enfim,
triunfar. Com o neo-kantismo e o criticismo, a filosofia francesa
52 Razão e Diferença

teria reatado os laços que a uniriam a suas fontes, podendo


prometer mais uma vez a razão para toda a humanidade.
O tão mencionado racionalismo francês não triunfaria,
portanto, de modo tão tranqüilo quanto se costuma imaginar.
Ao contrário, Lévy-Bruhl trata o tema como se estivesse lidando
com um combate quase ininterrupto. Descartes teria rompido
com a tradição e a escolástica medievais; os iluministas o
seguem, radicalizando suas posições ao aplicá-las a domínios
— moral, religião, política — nos quais ele próprio não quis
penetrar. A reação que se segue à Revolução serve, no entanto,
para mostrar que a vitória racionalista estava longe de ser
definitiva, e isso de tal modo que durante muito tempo
tradicionalistas, espiritualistas e ecléticos dominarão a filosofia
francesa, ao menos no plano institucional. No final do século
XIX, o racionalismo contra-ataca: as deduções lógicas do neo-
kantismo, bem como as investigações empíricas dos positivis-
tas mais ou menos fiéis, logo ameaçarão as vagas invocações ao
sentimento e à tradição feitas pelos pensadores reacionários.
Acerca do resultado deste combate, Lévy-Bruhl parece não ter
a menor dúvida, sua fé nessa “longa luta pela liberação” (HP:
481) sendo quase inabalável. O que é aqui significativo é que
tenha construído todo um livro sobre a história da filosofia
francesa moderna em torno deste debate e que esse livro tenha
o aspecto de mais uma arma para uma luta que, esperanças à
parte, parece longe de ter terminado. A resistência da tradição,
a força de dogmas aparentemente superados, a invocação da
intuição e do sentimento nos quadros de uma discussão que se
pretende racional e razoável, tudo isso parece intrigar profun-
damente Lévy-Bruhl, servindo para moderar sua certeza no
triunfo das forças racionalistas.

A
É de racionalismo, pois, que se trata aqui, racionalismo do
qual René Descartes seria o patrono maior. A história da
filosofia francesa de Lévy-Bruhl começa justamente com um
capítulo dedicado ao sistema cartesiano, opção explicitamente
justificada: “era natural começar com Descartes, já que é
consenso geral que Descartes abriu um período na história do
pensamento filosófico, e isso não simplesmente para a França,
Clássico e Romântico 53

mas para o mundo em geral” (HP: V). O capítulo também


conclui de forma bem explícita, afirmando que o esforço
cartesiano foi “libertador”, ao abrir uma brecha nas teorias
teológicas e metafísicas até então dominantes (HP: 34). No final
do livro, quando tentar determinar os traços comuns a toda a
filosofia francesa dos quase trezentos anos que seu trabalho
tentou cobrir — ligação com as matemáticas, ideal de clareza,
privilégio do método dedutivo, universalismo, atenção aos
assuntos práticos, resistência à “intuição mística”, etc… (HP:
472) — Lévy-Bruhl não deixará qualquer dúvida. Tudo isso
representa a herança direta do espírito cartesiano; os filósofos
franceses parecem ter apenas tentado, durante esse longo
período, aperfeiçoá-lo e desenvolvê-lo — se excluirmos, é
claro, as mencionadas tentativas de reação contra esse raciona-
lismo “libertador”.
Que Lévy-Bruhl devote a Descartes mais que uma simples
admiração superficial, fica evidente quando observamos o tom
de respeito e reverência que cerca qualquer menção a esse
nome e qualquer análise das idéias que, de uma forma ou de
outra, estariam a ele ligadas. Essa admiração profunda fica
igualmente patente no fato de que entre 1905 e 1906 (ou seja,
após a publicação de seu livro sobre a moral e quando já
trabalhava nas Funções Mentais…), Lévy-Bruhl tenha dedicado
a esse mesmo Descartes um curso na Sorbonne. Curso jamais
publicado, que Étienne Gilson tornou público, ao reproduzir,
no número da Revue Philosophique dedicado ao centenário de
nascimento de Lévy-Bruhl, suas próprias anotações, redigidas
cinqüenta anos mais cedo, quando aluno de filosofia. Que um
renomado especialista no pensamento cartesiano e em suas
fontes medievais tenha preservado essas notas de estudante
durante todo esse tempo e que tenha decidido publicá-las,
acompanhadas de alguns comentários, como homenagem ao
antigo professor, são fatos que por si só poderiam servir como
demonstração do valor intrínseco do curso. Aqui, contudo, o
objetivo é um pouco diferente: acredito que a exposição de
Gilson permita captar e determinar mais que o lugar atribuído
por Lévy-Bruhl ao pensamento cartesiano nos quadros do
desenvolvimento da filosofia francesa — e, conseqüentemente,
em sua própria formação intelectual. Permite também, e prin-
cipalmente, captar e determinar o método empregado em seus
trabalhos de história da filosofia, método ao qual não faz alusão
mais explícita no próprio corpo desses trabalhos.
54 Razão e Diferença

O curso limitou-se a três aulas de apenas uma hora de


duração. Estava destinado contudo, pensa Gilson, a revolucio-
nar, ainda que de forma indireta, todo o futuro dos “estudos
cartesianos” na França, determinando especialmente o cami-
nho da obra do próprio Étienne Gilson. A primeira aula
consistiu na apresentação das várias “imagens de Descartes”
sucessivamente construídas ao longo dos séculos XVII, XVIII e
XIX. A grande variabilidade dessas imagens teria sua fonte
tanto em razões de ordem “objetiva” — “na medida em que a
própria doutrina continha possibilidades diversas de desenvol-
vimentos e interpretação” (Gilson 1957: 434) — quanto de
ordem “subjetiva” —“na medida em que o intérprete se
representa o autor de acordo com suas tendências íntimas e
seus gostos profundos” (idem). Assim, à tentativa de apresen-
tação, ainda no século XVII, de um Descartes ortodoxo e
imutável feita por uns poucos “cartesianos puros”, seguiu-se
com o Iluminismo um esforço crítico que buscava contestar o
caráter excessivamente “metafísico” e “apriorístico” de Descar-
tes, opondo-o ao saudável empirismo de Newton e Locke.
Ainda assim, os filósofos das Luzes — esse é um tema ao qual
Lévy-Bruhl repetidamente retorna — acabaram simplesmente
por estender os princípios cartesianos aos domínios da política,
da religião e da moral, coisa que o mestre havia cuidadosamen-
te evitado fazer. A esse Descartes “revolucionário” sucede
cronologicamente a imagem construída pelo Romantismo e
pelo ecletismo de Cousin: a de um autor preocupado sobretudo
com uma psicologia introspectiva que garantisse o acesso
imediato e intuitivo ao “absoluto”, um “metafísico puro”,
conseqüentemente — e aqui, ao contrário do que ocorria nas
Luzes, esta qualificação é carregada de valor positivo. Os
discípulos de Cousin procuraram matizar essa imagem um tanto
forçada, afirmando que, apesar de sua detestável inclinação
pelas matemáticas, Descartes teria sido acima de tudo um
“espiritualista”, defensor da superioridade do espírito sobre a
matéria. Em seguida, Sécretan apresenta um Descartes que
defende a liberdade absoluta, imagem que o oporia ao positi-
vismo e ao relativismo. Natorp, enfim, faz dele um puro
idealista, precursor da filosofia kantiana.
Seis “Descartes” e bem diferentes. A questão que logo se
coloca é saber se seria possível “reencontrar o pensamento
autêntico de Descartes” (Gilson 1957: 437), contornando essas
imagens excessivamente exclusivistas, ainda que cada uma
Clássico e Romântico 55

delas pareça manter sempre alguma fidelidade em relação ao


pensamento que busca retratar. É justamente aqui que Gilson
introduz o que para ele seria a originalidade e a novidade do
procedimento de Lévy-Bruhl: uma “atitude propriamente histó-
rica”, oposta à abordagem “essencialmente filosófica” até então
adotada pelos diversos comentadores (idem: 436). Este proce-
dimento original consistiria em empreender uma análise textual
dos escritos cartesianos, sem a suposição antecipada de que
deveriam estar de acordo com esta ou aquela corrente filosófica
posterior e sem imaginar estar lidando com textos fundadores
ou precursores de correntes que só mais tarde viriam a
completar seu desenvolvimento. Esse é o tema da segunda aula
do curso. Trata-se aí de esboçar “uma espécie de biografia
intelectual de Descartes” (idem: 438), tarefa tanto mais difícil
quando se sabe que ele próprio jamais se interessou em
descrever a “gênese de sua doutrina” (idem), seguro que estava
de que seu método lhe bastava, dispensando toda referência ao
que o havia precedido na história do pensamento filosófico.
Lévy-Bruhl teria conseguido demonstrar, através da leitura
direta dos textos, que Descartes devia muito mais à escolástica
medieval e mesmo ao aristotelismo do que gostava de confes-
sar. Seu sistema teria sido construído aos poucos e seu
afastamento da física e da metafísica tradicionais teria sido
apenas progressivo. Lévy-Bruhl não pretendia contudo, sim-
plesmente reduzir o pensamento cartesiano a suas “fontes
escolásticas ou outras” (idem: 440); tratava-se apenas de de-
monstrar que uma filosofia, por mais revolucionária que seja,
não nasce do nada e que suas rupturas se dão sempre em
relação a alguma coisa que a antecede ou que lhe é contempo-
rânea. A tarefa a realizar seria conseqüentemente situar Descar-
tes em seu meio histórico, determinando o sentido preciso que
os termos e conceitos que empregou poderiam ter em sua
época. Só assim seria possível reconstituir da maneira mais fiel
a filosofia cartesiana, tal qual seu próprio autor a compreendia.
Henri Sérouya (1957: 456-7) parece, pois, ter razão ao sustentar
que o método empregado por Lévy-Bruhl em história da
filosofia já é um método histórico e, até certo ponto, socioló-
gico. As doutrinas analisadas não são aí tratadas como fenôme-
nos destacados dos meios intelectuais e sociais em que surgem,
se desenvolvem e difundem.
“Aula que foi para nós decisiva”, a última do curso, é o
momento de Lévy-Bruhl tentar definir “o objetivo de Descartes”
56 Razão e Diferença

(Gilson 1957: 441). Trata-se, em parte, de definir uma nova


“imagem de Descartes”, desta vez a de um “cientista” (“savant”)
cujo objetivo fundamental teria sido estabelecer uma nova
física, em ruptura com os modelos aristotélico e escolástico
dominantes. É para atingir essa finalidade que Descartes teria
construído sua metafísica, ou seja, como simples ponto de
apoio e não como base, no sentido em que esta metafísica é
menos importante do que o edifício científico que devia apenas
preparar. Para lembrar a famosa metáfora cartesiana, se a
metafísica é a raiz de toda a filosofia, “raízes são raízes-de-
árvore”, diz Gilson (idem: 446-7). É verdade também que no
sistema cartesiano, a exposição da metafísica antecede a da
física, mas é justamente aqui que as considerações de ordem
histórica se mostram fundamentais, a “ordem da invenção” não
devendo ser confundida com a “ordem da exposição” (idem:
448). Descartes afirma explicitamente, numa carta de 1641, que
seu objetivo não é assustar os espíritos acostumados com o
aristotelismo, que vale mais a pena acostumá-los primeiro com
certos princípios gerais novos — metafísicos justamente —
antes de apresentar a física verdadeiramente revolucionária
que havia criado (idem: 443). Para Gilson, a tese de Lévy-Bruhl
continuava irrefutável em 1957: a metafísica cartesiana não
pode extrair seu sentido de si mesma, só se tornando inteligível
quando remetida à física que deveria somente ajudar a estabelecer.
Gilson vai ainda mais longe, acreditando que Lévy-Bruhl
teria estabelecido um “fato capital: a demonstração rigorosa é
às vezes possível em história da filosofia” (idem: 446). O mais
importante é que se Descartes imaginou ser absolutamente
necessário construir um sistema filosófico inteiro para fundar a
sua física, isso teria se dado em virtude de dever muito mais do
que imaginava — ou do que confessava — àqueles que
pretendia criticar. A concepção da filosofia como corpus fe-
chado e completo teria chegado até ele a partir de Aristóteles
por meio dos escolásticos de quem tanto deseja se distinguir
(idem: 449). É aí que o ensino de Lévy-Bruhl teria sido
fundamental para o próprio Gilson: “Descartes parece ter
utilizado seu método científico como um princípio de seleção
para escolher na metafísica da Idade Média aquelas noções que
após serem ajustadas no nível da razão ele próprio poderia
fazer com que servissem para a edificação de seu próprio corpo
de filosofia” (idem: 450), cujo modelo formal também teria ido
buscar nos medievais e nos gregos. Esta teria sido a questão que
Clássico e Romântico 57

tanto afetou o desenvolvimento dos “estudos cartesianos” na


França, em particular os do próprio Gilson, questão colocada
pelo “gênio” de Lévy-Bruhl: a da inteligibilidade das escolhas
operadas por Descartes entre os temas que serviriam para
fundar sua metafísica. Sabe-se que Gilson dedicou o resto da
vida a esta pesquisa, interrogando sistemática e profundamente
as fontes disponíveis da teologia e da filosofia medievais. Ele
também sustenta nessas “memórias” que o ensino de Lévy-
Bruhl teria se difundido de forma mais ampla, tendo servido
como alavanca para o desenvolvimento de diversas pesquisas
sobre o cartesianismo, suas fontes e temas.
O que teria acontecido, contudo, com o “Descartes” do
próprio Lévy-Bruhl? Sabemos que depois de 1906, quando
terminou o curso, seu pensamento se dirigiu para domínios
aparentemente muito afastados do “fundador” do racionalismo
francês e da própria filosofia em geral. Gilson chega mesmo a
concluir seu artigo com uma observação melancólica a respeito
do que poderia ter sido a posição de Lévy-Bruhl frente ao
desenvolvimento das pesquisas sobre a física e a metafísica
cartesianas. Lembrando sua progressiva inclinação na direção
do positivismo e das investigações científicas em etnologia,
Gilson parece seguro de que ele concluiria simplesmente que
após ter contribuído decisivamente para o fim das especulações
escolásticas, também a ciência e a filosofia cartesianas deveri-
am desaparecer diante do rápido progresso de novas formas de
reflexão, que estariam para Descartes como este esteve para os
antigos e os medievais. Isso não elimina a admiração pelo
filósofo e o próprio Gilson relata que em 1937, dois anos
apenas antes de sua morte portanto, o então renomado etnó-
logo hesitou bastante antes de publicar um artigo de Jaspers
extremamente crítico em relação a Descartes, ao pretender
denunciar “os erros fundamentais do filósofo” (idem: 450, n.1).
O texto acabou sendo publicado na Revue Philosophique,
acompanhado, no entanto, de uma nota de rodapé redigida por
Lévy-Bruhl — então editor da revista — que tentava matizar o
tom do artigo. O curioso é que Gilson observa que muitas das
teses aí contidas estavam, sob diversos aspectos, comple-
tamente de acordo com o já antigo curso do próprio Lévy-
Bruhl 3.
Além dos elementos propriamente metodológicos —
atitude histórica, análise textual, compreensão sistemática — o
que deveríamos reter deste curso? Em primeiro lugar, a cliva-
58 Razão e Diferença

gem estabelecida entre as várias “imagens de Descartes”.


Percebe-se aí uma oposição entre uma vertente racionalista (os
cartesianos ortodoxos, os iluministas, Natorp), e outra, que
privilegia o aspecto intuitivo e introspectivo da filosofia carte-
siana (os românticos e ecléticos, os espiritualistas, Sécretan).
Oposição que é a mesma detectada acima no diagnóstico de
Lévy-Bruhl a respeito da situação da filosofia francesa de seu
tempo. O segundo ponto a reter é quase um prolongamento
deste, já que as variações “subjetivas” das imagens de Descartes
se apóiam, ao menos em parte, nas “objetivas”. Não apenas
essas imagens estão marcadas pela oposição entre razão e
sentimento, ou progresso e tradição, como o próprio pensa-
mento do filósofo retratado parece também oscilar entre esses
dois pólos. A novidade da abordagem de Lévy-Bruhl residiria
justamente — e não pode haver motivos para duvidar de Gilson
num assunto de tal natureza — na demonstração da persistên-
cia de uma série de elementos aristotélicos e escolásticos no
coração da doutrina que pretende se libertar de todos os
elementos tradicionais e irracionais.
O curso sobre Descartes, como dissemos, jamais foi
publicado, o que poderia levantar suspeitas de outra natureza
a respeito das anotações e da memória de Gilson. Meio século
é muito tempo e neste período ele desenvolveu suas pesquisas,
elaborando também sua própria “imagem de Descartes”. Isso
poderia ter tido um efeito retroativo, fazendo com que o
Descartes de Lévy-Bruhl ficasse parecido demais com o de
Gilson. Essa suspeita foi realmente levantada por Jean-Pierre
Cavaillé (1989: 453-6), que lembra, ao mesmo tempo o interesse
de Lévy-Bruhl por Descartes durante toda a vida, já que em
1922 (ano de publicação de A Mentalidade Primitiva) pronun-
cia uma conferência sobre “Descartes e o espírito cartesiano” e,
em 1936, consente em publicar em inglês um texto intitulado
“O Espírito Cartesiano e a História”, que retoma parte do
capítulo sobre Descartes publicado no livro de 1899. Cavaillé
chama ainda a atenção para o fato de que Gilson não faz
qualquer referência a esta conferência nem, o que é ainda mais
estranho, ao capítulo dedicado a Descartes em História da
Filosofia Moderna na França. Desse modo, se nos dedicarmos
um pouco a este capítulo poderemos não apenas testar o
depoimento de Gilson como também, o que sem dúvida é bem
mais importante, observar como Lévy-Bruhl procedeu concre-
Clássico e Romântico 59

tamente para construir sua própria imagem do pensamento


cartesiano.
Mesmo uma leitura superficial do texto de 1899 permite
perceber imediatamente que a posição de Lévy-Bruhl acerca de
Descartes é exatamente a mesma que a que viria a ser apresen-
tada no curso de 1905-1906. O cartesianismo rompe com a
tradição (HP: 4); a maior importância de Descartes teria sido
justamente a de ter elevado a razão ao papel de único juiz capaz
de decidir entre o verdadeiro e o falso (HP: 12); fé, crença e
conduta são cuidadosamente separadas da razão e do conhe-
cimento (HP: 34); a filosofia cartesiana teria sido, acima de
tudo, “uma libertação” (HP: 13). Por outro lado, não se trata aí
de “um começo, no sentido literal: não existe tal coisa na
história das idéias, nem em parte alguma” (HP: 1), e Descartes
continuaria na verdade preso à tradição em dois sentidos bem
diferentes. Inicialmente — esta é a mesma tese ouvida por
Gilson alguns anos mais tarde — a filosofia escolástica e todo
o movimento renascentista estão contidos no pensamento
cartesiano, ainda que para serem ultrapassados. Além da
própria concepção do que viria a ser a filosofia em si e de
algumas novidades introduzidas pelo Renascimento contra o
pensamento medieval, a própria reticência em estender o
método para áreas como a política, a moral e a religião,
revelaria um bem marcado compromisso com a tradição que
pretendia superar. Ainda que essa exclusão se faça desta vez
em nome da razão, a história e a vida social como um todo são
colocadas fora do domínio da ciência em virtude do fato de
consistirem mais em puras probabilidades que nas certezas
absolutas que o método cartesiano exige para operar. Todo o
peso da tradição ainda se faz sentir aqui (HP: 6; 12). A dívida
cartesiana para com o pensamento anterior se faz sentir
também de maneira bem mais paradoxal — e este é um tema
ao qual Lévy-Bruhl retornará durante toda a vida, mesmo que
isso se dê em relação a autores e assuntos bem diferentes.
Descartes, em seu esforço para romper de modo absoluto com
a tradição mesmo lá onde esta teria atingido determinadas
verdades (HP: 2), “deixou de apreciar seu valor e sua função
necessária” (HP: 5), o que acarretará muitas dificuldades e
impasses de natureza teórica e política sobre os quais Lévy-
Bruhl não se cansa de insistir. Isso porque uma ruptura
excessiva seria sempre um pouco cega, acabando por compar-
tilhar do obscurantismo com o qual pretende romper: “tem-se
60 Razão e Diferença

sempre muitos pontos em comum com os homens de quem se


é de modo perfeito demais o adversário” (PJ: 42-3). Ora, essa
cegueira de Descartes se manifestaria de modo particularmente
claro em sua dificuldade para atribuir um lugar em seu sistema
para o “sentimento” e a “imaginação” (HP: 34) e também na já
mencionada recusa em incorporar a moral, a política e a
religião como objetos do saber científico. Como Lévy-Bruhl não
pretende — ele nos adverte a esse respeito desde o prefácio de
seu livro — “escrever um trabalho de erudição, mas uma
história” (HP: V-VI), ou seja, tentar “apreender as conexões
entre os fatos, e deduzir as leis de desenvolvimento das idéias
e doutrinas” (HP: VI), estas lacunas e omissões do sistema
cartesiano assumem um significado todo especial, uma vez que
é justamente nelas que se instalarão seus sucessores mais ou
menos fiéis.

A
A história escrita por Lévy-Bruhl é a de uma lenta
ascensão até uma filosofia capaz de incorporar — não simples-
mente adicionar, como é o caso do ecletismo — as verdades
progressivamente descobertas ao longo do tempo. Se Descartes
é, “naturalmente”, o marco inicial dessa trajetória, a própria
linguagem empregada para defini-la, bem como para se referir
a seu iniciador, não deixa muita margem de dúvida sobre qual
seria o destino da viagem. Ao falar repetidamente em rupturas
com a religião e a metafísica, em leis de desenvolvimento das
idéias, assinala-se claramente que é o positivismo de Augusto
Comte que aguarda no final do caminho. Este, contudo, não
seria percorrido por saltos nem de modo absolutamente linear
e contínuo, e é entre Descartes e Comte que Lévy-Bruhl busca
relatar todas as peripécias que constituiriam a história da
filosofia moderna na França. Se o primeiro é o emblema dessa
filosofia no século XVII, assim como o segundo o será no XIX,
Condillac será pensado como o representante por excelência
do século XVIII filosófico francês. Entre Descartes e este último
uma série de intermediários serão interpostos. Os primeiros
ainda ligados ao cartesianismo; depois, alguns filósofos da
transição propriamente dita; por último, aqueles que como
Condillac já fazem parte do movimento iluminista.
Clássico e Romântico 61

Malebranche e Pascal, embora cronologicamente mais


próximos a Descartes, já se encontram entre os que se alojarão
nas brechas do sistema cartesiano. O primeiro, bem mais fiel ao
mestre, buscará antes de tudo conciliar a razão por ele revelada
com o que pode haver de mais fundamental na tradição e, em
especial, na religião (HP: 38-44). Para Lévy-Bruhl, sua doutrina
seria profundamente racionalista, apesar das aparências de
irracionalidade de que por vezes dá mostra (HP: 51). Nesse
sentido, as três noções de Malebranche que chamam especial-
mente sua atenção — ocasionalismo, ordem e participação —
podem ser reinterpretadas. O ocasionalismo seria apenas um
convite para o abandono das infrutíferas buscas das causas
últimas dos fenômenos, feito em nome da necessidade de se
pesquisar cientificamente as leis que regeriam sua regularidade
— a prova dessa interpretação um pouco heterodoxa residindo
no caráter fundamental que a noção de ordem desempenharia
no sistema de Malebranche. Do mesmo modo, a idéia de que
nossa razão só pode se legitimar devido a sua participação com
o pensamento divino não passaria de uma advertência sobre o
caráter impessoal desta razão e sobre a necessidade de aban-
donar os sentidos para poder fundar o conhecimento.
Pascal, por sua vez, teria sido, ainda mais que seu
predecessor, vítima de uma série de mal-entendidos. Encarado
durante muito tempo como “cético” (HP: 77) ou “místico” (HP:
78), ele na verdade teria apenas tentado levar um pouco mais
longe que Malebranche a correção dos exageros cartesianos.
Abrir um espaço, inexistente no sistema de Descartes, para o
“sentimento” não significaria subordinar a este faculdade a do
“entendimento”: este simplesmente se localizaria sobre outro
plano (idem). Pascal, ao chamar a atenção para a importância
dos afetos, estaria querendo assinalar a relatividade do conhe-
cimento humano com seu conseqüente caráter progressivo
(HP: 83-6). A tradição, longe de ser simplesmente refutada,
deveria ser sobretudo analisada (HP: 82), e é justamente esse
interesse maior pelas forças da tradição que teria feito com que
Pascal, ao contrário de Descartes, tivesse se interessado tanto
pela moral e pela “ciência do homem” (HP: 89), o que faria dele
um autêntico precursor de tudo o que estava por acontecer em
matéria de filosofia na França.
Bayle, Fontenelle e Montesquieu — ainda que os dois
últimos só viessem a morrer na década de 1750 — são alinhados
como filósofos da transição entre a fundação da filosofia
62 Razão e Diferença

francesa moderna e seu apogeu iluminista. Os três se caracte-


rizariam por um esforço comum em estender ao domínio social
(moral, religioso e político, respectivamente) os princípios
analíticos da razão cartesiana. Para Bayle, por exemplo, a razão
deve ser inteiramente separada da Revelação, de tal forma que
todo e qualquer princípio religioso que não esteja de acordo
com a primeira deve ser atribuído a um erro de cópia ou
interpretação das Escrituras (HP: 118-20). São as “paixões do
coração” que movimentam as condutas humanas e a moral nada
deve à religião ou à metafísica (HP: 123-125).
Fontenelle, por seu turno, é um dos autores prediletos de
Lévy-Bruhl, tendo chegado mesmo a prever “a possibilidade da
etnografia comparada, da antropologia científica, e finalmente
de estender à sociologia o método das ciências naturais” (HP:
132-3). Quase materialista, teria reconduzido a teologia à física,
ao sustentar que o acesso a Deus só pode se dar através do
conhecimento de suas obras: a crítica dirigida aos “sacerdotes
e oráculos” pagãos poderia não ser mais que um pretexto para
atingir a religião como um todo, especialmente a crença em
milagres (HP: 130-1). Enfim, ao sustentar que a história pode
ser escrita tanto a priori quanto a posteriori (HP: 133), Fontenelle
estaria visando a crítica cartesiana da possibilidade de se
aplicar o método científico ao mundo social, uma vez que esse
é acessível tanto à razão dedutiva — a única que Descartes
pretende aplicar — quanto à indução direta. Isso significa o
reconhecimento de que, ao lado da profunda unidade da
humanidade, Fontenelle teria introduzido a necessidade de
pensá-la também a partir de sua diversidade real (HP: 132). É
isso que o teria levado a não criticar a tradição em bloco e a
tentar determinar com precisão os motivos que levam os
homens a adotar “crenças extravagantes” (HP: 136). Ao mesmo
tempo, sua comparação constante entre “antigos e modernos”,
com o recurso inclusive a observações efetuadas nas socieda-
des primitivas, o leva a introduzir o princípio de que as
diferenças culturais devem ser atribuídas à “sucessão necessá-
ria das descobertas”, o que o converteria, ao lado de Pascal,
num dos precursores da noção de progresso (HP: 136-7).
Finalmente, completando a transição que leva de Descar-
tes ao Iluminismo, há Montesquieu. Aqui a ordem política e
social entraria definitivamente na esfera da investigação cientí-
fica, o objetivo deste filósofo sendo antes de tudo determinar
as leis que regem a solidariedade dos fenômenos sociais (HP:
Clássico e Romântico 63

143-4). A observação empírica da realidade histórica deveria


conduzir à formulação das “leis das leis” dos fatos políticos e
sociais em geral — e é esse respeito pelos fatos que levaria a
uma posição mais moderada frente à tradição, Montesquieu
passando para a posteridade como o verdadeiro ponto de
equilíbrio entre esta e a Revolução (HP: 163;166). Seu projeto
não teria sido contudo inteiramente bem sucedido, já que as
leis que pretendia atingir não foram afinal de contas realmente
determinadas. Lévy-Bruhl atribui este fracasso ao fato de o
método empregado estar ainda excessivamente próximo do
apriorismo cartesiano (HP: 145). Isso faria com que os fatos que
tanto respeita e deseja estudar só sejam mencionados de forma
um pouco disparatada e descontrolada para comprovar verda-
deiras deduções a priori, supostamente legitimadas por uma
problemática noção de “humanidade” concebida como ente
abstrato, não levando em conta a diversidade real que este
conceito costuma mascarar (HP: 148-9). Ao lado dessa oscila-
ção entre um método histórico e um abstrato, Montesquieu
enfrentaria ainda uma dificuldade derivada do fato de a
biologia ainda não ter se constituído em sua época. Ele não
dispunha das leis que explicariam as regularidades dos seres
vivos e que deveriam servir de modelo ou princípio para a
busca das leis da vida política e social. De qualquer forma, por
maiores que sejam as diferenças observáveis, a influência de
Montesquieu sobre os iluministas é, para Lévy-Bruhl, profunda
e fundamental: “foi ele que abriu o caminho para eles. Depois
dele, fortalecidos por seu exemplo e sua autoridade, estavam
aptos, sem muita dificuldade, a se estabelecerem no domínio
das ciências políticas e sociais” (HP: 168).
Aqui começa outra etapa dessa história, que cobre essen-
cialmente a segunda metade do século XVIII, ou seja, as Luzes:
talvez uma “pobre filosofia”, mas sem dúvida, “a filosofia de
uma grande época” (HP: 301). Lévy-Bruhl parece aceitar o título
de “popularizadores”, atribuído aos filósofos iluministas pelos
alemães na medida em que os primeiros estariam mais interes-
sados em “difundir suas doutrinas entre o público do que em
testá-las rigorosamente” (HP: 271). Acredita, contudo, que
entre a enorme quantidade de pensadores que prolifera neste
período seria possível encontrar pelo menos um que mereceria
de todo o direito, qualquer que seja o sentido atribuído ao
termo, o nome de filósofo. Trata-se de Condillac, “o filósofo dos
filósofos” (idem), aquele que teria reunido de forma coerente
64 Razão e Diferença

e sistemática as idéias espalhadas entre os vários pensadores do


Iluminismo. Quais seriam essas idéias, que tanto fascínio
exerceram sobre Lévy-Bruhl4? Em primeiro lugar, uma radicalização
do projeto cartesiano em duas direções diferentes: estendendo
a dúvida e a crítica de Descartes às regiões da política, da
religião e da moral e, simultaneamente, tentando eliminar os
resíduos metafísicos ainda presentes no pensamento cartesia-
no. Voltaire oporá, nesse sentido, as “invenções metafísicas” de
Descartes ao empirismo e ao método experimental do “sábio
Locke”; Condillac irá ainda mais longe, criticando “em nome do
próprio empirismo (…) o empirismo de Locke” (HP: 273) —
crítica à timidez deste autor, que não o teria deixado levar
suficientemente longe a análise das bases sensíveis do conhe-
cimento (HP: 273-4). A segunda idéia típica do Iluminismo,
decorrente desse racionalismo intransigente ainda que empiris-
ta, consiste no princípio de que é preciso “tratar como hábitos
adquiridos as faculdades que parecem mais inerentes a nossa
natureza” (HP: 279). Este princípio engendra por sua vez um
esquema que Lévy-Bruhl considera uma antecipação do asso-
ciacionismo, primeira corrente de psicologia científica: a dedu-
ção das faculdades superiores (o “juízo”) a partir da pura
“sensação” através de uma série de etapas que incluem a
“idéia”, a “atenção”, a “memória” e a “comparação” (HP: 274;
287). O quarto princípio iluminista que Condillac teria sistema-
tizado e que deriva da postura crítica em relação à tradição, é
o tema da “volta à natureza” (HP: 281), com a noção daí
derivada de que o fundamento do erro e da injustiça só pode
residir no afastamento face a esse estado original do homem
(HP: 276). É isso que faz com que as descrições puramente
analíticas do processo de conhecimento e da natureza humana
sejam imediatamente confundidas com sua gênese real (HP:
283-5). Em sexto e último lugar, o postulado de uma perfectibilidade
infinita do homem, com seu corolário, o de um progresso
inteiramente aberto para o futuro e movido exclusivamente
pela razão humana. Esses temas, enfim, ainda viriam a ser
aprofundados por Condorcet, o que não deve fazer esquecer
que já se encontravam bem presentes na filosofia de Condillac,
inclusive com sua conseqüência necessária: a importância de
uma pedagogia racional que realmente sirva para o aperfeiço-
amento dos homens.
Ao lado de Condillac, figura emblemática do Iluminismo,
alinham-se ainda, pensadores como Voltaire, os Enciclopedis-
Clássico e Romântico 65

tas, Rousseau, Buffon, Condorcet e os Ideólogos — os últimos,


embora tenham escrito apenas no período posterior à Revolu-
ção, sendo considerados como diretamente tributários do
movimento iluminista. O balanço dessa filosofia é feito com
indisfarçável simpatia. Ela teria sido, acima de tudo, uma “arma
ofensiva”, embora “a guerra por ela travada esteja longe de
haver terminado” (HP: 301). Essa simpatia não impede, entre-
tanto, que Lévy-Bruhl detecte em diversas passagens o que
considera os pontos fracos deste pensamento: recusa excessi-
vamente radical da tradição, efetuada sem ao menos tentar
compreendê-la e avaliar sua função e importância; concepção
puramente abstrata de uma humanidade sempre e em toda a
parte imutável e idêntica a si mesma; apriorismo excessivo nas
tentativas de reconstrução histórica; otimismo exagerado quan-
to à infinita perfectibilidade da natureza humana; ausência de
um lugar para as paixões e sentimentos, derivada do princípio,
igualmente excessivo, de que tudo é adquirido e de que o
homem originalmente não é mais, para usar uma velha metá-
fora, que uma folha de papel em branco onde tudo ainda está
por ser escrito. O saldo, de qualquer forma, é positivo,
considerando-se o feito mais importante do Iluminismo o fato
de ter anexado à razão domínios anteriormente a ela subtraí-
dos, a política, a moral e a religião — a vida social, enfim.
Além desse saldo, Lévy-Bruhl crê poder detectar no
interior do próprio pensamento iluminista algumas correções
de seus próprios exageros. Rousseau, por exemplo, apesar de
compartilhar de quase todos os postulados de seu século, já
teria se dado conta de que a razão humana é limitada e que o
sentimento interno e espontâneo é essencial para contrabalan-
çar essa insuficiência do lado puramente racional do homem
(HP: 268). Teria também percebido o perigo que representa a
tentativa de transformar de um só golpe, radical e subitamente,
toda a tradição, o que explica que tenha considerado as
questões éticas e morais como as mais importantes (idem). Com
Destutt de Tracy, Rousseau escaparia dessa marca que Descar-
tes teria deixado em toda a filosofia francesa, o desinteresse
teórico pela moral 5. Ao lado de Cabanis, seu interesse pelas
paixões e pelos sentimentos seria quase uma exceção entre os
iluministas, que tanto privilegiavam os caracteres adquiridos
(HP: 309). O próprio Cabanis teria simplesmente levado o
interesse de Rousseau ainda mais longe, ao admitir a existência
de “instintos inatos” que tornariam possível a própria sensibi-
66 Razão e Diferença

lidade (idem), tendo chegado mesmo a sustentar que, longe de


ser inteiramente modelado pelas sensações exteriores, “o eu
(…) pré-formado pelos instintos e por disposições específicas
(…) constrói para si um mundo externo com os elementos da
realidade que o interessam” (idem). A principal restrição ao
movimento das Luzes como um todo diz respeito, portanto, a
seu excessivo impulso voluntarista e iconoclasta. Apesar disso,
tratar-se-ia de um momento cuja importância dificilmente
poderia ser exagerada: “embora uma reação perspicaz tenha
mostrado as fraquezas, inconsistências e lapsos dessa filosofia,
pode-se muito bem acreditar que sua virtude ainda não se
exauriu, e que lançando mais fundo suas bases ela pode ainda
levantar-se outra vez com força renovada” (HP: 235). Ora, é
justamente essa “reação perspicaz” que se aproveitou dos
pontos mais fracos do Iluminismo para tentar rejeitá-lo em
bloco — quando não para recusar a filosofia como um todo —
que constitui o objeto da etapa seguinte da viagem de Lévy-
Bruhl pela filosofia francesa moderna.

A
É quase um lugar-comum relacionar o pensamento fran-
cês, o que se manifesta na filosofia certamente mas também o
que deveria constituir as ciências sociais, com o fenômeno
revolucionário. Lévy-Bruhl não é uma exceção e, ao sustentar
desde o início de seu livro que um trabalho de história das
idéias não pode jamais perder de vista a conexão entre o
pensamento e a vida social, é quase natural que no caso
específico da filosofia francesa seja com a Revolução que
tentará estabelecer um laço. “O pensamento filosófico na
França”, escreve, “sustenta-se quase todo, embora indire-
tamente, sobre a Revolução Francesa. No século XVIII ele a está
preparando e anunciando; no XIX está tentando em parte
contê-la e em parte deduzir suas conseqüências” (HP: VII). O
destino algo paradoxal de Descartes serve bem para ilustrar
este ponto. Tendo sempre se recusado a levar sua crítica e seu
método para o domínio da política, acabou sendo, não obstan-
te, homenageado pela Assembléia Constituinte revolucionária,
o que provaria “que o espírito da Revolução estava consciente
de uma de suas principais fontes” (HP: 14). Se seguirmos esse
Clássico e Romântico 67

raciocínio até o fim, fica evidente que após o Terror e a Contra-


Revolução uma filosofia tão intimamente associada ao fenôme-
no revolucionário só possa ter sido alvo de uma série de
ataques com o objetivo de refutação radical, ataques e refuta-
ção efetuados em nome dos ideais que ela pretendia combater.
Esse trabalho de crítica ao pensamento iluminista será localiza-
do na obra dos pensadores denominados, de acordo com o
costume, tradicionalistas (Bonald e De Maistre), bem como,
ainda que sobre outro plano, na dos espiritualistas, como
Maine de Biran, e naquela dos ecléticos, como Cousin e seus
discípulos.
De acordo com Lévy-Bruhl, os primeiros só poderiam ser
chamados de “filósofos” num sentido bem limitado, já que se
é verdade que se esforçam por combater uma doutrina que
realmente faz parte do campo da filosofia, por outro lado
supõem possuir “a verdade desde o início, antes de qualquer
discussão” — o que representa um contra-senso filosófico na
medida em que contraria a própria razão de ser da filosofia
enquanto saber (HP: 311). Eles se dedicarão, em sua crítica do
Iluminismo, a atacar sobretudo o desprezo que este manifesta-
ria pela transcendência divina em relação ao homem e pela
superioridade da sociedade em relação ao indivíduo, sendo
que esta superioridade não passaria de uma espécie de corpo-
rificação daquela transcendência. O individualismo voluntaris-
ta das Luzes estaria na raiz de todos os males que a Revolução
teria trazido para a sociedade francesa e à tríade “natureza-
indivíduo-progresso” que havia dominado o pensamento do
século XVIII, Bonald e De Maistre oporão o esquema “religião-
sociedade-tradição” (HP: 312) 6. O segundo irá ainda mais
longe, ao apontar uma contradição intrínseca ao pensamento
iluminista, que defendia abertamente a necessidade de um
método experimental, contentando-se na prática com constru-
ções puramente abstratas estabelecidas a priori e independen-
tes de qualquer observação empírica efetiva (HP: 314). Para ele,
seria absolutamente inútil buscar os fundamentos humanos da
vida social — e aqui De Maistre apresenta sua versão do
ocasionalismo de Malebranche — uma vez que as causas
secundárias pouco importariam, apenas Deus podendo ser
considerado a causa principal (HP: 318-319). Apesar desse
quase-obscurantismo, Lévy-Bruhl parece reconhecer uma im-
portante influência do pensamento tradicionalista no desenvol-
vimento da filosofia francesa. Ao apontar os erros e os exageros
68 Razão e Diferença

dos iluministas, é a síntese filosófica futura que autores como


De Maistre, Bonald, Ballanche e Lamennais estariam anunciando.
O espiritualismo de Biran, por sua vez, escolherá um
outro alvo de crítica entre os princípios iluministas. Trata-se de
recusar radicalmente um empirismo que negaria a existência de
qualquer função mental humana que não tivesse sua origem na
experiência e na pura sensibilidade, um materialismo que
desprezaria a transcendência e a superioridade do espírito.
Haveria no homem, isso sim, algo que o distinguiria das demais
criaturas, uma “vida afetiva” que escaparia à vontade e ao
conhecimento e que não poderia ser determinada pelas sensa-
ções (HP: 323-5). Para Lévy-Bruhl, que decididamente não está
entre os que chegaram a considerar Maine de Biran “o Kant
francês”, seu pensamento é mais uma psicologia que uma
“crítica da razão” e os “princípios gerais do pensamento” que
tematiza estariam muito longe das categorias kantianas. Seu
parentesco seria meramente de aparência, restringindo-se ao
fato de que ambas as noções são pensadas como independen-
tes da experiência sensível. Para Biran, contudo, trata-se de
afirmar o caráter primeiro da vida espiritual, coisa com a qual
Kant não parece muito preocupado (HP: 328-30).
Do ecletismo de Cousin, terceira grande reação ao Ilumi-
nismo, já se falou acima. Basta talvez acrescentar que seu
ataque é um pouco mais sutil, na medida em que pretende
incorporar o método experimental defendido pelos iluministas,
utilizando-o para criticá-los. Cousin quer, como Biran, afirmar
a existência de funções mentais independentes da experiência
sensível, embora não se contente com uma perspectiva psico-
lógica, tentando reconduzir o pensamento francês para a
especulação metafísica (HP: 334-6). A razão, mais que uma
faculdade, seria um absoluto que só poderia existir enquanto
manifestação de Deus, de modo que um “instinto racional”
deveria ser oposto à razão dos iluministas. Lévy-Bruhl pretende
discernir aqui um parentesco entre o ecletismo e o Romantismo
alemão, ele também uma violenta reação “contra o espírito
francês do século XVIII. Contra a fria e vítrea luz da análise
propõe o exuberante chiaro-oscuro da espontaneidade natural;
contra a obediência às regras da estética, a liberdade sem
obstáculos do gênio criador; contra os processos conscientes
da reflexão, o imperceptível movimento da natureza viva” (HP:
340). Esboça-se assim em grandes traços o que viria a ser uma
Clássico e Romântico 69

espécie de negativo do racionalismo e que acabaria ocupando


na obra de Lévy-Bruhl um lugar de fundamental importância.
Aqui, ao contrário do que ocorre com o Iluminismo, o
balanço é antes de tudo negativo, mesmo levando em conta os
vários aspectos positivos que esta reação pôde ter. Ela signifi-
caria contudo, acima de seu possível valor, um retrocesso do
pensamento francês, e Lévy-Bruhl não se cansa de lembrar as
influências estrangeiras que estariam atrás desse recuo. Seria
preciso aguardar mais um pouco para que um verdadeiro
esforço de síntese viesse a se manifestar, tentando conjugar
num sistema superior a herança iluminista e as críticas reacio-
nárias. Isso ocorrerá ainda na primeira metade do século XIX,
a idade dos “reformadores sociais”. Conscientes dos impasses
a que o exagero revolucionário havia conduzido, estes tratarão
de propor uma ordem social justa e racional que, ao mesmo
tempo, não despreze os elementos da tradição e da natureza
humana que o Iluminismo erroneamente teria ignorado, igno-
rância que estaria na raiz de seus insucessos e da violenta
reação que acabou por provocar.

A
A época desses reformadores sociais teria sido anunciada
desde o final do século XVIII, quando Saint-Simon e Fourier
teriam buscado conjugar o princípio iluminista do progresso
com a necessidade de uma reorganização mental que orientas-
se a reforma social. Ela se prolongaria até o fim do século XIX
quando Renan e Taine se esforçarão em encontrar a racionali-
dade das condutas humanas mais fundamentais e em devolver
à diversidade social o valor que o Iluminismo havia retirado ao
se consagrar inteiramente ao princípio abstrato de unidade do
gênero humano. Mas é apenas com Augusto Comte que a
defesa das necessidades de uma reforma da sociedade e do
próprio homem encontrará seu apogeu. Praticamente todo o
capítulo XIII da História da Filosofia Moderna na França é a ele
dedicado e a análise prosseguirá um ano mais tarde com a
publicação de um livro inteiramente destinado a apresentar “a
filosofia de Augusto Comte”. De Descartes a Condillac e deste
a Comte, o ciclo da filosofia francesa moderna se encerra.
Em 1899, a posição de Lévy-Bruhl é clara: Comte seria o
verdadeiro herdeiro de Descartes, dos iluministas, dos ideólo-
70 Razão e Diferença

gos e mesmo dos tradicionalistas — o que não quer dizer que


tenha simplesmente adicionado esses sistemas tão diferentes. A
característica central do positivismo seria antes a adoção de um
ponto de vista superior capaz de integrar e ultrapassar as
influências recebidas e explicitamente reconhecidas pelo pró-
prio Comte (HP: 394-6). No livro dedicado exclusivamente ao
positivismo, a lista das influências é ampliada, com o acréscimo
de Montesquieu, Hume, Fontenelle, os naturalistas e Saint-
Simon, mas o pressuposto de que Comte teria efetuado uma
síntese superior continua exatamente o mesmo (PC: 6-9). A
verdadeira novidade por ele introduzida derivaria de um
postulado central de sua própria filosofia, entendida em senti-
do genérico como visão de mundo global. Ao contrário dos
iluministas, para quem o progresso só poderia ser descontínuo,
efetuando-se através de rupturas radicais com o passado e a
tradição, o positivismo sustentará que nossos antecessores são
na verdade precursores, não simples adversários (HP: 383) e
que, portanto, a “história se torna ‘a ciência sagrada’ do século
XIX e a condição indispensável para todo conhecimento moral
positivo” (HP: 384). O fundamento epistemológico de tal
concepção é o reconhecimento da “relatividade do conheci-
mento humano”: “deixando de ser absoluta”, escreveu o pró-
prio Comte, “a filosofia positiva deixa de ser crítica de todo o
passado” (HP: 383). Para Lévy-Bruhl, esta é a intuição suprema
do autor: “ele percebeu claramente que, sob a influência de
uma filosofia que renunciou à busca do absoluto, o objetivo de
todo esforço moral, político, social e religioso deveria ser
inteiramente transformado” (HP: 395).
“Relatividade”, entretanto, significa coisas muito diferen-
tes como teremos a oportunidade de observar. Uma delas é que
o conhecimento jamais se manifesta no vazio ou a partir do
nada, dependendo estritamente das condições históricas, soci-
ais, pessoais e mesmo biológicas em que é produzido. Nada a
estranhar, portanto, que o livro sobre o positivismo inicie com
uma tentativa de situar esta filosofia em seu contexto. O tema
é rigorosamente idêntico ao que abre o trabalho sobre a
filosofia francesa em geral, de tal modo que não temos mais
nenhuma dificuldade (se é que ela ainda existia) em enxergar
neste livro uma inspiração nitidamente positivista. Vimos que
consiste no relato de uma longa marcha progressiva e ascen-
dente que, partindo da ruptura cartesiana com a tradição
medieval, vai desembocar na síntese elaborada pelo próprio
Clássico e Romântico 71

Comte, passando pelo empreendimento crucial, embora pura-


mente destrutivo, dos iluministas e pela crítica necessária,
embora reacionária, dos tradicionalistas. Toda filosofia relaci-
ona-se com o meio social em que é engendrada e a filosofia
francesa em particular só poderia estar às voltas com a questão
da Revolução (PC: 1-3). Lévy-Bruhl volta aqui a opor os
trabalhos meramente “eruditos” aos que pretendem traçar a
“história” de uma ou de várias doutrinas — explicitando desta
vez que os termos são justamente de Comte. Ele esclarece logo
que deseja adotar a segunda posição, situando o sistema
analisado na “evolução geral da filosofia” (PC: 18), a fim de
evitar as ilusões que o autor costuma sempre nutrir em relação
a seu próprio pensamento e poder avaliar o que ele realmente
deve a seus antecessores bem como as marcas que teria
deixado em seu tempo e no futuro7.
É a Revolução Francesa, afirma Comte — e Lévy-Bruhl o
segue inteiramente neste ponto — que teria tornado possível a
teoria do progresso, a sociologia que visa formulá-la e, por via
de conseqüência, a própria filosofia positiva. A questão que a
todos se colocava era a do “regime que vai se estabelecer
depois da Revolução” (PC: 2), a de superar, nos termos de Saint-
Simon, o “período crítico” que acabava para instaurar um
“período orgânico” (PC: 2-3). Isso é tão verdadeiro para Comte
quanto para De Maistre, Cousin ou Fourier. A originalidade do
primeiro — é isso que faria dele o filósofo da reconstrução por
excelência — é que, ao contrário dos demais, teria sabido evitar
o ataque direto aos problemas sociais antes que uma série de
questões teóricas cruciais tivessem sido analisadas e resolvidas
(PC: 4-5). Essa originalidade repousa em última instância no
princípio fundamental de que as instituições dependem dos
costumes que, por seu turno, dependem das crenças, o que faz
com que a reforma das primeiras exija inicialmente o estabele-
cimento de um sistema geral de opiniões que receba a aceitação
geral dos membros da sociedade. Ora, Comte acredita que a
única realidade que teria escapado incólume do esforço crítico
do Iluminismo é a ciência e que, conseqüentemente, este seria
o único lugar onde crenças capazes de se impor unanimemente
poderiam ser encontradas (PC: 5-6). Para que pudesse realmen-
te cumprir essa função essencial seria preciso preliminarmente
fazer com que a ciência abandonasse o particularismo em que
costuma se encerrar, tratando de convertê-la em um “sistema
geral de opiniões”. Já que a própria ciência não teria consegui-
72 Razão e Diferença

do se universalizar, constituindo-se assim em filosofia, Comte


acredita que o que se faz necessário é construir uma filosofia
verdadeiramente científica (PC: 401-2).
A exposição da obra de Comte se divide em quatro partes
que tentam acompanhar a articulação interna de seu pensa-
mento, que Lévy-Bruhl considera absolutamente sistemático. A
primeira parte busca descrever a filosofia positivista, detectan-
do os motivos que teriam levado a seu desenvolvimento; em
seguida, apresenta-se cada uma das ciências que compõem o
sistema hierárquico comtiano; a terceira parte explora a socio-
logia e a filosofia da história; a última expõe a moral positivista,
destino de todo o sistema. O fundamento geral de toda essa
intrincada e enorme obra residiria sobretudo numa constatação
que Comte crê irrefutável e que já havia sido determinada como
a motivação geral de todos os pensadores franceses pós-
revolucionários: a “anarquia” que teria tomado conta da soci-
edade ocidental. Anarquia social e política, Comte admite, mas
que, de acordo com seu princípio de que as instituições
repousam sobre os costumes e as crenças, só poderia ser
conseqüência de uma anarquia de ordem intelectual. Mais do
que isso, a “desordem moral” e a “desordem intelectual” (PC:
28) ocidentais não consistiriam um estado natural do mundo
humano e social, cujo modo normal de existência tenderia
sempre para uma ordem estável: a anarquia seria acima de tudo
uma “doença ocidental” (PC: 30), derivada da violação de um
princípio inerente à natureza do pensamento humano, que
exigiria sempre uma “perfeita coerência lógica” (idem), não
podendo suportar por muito tempo a “contradição” (PC: 31).
Isso significa que a divisão que se pode observar entre os
homens não é mais que o resultado de uma divisão interior a
cada homem ou de uma contradição entre modos de pensar
absolutamente antagônicos, que, por razões históricas, convi-
viriam lado a lado desde o século XVIII, sem jamais poder
chegar a uma conciliação ou mesmo a uma acomodação. Um
desses modos de pensar seria o que se manifesta na atividade
científica, pensamento que se sabe “relativo e positivo” (PC:
32), tendo sabido renunciar à busca do absoluto e contentar-se
com um esforço para estabelecer as leis dos fenômenos (PC: 31-
2). O problema é que este modo de pensar — que Comte
evidentemente considera superior — teria permanecido “espe-
cial e fragmentário, sempre preso à investigação de um grupo
mais ou menos restrito de fenômenos (…) jamais ousou uma
Clássico e Romântico 73

síntese de todo o real que nos é dado” (PC: 33). Essa deficiência
do pensamento positivo teria permitido que outro modo de
pensar, o que procede da antiga metafísica e das filosofias do
passado, assumisse a tarefa de dar conta do universal. O
problema é que, ao buscar as causas e essências últimas do
universo, ao se dedicar a descobrir um absoluto indeterminado,
esse tipo de pensamento entrará em choque frontal com a
ciência e o modo de pensar que dela deriva. Choque que
“Comte discerne em si mesmo, como em seus contemporâneos”
(PC: 31) e que seria o responsável por todas as formas de
desordem e anarquia que estariam assolando o mundo ociden-
tal. Ora, como é absolutamente impossível conciliar esses dois
modos de pensar, e como é impossível, devido aos avanços da
ciência, universalizar o pensamento metafísico, Comte se vê
obrigado a concluir que a única solução para o que considera
uma situação intolerável é “restabelecer a unidade tornando o
método positivo universal” (PC: 34). Universalizar este método
significa antes de tudo estendê-lo aos domínios que, por não
terem sido ainda incorporados pela ciência, teriam permaneci-
do abertos para as especulações puramente filosóficas e meta-
físicas: os “fenômenos morais e sociais” (PC: 38). Fundar a
“física social” ou “sociologia” é, portanto, o único modo de
reencontrar “a perfeita coerência lógica” que o espírito humano
exigiria, sem a qual nenhuma ordem política, moral e social
seria possível (idem).
O modo de pensar detectado na atividade científica
corresponde, sabe-se, ao que Comte denomina “estado positi-
vo”; a forma de pensamento atribuída à filosofia antiga ao
“estado teológico-metafísico”. Estados ou estágios, na medida
em que serão imediatamente desdobrados como momentos
distintos da marcha do espírito humano. Isso permite que Lévy-
Bruhl considere a “lei dos três estados” o fundamento de toda
a filosofia positivista. Essa opinião não é nova, já que desde
1884 — em A Idéia de Responsabilidade, livro que, como
veremos, está bem longe de mostrar qualquer simpatia pelo
positivismo — sustentava que “a tese fundamental do positivis-
mo, seu postulado supremo, é a teoria dos três períodos” (IR:
237). Esta posição acompanhará ainda Lévy-Bruhl depois que
deixar de se dedicar à história da filosofia, bastando recordar
o testemunho de G. Monod (1957: 428) acerca da importância
concedida a este ponto no curso por ele acompanhado,
ministrado em uma época em que As Funções Mentais… já
74 Razão e Diferença

estavam sendo escritas. E mesmo em 1935, numa conferência


proferida na Universidade de Praga sobre “o que está vivo, o
que está morto na filosofia de Augusto Comte”, a lei dos três
estados se enquadra na primeira categoria. Enfim, talvez valha
a pena mencionar que Gusdorf (1953: 18-9), ao avaliar o
conjunto da obra já etnológica de Lévy-Bruhl, faz questão de
observar que é justamente essa lei que estaria na base de todo
esse trabalho.
Os estados teológico (ou “fictício”), metafísico (ou “abs-
trato”) e científico (ou “positivo”) serão inicialmente encarados
por Comte como simples fases de desenvolvimento dos vários
ramos do conhecimento. Mais tarde, estenderá essas noções
para a evolução do espírito humano e da própria humanidade
como um todo (PC: 40-1). É preciso observar com cuidado que,
nesse sentido genérico, os termos “teologia” e “metafísica” não
são tomados em seu sentido usual, como formas de reflexão
acabadas ou sistemas intelectuais constituídos e organizados,
mas como “modos de pensar”. Desse ponto de vista, o primeiro
corresponderia a “uma interpretação dos fenômenos da na-
tureza por meio de causas sobrenaturais e arbitrárias” (PC: 41),
representando, para o homem, uma “tendência espontânea que
o faz primeiramente explicar os fenômenos naturais através de
vontades, não de leis” (PC: 41-2). “Teológico” é, portanto,
sinônimo de “fictício”, “imaginário”, “mitológico”, “antropo-
cêntrico” (idem), termos que orientarão por muito tempo as
pesquisas de Lévy-Bruhl. O pensamento metafísico, por sua
vez, tentaria explicar os fenômenos não mais por meio de
“vontades”, mas através do recurso a “essências” experimental-
mente impossíveis de serem determinadas ou mesmo encontra-
das: “metafísico ou abstrato, diz Comte” (PC: 42). Nesse
sentido, a lei dos três estados representa “a lei geral de
evolução do pensamento” (PC: 43), não dizendo respeito
especificamente à evolução religiosa ou exclusivamente à
evolução social da humanidade. No entanto, é justamente em
torno de tal evolução, concebida como puramente intelectual,
que “as outras séries de fenômenos sociais se dispõem. A lei
que a exprime é assim a lei mais ‘fundamental’, a mais ‘geral’”
(PC: 43-44). Para Comte, duas provas poderiam ser ministradas
como comprovação dessa lei. Uma, de ordem estritamente
histórica, mostraria a marcha do progresso do conhecimento
humano em seus diferentes ramos, desde sua fase teológica até
o estado positivo; outra, a fundamental, tentaria deduzir a lei
Clássico e Romântico 75

dos três estados da própria natureza humana (PC: 44). É esta,


por razões que só se manifestarão claramente mais tarde, que
interessa especialmente a Lévy-Bruhl.
Dessa perspectiva (que poderíamos denominar de pro-
priamente antropológica, no sentido estrito da palavra), o
modo de pensar teológico seria obrigatoriamente primeiro
porque é o único que poderia surgir de forma espontânea,
projeção antropocêntrica de um modelo humano sobre a
natureza. A curiosidade é, para Comte, uma tendência extrema-
mente fraca da natureza humana, sendo apenas a pressão das
circunstâncias que poderia ter arrancado o homem de seu
“torpor intelectual primitivo” (PC: 67) através do pensamento
teológico que, caráter “fictício” posto à parte, é o único meio
que poderia permitir a observação dos fenômenos naturais.
Comte, anti-empirista radical, não admite que essa observação
pudesse sequer ter começado se não estivesse desde o início
orientada por algum tipo de hipótese prévia (PC: 45-6). O modo
de pensar teológico seria mesmo tão natural e espontâneo que
“ainda hoje, se esquecermos por um instante a disciplina
positiva, se ousarmos buscar o modo de produção de algum
fenômeno, logo imaginaremos uma atividade mais ou menos
semelhante à nossa” (PC: 45). A partir desse momento, que se
inicia com o despertar da inteligência, começaria realmente a
“dialética da história intelectual da humanidade” (PC: 48). Mal
instaurado, o pensamento teológico que tornou possível a
observação empírica da natureza começa a ser refutado pelos
próprios resultados da observação por ele possibilitada. O
motor dessa “dialética” repousa igualmente, tal qual seu ponto
de partida, na estrutura da natureza humana, que “sempre
busca fazer com que suas concepções concordem com suas
observações” (HP: 382). Isso significa dizer que o “positivo” já
está contido, como “germe elementar”, no “teológico” (PC: 49),
que toda evolução não pode ser outra coisa que o desenvolvi-
mento deste germe, que não seria contudo simples e linear já
que retrocessos e desvios podem ocorrer. O próprio estado
metafísico, encarado como um todo, é visto por Comte como
uma tentativa de compromisso necessariamente desarmônico
entre um estado teológico já decadente e um pensamento
positivo apenas emergente. Esse diagnóstico indica a tarefa
intelectual, moral e política fundamental: eliminar os resíduos
teológico-metafísicos do pensamento para que o modo de
pensar positivo se instaure definitivamente como universal e
76 Razão e Diferença

dominante (PC: 49-51). Este é o trabalho ao qual Comte teria


dedicado toda a sua vida. Em suma, “no pensamento de Comte,
a lei dos três estados poderia ser denominada tanto psicológica
quanto histórica” (PC: 52), o que não significa que seja
simplesmente uma lei da psicologia individual, embora cada
indivíduo sinta os três estados fundamentais coexistirem em
seu interior. Isso não passaria, contudo, de um epifenômeno e
o que Comte realmente deseja estabelecer é a lei de desenvol-
vimento intelectual da humanidade, único objeto verdadeiro
para o positivismo, além de único verdadeiro sujeito (PC: 52-
3). Psicologia e sociologia não podem, portanto, ser distingui-
das uma vez que “o estudo das funções mentais próprias ao
homem só se torna positivo se for efetuado do ponto de vista
histórico e sociológico” (PC: 54).
Se a universalização do saber científico ou positivo é a
tarefa teórica e política que Comte se propôs, é claro também
que para cumpri-la sentiu necessidade de desenvolver uma
concepção da natureza, da organização interna e da história das
ciências, tendo em vista promover uma “depuração sistemática”
dos resíduos teológico-metafísicos ainda presentes no coração
da própria pesquisa científica (PC: 55). Para ele, as duas
armadilhas que o espírito científico deve saber evitar seriam
constituídas pelo “empirismo” e pelo “misticismo” (PC: 74). O
primeiro corresponderia a uma forma de “conhecimento que
não ultrapassa a constatação pura e simples do fato” (idem); o
segundo significaria “o recurso a explicações não verificáveis
e a hipóteses transcendentes” (idem). A ciência deveria, ao
contrário, ater-se — contra o misticismo — apenas aos “fenô-
menos”, não perdendo tempo com “as substâncias, os fins e
mesmo as causas” (idem) e tratando de desvendar — contra o
empirismo — suas “leis”, sem se deixar iludir pelos esterilidade
dos fatos puros (PC: 75). Assim, de modo oposto a Platão, só
o mundo sensível dos fenômenos pode ser o objeto da
atividade científica, o que significa uma verdadeira limitação do
campo de ação da ciência. É exatamente essa limitação que
Comte considera, desta vez em oposição a Kant, responsável
pelo caráter relativo do conhecimento humano. A relatividade
é induzida empiricamente — não deduzida transcendentalmen-
te — do fato de que nenhum conhecimento verdadeiramente
científico jamais se preocupou em atingir a essência das coisas,
o “absoluto” (PC: 79-80), e que, conseqüentemente, em cada
Clássico e Romântico 77

época ou lugar a verdade pode variar, ainda que num sentido


evolutivo na direção de uma maior adequação à realidade (PC: 87) 8.
De qualquer forma, por mais “relativista” que o positivis-
mo pretenda ser, algo de “absoluto” subsiste explicitamente:
“todos os fenômenos estão submetidos a leis. Este é o princípio
supremo, o ‘dogma fundamental’ da ciência e da filosofia
positivas” (PC: 94). Em outros termos, o limite do relativismo
positivista é o princípio de um universo rigidamente regido por
leis estáveis das quais nenhum fenômeno poderia escapar. Isso
não deve ser entendido, contudo, nem como absolutismo total
nem como fatalismo, já que a própria realização dos fenômenos
pode depender de uma intervenção consciente, as “leis”, no
sentido positivista, não sendo mais que uma “constância na
variedade” (PC: 100-1). Toda a análise de Comte repousaria na
determinação das “condições de existência” dos fenômenos —
a interdependência de suas partes, seu “consenso” — e da
sucessão dessas formas de estabilidade: “estática” e “dinâmica”
seriam os dois aspectos necessários de todo trabalho positivista
(PC: 102-7). A natureza do conhecimento científico consiste,
portanto em seu caráter positivo; seu processo de desenvolvi-
mento na lei dos três estados. Resta a Comte, depois de
cumprida essa primeira tarefa essencial, estabelecer uma clas-
sificação racional dos diversos ramos do saber científico, que
se apóia no que Lévy-Bruhl denomina “lógica positiva”, lógica
que pretende ultrapassar tanto a lógica puramente formal
quanto a lógica aplicada tradicional (PC: 117). Concebendo a
primeira como inteiramente apriorística e a segunda como
alheia demais aos procedimentos científicos efetivos, Comte
crê necessário estabelecer uma lógica que consista simples-
mente na reunião, sistematização e abstração das contribuições
concretas desenvolvidas por cada ciência positiva em particular
(PC: 117-20). Nesse sentido, as matemáticas são pensadas como
tendo introduzido o próprio ato de raciocinar, a astronomia
como tendo desenvolvido a observação, a física como sendo a
primeira ciência a praticar a experimentação, a química como
tendo criado a “nomenclatura racional”, a biologia como
propondo o método comparativo e, finalmente, a sociologia
como tendo introduzido o caráter histórico dos fenômenos (PC:
123-31). A lógica positiva, encarada em si mesma, assumiria
desse modo o aspecto de uma ciência empírica, induzindo suas
leis das atividades científicas concretas e classificando as
78 Razão e Diferença

ciências a partir de sua generalidade decrescente e de sua


complexidade crescente, das matemáticas à sociologia.
Curiosa na classificação de Comte é a ausência da psico-
logia no sistema das ciências. Essa ausência se explica na
medida em que as “funções mentais”, objeto dessa disciplina,
são ora reduzidas aos “órgãos” que as engendrariam, ora ao
produto concreto de sua atividade: a biologia de um lado, a
sociologia de outro, absorvem assim o objeto da psicologia
tradicional (PC: 223). Uma das originalidades da leitura que
Lévy-Bruhl faz de Comte consiste justamente numa posição um
pouco diferente, que sustenta que ao menos de fato, senão de
direito, a psicologia faz necessariamente parte do sistema
positivista (HP: 373). Para Lévy-Bruhl, a ausência do termo
corresponderia apenas a uma intenção de afastamento em
relação à psicologia tradicional, considerada introspectiva e,
conseqüentemente, “metafísica” (PC: 219-20). Ora, o tema das
“funções mentais” é evidentemente fundamental quando se
trata de compreender o trabalho futuro de Lévy-Bruhl. De
acordo com a interpretação por ele proposta, a verdadeira
inovação introduzida por Comte na abordagem desse objeto
consistiria em uma série de transformações que seu estudo
deveria sofrer a fim de ascender a um verdadeiro estatuto
científico. Para isso, seria preciso abandonar:
1. a “observação subjetiva dos fenômenos da alma” (HP: 373),
concentrando-se em um estudo objetivo capaz de estabelecer
as leis de desenvolvimento do pensamento humano;
2. o privilégio tradicionalmente concedido às funções pura-
mente intelectuais, reconhecendo a maior importância das
faculdades afetivas (PC: 224-5). Comte chegará mesmo a supor
a coexistência de três tipos de lógica no interior do homem:
uma “lógica dos sentimentos” (“a arte de facilitar a combinação
das noções de acordo com a conexão das emoções correspon-
dentes” — PC: 262); uma “lógica das imagens” (intermediária)
e uma “lógica dos signos”, a única à qual os psicólogos e lógicos
tradicionais teriam concedido a importância que, contudo,
todas possuem. Equívoco particularmente grave, na medida em
que é a primeira forma de lógica que sustenta as demais (PC: 262-3);
3. a noção de um eu unificado e absoluto, resíduo metafísico
que os ecléticos teriam erroneamente se encarregado de difun-
dir (PC: 226).
4. o empirismo iluminista, reconhecendo a existência de uma
natureza humana, que “cada indivíduo vem ao mundo com
Clássico e Romântico 79

tendências, predisposições e faculdades inatas” (PC: 227-31);


5. o sensualismo abstrato dos ideólogos, sustentando o caráter
ativo do espírito, que na verdade transforma as sensações
recebidas do exterior de acordo com sua natureza íntima e com
as sensações anteriores, o que significa dizer que o homem
molda de alguma forma o meio em que vive (PC: 238-9).
Tudo isso só pode significar que situada entre a biologia
(onde se enraízam as funções que estuda) e a sociologia (único
meio de apreender essas funções objetiva e concretamente), a
psicologia assume o caráter de uma verdadeira antropologia,
no sentido do estudo da natureza humana a partir de suas
manifestações sociais visando determinar seus elementos inva-
riantes (PC: 240-3): “pode-se mesmo dizer (…) que a sociologia
é verdadeiramente uma psicologia” (PC: 284). A partir dessa
concepção, é natural que a sociologia de Comte inicie justa-
mente com uma teoria sobre a “passagem da animalidade para
a humanidade” (PC: 245), teoria que sustentará não apenas que
“a constituição fundamental do homem é invariável” (PC: 247-
8), como também que a distância que separa o homem do
animal não passa de uma diferença de grau (PC: 246). A
transição para a humanidade, tanto quanto a evolução mental
do homem, consistiria simplesmente na progressiva manifesta-
ção de virtualidades desde sempre presentes: “nada de absolu-
tamente novo aparece” (PC: 248) e a evolução não pode
significar transformação. Toda a sociologia comtiana estaria
baseada em um “método histórico”, fundamentado no postula-
do positivista de que “a natureza do homem evolui sem se
transformar” (PC: 284).
Essa sociologia só pode pretender, assim, a produção de
uma “história abstrata”, distinta das simples narrativas e voltada
para o objetivo de dar conta da evolução geral da humanidade
(PC: 281). Desse projeto derivam seus princípios metodológi-
cos: o “método histórico” aplicado pelo sociólogo só pode ser,
a exemplo do que ocorreria na biologia, comparativo, tratando
de aproximar “os diferentes estados da sociedade humana que
coexistem em diferentes partes da superfície terrestre, e em
povos independentes uns dos outros” (PC: 279), tendo em vista
delimitar com precisão as várias fases e as “sobrevivências” que
existiriam mesmo em “Paris hoje” (PC: 279-80). Esse método
comparativo não deixa, contudo, de apresentar dificuldades.
As comparações por ele orientadas, ao contrário do que
ocorreria com seu modelo biológico, seriam em boa parte
80 Razão e Diferença

fictícias, na medida em que uma apreensão necessariamente


sincrônica pode apenas simular a real sucessão dos estados e
das fases de desenvolvimento (PC: 280). Para Comte, entretan-
to, isso não chega a representar uma dificuldade insuperável,
bastando que o método comparativo em sociologia seja contro-
lado por “uma concepção racional da evolução da humanida-
de” (idem), concepção estabelecida a priori, assentando-se
numa antropologia em sentido estrito, ou seja, numa teoria da
natureza humana. Ora, na medida em que uma concepção da
evolução deve necessariamente anteceder a determinação empírica
do processo real e de suas leis, a sociologia positivista compor-
ta obrigatoriamente uma filosofia da história. Na verdade (e
esse é um dos raros momentos em que a objetividade de Lévy-
Bruhl lhe permite uma crítica), Comte terminaria por reduzir a
primeira à segunda, uma vez que a observação empírica
preconizada permanece incipiente demais em seu próprio
trabalho, abrindo espaço para uma reconstrução abstrata do
“passado da humanidade a fim de aí encontrar a interpretação
de seu presente, e a previsão racional de seu futuro” (PC: 299).
Essa filosofia positivista da história se assentaria em dois
postulados fundamentais. Em primeiro lugar, Comte, “constrói
o homem primitivo e a sociedade em que vivia” (PC: 320-21)
através de um procedimento idêntico a “todos os que tentaram
expor a evolução da humanidade desde seus começos, sobre-
tudo antes dos recentes progressos da antropologia” (PC: 320).
Em segundo lugar — e isso distinguiria seu pensamento das
demais tentativas de reconstrução — ele, inicialmente, limita a
realidade do processo evolutivo que tenta estabelecer à “raça
branca; e, nesta raça, apenas às populações da Europa ociden-
tal” (PC: 321). Somente num segundo momento as leis que
acredita ter determinado serão estendidas ao conjunto da
humanidade. Isso teria conduzido a um certo impasse, manifes-
to no fato de que — apesar de Comte afirmar explicitamente
que sua “dinâmica social” deve estar subordinada à “estática”
(“estudo das condições de existência de uma sociedade” - PC:
287), visando apenas a determinação das leis que explicam o
movimento dessas condições — é na realidade o ponto de vista
dinâmico que acaba levando a melhor, convertendo-se na peça
fundamental da sociologia e da filosofia positivistas (idem). O
problema central de Comte, como de seus contemporâneos,
seria na verdade o do “consensus social”; sua originalidade, por
outro lado, residiria na percepção de que essa questão só
Clássico e Romântico 81

poderia ser resolvida por meio de uma “teoria do progresso”


(PC: 288). Condorcet já havia intuído essa solução. Demasiado
fiel ao espírito das Luzes, limitou-a, contudo, ao futuro,
considerando o passado um período de trevas do qual só
caberia libertar-se (PC: 346). Comte, ao contrário, estende a
noção de progresso a todo o passado: a Idade Média e o
Catolicismo não seriam simples inimigos a exterminar, mas
etapas preparatórias com as quais é possível e necessário
aprender (PC: 302-7). A ordem medieval, assentada sobre um
consenso obtido pelas crenças e instituições católicas, não
poderia em hipótese alguma ser globalmente rejeitada. Teria
mesmo o valor de um modelo, ainda que devesse ser aperfei-
çoado em função das transformações históricas ocorridas. O
próprio positivismo deveria ser um “catolicismo desafetado”,
condição necessária para que pudesse cumprir a missão pri-
mordial que se atribuía, a reorganização da sociedade ocidental
(PC: 332).
Entende-se, conseqüentemente, o que leva a apresenta-
ção da filosofia positivista de Lévy-Bruhl a desembocar na
moral, ciência não incluída por Comte em seu sistema. Essa
ausência, entretanto, dever-se-ia apenas ao fato de que tanto
“do ponto de vista prático como do ponto de vista especulativo,
a moral positiva depende da sociologia” (PC: 350). O fracasso
de todas as teorias morais anteriores deriva, segundo Comte, de
terem pretendido se constituir antes do desenvolvimento da
ciência positiva da natureza humana (PC: 350-1). A moral
comtiana, ao contrário, tira suas lições da antropologia meio
psicológica, meio sociológica própria ao positivismo: “fazer,
tanto quanto possível, prevalecer os instintos simpáticos sobre
os impulsos egoístas, a ‘sociabilidade sobre a personalidade’,
tal é o enunciado do problema moral, sob sua forma positiva”
(PC: 357). A moral é, portanto, assunto social (HP: 384-6),
devendo ser promovida através de uma pedagogia positiva
fundada no conhecimento científico da natureza humana (HP:
395-6). A ordem do conhecimento, como sempre, determinaria
a ordem espiritual, que seria a condição de possibilidade da
ordem social. Ou, em outros termos, no positivismo “a idéia de
ordem serve para passar do domínio do conhecimento para o
da ação” (PC: 364). Sendo a sociologia uma espécie de ordena-
dor final do campo cognitivo, toda a possibilidade de instaurar
uma ordem social efetiva (política, moral e religiosa) só pode
passar pelo estabelecimento de uma ciência realmente positiva
82 Razão e Diferença

da sociedade: “a criação da ciência social é o momento decisivo


na filosofia de Comte. Tudo parte dela, e tudo a ela reconduz”
(PC: 397).
É por isso que Lévy-Bruhl pode insistir na “unidade da
doutrina” positivista, em geral contestada pela maior parte das
interpretações, mesmo as produzidas por autores muito próxi-
mos a Comte, como Littré ou Stuart Mill. Essa hipótese parece
mesmo constituir o terceiro ponto original desta leitura do
positivismo, ao lado da defesa da importância da psicologia no
sistema das ciências e da idéia de que toda essa filosofia se
encaminha para uma moral — esses dois pontos se reunindo na
tese da unidade da doutrina. O que torna difícil sustentar essa
unidade é a elaboração efetuada por Comte, já no final da vida,
de uma “Religião da Humanidade”, religião da qual ele seria ao
mesmo tempo o fundador e o sumo-pontífice. Antes disso, o
sistema de política positiva já levantara algumas dúvidas acerca
da inspiração verdadeiramente científica do positivismo comtiano.
Para Lévy-Bruhl, ao contrário, tudo é muito coerente, a dificul-
dade resumindo-se apenas a uma “tintura mística cada vez mais
marcada” que teria impregnado o pensamento de Comte nos
últimos dez anos de sua vida — sob o efeito certamente das
“emoções de uma extrema violência” que o teriam assaltado
por ocasião de sua ligação com Clotilde de Vaux (PC: 13). Na
realidade, é desde 1822 que o autor possuía bastante clareza
sobre o que virá a denominar suas duas “carreiras sucessivas”.
Ele pretendia ser, inicialmente, o Aristóteles de um novo
sistema filosófico; em seguida, o São Paulo de uma nova ordem
que, embora política, só poderia se assentar em fundamentos
que denominaríamos sem dúvida religiosos (PC: 12)9.
Essa clareza deriva, já o sabemos, de um princípio
absolutamente inquestionável para Comte, o de que a reorga-
nização da sociedade depende da reorganização prévia das
crenças. A filosofia e a ciência só poderiam ser, desta forma,
“um meio para chegar a um fim que não pode ser atingido de
outro modo” (PC: 25): substituir por “uma fé demonstrada a fé
revelada” (PC: 25-6), estabelecer “crenças racionais” (PC: 27),
tais são os objetivos últimos do positivismo. Isso não significa,
de modo algum, que todos os homens seriam capazes de
compreender essa demonstração em sua racionalidade — nem
é preciso que isso ocorra, bastando que “a grande maioria dos
homens (…) aceite em confiança as conclusões da filosofia
positiva” que os sábios se encarregariam de estabelecer (PC:
Clássico e Romântico 83

26). A “Religião da Humanidade” estaria assim prevista desde


o início da obra de Comte, sendo por conseguinte inteiramente
coerente com seu sistema geral (HP: 389-93). Não deixa de ser
curioso, contudo, observar que o próprio Lévy-Bruhl faz
questão de limitar seu estudo do positivismo à filosofia de
Comte e que, mesmo supondo a “unidade da doutrina”, atenha-
se exclusivamente a sua “primeira carreira” (PC: 17-8). Essa
decisão é justificada por meio do princípio igualmente positi-
vista segundo o qual o esforço de sistematização deve “abarcar
tanto o conjunto dos sentimentos quanto o das idéias”, sendo
contudo sempre aconselhável começar pelas segundas a fim de
evitar todo “misticismo vago” (PC: 15-6).

A
Esta é, em grandes traços, a história que Lévy-Bruhl conta
da filosofia francesa moderna e, conseqüentemente, de boa
parte de sua própria formação intelectual. Nesse relato, parece
extremamente convencido de estar vivendo uma época de
transição fundamental entre um pensamento dogmático e um
outro em que o direito ao livre exame passaria a prevalecer (HP:
481) 10. É por isso que, por maior que seja sua simpatia para com
o positivismo, a limitação que Comte pretende impor a este
direito, em nome das necessidades de equilíbrio social, sempre
o atemorizou. Talvez seja possível sustentar que por mais
positivista que essa história da filosofia possa ser, Lévy-Bruhl
penda mais para o lado do “progresso” que para o da “ordem”.
Ele parece crer firmemente nessa longa luta entre os dogmas e
a irrestrita liberdade de pensamento, não tendo qualquer
dúvida de que esta última acabaria por triunfar. A História da
Filosofia Moderna na França opõe, é verdade, cartesianos e
iluministas de um lado, tradicionalistas, espiritualistas e ecléti-
cos de outro, fazendo contudo absoluta questão de ressaltar
que os aparentes sucessos dos segundos se devem muito mais
a algumas fraquezas dos primeiros que a possíveis virtudes
intrínsecas que os pensadores reacionários poderiam apresen-
tar. Comte é pensado como o autor da grande síntese entre
essas vertentes, mas acredito ser possível sustentar que Lévy-
Bruhl está bem longe de se dar inteiramente por satisfeito com
os resultados concretos do trabalho positivista. Uma das ques-
84 Razão e Diferença

tões que marcarão todo o seu pensamento é justamente tentar


superar as carências dessa vertente progressista sem abandonar
seu próprio terreno, sem conceder demais, como Comte parece
ter feito, às críticas mais reacionárias.
Quais seriam essas carências, essas lacunas, tanto em
Descartes quanto, especialmente, nos iluministas? Basicamen-
te, não terem se dado conta de que a ruptura com a tradição é
sempre um processo doloroso e que as resistências encontradas
costumam ser bem maiores do que se imagina. Ao mesmo
tempo, esse conjunto de pensadores teria privilegiado, de
forma por demais exclusivista, o valor da razão e da racionali-
dade, não atentando para a importância das paixões e dos
sentimentos que, afinal, seriam os responsáveis pelas reações
aos processos de desenvolvimento. É bem verdade que Pascal,
Bayle, Rousseau e, sobretudo Comte, tentaram devolver aos
afetos parte do que o racionalismo havia deles subtraído. O
resultado, contudo, parece precário, de modo que Lévy-Bruhl
se verá obrigado a continuar pensando essa questão — e isso
ainda por muito tempo. Questão que antecede o pensador
intransigentemente racionalista que acabamos de apresentar,
pois a esse Lévy-Bruhl tão “clássico”, precede outro, que
poderíamos qualificar talvez de “romântico”. Basta não levar-
mos esse termos demasiadamente a sério, compreendendo-os,
neste caso, não como adesão incondicional a um certo estilo de
pensamento, mas como preocupação com uma série de proble-
mas que ocuparão boa parte de sua vida. Já em 1894, publicara
seu livro sobre “a filosofia de Jacobi”, no qual a análise de um
filósofo que confessadamente privilegia o sentimento em detri-
mento da razão é levada bastante longe. Antes disso, em 1890,
no trabalho dedicado ao “desenvolvimento da consciência
nacional na Alemanha”, o Romantismo propriamente dito,
assim como a importância das paixões e sentimentos, constitu-
em um dos eixos centrais da investigação. Tudo se passa
mesmo como se este livro correspondesse, numa relação de
inversão, a História da Filosofia Moderna na França, assim
como A Filosofia de Jacobi poderia ser interpretado como uma
espécie de contraponto antecipado a A Filosofia de Augusto Comte.
Se aceitarmos o depoimento de Leenhardt (1949: VII),
Lévy-Bruhl teria mesmo chegado a se encantar durante algum
tempo com as chamadas filosofias do sentimento, encanto que
teria desaparecido logo depois, convertendo-se em aberta
oposição. Não é fácil, contudo, encontrar na obra traços desse
Clássico e Romântico 85

suposto fascínio. O livro sobre Jacobi, como veremos, poderia


no máximo marcar uma ruptura e o trabalho sobre a Alemanha
é descritivo demais para que um posicionamento claro possa
ser dele extraído. Vale a pena, pois, recorrer aqui à ordem
cronológica, buscando esse “outro” Lévy-Bruhl em sua tese de
doutorado de Estado, defendida e publicada em 1884. Será
possível, assim, delinear a importância do dilema entre razão e
emoção na própria origem de seu pensamento.
A primeira constatação, nessa visão retrospectiva, é que
A Idéia de Responsabilidade está marcada pelo anti-cientificis-
mo e, logo, pelo anti-positivismo. Do positivismo, o que se
recusa fundamentalmente é sua concepção puramente “nega-
tiva” da “relatividade do conhecimento” (IR: 238). Ao conceber
essa relatividade como mero fato de experiência, os positivistas
acabariam por se tornar vítimas de uma espécie de “inebria-
mento científico” que os faria acreditar que a marcha inexorável
do espírito humano leva da ilusão ao conhecimento (IR: 244).
Haveria, contudo, um preço a pagar por isso: abdicar de toda
metafísica e dizer aos homens “contentem-se com o mundo
dado” (IR: 242). Toda a aventura intelectual da humanidade só
poderia ser considerada um devaneio provocado por forças
religiosas e metafísicas que cumpriria abandonar. O positivis-
mo não pretende apenas conhecer o mundo relativo dos
fenômenos; deseja interditar a exploração, necessariamente
não científica, do que pode haver de absoluto no universo. Esse
é seu dogmatismo, tão mais inútil na medida em que pretende
ser rigoroso (IR: 243). Inútil porque a necessidade da especu-
lação, a metafísica, estaria inscrita no próprio coração da
natureza humana. Ao dogma positivista, seria preciso saber
responder não, “não se contente com o mundo dado” (IR: 242);
seria preciso renunciar à idéia de uma ciência capaz de legislar
sobre a razão, respeitando-a apenas nos limites de sua compe-
tência 11. Para isso, contudo, seria imperativo reconhecer que a
“relatividade do conhecimento tem um sentido positivo muito
importante” (IR: 239) e que o espírito humano é fundamental-
mente ativo, não passivo (IR: 237-9). Resignar-se a não conhe-
cer o absoluto não implica de modo algum nem uma renúncia
a especular sobre ele nem, muito menos, uma decisão de não
respeitá-lo. Ao contrário, a razão, sabendo-se relativa — ou
seja, confinada ao mundo da experiência — saberia também
que não pode deixar de reservar um lugar para a crença (IR: 248).
86 Razão e Diferença

Lévy-Bruhl faz questão de acrescentar que não pretende


provocar uma simples recaída na “piedosa exaltação dos
místicos” (IR: 204), exaltação que daria as costas à realidade
empírica. Os espiritualistas e ecléticos franceses teriam incor-
rido neste erro e o preço que acabaram pagando foi o de não
terem sido capazes de aceitar e acompanhar “plenamente a
evolução contemporânea da filosofia e das ciências” (IR: XII).
Do mesmo modo, embora reconheça compreendê-la, Lévy-
Bruhl recusa a tentativa de “um compromisso que satisfaça ao
mesmo tempo (…) necessidades científicas e (…) instintos
racionais” (IR: 235) — e aqui parece claro que o alvo é o
criticismo francês. O que é recusado nesse momento é o
conjunto das soluções filosóficas da época, as mesmas que
Lévy-Bruhl iria inventariar, a partir de outra perspectiva, alguns
anos mais tarde: nem o cientificismo, nem a metafísica pura,
nem o compromisso representado pelo criticismo. A posição da
qual parece mais se aproximar nesta época é o kantismo, do
qual explicitamente retira uma série de elementos que utiliza
em sua crítica (IR: 239-40). Mas mesmo a filosofia de Kant é
considerada como mais um esforço destinado ao fracasso “para
conciliar a realidade absoluta (…) e a realidade relativa a nós”
(IR: 120). Tudo leva a crer que A Idéia de Responsabilidade
pretenda apoiar-se numa espécie de “hiper-kantismo”, que
insiste em manter absolutamente separados a ciência da filoso-
fia, o mundo natural do mundo humano, os saberes sobre a
natureza das ciências morais, evitando até mesmo as tímidas
reconciliações que o próprio Kant teria sugerido12.
A filosofia jamais poderia se confundir com a ciência
porque as hipóteses, postulados e raciocínios com que trabalha
“não são construídos a priori pelo entendimento puro. São
produtos freqüentemente obscuros, freqüentemente inconsci-
entes mesmo, das crenças e da reflexão combinadas” (IR: 218).
A verdadeira tarefa da filosofia seria conduzir a um respeito
“quase religioso” pela realidade absoluta, ainda que esta só
possa estar presente sob a forma de “um símbolo de nosso
destino” e que este símbolo costume aparecer em idéias como
as de “queda original e redenção” (IR: 249-50). É preciso,
portanto, superar a tendência humana a confundir símbolo e
idéia (IR: 74-5). Mais importante ainda seria combater a atração
que as ciência morais vinham experimentando pelas ciências
da natureza a fim de evitar a mais perigosa das confusões,
aquela entre o absoluto e o relativo (IR: XIII). Lévy-Bruhl
Clássico e Romântico 87

acredita que a utilização dos “resultados da crítica kantiana”


(IR: XIV) poderia impedir que a filosofia e as ciências morais
perdessem “sua dignidade para correr atrás de uma sombra de
rigor e de certeza que lhes escapa” (IR: 73): o homem seria na
verdade irredutível à pura natureza, como a “brusca” transição
entre os animais superiores e a humanidade demonstraria (IR:
137). A própria sociologia, “como se diz hoje”, só poderia se
realizar se reconhecesse que “a personalidade moral do homem
constitui uma singularidade que exige para ele uma história à
parte” (IR: 73). Esta singularidade, por sua vez, estaria enraiza-
da na sensibilidade, entendida não como a faculdade que
sustenta a razão (no sentido empirista ou mesmo kantiano),
mas em sentido quase literal, como feixe de “sentimentos”
absolutamente irredutíveis ao pensamento racional e, de algum
modo, sempre superiores e mais fortes do que este. “O
sentimento aparece então como o fundamento comum e
necessário de nossas faculdades superiores” (IR: 111-2) — e é
aqui que Lévy-Bruhl recorda pela primeira vez a frase de Pascal
que tanto o encantará por toda a vida, “o coração tem suas
razões que a razão não conhece” (IR: 248) 13.
A tese propriamente dita consistirá, nos quadros desses
pressupostos, em uma análise, no sentido cartesiano do termo,
da noção de responsabilidade. Constatando inicialmente que
essa idéia é apenas aparentemente clara ou que pode ser clara
sem ser por isso distinta (IR: 7-8), Lévy-Bruhl tentará delimitar
e separar todos os elementos que, em sua época, estariam
incluídos na noção. Tarefa que pretende justamente esclarecer
e debelar a imprecisão que marcaria o conceito e que estaria na
raiz de uma “perturbação moral (…) profunda” (IR: 14). Como
se trata de uma noção especificamente humana, Lévy-Bruhl
pensa que sua análise formal não poderia jamais ser compro-
vada por uma síntese “ideal”, como ocorreria nas ciências da
natureza. A única solução seria acompanhar a constituição
efetiva da idéia de responsabilidade ao longo da história a fim
de tentar comprovar os resultados obtidos pelo esforço pura-
mente analítico (IR: 129-32). Ora, é justamente essa espécie de
genealogia da noção de responsabilidade que mais interessa
aqui, na medida em que procedimento semelhante será adota-
do pelo autor em muitos de seus trabalhos posteriores. O
primeiro perigo a evitar neste método, adverte logo, é o
“contra-senso histórico” que consiste em transportar para o
passado distinções e categorias desenvolvidas apenas muito
88 Razão e Diferença

recentemente (IR: 61). Essa “genealogia” parte da psicologia


animal (embora se reconheça que pouco podemos aprender
com ela, dada a suposta diferença irredutível entre o homem e
os animais — IR: 132-7), passa pelas “sociedades selvagens”
(que ofereceriam uma similaridade apenas parcial com “o
estado moral do homem primitivo”, tampouco servindo para
reconstituir uma pretensa natureza humana originária, uma vez
que os selvagens estariam, tanto quanto nós, muito longe de
qualquer estado natural hipotético — IR: 138) e desemboca nas
“sociedades históricas”, verdadeiro espaço para o teste que
Lévy-Bruhl pretende aplicar a suas hipóteses.
A conclusão geral da investigação é que a idéia de
responsabilidade não passa de um amálgama confuso de
noções e elementos provenientes de épocas históricas hetero-
gêneas. Essas noções e elementos teriam progressivamente se
somado, sem que problema algum derivasse desse processo até
o momento em que se busca justamente analisar a idéia de
modo claro e distinto, instante em que emergiria o conflito até
então apenas subjacente. A consciência moral se descobriria
perturbada por não saber mais como compreender a noção e,
principalmente, por não ser mais capaz de determinar as regras
de comportamento em função dela. É nesse ponto que o
filósofo poderia e deveria intervir, substituindo “a antiga e vaga
noção de responsabilidade” por alguma coisa que esteja real-
mente presente “na viva consciência da humanidade” (IR: 171-
3). Para isso, deveria reconhecer, em primeiro lugar, que os
elementos heterogêneos oriundos de épocas distintas que se
misturam na concepção atual só permanecem agregados de
forma artificial, uma vez que “nossas associações de idéias e
conseqüentemente a maior parte de nossas concepções depen-
dem bem mais do hábito que da lógica” (IR: 175). A filosofia,
ainda que através de uma análise lógica, seria a única força
capaz de diagnosticar esse estado de confusão, propondo ao
mesmo tempo uma solução. Dentro do mencionado “hiper-
kantismo” que parece nortear Lévy-Bruhl neste trabalho, esta
solução só poderia consistir no abandono de qualquer tentativa
para desenvolver uma concepção lógica ou científica sobre a
responsabilidade, introduzindo em seu lugar uma espécie de
“adoração do absoluto” que se manifestaria através da crença
e de símbolos, entre os quais poderia ser incluída a própria
idéia de responsabilidade (IR: 214).
Clássico e Romântico 89

Não nos apressemos, contudo, em reduzir o exercício de


Lévy-Bruhl a um esforço vazio, capaz apenas de afastar o que
considera uma noção confusa para recuperá-la mais adiante de
modo ainda mais confuso. O verdadeiro objetivo da tese parece
ser outro: subtrair a um certo tipo de imperialismo científico —
do qual o positivismo seria o representante mais forte — ao
menos uma parcela da existência humana, sustentando, para
isso, que determinadas noções não podem, não precisam e não
devem ser analisadas cientificamente. Toda a esfera dos senti-
mentos, crenças e hábitos, tudo o que constituiria a própria
“singularidade” do homem, deveria ser cuidadosamente dei-
xado de fora do trabalho dissolvente da reflexão científica.
Acima de tudo, o que cumpriria manter fora do alcance da
ciência é o sujeito, tentando fazer o homem “compreender que
ele não pode apreender senão fenômenos, que sua própria
personalidade é para ele um mistério” (IR: 250). Tudo se passa
então como se estivéssemos às voltas com um Lévy-Bruhl bem
diferente do positivista de quinze anos mais tarde. Por outro
lado, essa inquietação frente às paixões e aos sentimentos do
homem, essa preocupação com os limites do conhecimento e
da atividade científica, jamais desaparecerão completamente
de seu pensamento. Essas questões repercutirão mesmo em
seus trabalhos mais tardios, como tentarei mostrar adiante.
Antes disso, convém permanecer mais um pouco na ordem
cronológica para observar melhor o processo que levou o hiper-
kantiano de 1884 a se transformar no quase-positivista de 1899.

A
Dois anos após defender sua tese de doutoramento, Lévy-
Bruhl viria a ser convidado por Émile Boutmy (cuja biografia
escreveria mais tarde) para assumir a cadeira de “História das
Idéias Políticas e do Espírito Público na Alemanha e na
Inglaterra” na Escola Livre de Ciências Políticas. Um dos
resultados dos cursos aí ministrados foi a publicação, em 1890,
de A Alemanha desde Leibniz — Ensaio sobre o Desenvolvimen-
to da Consciência Nacional na Alemanha. Forçando um pouco
os termos, poderíamos dizer que a intenção deste livro parece
ter sido analisar o que os sociólogos franceses viriam a
denominar de relação entre morfologia social e representações
90 Razão e Diferença

coletivas. Sua questão central é determinar e analisar o proces-


so que teria levado à constituição de uma idéia de unidade
nacional na Alemanha antes da efetiva unificação política do
país, tentando sobretudo levantar os problemas que essa
anterioridade teria acarretado (AL: 488). Estaríamos, portanto,
lidando com um caso que poderia ilustrar o que Lévy-Bruhl
considera a relativa independência das idéias frente a seu
substrato material, bem como o poder que às vezes possuem de
provocar, ou ao menos de facilitar, as transformações do
próprio meio em que se originam e desenvolvem: “na transfor-
mação que a Alemanha sofreu entre o começo do século XVIII
e a metade do século XIX, que papel coube a seus filósofos, a
seus críticos e a seus poetas?” (AL: I). O ponto de partida desse
“desenvolvimento da consciência nacional” é localizado na
ruptura com a tradição escolástica e medieval, efetuada no
início do século XVIII por um filósofo considerado “persona-
gem secundário” pela história da filosofia, Christian Wolff (AL:
57). O próprio Hegel, contudo, o considerava “o instrutor da
Alemanha”, na medida em que a propagação de sua doutrina
teria contribuído decisivamente para a “elevação moral da”
nação alemã (AL: 63). O aspecto que mais chama a atenção de
Lévy-Bruhl é que além do fato dessa ruptura só haver se
efetuado um século depois que Descartes a introduzira na
França, sua violência na Alemanha é muito menos acentuada:
mesmo “Leibniz permaneceu conservador até em suas mais
sublimes ousadias” (AL: 63. Cf. também PJ: 30-3). A Contra-
Revolução parece sempre ter levado a melhor e é justamente
isso que teria dificultado o processo de integração política, ao
impedir o livre desenvolvimento e difusão das idéias (AL: 367-
73). Como já foi dito, A Alemanha desde Leibniz… pode ser lido
retrospectivamente como uma espécie de contraponto a Histó-
ria da Filosofia Moderna na França, mas mesmo em 1890 Lévy-
Bruhl afirma com toda a clareza que as reformas sociais só têm
possibilidade de sucesso quando ancoradas firmemente numa
reforma mental das crenças dominantes (AL: 27-8): “as condi-
ções gerais de ordem psicológica lançam uma luz singular
sobre a história de uma nação (AL: 196-7).
Ao longo de todo o livro (AL: 178-9; 366; 457; 467; 473;
entre outras), um mesmo tema retorna: “o sentimento tem sua
própria lógica, lógica profunda e complexa, desconcertante
como a vida, mas mais rigorosa e mais verdadeira em suas
contradições aparentes do que a lógica do raciocínio em sua
Clássico e Romântico 91

infalibilidade abstrata” (AL: 178). Assim, os franceses podem ter


dificuldades em compreender as confusas idéias de um autor
como Gervinus, professor universitário preocupado com a
unidade alemã; pode lhes ser ainda mais difícil entender como
é que idéias tão pouco claras puderam chegar a ser tão
influentes; tudo isso, na verdade, pouco importava a seus
leitores a quem “bastava sentir-se em comunidade de sentimen-
tos com ele” (AL: 473). Foram justamente alguns pensadores
alemães que, depois de Pascal, se dedicaram a demonstrar a
força das paixões e dos sentimentos. Parte do movimento pré-
romântico e toda a “escola romântica” teriam insistido nessa
transcendência e nessa potência das emoções face às idéias
“claras e distintas” (AL: 178). O apego à tradição, a instauração
de um verdadeiro culto das antiguidades germânicas, tudo isso
acabou favorecendo mais o sentimento da unidade alemã do
que todas as pregações abstratas, ainda que os românticos
parecessem não demonstrar um interesse político imediato (AL:
333-40). Desse modo, Lévy-Bruhl crê poder opor o pensamento
alemão à filosofia francesa sobre dois planos diferentes: em
primeiro lugar, a tradição não é, no primeiro caso, recusada de
forma radical, sendo pensada como uma das condições de
possibilidade da tarefa política que se impunha (a unificação),
não como obstáculo ao desenvolvimento. Em segundo lugar,
ao racionalismo cartesiano e iluminista os românticos não
cessarão de opor as paixões, os sentimentos e as emoções que
este racionalismo não seria capaz de assimilar. Sabemos tam-
bém que a reação filosófica francesa caminhará nessa mesma
direção e Lévy-Bruhl é muito claro ao apontar nesse processo,
tão contrário ao estilo dominante na França, uma influência
germânica. Haveria ainda uma terceira diferença entre os
espíritos desses dois modos de pensar tão antagônicos. Àquilo
que é talvez o dogma central da filosofia iluminista — o
postulado da unidade abstrata do gênero humano, presente já
em Descartes e observável até em Comte — os pensadores
alemães oporão a necessidade de só falar da humanidade
levando-se em conta sua diversidade real. Mesmo um escritor
como Herder, que está muito longe de ser um anti-racionalista,
enfatizará a originalidade de cada “nação”, o caráter específico
de cada “povo”, a exigência de considerar os costumes e as
tradições de cada região (AL: 164-5. Cf. também PJ: 47). Herder
insiste tanto neste ponto que acabará sendo “levado insensivel-
92 Razão e Diferença

mente a se representar as nações como indivíduos”, com todas


as idiossincrasias que os distinguem uns dos outros (AL: 174).
No entanto, esse pensamento tão rico, que poderia
mesmo ter ajudado a corrigir o das Luzes, enfrentaria sérios
problemas internos que teriam chegado a impedi-lo de se
desenvolver plenamente. Sua maior dificuldade ficaria nítida
em um filósofo que decididamente não desperta em Lévy-Bruhl
qualquer simpatia, uma vez que, para ele, o hegelianismo “é
insustentável do ponto de vista especulativo” (AL: 388), “filo-
sofia potente, mas dificilmente inteligível ao introjetar em si a
contradição e vangloriar-se de resolvê-la ultrapassando-a” (AL:
391). Posição que só poderia mesmo aparecer como absurda
para um autor como Lévy-Bruhl, que crê “que as contradições
que se conciliam tão facilmente no coração do homem, nem
sempre se excluem em seu pensamento. Muito raros são os
espíritos que as reconhecem, e que sofrem com isso a ponto de
esquecer todo o resto em seu esforço para delas se libertar.
Estes são os filósofos de raça; conta-se entre eles talvez uma
dúzia por século” (AL: 88) 14.

A
O “coração” e o “pensamento”…. Seria essa ao menos
uma das contradições que teriam feito o próprio Lévy-Bruhl
“sofrer” e “esquecer todo o resto”? É uma hipótese. Aqueles que
conhecem o desenvolvimento de seu pensamento poderiam
certamente ser tentados a acreditar nela. De toda forma,
veremos. Por ora, podemos avaliar melhor o testemunho de
Leenhardt (1949: VII) sobre a atração que Lévy-Bruhl teria
sentido pelas filosofias do sentimento. Na verdade, nada indica,
nem em A Idéia de Responsabilidade nem em A Alemanha desde
Leibniz…, que ele tenha chegado realmente a assumir essa
posição. O máximo que poderíamos afirmar é que desde o
começo de sua trajetória intelectual esteve intrigado com a
questão da relação entre a razão e o sentimento, bem como com
a oposição, que lhe parecia estreitamente articulada com esta,
entre o princípio genérico da unidade da humanidade e a
atenção nas diferenças que a recortam. Para averiguar melhor
o real estatuto dessas oposições nada melhor do que recorrer
ao estudo que Lévy-Bruhl publicou em 1894 sobre o filósofo
Clássico e Romântico 93

que considerava como tendo levado mais longe e de forma mais


coerente o desenvolvimento de uma doutrina que privilegiava
o “sentimento” em oposição à razão. Talvez possamos desse
modo chegar a uma conclusão mais firme acerca do valor que Lévy-
Bruhl atribuía nesta época às chamadas “filosofias do sentimento”.
O grande tema desse tipo de filosofia, ao menos tal qual
desenvolvida por Jacobi no final do século XVIII, seria a
denúncia dos “excessos” do racionalismo. Excessos doutrinári-
os, na medida em que qualquer pensamento que não fizesse do
entendimento a faculdade central do homem era preliminar-
mente recusado enquanto verdadeira filosofia (PJ: 36); exces-
sos políticos também, uma vez que tudo o que procurava se
enraizar na tradição e na religião era imediatamente convertido
em objeto de “intolerância” (idem); excessos cognitivos, enfim,
pois em seu afã de tudo entender, os racionalistas incorreriam
no que seria o grande “perigo de querer conhecer demais” —
a obliteração e o esquecimento das diferenças constitutivas da
realidade (PJ: 77). Ora, a esse “sistema que não atinge o real,
[Jacobi] vai opor uma filosofia do real que não será um sistema”
(PJ: 36-7). Seu pensamento se enraizará na reação anti-intelec-
tualista alemã que se seguiu a uma certa difusão, particularmen-
te radical, do movimento iluminista na Alemanha. Isso significa
dizer que apesar de todas as diferenças que separavam Jacobi
do Romantismo e do pré-romantismo, é com essas correntes
que apresentará mais pontos em comum: anti-racionalismo,
valorização da intuição, respeito pela tradição e o pressuposto
de que a realidade representa em última instância um mistério
profundo impenetrável pelo puro entendimento (AL: 228-31).
Lévy-Bruhl admite certo valor nessas filosofias do senti-
mento. Valor limitado, entretanto, a seus aspectos puramente
críticos, que poderiam servir para corrigir os excessos de um
racionalismo exclusivista e estreito demais. O lado propriamen-
te positivo desse tipo de doutrina surge, ao contrário, como
problemático, residindo basicamente no esforço de Jacobi em
provar que o que há de especificamente humano no homem
não é, como supõem racionalistas e intelectualistas de todos os
tipos, o entendimento, mas “a faculdade dos sentimentos” (PJ:
61). Apenas esta faculdade poderia permitir um acesso intuiti-
vo, imediato e completamente ininteligível em si mesmo ao que
a realidade tem de absoluto (PJ: 79-81). O entendimento, por
sua vez, o conhecimento discursivo, se limitaria à superfície
dessa realidade, ao caráter meramente inteligível e abstrato dos
94 Razão e Diferença

fenômenos: “no limite, o perfeitamente inteligível é irreal, e o


verdadeiramente real é ininteligível” (PJ: 79). A um saber
mediato, genérico e abstrato, Jacobi buscará opor uma intuição
imediata, particular e concreta, único instrumento da verdadei-
ra filosofia, a que sabe deixar para a ciência o trabalho
puramente analítico que consiste em conhecer (PJ: 256-8).
Apesar dessa profissão de fé na superioridade da inves-
tigação filosófica, Jacobi sempre foi encarado pelos filósofos
como uma espécie de “inimigo público na cidade filosófica”,
em virtude de sua recusa sistemática em aceitar os valores
mínimos que fariam com que um pensamento merecesse
realmente o nome de filosófico (PJ: 260). O banimento de
Jacobi por parte dos filósofos parece ainda mais estranho
quando se leva em conta que jamais aderiu realmente a uma
forma absoluta de irracionalismo. Seus desentendimentos com
os românticos — tão próximos a ele em suas posições funda-
mentais — derivariam justamente desse afastamento, pois ele
“não gosta de ser mistificado” e acredita em uma dignidade do
mistério que os místicos mais autênticos deixam geralmente de
lado em seu esforço para apreendê-lo de modo direto demais
(PJ: 232). Jacobi adotaria, antes, uma espécie de “misticismo
discreto” que pretende substituir a “experiência do absoluto”,
com a qual os místicos se contentam, por um “conhecimento do
absoluto”, ainda que este último esteja baseado numa intuição
direta (PJ: 243): “em uma palavra, se ele é o mais místico dos
racionalistas, é também o mais razoável dos místicos” (PJ: 244).
Isso significa que Jacobi jamais pretendeu deixar de ser filó-
sofo, que tudo o que prega é que a própria filosofia deveria
combater o “fanatismo lógico” que nela se teria indevidamente
infiltrado (PJ: 250), resistindo com todas as suas forças à
“tentação lógica” que costuma atraí-la (PJ: 215) — esta seria a
condição para a recuperação de sua dignidade. O problema é
que Jacobi também tem que pagar um preço para manter-se
filósofo e, ao mesmo tempo, sustentar o caráter superior do
sentimento, o valor supremo da intuição direta e a ininteligibi-
lidade última da realidade. Para permanecer no jogo filosófico,
ele se vê obrigado a situar o sentimento do lado da razão, em
oposição ao puro entendimento (PJ: 56-7); para não se confun-
dir com os racionalistas, ele tem, contudo, que definir essa
mesma razão como “crença natural” (PJ: 92). Solução de
compromisso que não agrada a ninguém: para o místico ela é
racional demais; para o filósofo excessivamente ilógica. O
Clássico e Romântico 95

resultado é que “Jacobi permanece só entre os dois” (idem),


prisioneiro de seu “espiritualismo semi-místico de forma singu-
lar” (PJ: 168).
O desejo de Jacobi de permanecer filósofo é tão marcado
que Lévy-Bruhl chega a sustentar que essa filosofia do senti-
mento apresentaria uma estranha simetria com as correntes que
pretende recusar. Atribuindo ao sentimento tudo o que o
racionalismo havia concedido ao entendimento, Jacobi acaba
por se auto-erigir em uma espécie de “anti-Spinoza”, para ele
o filósofo racionalista por excelência, o único que teria levado
o esforço cognitivo e analítico até seus limites, demonstrando
assim, ainda que contra sua vontade, o resultado a que todo
racionalismo conseqüente necessariamente deveria conduzir: o
ateísmo, o fatalismo e o pessimismo (PJ: 143-5). A argumenta-
ção de Jacobi é bastante simples. O racionalismo leva ao ultra-
determinismo característico da ciência, ao mecanicismo; este,
por sua vez, se não for contrabalançado pela idéia estritamente
filosófica, incompreensível e irracional, de liberdade, só pode
conduzir ao fatalismo e ao pessimismo, sinônimos de ateísmo
(PJ: 155-9). Todo esse raciocínio só pode se apoiar na noção de
que este mecanicismo rigoroso — presente tanto em Descartes
quanto especialmente em Spinoza — é a única concepção da
natureza que a ciência pode atingir. A alternativa proposta é um
dualismo radical que contrapõe ao universo ultra-determinista
da ciência, a liberdade do absoluto que cabe à filosofia
consagrar e difundir: “absolutamente pagão pelo entendimen-
to, absolutamente cristão pelo sentimento, essa é sua divisa”
(PJ: 85). O que representa um verdadeiro paradoxo do ponto
de vista de Lévy-Bruhl, é que desta forma, Jacobi acaba por
aceitar o que seria na verdade um dos postulados mais
discutíveis do iluminismo, a recusa em introduzir “uma contin-
gência possível no mundo dos fenômenos” (PJ: 97). Aceitando
essa concepção absolutamente mecanicista, Jacobi prova que
mesmo sendo “um filho revoltado do século XVIII; é ainda seu
filho” (PJ: 137). Filiação que se manifesta igualmente na recusa
em aderir à Contra-Revolução, por mais reacionário que seu
próprio pensamento possa ser considerado (PJ: 136-8).
Não é, conseqüentemente, apenas por ter relembrado o
esquecido Spinoza — ainda que o tenha feito em nome de um
combate contra o filósofo — que as crítica de Jacobi acabaram
tendo o efeito oposto de provocar uma inédita difusão do
spinozismo na Alemanha. O próprio estilo da crítica e a
96 Razão e Diferença

tentativa de argumentação rigorosa serviram para reforçar uma


certa maneira de pensar bastante característica do racionalismo
mais rigoroso. Como já vimos, “tem-se sempre muitos pontos
em comum com os homens de quem se é, de modo perfeito
demais, o adversário” (PJ: 43). Nesse contexto, Lévy-Bruhl
pode sustentar que a “idéia diretriz que anima a filosofia de
Jacobi [é] opor ao dogmatismo racionalista de seu tempo uma
doutrina mística da crença” (PJ: 83), doutrina que não se
confundiria com um puro misticismo impreciso e irracional. A
originalidade de Jacobi consistiria justamente no fato de que se
a crença se opõe ao entendimento, ela jamais poderia ser
oposta à razão (PJ: 57), ainda que para efetuar essa operação
tenha que definir a segunda como “a faculdade da crença no
absoluto”, garantia de que “participa de seu objeto”, em
oposição ao puro entendimento, confinado à apreensão apenas
exterior do mundo relativo (PJ: 68). A crença é compreendida,
portanto, em sentido quase oposto àquele usualmente empre-
gado em filosofia, não se tratando de uma “representação (…)
mais ou menos imperfeita e inadequada em relação a seu
objeto”, mas de “uma representação privilegiada que, colocan-
do-nos em contato imediato com o objeto, nos dá então a
certeza mais perfeita que se possa conceber (…). A crença é
portanto um ‘sentimento objetivo’, isto é, que se acompanha da
certeza de que seu objeto está presente” (PJ: 105). Aquilo que
é apenas “relativamente verdadeiro” poderia ser conhecido,
constituindo objeto de ciência; aquilo que é “absolutamente
verdadeiro” só poderia ser sentido, objeto de crença (idem). O
que é necessariamente válido para a primeira pode não o ser
para a segunda, o que obrigaria a filosofia a recusar radicalmen-
te toda e qualquer forma cientificizante. Mesmo o “princípio de
não-contradição, lei suprema de nosso entendimento, não é a
lei do ser” para Jacobi (PJ: 86-7), posição que o aproximaria de
Hegel, uma vez que ambos tenderiam “a não ver no princípio
de identidade mais que a regra de uma ciência puramente
formal, isto é vazia, e a conceber uma lógica do real ou lógica
absoluta, lógica plena, desenvolvendo-se de acordo com um
princípio superior à lei de inteligibilidade” (PJ: 257).
Em suma, a filosofia do sentimento desenvolvida por
Jacobi pretende apoiar-se sobre uma faculdade humana, a
crença, sinônimo de certeza absoluta; pretende encarar a razão
como uma forma desse sentimento, opondo tudo isso ao
entendimento, compreendido como faculdade secundária e
Clássico e Romântico 97

subordinada que só pode legislar sobre o conhecimento do


mundo relativo dos fenômenos, não tendo acesso à verdadeira
realidade, ao absoluto. O vocabulário, percebe-se, é o mesmo
empregado pela tradição filosófica, assemelhando-se especial-
mente ao vocabulário kantiano, o que parece distinguir nova-
mente Jacobi da maior parte dos místicos propriamente ditos.
Isso se explicaria facilmente: ele teria se preocupado, num
primeiro momento e dentro de sua pretensão de fazer parte do
jogo filosófico, em utilizar alguns resultados da crítica kantiana
como arma em seu combate contra o racionalismo (PJ: 174-80).
O próprio Kant, contudo, logo respondeu, explicitando sua
recusa do “que se chamará mais tarde ‘o obscurantismo’”, que
ele teria claramente discernido na doutrina de Jacobi (PJ: 183).
Este, por sua vez, fez sua defesa cortando os poucos laços
aparentes que o prendiam à filosofia crítica, por mais que essa
ligação pudesse ser benéfica para a defesa e difusão de seu
próprio pensamento no meio filosófico de que queria fazer
parte. Lévy-Bruhl, por seu turno, não deixa muitas dúvidas a
respeito de sua própria posição quanto a esta polêmica,
resumindo-a como “a oposição entre a filosofia que busca para
saber, e a filosofia que sabe antes de buscar. Elas podem se
encontrar, elas não podem se unir” (PJ: 204). Isso não significa
que neste momento de sua trajetória, Lévy-Bruhl esteja plena-
mente de acordo com a filosofia de Kant. O que procura
apontar como insuficiente nesse gigantesco esforço racionalis-
ta, é, paradoxalmente, o fato de o racionalismo não ter sido
levado, apesar das aparências e das opiniões estabelecidas, até
suas últimas conseqüências. Ao advogar a necessidade da
“suspensão do juízo” acerca do absoluto, Kant teria na verdade
aberto as portas para que um resíduo de “sentimento profundo
(…) [e] de entusiasmo moral” permanecessem em seu sistema
(PJ: XXIV). Isso porque essa suspensão do juízo acerca do
absoluto seria absolutamente impossível, uma vez que a pró-
pria natureza humana não seria capaz de tolerar a “idéia de um
incognoscível concebido como existente”, idéia “logicamente
insustentável” (PJ: XIV).
Se um racionalista como Kant é censurado por ainda
tolerar uma interferência excessiva do sentimento na filosofia,
qual poderia ser a posição de Lévy-Bruhl frente ao próprio
Jacobi? Sob a aparência discreta que marca seus trabalhos, essa
posição não deixa de se manifestar com clareza por todo o
livro, traindo o projeto de fazer com a filosofia de Jacobi a
98 Razão e Diferença

mesma operação a que este havia submetido o pensamento de


Spinoza: demonstrar aonde conduzem as filosofias do senti-
mento quando completamente desenvolvidas e rigorosamente
levadas às últimas conseqüências. Pode-se mesmo dizer que
Lévy-Bruhl chega a admirar Jacobi como este admirava Spino-
za: “pela sinceridade desse esforço, Jacobi merece deixar um
rastro durável, e não ser confundido com a multidão um pouco
indistinta e apagada dos filósofos do sentimento” (PJ: 263). Essa
admiração não pode, contudo, ser confundida com adesão,
nem mesmo com complacência. Ao abrir seu livro afirmando
que caberá apenas ao leitor decidir a respeito do valor das
filosofias do sentimento, Lévy-Bruhl simultaneamente fornece
a resposta que pretende que esse leitor encontre. Será que tais
filosofias não revelariam “o vício irremediável de toda filosofia
que se nega, por assim dizer, a si mesma, ao subtrair à razão a
função suprema de julgar o verdadeiro e o falso?” (PJ: V). Um
pouco mais adiante o veredito é ainda mais claro: “uma
doutrina que se funda sobre o sentimento ou sobre a crença,
que sabe disso, que o confessa, não tem nenhuma chance de
se desenvolver nem de viver”, já que estaria destinada a
sucumbir a sua própria “fraqueza íntima”, tentar se apoiar sobre
a realidade eminentemente instável e incomunicável constitu-
ída pelo sentimento ou pela crença (PJ: XXXII-III). Uma
filosofia desse tipo poderia no máximo ser uma busca estrita-
mente pessoal e Jacobi “não busca a verdade, sem preferências
secretas, sem idéia preconcebida, como o cientista pronto a se
inclinar diante da experiência. Ele busca sua verdade, a
verdade de que necessita, aquela que as tendências profundas
de sua natureza imperiosamente exigem” (PJ: 26).
Restaria perguntar apenas por que Lévy-Bruhl teria deci-
dido dedicar toda uma obra a um pensamento aparentemente
tão insustentável. Por que perder tempo com uma filosofia que,
no limite, negaria a si mesma enquanto tal? Parece-me, aqui
ainda, que é outro o alvo visado, assim como através de Spinoza
o próprio Jacobi procurava atingir o racionalismo como um
todo. Tanto é assim que A Filosofia de Jacobi abre com a
constatação de um renascimento, no final do século XIX, das
filosofias do sentimento (PJ: V). Na verdade, é delas que Lévy-
Bruhl pretende falar, especialmente do espiritualismo francês,
filosofia ainda dominante no meio universitário desta época. A
verdadeira motivação poderia ser entendida como derivando
de uma certa perplexidade frente à proliferação de um deter-
Clássico e Romântico 99

minado tipo de pensamento que parecia definitivamente con-


denado pelo desenvolvimento das filosofias racionalistas e, em
especial, da investigação científica. Como poderiam sobreviver
e se difundir, num tal contexto, doutrinas e sistemas que
negariam ou desconheceriam o progresso dos conhecimentos
e que, no fundo, apresentam um caráter tão “logicamente
insustentável”? A resposta é que estaríamos tratando aqui com
“doutrinas de compensação”, instaladas justamente nas lacunas
deixadas pelos grandes sistemas filosóficos e científicos ao
progredirem (PJ: XV). De Descartes a Spencer, passando por
Kant e Comte, o saber ocidental teria se orientado cada vez mais
na direção de uma pura “teoria do conhecimento”, que tentaria
estabelecer a “relatividade do conhecimento humano”, provo-
cando assim um divórcio cada vez maior entre o saber relativo
acerca dos fenômenos, objetivo da ciência, e o acesso ao
absoluto, missão da metafísica (PJ: VI). Interditando desse
modo o acesso do conhecimento a uma certa parcela da
realidade, estaríamos abrindo as portas para a entrada em cena
do sentimento, que trataria logo de apossar-se desses níveis da
realidade deixados de lado pela razão: “pede-se hoje ao
sentimento e à crença aquilo que o conhecimento não oferece
mais” (PJ: XV). Todo período histórico que põe em dúvida os
poderes da razão termina por proporcionar uma possibilidade
de instauração para as filosofias do sentimento. Ao contrário,
momentos como os representados pelo pensamento antigo ou
pelo sistema de Spinoza não permitem o desenvolvimento
desse tipo de filosofia na medida em que asseguram, através de
um perfeito equilíbrio entre o sujeito e o objeto de conhecimen-
to, o domínio absoluto da razão.
A prova conclusiva desse diagnóstico será buscada na
esfera da ética. A impossibilidade de aceitar ao mesmo tempo
a existência do absoluto e seu caráter incognoscível assumiria
forma particularmente grave no caso das exigências da conduta
moral. Como orientar-se racionalmente quando se supõe, por
um lado, que a razão está limitada ao mundo empírico dos
fenômenos e, por outro, que os imperativos morais devam
participar do absoluto? Mesmo a “razão prática” de Kant estaria
situada do lado da “razão que ordena e não (…) da razão que
conhece” (PJ: XXV). Desse modo — e na medida em que o
agnosticismo é tido como uma solução impossível, por ser “um
vício lógico (…) que faz violência a sentimentos fundamentais
da natureza humana” (PJ: XIV) — as morais ditas do sentimento
100 Razão e Diferença

podem ficar a vontade para se estabelecer nesse nicho abando-


nado pelo pensamento racional. “A moral metafísica, a moral
fundada a priori, não é mais. A moral científica não é ainda, se
é que um dia será (…). Nesse intervalo, nessa crise (…) o lugar
é ocupado pelas morais da crença e do sentimento” (PJ: XXVII).
Essa “solução”, entretanto, é completamente inaceitável para
Lévy-Bruhl. As filosofias do sentimento e as morais da crença
colocam-se explicitamente fora de qualquer discussão, sendo
impossível argumentar com elas ou, pior ainda, contra elas. Só
podem constituir um convite para o obscurantismo, o reacionarismo
e a intolerância. O argumento, freqüentemente utilizado por
essas filosofias e essas morais, que atribui ao racionalismo os
males de sua época, deveria ser invertido: é “o sentimento [que]
divide os homens, a razão os une” (PJ: XXXIV). A associação tão
comum entre pensadores do sentimento e forças contra-revo-
lucionárias e reacionárias seria suficiente para impedir qual-
quer dúvida, e são o tradicionalismo, o espiritualismo e o
ecletismo franceses que se tem em mente ao denunciar esse
perigoso parentesco. É verdade que a razão também pode
servir para “dividir os homens”. Isso seria, contudo, apenas
uma contingência na medida em que somente ela é capaz de
“libertar”: “o constrangimento que impõe é salutar; os elemen-
tos individuais que ataca, preconceitos, prevenções, legados
do passado, resultados da educação, são obstáculos na busca
do verdadeiro” (PJ: XXXVI). Lévy-Bruhl pode, então, resumir
sua posição em relação a essas filosofias e morais do sentimen-
to e da crença: “que a razão abandone seus direitos por falta de
coragem, por impotência, ou por humildade, o perigo é o
mesmo. Esses direitos não permanecem desocupados. A auto-
ridade logo se apodera do lugar deixado vazio ; a liberdade de
pensar está ameaçada, e as demais liberdades, que se ligam a
essa pelos laços mais estreitos, estão simultaneamente com-
prometidas” (PJ: XXXVII).

A
Toda essa discussão leva a crer que Lévi-Strauss (1946:
537-9) tem razão quando aponta o “individualismo” e o “huma-
nismo” que Lévy-Bruhl teria buscado opor à síntese sociologi-
zante elaborada por Durkheim a partir de Bonald e Comte. De
fato, a impressão deixada pela leitura de suas obras de história
Clássico e Romântico 101

da filosofia, a despeito de sua habitual discrição, é que suas


maiores simpatias se dirigem inequivocamente para os filóso-
fos do Iluminismo. Ele reconhece, é claro, exageros e excessos
nesse racionalismo progressista, chamando a atenção para eles,
no entanto, menos em virtude de uma censura particularmente
grave que pelo fato de terem aberto o flanco do racionalismo
para as investidas de seus inimigos. Se pensadores como
Pascal, Rousseau, os românticos alemães e Jacobi são objeto
por vezes de certa aprovação, é justamente no sentido de
constituírem um alerta para os racionalistas. Eles teriam mostra-
do, ainda que alguns apenas de modo negativo, a necessidade
de incorporar a tradição e os sentimentos tanto ao pensamento
filosófico quanto à reforma moral e social, a necessidade de
uma síntese enfim. Lévy-Bruhl não parece duvidar, contudo,
que esta síntese só poderia ser efetuada dentro dos marcos de
um racionalismo, talvez alargado, mas que continuasse a
valorizar a razão acima de tudo.
Nos dois extremos desta fase de sua trajetória intelectual
— A Idéia de Responsabilidade, de 1884, e A Filosofia de
Augusto Comte, de 1900 — o caminho seguido pode ser
observado com nitidez. A tese de doutorado, embora claramen-
te inspirada pela filosofia kantiana, está bem próxima de uma
valorização do sentimento e do reconhecimento da importân-
cia das paixões e da tradição para o pensamento filosófico, sem
que isso signifique uma adesão às filosofias emocionalistas
propriamente ditas. O positivismo, tão criticado nesse primeiro
livro, passará progressivamente a ser encarado como a síntese
mais adequada entre razão e emoção, na medida em que Comte
teria sustentado que o lado emocional do homem (seu “cora-
ção”) só pode ser atingido — se quisermos evitar todo “misti-
cismo” estéril —através das crenças, que por sua vez exigem,
para serem compreendidas, um esforço analítico que transfor-
me nossos modos de conhecimento. Creio, contudo, ter podido
mostrar que mesmo a leitura que Lévy-Bruhl faz de Comte
tende a privilegiar o elemento de “progresso”, não o de
“ordem”: a segunda só poderia ser atingida de forma satisfatória
se o primeiro fosse implementado através do desenvolvimento
racional dos conhecimentos do homem. Retornando ao percur-
so intelectual de Lévy-Bruhl rapidamente esboçado por Leenhardt,
poderíamos talvez dizer que A Idéia de Responsabilidade
representa, ainda que parcialmente, o momento de atração
pelas filosofias do sentimento e pelas morais da crença, atração
102 Razão e Diferença

controlada contudo por um neo-kantismo razoavelmente explí-


cito. Por outro lado, o livro sobre Comte e a História da
Filosofia Moderna na França marcam a adesão a um positivis-
mo cientificista, adesão igualmente limitada e corrigida por um
racionalismo ainda mais inflexível que o de Kant, o da filosofia
das Luzes. Enfim, o trabalho sobre a Alemanha e A Filosofia de
Jacobi consistem em esforços de investigação acerca da força
e da organização interna das doutrinas inspiradas pela crença
e paixões, esforços que acabam desembocando em um certo
paradoxo, ao constatarem que a eficácia dessa força parece
estar sempre aliada à precariedade e ao caráter logicamente
insustentável dessa organização.
A “primeira carreira” — como dizia Comte de sua própria
trajetória — de Lévy-Bruhl, a de historiador da filosofia,
praticamente se encerra aqui. Em 1903, publicará A Moral e a
Ciência dos Costumes, obra que mesmo não sendo, como diz
Mauss (1939: 563), inteiramente de sociologia, marca uma
passagem para as ciências sociais que iria se consolidar poucos
anos mais tarde com os estudos propriamente etnológicos.
Antes, porém, de investigar essa “segunda carreira” — verda-
deiro objeto deste trabalho — e mesmo antes de tratar da obra
de transição acerca da moral, convém debruçar-se rapidamente
sobre sua última contribuição original à história da filosofia,
uma vez que os textos e conferências mais tardios consistirão
sobretudo em retomadas do que já havia sido desenvolvido
antes de 1903. Trata-se de um trabalho destinado a ser o
prefácio de uma tradução francesa das “obras filosóficas esco-
lhidas” de David Hume. Publicado em 1909 — um ano apenas
antes de As Funções Mentais… — este trabalho permitirá uma
visão final da “primeira carreira” de Lévy-Bruhl.
Escrevendo mais de sessenta anos depois dele, Gilles
Deleuze (1972: 59-60) denunciou o trabalho de neutralização
que a história da filosofia tradicional teria empreendido, ao
reduzir o empirismo a uma simples crítica do inatismo e do
apriorismo, deixando de lado o caráter revolucionário e ame-
açador deste pensamento em relação às filosofias estabeleci-
das. Grosso modo, a posição de Lévy-Bruhl sobre Hume faz
nitidamente parte desse tipo de trabalho, revelando ao mesmo
tempo como o positivismo comtiano servia, nesta época ainda,
de quadro de referência fundamental. O artigo de 1909 insiste
em negar, contra o próprio Hume às vezes, o caráter meramente
“cético” de sua doutrina, buscando reduzir esse suposto ceticis-
Clássico e Romântico 103

mo à intenção de afastar-se da metafísica tradicional com sua


inútil procura de causas e essências (OH: 617-8). Na mesma
direção, o fato de Hume estabelecer que o estudo das “associ-
ações” constituiria o verdadeiro objeto da investigação filosó-
fica e científica, é interpretado simplesmente como prenúncio
da tese positivista que afirma que apenas as leis dos fenômenos
podem ser o objeto da ciência (OH: 600-2). Em terceiro lugar,
a defesa da necessidade de submeter-se à “experiência” e a
intenção de fundar uma nova “ciência do homem” são enca-
radas como reações ao pensamento teológico-metafísico e
como antecipações de uma filosofia positiva ainda por ser
fundada (OH: 600-4). Hume chega mesmo a ser pensado como
o grande defensor da necessidade de fazer “passar a filosofia do
ponto de vista do absoluto para o do relativo”, ou seja, da tese
positivista fundamental que é a da relatividade do conhecimen-
to humano (OH: 600). Sua crença na unidade profunda da
humanidade é elogiada, mas apenas na medida em que, neste
caso, não eliminaria a noção de um progresso ascendente da
humanidade (OH: 605-6). Enfim, Hume teria sido um crítico
avant la lettre do pensamento ainda excessivamente metafísico
de Kant, já que teria demonstrado a absoluta inutilidade da
tentativa de fundar de direito a legitimidade da ciência: “para
que serve transportar, como o faz a “Crítica”, para o entendi-
mento humano as leis constitutivas da natureza? Seria preciso
agora dar conta das categorias e seus princípios” (OH: 619). É
por isso que a crítica de Hume não teria se limitado à categoria
de causalidade, atingindo também, embora com ênfase menor,
a própria categoria de substância.
A partir de uma análise assim orientada, Lévy-Bruhl só
pode afirmar que “neste sentido Hume é aqui positivista” (OH:
613). Mesmo o ponto que mais o oporia a Comte acabará
servindo para aproximar os dois autores. Se o primeiro recusa
a possibilidade da idéia de ordem estar assentada, como para
Comte e Stuart Mill, numa repetição das induções, é simples-
mente para atribuí-la à “idéia de conexão necessária”, que, não
podendo originar-se da experiência — uma vez que é o
fundamento desta — só poderia encontrar sua sede no “sujeito
cognoscente”. Ora, isso significaria que Hume estaria simples-
mente defendendo a necessidade do conhecimento científico
desse sujeito do conhecimento, ou seja, da natureza humana —
mesmo objeto que em última instância sempre teria interessado
a Comte (OH: 610-1). No limite, quando forçado a admitir que
104 Razão e Diferença

a idéia de natureza humana de Hume é bem diferente da


imaginada por Comte, é ainda pelo positivismo que Lévy-Bruhl
decide o antagonismo. O erro do primeiro teria sido limitar sua
investigação “ao ponto de vista da consciência individual”, sem
se dar conta de que o fato de os juízos acerca da experiência
serem válidos para todos os espíritos e coincidirem realmente
com a ordem dos fenômenos obrigaria a passar do individual
para o coletivo. Esta passagem, Comte a teria efetuado, ao
mostrar que o estudo científico da natureza humana só poderia
se realizar tomando como objeto o “sujeito coletivo”, a “Humanidade”.
Hume, nesse sentido, ainda estaria “a meio caminho entre a
metafísica e a ciência” (OH: 614-6), sua obra consistindo
apenas em um esforço, admirável sem dúvida, para impedir que
a razão se aventure nos domínios aos quais não pode ter
acesso. Mesmo aquela que é talvez a noção mais ameaçadora
e problemática de Hume — a de crença — recebe um
tratamento tranqüilizador. Advertindo, o que é extremamente
importante, para a dificuldade de traduzir belief por croyance,
Lévy-Bruhl demonstra que o primeiro termo não implica
apenas um julgamento, mas, principalmente, um sentimento de
objetividade. Ele crê poder concluir, afirmando que isso nos
mostraria “a psicologia de Hume muito atenta às nuances e às
variações perpétuas dos estados mentais, e a suas colorações
cambiantes que desafiam toda expressão na linguagem” (OH:
614). Em suma, para retomar uma expressão que Florestan
Fernandes (1954: 127) aplicou ao próprio Lévy-Bruhl, este
acredita que com Hume estamos às voltas apenas com uma
“correção intelectualista do intelectualismo”. De qualquer for-
ma, as marcas dessa leitura, para além de todo o esforço de
neutralização, permanecerão bem vivas no espírito do leitor—
e isso por muito tempo.

A
São essas as cartas de que Lévy-Bruhl dispõe para fazer
seu próprio jogo. Ainda que a “estória dos três livros chineses”
fosse realmente tão importante quanto ele nos diz, fica difícil
não aceitar que o choque provocado pelo sentimento de
ininteligibilidade desses livros só pôde ser trabalhado e desen-
volvido a partir dos conhecimentos acumulados ao longo de
Clássico e Romântico 105

mais de vinte anos de estudos de filosofia. Ao dizer, em 1923,


que “meus trabalhos anteriores não pareciam ter me prepara-
do” para os “estudos antropológicos” (BP2: 20), Lévy-Bruhl está
apresentando apenas uma meia-verdade. Sem dúvida, a traje-
tória que o conduziu até a etnologia parece bem diferente da
seguida pela maior parte dos antropólogos profissionais. A não
ser que isso signifique apenas que o trajeto histórico da
antropologia não é tão independente do desenvolvimento do
pensamento filosófico quanto alguns gostam de imaginar.
O problema intelectual mais pessoal de Lévy-Bruhl está
de algum modo colocado desde as primeiras frases de seu
primeiro livro: “o famoso ‘tudo está dito’ de la Bruyère, é
sobretudo verdadeiro em filosofia” (IR: IX). A única solução
que ocorre a ele nesse momento é afirmar que “o progresso
filosófico consiste (…) na descoberta de uma posição nova dos
problemas, num enunciado diferente que ilumina e faz entrar
em sua solução elementos até então negligenciados” (IR: X).
Ora, quais são os “elementos negligenciados” que, de 1884 a
1903, chamaram especialmente a atenção de Lévy-Bruhl? Em
primeiro lugar, e acima de tudo, a difícil questão, para um
pensador formado no racionalismo cartesiano e iluminista, do
lugar a ser concedido às paixões e aos sentimentos. Em
seguida, o problema colocado pela tradição, o de saber como
incorporar a um pensamento que se quer moderno e progres-
sista os elementos tradicionais que insistem em resistir aos
avanços da razão. Finalmente, a dificuldade de entender, em si
mesma, essa resistência que a tradição opõe ao progresso.
Nesse contexto, é importante observar como as próprias filoso-
fias escolhidas para análise estão marcadas por essa permanên-
cia de um resíduo simultaneamente emocional e tradicional. A
interdição cartesiana da aplicação da dúvida metódica em
política, religião e moral; pensamentos como os de Pascal e
Rousseau — esse último bem no centro do próprio movimento
iluminista — lembrando o valor e a importância dos sentimen-
tos; as reações, aparentemente extemporâneas, representadas
pelo tradicionalismo, espiritualismo, ecletismo, Romantismo e
filósofos como Jacobi; a persistência de elementos místicos
muito marcados em um espírito, Comte, voltado para a grande
síntese racionalista que Lévy-Bruhl tanto admira — o tema de
uma “Religião da Humanidade” de que cuidadosamente evita falar.
Tudo isso — sua formação filosófica geral e os problemas
que esta levantou em seu espírito — constitui, para voltar a falar
106 Razão e Diferença

como Merleau-Ponty, o “texto” que Lévy-Bruhl deve “decifrar”,


texto cuja especificidade permanece em aberto. O objetivo
deste trabalho está longe de ser a análise de sua obra de história
da filosofia. Falta-me acima de tudo a competência necessária
para fazê-lo. Não creio, entretanto, estar somente transforman-
do a necessidade em virtude ao afirmar que se trata também de
uma escolha pessoal. Essa exploração inicial, bastante descri-
tiva, tem apesar de tudo uma importante função: evitar, na
medida do possível, os impasses a que freqüentemente condu-
zem trabalhos que buscam as “influências” que teriam levado
determinado autor a atingir suas posições teóricas mais madu-
ras. A maior dificuldade desse tipo de abordagem reside no fato
de que, mesmo quando se é capaz de provar que um autor leu
tal ou qual obra que, supõe-se, o influenciou, é muito difícil
saber ao certo o que nessa obra o teria interessado mais, ou
como foi por ele interpretada. O recurso às “influências”
esbarra sempre nesse limite, o pressuposto bastante discutível
de que uma obra ou um autor possuem um sentido inequívoco.
No caso de Lévy-Bruhl, dispomos das apresentações que ele
mesmo faz dos autores que mais o teriam “influenciado”, ou
que teriam colocado as questões que gostaria de responder. É
por isso que me proibi, a não ser como evocação, de confrontar
o retrato das diversas filosofias estudadas por Lévy-Bruhl com
outras leituras, inclusive com a letra dos textos dos filósofos
analisados. Descartes, Hume, Kant, Jacobi, Comte… devem ser
sempre entendidos como o Descartes, o Hume, o Kant, o Jacobi
e o Comte de Lucien Lévy-Bruhl. Além disso, limitei-me a isolar
os elementos que considero absolutamente necessários e fun-
damentais para a compreensão da “segunda carreira” de Lévy-
Bruhl, verdadeiro objeto deste trabalho15.
Nesse sentido, a hipótese que gostaria de levantar, é que
sua “carreira” filosófica revela, numa leitura evidentemente
retrospectiva, duas grandes preocupações. Da tese de doutora-
do até o estudo sobre Comte, uma das questões que mais o
atraíram é o problema, tão típico de sua época, da moral. Uma
reflexão sobre a “idéia de responsabilidade” e um livro sobre
o positivismo que tenta demonstrar que todo o sistema de
Comte aponta na direção do desenvolvimento de uma “moral
positiva”, constituem os limites temporais de sua trajetória na
filosofia. O mesmo acontece quando se trata do pensamento
filosófico francês, das idéias alemãs, do empirismo inglês ou da
doutrina de Jacobi: é a reflexão moral que constitui a grande
Clássico e Romântico 107

inquietação de Lévy-Bruhl. A outra preocupação presente em


todos os textos deste período — e que evidentemente se
articula muito de perto com o tema da moral — é a questão da
natureza humana, como ele próprio a denomina, também no
espírito de seu tempo. Alguns como Kant, teriam sustentado a
impossibilidade de chegar realmente a conhecer essa natureza;
outros, como Comte, tentam fazer de sua compreensão cientí-
fica o objetivo de toda a filosofia e de toda a ciência. Nem um
nem outro contudo — nem, tampouco, os iluministas, Hume ou
Jacobi — puderam dispensar a necessidade de uma antropolo-
gia, no sentido mais literal que o termo possa ter. Seria possível
conseqüentemente, como escreverá bem mais tarde Lévy-Bruhl
a Evans-Pritchard, “acrescentar algo ao conhecimento da natu-
reza humana” (LE: 413) através de uma investigação diferente
da que costuma ser efetuada em filosofia? Lévy-Bruhl parece ter
compreendido que a reflexão filosófica puramente abstrata já
havia completado seu ciclo histórico e que, para permanecer
filósofo, era absolutamente necessário arejar esse pensamento
com um sopro de realidade. Assim, as duas preocupações — a
moral e a natureza humana — serão sucessivamente encaradas
como caminhos a seguir. As intenções iniciais, bem modestas
na verdade, sofrerão, contudo, enormes modificações, na
medida em que os fatos, de que Lévy-Bruhl sentia tanta
necessidade para poder pensar 16, o conduzirem na direção de
uma aventura intelectual que ele parece jamais ter imaginado.
108 Razão e Diferença

Notas
1. A frase de Cousin é citada por René Verdenal (1973: 41). Seu ensaio
sobre “o espiritualismo francês descreve com precisão os compromissos
políticos dessa corrente de pensamento, bem como a articulação destes
compromissos com as teses propriamente filosóficas do espiritualismo em
geral e do ecletismo em particular.
2. Cf. Verdenal 1973: 39: “Forma-me homens que saibam a lógica, a
análise e que, fiéis súditos do imperador, não se ocupem de política e de
religião se não para respeitar e manter o que é”, teriam sido as instruções de
Napoleão a Fontanes. O respeito pelos “fatos”, constantemente exigido pelos
filósofos ecléticos e pelos tradicionalistas, funcionaria assim como um “com-
promisso com a ordem estabelecida” (idem: 38).
3. “Assim vivem sem nós nossas idéias; elas mudam tanto que não as
reconhecemos mais” (Gilson 1957: 450, n.1).
4. “Esse racionalista é talvez menos o positivista que se vê freqüente-
mente nele do que um representante do século das Luzes” (Merllié 1989a: 429,
n.34).
5. “É uma peculiaridade da filosofia francesa ter produzido muitos
moralistas e poucos teóricos da moral” (HP: 32).
6. O próprio Descartes não escapará da crítica dos tradicionalistas, que
não serão os únicos a levantá-la. Bem mais tarde, Lachelier, discípulo um
pouco inconstante de Cousin e espiritualista convicto, chegará a afirmar que
“não se pode falar com suficiente severidade do mal que Descartes fez à
filosofia ao substituir a doutrina de Aristóteles pela sua (…). Descartes pode
ser considerado como responsável em grande parte pelo triunfo do materia-
lismo do século XVIII” (citado em Verdenal 1973: 37). Note-se que isso foi
escrito em pleno século XIX para se ter uma idéia do impacto que esse tema
sempre causou no pensamento francês.
7. O positivismo estaria “tão inteiramente misturado ao pensamento
geral de nosso tempo que quase já não se o percebe, como não se presta
atenção ao ar que se respira” (PC: 22). Lévy-Bruhl acrescenta ainda que a
história, o romance, a poesia — além, é claro, da sociologia e da psicologia —
do século XIX trariam a marca desta poderosa influência (pp. 22-3).
8. Ferrater-Mora distingue dois “modos” de relativismo: um “radical”,
que afirma a inexistência da oposição verdadeiro/falso, outro “moderado”, que
sustenta que a oposição é válida desde que circunstâncias, condições e
momentos, objetivos e subjetivos sejam especificados. O relativismo positivista
se enquadra inteiramente no segundo caso.
9. É importante observar que em 1899, Lévy-Bruhl se encarregou de
publicar, com uma Introdução, a correspondência entre Comte e John Stuart
Mill, na qual o primeiro defende contra o filósofo inglês a unidade de sua
própria obra, com a “Religião da Humanidade” aí incluída.
10. Florestan Fernandes (1954: 121-4) tem inteira razão ao assinalar que
a obra de Lévy-Bruhl se situa no contexto do processo de secularização próprio
à sociedade ocidental, manifestando seus efeitos e crises.
Clássico e Romântico 109

11. Lembremos, mais uma vez, o que diz Florestan Fernandes (1954:
121) de Lévy-Bruhl: “os verdadeiros sábios se esforçaram por colocar a
investigação científica a serviço completo da razão. Lévy-Bruhl está entre estes
sábios”.
12. Como afirma Merllié (1989a: 438), o trabalho de Lévy-Bruhl parece
ter sempre se inscrito “em um movimento que pode parecer um aprofunda-
mento ou uma radicalização, mais que uma rejeição do criticismo”.
13. Cf. também, AL: 178; PJ: V; HP: 77-8; PC: 262-3; entre as inúmeras
ocasiões em que fará menção a esse lema.
14. Bernard Bourgeois (1989), que dedicou um pequeno artigo a “Lévy-
Bruhl e Hegel”, parece não ter se dado conta de que é esse excesso de
transigência de Hegel para com a contradição que o torna pouco confiável aos
olhos de Lévy-Bruhl — mais do que as censuras políticas que Bourgeois se
limita a constatar.
15. “E no fundo, por que Lévy-Bruhl se interessou, ele o racionalista,
por Jacobi? Não há aí o primeiro índice de um interesse pelo outro do
racionalismo? (…) Qual a relação entre A Alemanha desde Leibniz e o estudo
dos Papua? Aquele que encontrar a relação terá a chave dessa obra, que
permanece em grande parte enigmática” (Soulez 1989: 482).
16. Como diz Leenhardt (1949: XIX), Lévy-Bruhl pretendia atingir “um
aspecto sociológico do ser”: “Seu pensamento tinha necessidade de apoiar-se
a cada momento sobre um fato concreto ou um dado preciso”.
110 Razão e Diferença
3
O Sábio Como Astrônomo
Ciência e Moral

Enquanto sentires as estrelas “acima” de ti, não possui-


rás o olhar do conhecimento.
Além de Bem e Mal

Em 1903, o problema moral não pode ser considerado


novidade no pensamento de Lévy-Bruhl. A Idéia de Responsabilidade
pretendia, como vimos, isolar um domínio moral absolutamente
distinto do reino natural e da esfera social. Domínio fechado para
a investigação científica estritamente racional, que deveria saber se
contentar com o mundo relativo dos fenômenos, deixando que a
especulação filosófica e metafísica se encarregasse de abordar, de
forma necessariamente indireta, os valores absolutos que constitui-
riam a realidade moral. Posição que provocava, conseqüentemente,
o apelo a uma espécie muito particular de sentimento —“quase
religioso” — que poderia levar os homens a se curvarem diante
daquilo que inevitavelmente escapa à sua compreensão. Este
sentimento marcaria a originalidade e superioridade irredutíveis do
ser humano, distinguindo-o do restante da natureza, constituindo a
própria condição de possibilidade de uma vida individual e social
verdadeiramente humana (cf. em especial, IR: 214). O estudo do
“desenvolvimento da consciência nacional na Alemanha” demons-
tra, por sua vez, como o fortalecimento dos laços puramente morais
teria contribuído para a constituição do sentimento nacionalista e a
unificação política alemã. As grandes contribuições científicas e os
grandes sistemas filosóficos teriam representado uma parte secun-
dária num processo que teria dependido bem mais dos “poetas,
críticos e filósofos”, especialmente os mais obscuros. Longe de
pretender convencer seu público por meio de uma argumentação
racional cerrada e coerente, teriam sabido apelar para sentimentos
de que se tinha muito pouca consciência e que, por isso mesmo,
112 Razão e Diferença

funcionavam como os móveis essenciais da ação e da participação


(AL: 178). Mais uma vez, Lévy-Bruhl inscreve o fenômeno moral do
lado da paixão, não da razão.
A Filosofia de Jacobi apresenta uma posição diferente, reve-
lando, ainda que de forma indireta e crítica, de onde provinha a
concepção de moral adotada por Lévy-Bruhl pelo menos até 1890.
O livro demonstra como Jacobi pretendia abandonar a noção de
“regra moral” para substituí-la pela de “sentimento moral”, compre-
endido no sentido de uma intuição ininteligível que nos ofereceria
ao mesmo tempo o “absoluto” e a “liberdade” inatingíveis por uma
razão que conhece apenas o “relativo” e o “determinismo”. A moral
seria tão “natural” quanto a religião, mas, assim como a natureza
desta consiste justamente em ascender ao sobrenatural, também a
“moral natural” significa a abertura humana para o domínio do
absoluto. Todos os erros e desvios em matéria de religião e moral
derivariam das tentativas dos filósofos em impor a razão numa esfera
sobre a qual não teria na verdade nenhum poder efetivo (PJ: 114-
25). É dessa concepção que Lévy-Bruhl busca se afastar nesse
momento, a crítica geral que dirige contra as “filosofias do sentimen-
to” sendo duplicada por suas restrições às “morais do sentimento”.
A História da Filosofia Moderna na França jamais deixa de
lado as concepções morais presentes em cada um dos sistemas
filosóficos analisados. Sabemos que Descartes teria evitado cui-
dadosamente qualquer incursão nesse domínio, chegando mesmo
a recomendar como “moral provisória” a pura e simples aceitação
das normas estabelecidas (HP: 32). Sabemos também, no entanto,
que pelo menos desde Pascal o interesse pela moral se confunde,
na França, com o esforço para pensar racionalmente a realidade
propriamente humana, de modo que “ciência moral” e “ciência
humana” passarão a ser expressões quase equivalentes (HP: 89). É
o século XVIII que se dedicará à tarefa de estender a crítica
cartesiana ao universo político e social, ou seja, ao domínio da moral
(HP: 107-10), o que permite a Lévy-Bruhl afirmar que “mesmo em
nossos dias sua concepção da moral independente da religião e da
metafísica parece a muitos perigosamente impertinente” (HP: 125).
A tese de que a moral deveria ser essencialmente “natural” permeia
o pensamento de praticamente todos os filósofos ligados ao
movimento iluminista: separando-a radicalmente da religião, da
metafísica tradicional e da autoridade política constituída, as Luzes
buscarão conectar a moral com uma suposta natureza humana
originária e imaculada, atribuindo todas as distorções e vícios aos
artificialismos a que a vida social teria submetido essa natureza. Daí
O Sábio como Astrônomo 113

o fato aparentemente paradoxal de pensadores racionalistas asso-


ciarem em geral a moral ao “sentimento natural” do homem,
advogando a necessidade de compreender a “preeminência da
moralidade e subordiná-la ao conhecimento” (HP :256). Os “ideó-
logos” logo acrescentarão, contudo, que sendo assim, o conheci-
mento científico da natureza humana deve desempenhar um papel
fundamental para o estabelecimento de uma moral a ela adequada,
reconduzindo a argumentação para o racionalismo iluminista (HP:
306).
Já conhecemos também a reação que esse naturalismo
voluntarista teria provocado. Para os tradicionalistas, nada haveria
a ser pesquisado ou modificado: se a moral está fundada sobre a
tradição, em especial sobre a que deriva da religião, toda violação
ou desconhecimento desse caráter transcendente só poderia acar-
retar perturbações tão violentas quanto as trazidas pela Revolução
(HP: 311). O ecletismo de Cousin, bem como o espiritualismo
francês em geral, prosseguirá nessa tentativa de combater o que
considera os “excessos” do racionalismo. Ele será, contudo, mais
sutil do que Bonald ou De Maistre. A pesquisa puramente “reflexiva”
é admitida e promovida sob a condição de partir da certeza a priori
de que os resultados pretendidos consistirão apenas no desenvol-
vimento do “ponto de vista espontâneo” que levaria o homem a crer
no absoluto e a respeitar a tradição e a religiosidade, seus represen-
tantes neste mundo (HP: 338-9).
Enfim, para podermos retornar a 1903, entre os traços típicos
do “movimento contemporâneo” da filosofia francesa Lévy-Bruhl
delimitava, lembremos, a enorme preocupação com as questões
morais, em especial as derivadas da ética social. Ecléticos, positivis-
tas, neo-kantianos, metafísicos, todos estariam interessados no
desenvolvimento e na divulgação de um sistema moral que fosse
compatível com as exigências de sua época. Uma importante
modificação poderia ser detectada nesse momento. Renan teria de
algum modo invertido o pensamento tradicionalista — que fazia da
moral um produto da transcendência divina, acessível aos homens
através da tradição — ao fazer da própria divindade um produto da
moral (HP: 408-9). Ao lado desse esforço eminentemente raciona-
lista, um outro tipo de investigação também se constituía, a
sociologia, que, de acordo com Guyau, poderia vir a se transformar
numa nova solução para antigas questões filosóficas, em especial
para a questão moral (HP: 456). Esse caminho poderia mesmo ser
detectado como central nos desenvolvimentos concretos da socio-
logia, com Espinas, Tarde e, sobretudo, Durkheim (HP: 3-4).
114 Razão e Diferença

O verdadeiro responsável por essa recondução do sentimen-


to, da religião e da tradição para a racionalidade só poderia ser
Augusto Comte. Subordinando prática e especulativamente a moral
à sociologia, o positivismo teria finalmente aberto o caminho para
uma investigação científica da moralidade, que deveria, por sua vez,
desembocar em um sistema moral racionalmente construído e
imposto (PC: 349-50). Mais uma vez, Comte aparecerá como o
grande espírito que teria efetuado a síntese de toda a tradição
filosófica francesa. Sua moral pode até parecer “de sentimento”,
como a dos iluministas (PC: 363); diferentemente destes, contudo,
sustenta que qualquer sistema moral que pretenda estar de acordo
com a natureza humana deveria abandonar as ilusões empiristas e
sensualistas das Luzes, admitindo que só poderia ser estabelecido
através da análise científica das tendências inatas do homem —
posição que poderia sugerir uma aproximação com os ecléticos.
Entretanto, ao contrário destes, Comte sustentava que os resultados
de sua pesquisa não poderiam ser antecipados e que o ponto de
vista chamado positivo deveria anteceder, ainda que provisoriamen-
te, o normativo (PC: 354-6). O problema moral não poderia derivar,
de forma alguma, de um impossível afastamento do homem em
relação a sua natureza original (como acreditavam os iluministas),
mas, simplesmente, de um acidente histórico que poderia e deveria
ser corrigido, a saber, a incompatibilidade entre as morais concre-
tamente existentes e o efetivo estado de desenvolvimento intelec-
tual da humanidade (PC: 367-73). Purificando as ciências de seus
resíduos teológico-metafísicos e fundando a sociologia — ciência da
natureza humana — Comte acreditava estar lançando as bases de
um sistema moral capaz de reformar as crenças e, conseqüentemen-
te, as instituições e a sociedade. No positivismo, “tudo se reduz (…)
em última análise a essa questão: ‘os fatos morais e sociais podem
ser estudados da mesma maneira que os outros fatos naturais?’ (…).
A criação da ciência social é o momento decisivo na filosofia de
Comte. Tudo parte dela, e tudo a ela reconduz (…), a filosofia das
ciências, a teoria do conhecimento, a filosofia da história, a
psicologia, a moral, a política, a religião” (PC: 396-7).
Em 1909, ao apresentar o pensamento de David Hume, Lévy-
Bruhl ainda se encanta com essa possibilidade de fundar uma moral
— ao mesmo tempo racional e compatível com os sentimentos do
homem — a partir da investigação científica da natureza humana.
O próprio “ceticismo” de Hume é, como vimos, reduzido a um
desejo de afastar-se do pensamento teológico e metafísico então
dominante, toda a crítica da tradição filosófica que empreende
O Sábio como Astrônomo 115

sendo encarada simplesmente como um esforço para fundar uma


“ciência moral” que estivesse atenta à necessidade de se estudar o
homem empiricamente, pronta a estabelecer um sistema moral
adequado à natureza humana (cf. OH: 617-8; 600-2).
É evidente que a questão moral tem atrás de si uma longa
história, enraizada na tradição filosófica na qual Lévy-Bruhl foi
intelectualmente formado. É claro também que ele dificilmente
poderia deixar de compartilhar com os homens de sua época
crenças e valores que direcionarão sua abordagem dessa questão:
tradição filosófica, formação individual e contexto histórico consti-
tuem, sem dúvida, o substrato das análises que Lévy-Bruhl empre-
enderá sobre a moral1.
Tudo isso significa que a introdução de um “método positivo”
no estudo das questões morais, bem como nas propostas concretas
que visavam encontrar soluções para os problemas a elas ligados,
pode ter representado um caminho para os que desejavam se
libertar da tradição espiritualista e conservadora então dominante —
e isso no contexto das convulsões políticas e sociais que abalavam
a França no final do século XIX. É claro que esse processo não é tão
novo e revolucionário quanto os que nele estavam engajados
gostavam de imaginar. Como demonstrou Châtelet, a própria
autonomização de uma esfera consagrada às práticas e à reflexão
moral frente à religião e à metafísica tradicionais — fenômeno que
teria começado com a publicação do Dicionário Histórico e Crítico
de Bayle, em 1697 — pode ser interpretada como uma tentativa de
libertação de uma disciplina intelectual e social autoritária (Châtelet
1978: 105-6; 117-8). Por outro lado, Châtelet evita retornar ao velho
esquema positivista adotado por Lévy-Bruhl, já que na moral
proposta por Bayle não detecta qualquer reinvindicação de cienti-
ficidade. Lembra igualmente que essa autonomização da moral
corresponde claramente a um processo de individualização típico
do desenvolvimento da sociedade capitalista emergente — o que se
afasta bastante do modelo positivista, que supõe um desenvolvi-
mento intelectual mais ou menos puro e livre de qualquer influência
exterior prévia (idem: 102-4). Nesse sentido, toda a reação eclética
e espiritualista francesa poderia ser encarada como um esforço para
rechaçar o radicalismo de Bayle, assim como o de Rousseau ou Kant:
é o que Châtelet denomina passagem “da moral à moralização”
(idem: 113), fenômeno contemporâneo à tentativa de afirmação da
França como “grande nação civilizada” (idem: 114). Nada a estra-
nhar, portanto, que uma ideologia desse tipo, duplicada por seus
116 Razão e Diferença

esforços de “moralização”, tenha logo assumido os altos postos


escolares e universitários do sistema de ensino francês.
De acordo com seus próprios testemunhos, o movimento
global de que fizeram parte homens como Durkheim ou Lévy-Bruhl
pretendia combater essa moralização, na qual enxergavam traços
por demais comprometidos com a tradição religiosa e filosófica de
que desejavam se libertar. A ciência, ou antes, o cientificismo
positivista, servirá de instrumento e arma no combate que travarão
para eliminar o que consideram resíduos de um passado a ser
ultrapassado. Não obstante, o próprio sucesso desse movimento,
assim como a rapidez com que substituiu na universidade a antiga
filosofia espiritualista, permitem levantar algumas dúvidas sobre
esse aparente e confessado antagonismo. Eu tenderia a dizer que se
de fato a ciência pôde — como pode sempre — funcionar como
meio de subversão de antigos valores, o cientificismo (que parece
derivar de toda grande transformação científica) serviu como forma
de controle do poder explosivo que a investigação propriamente
científica encerra. Uma moral “cientificamente” fundada está muito
mais do lado da reação “moralizadora” que do da explosão que
certas reinvindicações de ordem “moral” podem provocar. Se os
meios da “moral científica” são diferentes daqueles postos em ação
pelo pensamento mais tradicional, seus fins não deixam de ser
substantivamente os mesmos: “enquanto a ciência não está feita,
nenhuma instituição tem caráter intangível e sagrado” (MM: XXXI -
o grifo é meu).
Nesse contexto, talvez seja possível recolocar a antiga questão
das relações entre o pensamento francês e a Revolução. É idéia
aceita que haveria aí um tipo de determinismo que, se não funciona
no nível das teses substantivas defendidas por diferentes pensado-
res, serviria ao menos para impor os problemas que deveriam ser
abordados. Comte, Lévy-Bruhl, Durkheim e vários historiadores das
idéias contemporâneos, não parecem ter dúvidas em afirmar esse
tipo de articulação. Os verdadeiros impasses começam quando se
tenta definir com mais clareza os alinhamentos políticos reais. A
versão de Lévy-Bruhl, por exemplo, tenta demonstrar que o
positivismo seria um esforço para compensar as insuficiências do
pensamento iluminista — tão comprometido com a Revolução —
através da incorporação e superação das críticas efetuadas por
tradicionalistas e espiritualistas. Parece-me, ao contrário, que o que
Comte e seus sucessores realmente fazem é incorporar a noção
iluminista e revolucionária de progresso, evitando cuidadosamente
que comprometa o postulado fundamental da ordem. Tudo se passa
O Sábio como Astrônomo 117

como se fosse imperativo estancar os efeitos que a Revolução — que


desempenha o mesmo papel libertador que Châtelet atribui à
“moral” — nunca deixou de produzir. Não a Revolução em si
mesma, com seus impasses, terrores e absurdos; mas, certamente,
o “entusiasmo pela Revolução (…), signo, segundo Kant, de uma
disposição moral da humanidade” (Foucault 1983: 38). Disposição
que só pode significar, para falar novamente como Châtelet (1978:
118), a idéia de que “é um dever impor sua liberdade, e isso até a
insurreição”. Ora, esse princípio é o contrário do que pretendem
todas as tentativas de “moralização”, entre elas as inspiradas por
uma ideologia cientificista apoiada sobre o positivismo à qual, sem
dúvida, Lévy-Bruhl adere neste momento. O problema é que o
fenômeno revolucionário, ou antes, o entusiasmo pela Revolução,
não é um fenômeno externo obrigando o pensamento a se mover
para atingi-lo; é uma comoção que se dá também no interior desse
pensamento, transformando-o por completo. As opções que real-
mente se colocam são a de aceitar o abalo, buscando levá-lo às
últimas conseqüências, ou a de recusá-lo, tentando reconduzir o
saber à antiga e suposta calma.

A
Não devemos estranhar, portanto, que A Moral e a Ciência dos
Costumes seja, para empregar uma expressão do próprio Lévy-Bruhl
a respeito de Jacobi, uma “obra militante”. Obra que pretende
simultaneamente demonstrar a inanidade das antigas “morais teó-
ricas” e lançar as bases de uma nova “ciência positiva dos costumes”,
que deveria servir, no futuro, para estabelecer uma “arte moral
racional”. A avaliação dos sistemas morais existentes é antes de tudo
negativa, sua aparente heterogeneidade e sua suposta oposição
recíproca, podendo ser imediatamente dissolvidas por um olhar
mais atento. Torna-se possível sustentar, conseqüentemente, que as
morais antigas, as que se inspiram direta ou indiretamente no
cristianismo e as modernas — em suas duas vertentes, uma
intelectualista e racionalista, outra baseada em “doutrinas místicas,
sentimentais, voluntaristas” (MM: 52-3) — se reúnem em um mesmo
esforço para subordinar todo estudo teórico às necessidades da
prática mais imediata, o que mostraria logo o estreito parentesco
entre os vários tipos de “morais teóricas”. Mesmo um sistema tão
sofisticado quanto o kantiano é acusado de simplesmente tentar
118 Razão e Diferença

transportar para a “própria razão (…) o princípio que outros


distinguem da razão” (MM: 55). A rigorosa separação entre razão
pura e razão prática não passaria de um esforço para reconciliar o
racionalismo das morais antigas e de parte das modernas com as
influências cristãs e a vertente “mística” da modernidade, recon-
ciliação que serviria apenas para demonstrar a cumplicidade oculta
entre esses sistemas aparentemente tão antagônicos (idem). Prova
suplementar de tal cumplicidade seria o fato de que, por maiores
que sejam as discordâncias teóricas entre esses vários sistemas
morais, praticamente todos defendem as mesmas práticas: “os
diversos sistemas são irreconciliáveis, e se refutam uns aos outros
no que diz respeito às questões de princípio; estão de acordo sobre
os deveres a cumprir” (MM: 35). Contradição apenas aparente, que
se explica com facilidade se tornarmos a lembrar que todas essas
morais, a despeito do que elas próprias possam afirmar, não passam
de tentativas de sistematização teórica de moralidades empirica-
mente existentes, ou seja, todas se caracterizam, em outro sentido
agora, pela subordinação da teoria à prática.
Lévy-Bruhl supõe que num tal contexto, e após o apogeu das
doutrinas iluministas, a reação conservadora do final do século
XVIII teria tido a virtude de propiciar a suspensão provisória dos
julgamentos de valor imediatos e pretensamente espontâneos,
tornando possível, ainda que não tenha sido essa sua intenção, uma
apreciação mais desinteressada e justa da questão moral. Os
tradicionalistas teriam ensinado, teórica e praticamente, que as
morais concretas não são nem tão maleáveis nem tão transformáveis
quanto supunha o otimismo racionalista das Luzes. Isso não
significa que as forças reacionárias devam levar a melhor. Ao
contrário, seus desafios e resistências teriam sido sobretudo uma
advertência para a necessidade de se desenvolver um conhecimento
efetivo da natureza do fenômeno moral antes de tentar qualquer
intervenção prática. O predomínio do ponto de vista normativo, por
tanto tempo inquestionado, teria sido assim posto em dúvida e o
desenvolvimento de uma perspectiva positiva que analisasse teori-
camente os fatos antes de tentar modificá-los teria se tornado
possível (MM: 94-6). Lévy-Bruhl sabe, porém, que essa atitude não
é exclusiva da segunda metade do século XIX, embora tenha sido
este o momento em que efetivamente floresceu. Antes disso, autores
como Hobbes, alguns dos enciclopedistas, Saint-Simon e Comte, já
a teriam praticado, ainda que em estado de esboço (MM: 161). As
resistências que encontraram, entretanto, foram enormes, toda uma
série de transformações intelectuais e políticas tendo sido necessária
O Sábio como Astrônomo 119

para que seu trabalho positivo pudesse ser compreendido e


implementado. As transformações políticas, Lévy-Bruhl prefere
deixar em suspenso (MM: 177-8), o que não impede que imagine-
mos que o que tem em mente são as convulsões que marcaram a
sociedade francesa e européia durante todo o final o século XIX —
guerra franco-prussiana, instalação da IIIª República com todas as
crises subseqüentes, a chamada questão operária e social, o início
do caso Dreyfus, etc. Tudo isso só poderia funcionar como
advertência contra um otimismo ingênuo e exagerado que conside-
rava como fato estabelecido a perfectibilidade moral infinita do ser
humano.
Sobre as transformações de ordem intelectual (“onde aliás a
influência das outras se faz sempre sentir” — MM: 178), Lévy-Bruhl
é bem mais eloqüente, embora seja uma delas especialmente que
prenda sua atenção. Desde o livro sobre a Alemanha, procurara
detectar um dos traços do “espírito” do século XVIII na tendência
em “transformar as questões de origem em questões de lógica, o que
permite resolvê-las com uma facilidade que nos confunde. A idéia
de uma evolução natural e inconsciente não havia penetrado ainda
a história” (AL: 93). É justamente o triunfo do darwinismo que teria
servido para recuperar e, ao mesmo tempo, corrigir essas “tentativas
de análise por gênese” (MM: 178). O estilo puramente “abstrato” ou
“lógico” de análise histórica já havia sido questionado pelo Roman-
tismo alemão que, em seu interesse pela diversidade real dos fatos
humanos, já teria advertido para o perigo das gêneses ideais e
desenvolvimentos apenas postulados (MM: 179). Com o transfor-
mismo biológico, o estudo histórico concreto teria podido enfim
subordinar as hipóteses genéticas, contribuindo para a dissolução
da aparente transcendência que recobria os fenômenos humanos,
entre eles a moral. Só assim as resistências à elaboração de novas
formas de conceber e implementar a moralidade teriam podido
começar a ser vencidas (MM: 180).
Revela-se aqui, mais uma vez, a clara convicção de que um
combate está sendo travado e que Lévy-Bruhl se alinha explicita-
mente em um dos lados que participam do conflito. Não é
surpreendente, portanto, que reserve um espaço considerável para
antecipar as críticas que acredita seriam dirigidas contra suas teses
— todo o capítulo V é destinado a isso, bem como uma série de
passagens ao longo da obra. Além disso, em 1910, por ocasião da
segunda reedição de A Moral e a Ciência dos Costumes, um prefácio
de mais de trinta páginas será acrescentado, buscando justamente
responder de forma direta às críticas efetivamente formuladas desde
120 Razão e Diferença

1903. Neste prefácio, Lévy-Bruhl identifica quatro grandes linhas de


resistência a seu livro. A primeira tentaria apontar para o caráter
supostamente destrutivo da pretensão de fundar cientificamente
uma moral: a proposta de uma “ciência dos costumes” que estudasse
objetivamente a moralidade, substituindo-a posteriormente por
uma moral científica, só poderia levar à destruição do próprio objeto
dessa ciência ou, ao menos, a dele subtrair o caráter de mistério e
transcendência de que necessita para funcionar (MM: II). Por outro
lado, de maneira completamente oposta, haveria também os que
veriam nessa nova ciência um compromisso essencialmente conser-
vador, na medida em que suporia que o sistema moral a ser
implantado seria o único compatível com as exigências de uma
natureza humana e social que ela pretende ser a única a conhecer
efetivamente (MM: XXVII-VIII). Se a primeira dessas críticas insiste
sobretudo no perigo representado pela tese central da “ciência dos
costumes” — a de que a moral seria “relativa”, “função da sociedade”
(MM: XXIV-V) — a segunda, ao contrário, parece desconfiar do
caráter provisório e mesmo fictício desse “relativismo”: uma vez
conhecidas as “leis” que governariam tanto o homem quanto a
sociedade, valores “absolutos” tenderiam imediatamente a se restabe-
lecer.
Ao lado dessas críticas de natureza política, Lévy-Bruhl crê
poder detectar outra, que incidiria sobre os aspectos epistemológi-
cos de suas teses. Para que a ciência dos costumes possa ser
afirmada como possibilidade real, é essencial sustentar a identidade
entre “natureza física” e “natureza moral”. Os críticos, contudo,
recusam até mesmo a analogia entre esses dois reinos (MM: V-VI).
Existiriam, ainda, os que procuram apontar uma suposta contradi-
ção inerente às próprias teses defendidas: teria o autor de fato se
conduzido, como afirma, de modo desapaixonado e objetivo? Ou
pelo contrário, “os julgamentos de valor e as preferências sentimen-
tais” teriam continuado a se manifestar sub-repticiamente, orienta-
dos por escolhas morais implícitas ou inconscientes que, sendo
anteriores ao estabelecimento da verdadeira ciência dos costumes,
não poderiam de qualquer forma reivindicar o benefício de terem
sido por ela estabelecidas? (MM: XII-I). Isso, por sua vez, não seria
suficiente para demonstrar a inviabilidade de um projeto que exige
uma impossível suspensão do julgamento moral até que uma ciência
ainda em seus primeiros passos viesse a se constituir plenamente?
(MM: 129-30). Mesmo supondo que todas essas dificuldades pudes-
sem ser superadas e que uma ciência dos costumes efetiva viesse a
se estabelecer, será que seus resultados, obtidos de modo pura-
O Sábio como Astrônomo 121

mente analítico, poderiam de fato “contentar o coração do homem,


que não é feito, diz Pascal, senão para o infinito”? (MM: 156).
Frente a esse conjunto de críticas, a atitude de Lévy-Bruhl é
dupla. Numa operação recorrente no campo das ciências humanas
e sociais, tenta inicialmente diagnosticar as razões que teriam feito
com que os críticos resistissem a sua proposta de estabelecer uma
ciência dos costumes; uma vez analisadas — justamente através da
metodologia que buscam contestar — essas críticas são respondi-
das. Desde o início, a raiz de todas as dificuldades na aceitação dessa
nova ciência é localizada no fato de que seria tão difícil “aceitar a
idéia de uma ciência relativa à realidade moral” quanto o teria sido,
outrora, admitir a possibilidade de uma ciência que investigasse a
própria natureza física (MM: III). Essas resistências, por sua vez,
dever-se-iam sobretudo ao caráter pretensamente “sagrado” que se
costuma atribuir tanto à moral teórica quanto à moralidade empírica
que constitui seu objeto de reflexão, problema agravado “em nossa
sociedade” por uma tradicional conexão entre religião e moral (MM:
XXII). Nesse sentido, torna-se possível afirmar que a verdadeira
ameaça representada pela ciência dos costumes não diz respeito à
moral propriamente dita, mas a uma “concepção mística e teológica
da moral” ainda muito difundida (MM: XXIII). A resistência ao
estabelecimento dessa ciência diferiria apenas em grau daquela
movida em outras épocas contra a constituição do saber científico
em geral. Do mesmo modo que a medicina, para se tornar
verdadeiramente científica, teve que superar uma concepção da
natureza ao mesmo tempo mística (“crença em espíritos ou divin-
dades” que produziriam os fenômenos — MM: 6) e metafísica (que
acredita em um “princípio vital” que governaria o universo),
também a ciência dos costumes deve se livrar dessas representações
arcaicas para poder se constituir. É claro que neste caso a dificuldade
é maior, na medida em que a realidade moral, mais que a física ou
mesmo a biológica, tem um efeito mais profundo em “nossos
sentimentos, em nossas crenças, em nossos temores e em nossas
esperanças individuais e coletivas” (MM: 7). Isso não anularia,
contudo, o fato de que nos dois casos estaríamos às voltas com o
mesmo problema básico.
O diagnóstico é, percebe-se, completamente positivista. O
que cumpriria superar são os “modos de pensar” teológico (ou
místico) e metafísico, a fim de que uma ciência positiva dos
costumes — quase sinônimo da sociologia de Comte — possa
realmente se constituir e estabelecer. As próprias resistências são
compreensíveis, já que é a “similitude moral” que agrupa os
122 Razão e Diferença

membros de toda sociedade que se sente ameaçada — “o misoneísmo


moral é, ainda hoje, um fato universal” (MM: 142). Com a progres-
siva separação da moral face às crenças religiosas e com a crise dos
sistemas metafísicos (idem), a criação de uma nova maneira de
abordar o problema moral tornar-se-ia ao mesmo tempo possível e
necessária: “para que uma verdadeira inovação moral apareça, é
preciso que a decomposição do sistema de direitos e deveres que
prevalecia esteja já bastante avançada” (MM: 144). O próprio Comte
não poderia se exprimir melhor, uma vez que o que Lévy-Bruhl
supõe é que um certo antropocentrismo — característica central do
estado teológico, lembremos — travestido de “antropocentrismo
moral” é o verdadeiro responsável por todas as resistências à ciência
dos costumes. Muito mais difícil de ser superado que o antigo
“antropocentrismo físico”, este insistiria em tomar “a razão humana
como centro do mundo”, e é apenas com a condição de abandonar
e superar esse tipo de concepção que os métodos das ciências da
natureza poderiam enfim ser levados ao domínio humano da moral
e dos costumes (MM: 206).
Essas dificuldades e resistências teriam na verdade uma base
tão forte, fruto da “força dos hábitos tradicionais” (MM: 163), que
sobreviveriam mesmo nos responsáveis pelo desenvolvimento de
novos métodos e concepções revolucionárias. Bacon e Descartes,
por exemplo, jamais teriam conseguido se libertar completamente
da escolástica contra a qual lutavam (MM: 186-7); Comte, por sua
vez, “formula a idéia de uma sociologia positiva, e sua própria
sociologia se assemelha ainda, em seus traços essenciais, a uma
filosofia da história” (MM: 187). Os inimigos internos são, portanto,
ainda mais temíveis que as críticas puramente exteriores, mesmo
que ambos derivem de um só problema, dos modos de pensar
teológicos e metafísicos ainda excessivamente difundidos em nossa
sociedade. O que cumpriria superar é, antes de tudo, essa “repug-
nância obscura e quase instintiva em conceber a ‘natureza’ moral
como análoga à ‘natureza’ física”, este “sentimento místico” que
pode mesmo sobreviver “à crença desaparecida protegendo seu
fantasma” —e isso mesmo entre aqueles que desejam sinceramente
aderir às novas concepções (MM: 163). “A ignorância ignora a si
mesma” (MM: 194) e é apenas superando o passado que continua a
viver em nós que poderemos atingir o verdadeiro progresso (MM: 191).
A forma de conduzir a análise das resistências internas e
externas que o estabelecimento de uma ciência dos costumes tem
que enfrentar corresponde a um procedimento muito comum que
permeia toda a obra filosófica de Lévy-Bruhl. Desde A Idéia de
O Sábio como Astrônomo 123

Responsabilidade, insiste, como vimos, na aplicação de um método


que denominei genealógico e que poderia também, talvez com mais
propriedade, ser chamado de geológico. O problema tratado,
qualquer que seja, é analisado, no sentido literal do termo,
decomposto nos elementos últimos que supostamente o constitui-
riam num dado momento do tempo. A essa análise puramente ideal,
sucede sempre uma tentativa de síntese, que se processa acompa-
nhando a constituição histórica do fenômeno em questão. A
conclusão costuma ser que o fenômeno — idéia de responsabilida-
de, filosofia do sentimento ou moral — aparentemente muito
simples quando não investigado a fundo, é na verdade um
composto heterogêneo de camadas provenientes de períodos
históricos muito distintos e às vezes contraditórios. No caso espe-
cífico do que Lévy-Bruhl denomina “consciência moral”, o procedi-
mento se repete: tomada usualmente pelos teóricos da moralidade
como entidade simples e homogênea, as contradições que lhe são
inerentes e os conflitos que em torno dela proliferam só podem
parecer misteriosos. Dessa forma, cada autor pode tentar propor a
solução que lhe pareça mais adequada, solução que consiste
invariavelmente num esforço para impor seu próprio sistema e suas
próprias concepções. O problema é que sabemos, escreve Lévy-
Bruhl a respeito da consciência moral que lhe é contemporânea,
“que aí se encontram elementos de proveniência e idade muito
diversas (…). Não ignoramos tampouco que a estratificação dessas
contribuições sucessivas não pode ser mais regular que a distribui-
ção das camadas geológicas numa região freqüentemente abalada”
(MM: 211). Desse modo, contradições em geral consideradas
simples equívocos de uma consciência tomada como unitária,
podem ser explicadas pelas incompatibilidades inerentes a elemen-
tos constitutivos que só coexistem devido à força do hábito e à falta
de reflexão, mas que, do ponto de vista histórico e lógico, não
apresentam entre si muita coisa em comum (MM: 86-7). A verdadeira
solução para os problemas morais só poderia provir da pesquisa da
“gênese sociológica” de cada um desses elementos e camadas, bem
como do processo pelo qual foram amalgamados e mantidos
reunidos (MM: 87). Fiel a sua inclinação pelo positivismo, Lévy-
Bruhl propõe o abandono dos esforços típicos do século XVIII, que
se contentavam com análises meramente ideais, em benefício de
uma pesquisa concreta, histórica e sociológica, que pudesse condu-
zir efetivamente a uma síntese final. Uma vez detectadas e explici-
tadas as contradições inerentes à consciência moral, a coexistência
dos elementos contraditórios tornar-se-ia cada vez mais difícil e a
124 Razão e Diferença

necessidade de reformar essa consciência surgiria como possível e


inevitável: “nas sociedades que não estão intelectualmente estagna-
das, as contradições uma vez conhecidas estão condenadas a
desaparecer” (MM: 241).
A dificuldade que permanece é que se é até certo ponto fácil
localizar e eliminar as concepções incompatíveis com o estágio de
desenvolvimento de uma sociedade, o mesmo não ocorre com as
crenças e, em especial, com os sentimentos: “nem a lógica nem a
experiência podem nada contra a coexistência de sentimentos
opostos numa mesma consciência (…). Conseqüentemente, o
processo de modificação dos sentimentos é, em geral, mais lento
que o das representações” (MM: 241). De qualquer forma, o
primeiro passo deveria ser o pleno reconhecimento do caráter
eminentemente social da moralidade, o que significa dizer que esta
se encontra sempre em relação com as demais “séries sociais” (MM:
282). É esta constatação que forneceria a chave para a compreensão
definitiva das razões últimas das incompatibilidades e contradições
entre os elementos e camadas que constituem um dado sistema
moral, bem como o meio para solucioná-las. Se incompatibilidades
e contradições existem, é porque “as séries sociais não evoluem pari
passu”, e a série moral, tão penetrada por crenças e sentimentos de
todos os tipos, só poderia se encontrar em “atraso” em relação às
demais (MM: 282). Enfim, se a vida social é composta por princípios
muitas vezes incompatíveis, caberia justamente a uma ciência dos
costumes de inspiração sociológica “mostrar que tal crença, por
exemplo, ou tal instituição, estão envelhecidas, fora de uso, sendo
verdadeiros impedimenta para a vida social” (MM: 273).

A
Percebe-se a distância que separa A Moral e a Ciência dos
Costumes de A Idéia de Responsabilidade. Embora esta última obra
já se inspirasse numa exigência de absoluta liberdade de reflexão;
embora reconhecesse que a enorme complexidade oculta sob o
caráter aparentemente simples dos princípios morais só poderia ser
revelada através de uma análise cuidadosa que incorporasse a
história e a vida social; embora o princípio de uma investigação
“geológica” já estivesse aí presente; embora toda confusão entre o
mundo relativo dos fenômenos e o universo absoluto dos valores
fosse já evitada, nada disso poderia ocultar o longo caminho
O Sábio como Astrônomo 125

doutrinário percorrido nesses quase vinte anos. A Idéia de Respon-


sabilidade concluía, como vimos, com uma advertência anti-
positivista contra o “inebriamento científico” que pretende subme-
ter tudo ao tribunal do conhecimento (IR: 244). Deste ponto de vista,
A Moral e a Ciência dos Costumes poderia ser interpretada como
uma espécie de resposta de Lévy-Bruhl a seu próprio passado
filosófico. Trata-se de fundar uma ciência da moral através da
identificação substantiva, tão recusada no livro de 1844, entre
natureza, sociedade e moralidade; trata-se, sobretudo, de transfor-
mar em objeto de ciência o que anteriormente era tido como
inacessível a todo e qualquer conhecimento discursivo. Nesse
sentido, os argumentos que Lévy-Bruhl opõe com tanta ênfase a
seus críticos representam também um debate íntimo que pretende,
sem dúvida, vencer o “passado” que nele próprio ainda “sobrevivia”.
Discernidas e analisadas as razões profundas que moveriam
seus críticos, Lévy-Bruhl pode se dedicar a contestá-los, embora
admita que essa contestação, necessariamente abstrata, esteja longe
de ser seu objetivo mais importante, pois não pretende participar de
um jogo que considera puramente discursivo e estéril. Pretende sim
propor a criação de uma nova vertente do pensamento científico,
proposta responsável, contudo, pela maior parte dessas críticas, de
modo que a melhor maneira de respondê-las consistiria em desen-
volver concretamente a ciência dos costumes. Como teria demons-
trado Comte, não basta supor a existência de leis governando um
determinado campo de fenômenos para “contrabalançar as crenças
teológicas e metafísicas”; é necessário estabelecer de fato que leis
são essas (MM: X). A ciência — o nome evocado agora é o de
Durkheim — deve comprovar a si mesma através de sua prática, não
em discussões metodológicas inúteis (MM: 24-5).
Apesar de todos esses posicionamentos explícitos, A Moral…
não chega a ser uma verdadeira discussão metodológica, dificilmen-
te ultrapassando o nível da afirmação de determinados princípios.
De qualquer forma, acredita-se aí que duas exigências deveriam ser
cumpridas a fim de se admitir a possibilidade de uma ciência dos
costumes. Em primeiro lugar, todo privilégio da prática deve ser
provisoriamente posto de lado para que o ponto de vista teórico
possa se desenvolver livremente (MM: 7-9); em segundo, é preciso
se esforçar para encarar a realidade moral de forma tão objetiva
quanto qualquer outro fenômeno (MM: 26). É justamente aqui,
contudo, que reside a principal dificuldade. Pois a moral costuma
nos parecer “voluntária e subjetiva”, o oposto dos objetos que as
ciências constituídas estudam, o que torna necessário “dessubjetivar”
126 Razão e Diferença

a realidade moral para poder tratá-la cientificamente. Tarefa difícil,


que Lévy-Bruhl só considera passível de ser executada se examinar-
mos “os julgamentos e sentimentos morais de um homem não
civilizado, ou pertencente a uma civilização outra que a da nossa
sociedade: um fueguino, um grego da época homérica, um hindu,
um chinês” (idem). Encarada “de fora”, a moral perderia o caráter
sagrado que parece possuir quando a vivemos “de dentro”. É essa
a resposta às críticas de natureza epistemológica e metodológica
opostas ao livro: apenas o ponto de vista exterior poderia levar ao
estabelecimento de uma ciência objetiva da realidade moral,
contornando todos os preconceitos que se costuma ter a respeito
desta disciplina (MM: 197-9). Às críticas de natureza política, Lévy-
Bruhl responde de modo mais sucinto. Por um lado, a ciência dos
costumes não poderia ser considerada conservadora pelo simples
fato de buscar os fundamentos sociais (ou seja, naturais) da
moralidade, ou as leis que governariam esse tipo de fenômeno —
nenhuma ciência que queira merecer esse nome pode ser normativa
ou proibitiva (MM: XXXII). Por outro, a atitude propriamente
científica só poderia ser “crítica” frente às opiniões estabelecidas
(MM: XXI). O que se pretende com essa ciência é conhecer as leis
de funcionamento da moralidade, conhecimento que tornaria
possível a intervenção racional neste domínio de acordo com o
modelo há muito estabelecido pelas ciências tradicionais (MM:
XXXIV). O princípio positivista de uma natureza ordenada, sujeita
a intervenções baseadas no conhecimento de sua ordem deveria
continuar servindo de orientação
Por essas mesmas razões, a ciência dos costumes não poderia
ser considerada destrutiva, como a acusam, na extremidade oposta
do quadro político, outros críticos. Uma ciência jamais destrói seu
objeto na medida mesmo em que, para conhecê-lo, é obrigada a
admitir que possui uma realidade própria, independente de qual-
quer vontade: “se os filósofos não fazem a moral, os cientistas
tampouco a desfazem, e pelas mesmas razões” (MM: 140). São
apenas as “morais teóricas”, as que nutrem justamente a ilusão de
“fazer a moral”, que constituem o alvo do lado polêmico da ciência
dos costumes (MM: II-III). São exatamente os defensores desse tipo
de moral que subestimam a força das moralidades concretas, ao
suporem que são infinitamente maleáveis a seus desejos e doutrinas
(MM: XX-I). Os “cientistas”, ao contrário, saberiam que “o funda-
mento da moralidade é felizmente mais sólido (…), inseparável da
própria estrutura de cada sociedade”, e é por sabê-lo que tudo
quanto pretendem, segundo o velho lema positivista, é “estudar
O Sábio como Astrônomo 127

para conhecer, e conhecer para modificar, racionalmente e na


medida do possível” (MM: 140).
Nem mesmo as objeções contra a tese da “relatividade da
moral” poderiam servir como prova do suposto caráter destrutivo da
ciência dos costumes: “a variabilidade dos deveres no tempo, a
diversidade das morais nas diferentes sociedades humanas é um
fato” (MM: XXV) e contra os fatos é inútil investir. Além disso, a
oposição entre o absoluto e o relativo, tão cara às antigas metafísicas,
é ela própria “relativa” — entre esses dois extremos haveria toda
uma gradação e “o caráter relativo e provisório de toda moral (…)
não compromete a estabilidade da moralidade existente” (MM:
XXVII). Assim, o hiper-kantiano de A Idéia de Responsabilidade
parece ter cedido definitivamente o lugar a um positivista convicto,
que crê, ao contrário do que afirmava em 1884, que “a relatividade
do conhecimento é um fato de experiência” (IR: 237). À objeção que
insiste na impossibilidade da ciência dos costumes evitar efetiva-
mente os julgamentos de valor — na medida em que qualquer moral
só poderia consistir em um conjunto de juízos desse tipo — mais
uma vez Lévy-Bruhl responde acusando seus críticos de incompre-
ensão. Para ele, uma disciplina que se pretenda científica não pode
pretender, a priori, estabelecer fins e julgamentos definitivos, o que
caberia apenas à moralidade concreta de cada sociedade. O máximo
que o cientista poderia desejar é que as decisões sociais possam ser
iluminadas por seu trabalho, que, por não se dedicar a “especula-
ções”, nem por isso as interdita aos interessados ou necessitados
(MM: XII-IV). Enquanto se aguarda que essa ciência objetiva dos
costumes se constitua efetivamente, seria absolutamente inútil
tentar contestar seus direitos em nome da impossibilidade da
suspensão dos juízos morais; enquanto o estudo científico da
moralidade não se completar, deve-se apenas evitar o “tudo ou
nada”, conselho que parece resumir a “moral provisória” proposta.
Essa moral, contudo, ao contrário da proposta por Descartes, não
é antecipadamente conservadora, aceitando passivamente a tradi-
ção enquanto aguarda que a razão se apodere do domínio da
moralidade. Trata-se “de decidir pelo partido que, no estado atual
de nossos conhecimentos, parece o mais razoável”, o que faz com
que a razão atue progressivamente e sempre na esfera das decisões
morais (MM: 150).
Enfim, Lévy-Bruhl procura responder à última objeção dirigi-
da contra sua ciência dos costumes, a de que, ainda que fosse capaz
de atingir certos resultados positivos, estes não poderiam ter acesso
ao “coração dos homens”. Fruto de uma análise puramente intelec-
128 Razão e Diferença

tual, como poderia servir para solucionar dilemas onde os sentimen-


tos e valores são os móveis decisivos? A estratégia da resposta
consiste aqui em questionar o próprio terreno em que a questão é
colocada: “essas considerações sentimentais têm muita força. En-
quanto sentimentais são mesmo irrefutáveis” (MM: 156). Inútil,
portanto, discutir esse tipo de argumento que, exatamente como
ocorreria com as filosofias do sentimento em geral, se coloca desde
o início fora do alcance de qualquer discussão. Só o tempo poderia
demonstrar se essa objeção é verdadeira ou se, ao contrário, a
solução desses problemas não se encontraria “na via da ciência, via
longa e árdua, mas a única libertadora” (MM: 156-7).
Em última instância, por mais que seu autor procure negá-lo,
A Moral e a Ciência dos Costumes é um livro movido pela força das
objeções a que tenta responder. É justamente a partir dessas críticas,
do diagnóstico formulado a respeito de suas razões profundas e das
respostas a elas fornecidas, que a obra se articula. A própria
conclusão do trabalho deriva diretamente desse quadro: apresenta-
se aí o que o autor designa como “esquema geral provisório da
evolução das relações entre a prática e a teoria em moral” (MM: 285).
Teríamos, em primeiro lugar — “forma que se encontra ainda nas
sociedades inferiores” (idem) — um tipo de moralidade inteiramen-
te fora do controle consciente dos indivíduos, completamente
subordinada e determinada pela vida social objetiva, pura função
das demais “séries sociais” (MM: 285-6). Um segundo momento na
evolução seria representado pelas morais que já constituem objeto
de reflexão para uma parte dos membros da sociedade, reflexão
ainda puramente normativa e legitimadora da ordem estabelecida
(MM: 287-8). Finalmente, Lévy-Bruhl acredita estar assistindo ao
surgimento (e participando dele, é claro) de uma investigação
positiva das moralidades, desenvolvida livremente pelo pensamen-
to individual e que deveria conduzir certamente ao abandono de
superstições e preconceitos ainda muito vivos (MM: 289-90). É esta
convicção que o leva a afirmar que “somos então sempre reconduzidos
à idéia do saber que liberta” (MM: 292).
Apesar de todas as aparências, Lévy-Bruhl não se pretende um
evolucionista unilinear. Por um lado, não se deve supor que os
sistemas morais “devam atravessar, todos, necessariamente os
mesmos estágios de evolução” (MM: 285); essa evolução não
poderia ser pensada de forma simples, como progresso contínuo e
ininterrupto — a presença de elementos místicos mais marcados na
moral cristã, e mesmo na moderna, do que na antiga, já deveria
servir de advertência contra essa tentação simplificadora (MM: 93-
O Sábio como Astrônomo 129

5). Por outro lado, na medida em que a moral “evolui paralelamente


à evolução geral da sociedade”, a “superstição” e a “ignorância”
típicas de cada época não poderiam deixar de funcionar como
obstáculos ao desenvolvimento do pensamento positivo nesse
domínio (MM: 220-1). Tudo o que a ciência pode desejar — e é esse
na verdade seu dever maior — é “tornar (…) as transições menos
penosas nos espíritos, menos dolorosas nos fatos, e contribuir para
fazer com que a evolução de nossa sociedade — se é ambicioso
demais falar de evolução da humanidade — assuma tanto quanto
possível a forma de um progresso, e de um progresso pacífico” (MM:
222). É difícil deixar de enxergar a marca da lei dos três estados de
Comte tanto no esquema de evolução da moral quanto nas próprias
restrições impostas a essa concepção. Teológica, metafísica e
positiva são certamente as formas que Lévy-Bruhl tem em mente
quando propõe o esquema. Aquilo que imagina ser a finalidade do
processo evolutivo, bem como o objetivo de sua ciência dos
costumes, é igualmente de inspiração nitidamente positivista,
evolução e conhecimento científico estando estreitamente articula-
dos. Em última instância, o que essa ciência pretende estabelecer é
uma “arte racional moral”, de acordo com o modelo seguido por
todas as ciências já constituídas para desembocar em alguma forma
de técnica ou tecnologia. Instruída pela ciência dos costumes —
capaz de revelar a realidade moral em si mesma — a arte moral
poderia “modificar a realidade dada (…) dentro de certos limites”
(MM: 258), isto é, poderia agir de acordo com as leis que governam
o fenômeno moral, previamente reveladas por aquela ciência.
Deve-se a isso a insistência tanto na necessidade de distinguir as
várias acepções do termo “moral”. Além da “concepção antiga”, que
não veria aí mais que um conjunto de prescrições normativas (MM:
100), acredita-se que a palavra seja geralmente tomada em três
sentidos diferentes: enquanto “moralidade” empírica e característi-
ca de cada sociedade e cada época; enquanto “ciência moral”,
pretendendo o estudo objetivo dessa moralidade; enquanto “arte
moral” que busca intervir racionalmente na realidade dada (MM:
100-2). A Moral e a Ciência dos Costumes se resume, num certo
sentido, a uma tentativa de estabelecer uma moral-ciência que
estude a moral-realidade para possibilitar uma moral-arte racional.
Ora, não deixa de ser um lugar-comum situar o nascimento
das chamadas ciências sociais no momento em que uma ruptura
com as antigas reflexões normativas ter-se-ia produzido. Às pres-
crições de ordem moral, ter-se-ia sucedido o estudo objetivo da
realidade social — é isso que Lévy-Bruhl, entre tantos outros, está
130 Razão e Diferença

afirmando uma vez mais. A insistência congênita das ciências sociais


no estudo dos fenômenos morais — que já havíamos observado em
Comte e que observaremos também, talvez em seu estado mais
puro, em Durkheim — permite, contudo, levantar algumas dúvidas
sobre a realidade dessa ruptura de que tanto se vangloriam.
Poderíamos suspeitar que sob a capa de uma investigação desapai-
xonada, o que os primeiros cientistas sociais estavam realmente
fazendo era fundar um corpo normativo supostamente mais forte e
menos questionável que aqueles constituídos pelas antigas doutri-
nas que combatiam e que já davam mostras de fraqueza. A própria
polissemia do termo moral pode muito bem ter funcionado como
álibi para uma tentativa que pretende deixar de confundir o
“normativo” e o “positivo”, principal alvo das objeções que dirigidas
contra as “morais teóricas” que Lévy-Bruhl deseja ultrapassar. O
problema é que a disjunção do par normativo/positivo é apenas
provisória, uma vez que se esses pólos são afastados no tempo, isso
só é feito a fim de que possam ser reintegrados de forma ainda mais
absoluta no final do processo. A subordinação do “ponto de vista
prático” ao “teórico” é confessadamente tática, e tanto Comte quanto
Durkheim ou Lévy-Bruhl (ao menos na época em que redige A
Moral…) são muito claros na recusa de uma disciplina meramente
especulativa.
Poderíamos pois indagar com François Châtelet (1978: 117) se
as morais de inspiração sociológica não constituiriam outras tantas
tentativas de “moralização” e de controle dos acasos imanentes à
vida social; e indagar ainda, desta vez com André Akoun (1973: 99-
101), até que ponto o desenvolvimento posterior das ciências sociais
as teria de fato libertado dessa marca original, dessa cumplicidade
com os esforços de moralização — e quanto restaria ainda por fazer.
Não se trata aqui de sugerir que o trabalho efetuado ao longo da
história dessas disciplinas não seja válido ou de condená-las
preliminarmente em virtude de sua origem pouco confessável. É
necessário apenas, tendo em vista uma tomada de consciência
preliminar para a investigação e problematização de algumas
questões teóricas e políticas contemporâneas, apontar esse dilema
imanente às ciências sociais, dilema que as situa em uma incômoda
posição entre a análise crítica e a simples ideologia.
A Moral e a Ciência dos Costumes apresenta, portanto, dois
aspectos distintos, que não deixam de se articular. Por um lado, uma
“razão polêmica”, buscando contestar radicalmente as chamadas
“morais teóricas” — sistemas que se pretendem “teóricos”, ou seja,
positivos e desinteressados, mas que na verdade não passam de
O Sábio como Astrônomo 131

esforços normativos destinados a determinar o que deve ser em


matéria de moral, não o que efetivamente é. A confusão entre o
positivo e o normativo, entre o teórico e o prático, seria o pecado
capital de todas essas morais e o que permitiria afirmar em última
instância que “não há e não pode haver moral teórica”, título do
primeiro capítulo do livro. Do ponto de vista de Lévy-Bruhl, ao
contrário, a teoria deveria consistir no estudo mais desinteressado
possível da própria prática, visando talvez uma intervenção futura
em seu domínio, intervenção que não poderia ser, em hipótese
alguma, simultânea à investigação científica propriamente dita (MM
:12). Nesse sentido, o que funda o outro aspecto deste livro, sua
“razão arquitetônica”, é o princípio de que seria preciso distinguir
a moralidade empiricamente existente de uma ciência dos costumes
dedicada ao estudo objetivo dessa realidade. Já sabemos que esse
estudo deve desembocar, ainda que apenas como conseqüência
final, em uma arte moral capaz de uma intervenção racional,
progressista e corretiva, na esfera da moralidade empírica. Sabemos
também que a condição para desenvolver e mesmo admitir essa
ciência e essa intervenção é aceitar a tese de uma indistinção
substantiva entre o que os filósofos costumavam chamar de
realidade “física” e realidade “moral”.
Na filosofia tradicional, o termo “moral” é polissêmico.
Enquanto sinônimo de “espírito”, separa-se de “físico”; enquanto
associado a “sentimento”, distingue-se de “intelectual”; enquanto
ligado à “ética”, opõe-se ao “imoral” ou ao “amoral” (Ferrater-Mora
1982). Lévy-Bruhl, ao pretender adotar um tratamento inovador
para a questão, trata de suspender esses juízos. A distinção entre o
físico e o moral seria apenas de grau, jamais de natureza; se a moral
está sem dúvida associada ao sentimento, isso não poderia significar
que elementos intelectuais fortes não estejam nela presentes,
chegando mesmo a se tornar preponderantes; enfim, as noções de
imoralidade ou amoralidade não poderiam ser estabelecidas a
priori, dependendo de análises e estudos concretos capazes de
delimitar em cada caso o alcance e o valor desses conceitos. É com
esses pressupostos que a investigação detalhada das morais teóricas
— que implícita ou explicitamente aceitariam esses preconceitos
tradicionais — será conduzida. Na medida em que essas morais
teóricas não são verdadeiramente científicas, só saberiam raciocinar
por meio de alguns postulados nem sempre muito claros ou
esclarecidos, jamais através de regras explicitamente formuladas.
Supondo que esses postulados estão sempre “implicados na práti-
ca”, não se dão sequer ao trabalho de examiná-los criticamente,
132 Razão e Diferença

tomando-os como automaticamente válidos ao temer que sua


possível refutação possa comprometer a moralidade tradicional
existente (MM: 66). Lévy-Bruhl pretende assumir uma posição
oposta a esta, considerada ultrapassada e conservadora. Supondo,
contudo, que a crítica teórica jamais seria capaz de abalar as morais
práticas, todo seu esforço se concentrará na análise detalhada e na
crítica radical do que denomina “os postulados da moral teórica” —
título do terceiro capítulo do livro. Esses postulados seriam dois: “a
natureza humana é sempre idêntica a si mesma em todos os tempos
e em todos os lugares” (MM: 67); “o conteúdo da consciência moral
forma um conjunto harmônico e orgânico” (MM: 83).
Como vimos, o segundo postulado já era criticado, ainda que
numa perspectiva muito diferente, desde A Idéia de Responsabilida-
de, e nós já acompanhamos essa crítica. Em 1903, Lévy-Bruhl
insistirá no fato de que o sentimento de homogeneidade e harmonia
que a própria consciência moral costuma experimentar não é capaz
de resistir a uma análise objetiva que logo detecta aí elementos
heterogêneos, oriundos de épocas históricas distintas e que se
mantêm agrupados apenas em virtude da força do hábito e do
costume (MM: 84). Essa investigação “geológica” encontra com
facilidade as contradições que a consciência moral procura escon-
der de si mesma. Na realidade, esse postulado seria tão insustentável
que só poderia estar apoiado sobre o outro, o que significa que a
contestação da idéia de uma harmonia e organicidade da consciên-
cia moral exige a crítica do postulado que defende “a unidade da
natureza humana” (MM: 89-90) — crítica que será fundamental para
toda a carreira de Lévy-Bruhl.
É justamente essa idéia abstrata da natureza humana que
deveria ser ultrapassada. Ela nutriria, desde os gregos, a ilusão de
que deriva de uma reflexão geral e objetiva acerca da humanidade
real, quando na verdade foi sempre forjada a partir de experiências
social e historicamente limitadas, a do grego, do cristão, do homem
“branco e ocidental” contemporâneo (MM: 68-70). Autores como
Descartes, Fontenelle, Montesquieu, os iluministas, Hume e mesmo
Comte, teriam acabado por adotar essa concepção da natureza
humana, por mais que alguns dentre eles tenham tentado escapar
desse perigo. Seu erro comum seria em tudo semelhante ao da
“psicologia introspectiva tradicional, que estuda, ela também, o
homem ‘branco e civilizado’”, pretendendo contudo atingir resulta-
dos universais (MM: 70). Por mais que isso possa parecer estranho,
essa idéia de “homem em geral” é espantosamente arcaica, produ-
zida e marcada por crenças religiosas e princípios metafísicos, como
O Sábio como Astrônomo 133

os de alma imortal ou princípio vital (MM: 81-2). É isso que


explicaria, ao mesmo tempo, seu poder de resistência aos avanços
do progresso e a necessidade urgente de superá-la: “do mesmo
modo que cada indivíduo, logo que cessa de se observar, toma-se
ingenuamente pelo centro do mundo, cada povo ou população,
cada civilização, pensa resumir em si mesmo toda a humanidade. A
nossa não é exceção a esta regra” (MM: 70). Nem o fato de sabermos
da existência de milhões de pessoas que não vivem como nós altera
esse preconceito, uma vez que essa existência é meramente
“concebida”, não “sentida a cada instante como a civilização na qual
e da qual vivemos” (idem).
Com o desenvolvimento da pesquisa histórica empírica e da
antropologia científica — “uma das glórias do século XIX’ (MM: 74)
— essa concepção da natureza humana sofrerá transformações
fundamentais que apenas os renitentes defensores da moral teórica,
mais preocupados com as necessidades imediatas da prática, não
teriam percebido. Porque se o postulado da unidade do homem
quer apenas afirmar “a necessidade, para todos os indivíduos
humanos, de apresentar certos caracteres psicológicos e morais
comuns (…) não nos ensina nada sobre os caracteres que, de fato,
estão ou não presentes em toda a espécie”, reduzindo-se a “uma
fórmula quase que puramente verbal” (MM: 72). Se, por outro lado,
pretende legitimar “o direito [dos filósofos] em estender à humani-
dade inteira o que aprenderam acerca da natureza humana (…) pela
observação de si mesmos e de seu meio, nada é mais constestável”
(idem). O problema é que a “observação, contemporânea ou
retrospectiva, nos revela modos de sentir, pensar, imaginar, modos
de organização social e religiosa, acerca dos quais jamais teríamos
tido, sem ela, a menor idéia” (MM: 74-5). O fascínio pelas outras
sociedades começa a ganhar corpo nesse momento e é este fascínio
que levará Lévy-Bruhl para muito longe da filosofia, que, ainda em
1903 e apesar de todas as críticas contidas em A Moral e a Ciência
dos Costumes, continua a ser sua principal referência intelectual e
existencial.
Nesse momento, é em Comte que acredita encontrar o
caminho para superar os impasses do primeiro postulado das morais
teóricas. Seria preciso abandonar todas as construções feitas a
priori, bem como todas as projeções de nossos próprios hábitos
sobre o universo dos outros. Seria preciso empreender um estudo
empírico da diversidade real que corta a humanidade de ponta a
ponta, a fim de que uma moral e uma psicologia verdadeiramente
científicas pudessem ser construídas. Não foi justamente Comte
134 Razão e Diferença

quem demonstrou, como vimos, que as “faculdades superiores do


homem” só são acessíveis a partir de um ponto de vista sociológico,
e que psicologia e sociologia deveriam se reunir numa verdadeira
antropologia (MM: 78)? Uma investigação dessa envergadura com-
porta, contudo, dificuldades que o próprio Comte não chegou a
avaliar adequadamente. Além da necessidade de afastar nossas
opiniões pré-estabelecidas, nossos julgamentos de valor consagra-
dos, até mesmo nossos “hábitos lingüísticos e lógicos” (MM: 79),
seria preciso reconhecer que nesse trabalho “encontramos a cada
passo problemas que somos incapazes de resolver pelo simples
bom senso, auxiliado somente pela reflexão e conhecimentos
correntes acerca da ‘natureza humana’. Os fatos que nos desconcer-
tam obedecem sem dúvida a leis, mas quais são elas? Não poderí-
amos adivinhar” (MM: 76). Apenas o estudo criterioso das outras
sociedades poderia “nos introduzir em formas de imaginação,
combinação, julgamento mesmo, e raciocínio que nossa psicologia
ignora completamente” (MM: 79). Seria preciso, antes de tudo, saber
abandonar o privilégio que concedemos ao que Comte denominou
“lógica dos signos”, debruçando-nos sobre a “lógica das imagens”
e a “lógica dos sentimentos”, por mais estranhas e diferentes da
nossa que possam parecer (MM: 80).
Dois pontos devem ser especialmente observados e retidos
nessa crítica dos postulados da moral teórica. Em primeiro lugar,
partindo da moral, Lévy-Bruhl subordina seu estudo e compreensão
ao desenvolvimento de uma psicologia científica não introspectiva,
que só poderia se constituir através de trabalhos verdadeiramente
sociológicos e antropológicos. Além disso, a obtenção de resultados
confiáveis dependeria de uma depuração de preconceitos que hoje
chamaríamos certamente de etnocêntricos. Ao unitarismo abstrato
da tradição filosófica e moral, Lévy-Bruhl pretende opor um
diferencialismo à primeira vista radical, o que parece tornar seu
perfil mais semelhante àquele com o qual estamos acostumados. Na
verdade, esse diferencialismo só é radical em aparência, pois deve
consistir apenas em um princípio metodológico teoricamente
provisório: “talvez, um dia, a sociologia saiba determinar com
precisão o que há de comum entre os indivíduos de todos os grupos
humanos. Atualmente, uma tarefa mais modesta se impõe. É preciso
analisar primeiramente, com o maior rigor possível, a rica diversi-
dade que se oferece à observação e que não temos meios, hoje, de
reduzir à unidade” (MM: 75-6). Ora, é justamente esse diferencialis-
mo, apenas esboçado aqui, que, como se sabe, servirá de fio
condutor para o trabalho futuro de Lévy-Bruhl. Ele acredita, ao
O Sábio como Astrônomo 135

menos neste momento, que é preciso recusar toda “universalidade


de direito”, admitindo que o que existe concretamente não é “uma
sociedade humana, mas sociedades”; abandonar toda pretensão de
fundar de um só golpe uma moral teórica, substituindo-a pela lenta
e progressiva construção de uma ciência dos costumes inspirada por
uma investigação psicológica, sociológica e antropológica que leve
realmente a sério a diversidade interna da humanidade. Que me seja
permitida aqui uma longa citação do belo trecho da página 82 de
A Moral e a Ciência dos Costumes, onde a modalidade de diferen-
cialismo defendida neste momento é melhor explicitada. Vale a
pena reparar como esse trecho difere da imagem tradicional que
costumamos fazer de Lévy-Bruhl, a ponto de parecer escrito por
outrem:
Na medida em que uma psicologia científica se desenvolver,
concorrentemente com o próprio progresso da sociologia
(essas duas ciências se prestando um auxílio mútuo), a
unidade de estrutura mental na espécie humana
provavelmente aparecerá. Ela se manifestará pela notável
analogia entre processos mentais muito complicados que
se produziram em diversas porções da humanidade sem
comunicação aparente entre si: mesma formação de
mitos, mesmas crenças em espíritos, mesmas práticas
mágicas, mesmas organizações de família e de tribo. Mas,
essa unidade, se ela se confirmar, permanecerá muito
diferente daquela que é admitida a priori pelo postulado
que criticamos. Esta, esquemática e abstrata, afirma
gratuitamente a identidade básica de todos os homens, e
só pode servir para uma especulação dialética e formal.
A outra, ao contrário, será o ponto de chegada de uma
pesquisa positiva e precisa, incidindo sobre toda a
diversidade vivente que nossos meios de investigação
podem atingir na humanidade atual e na história. Ela não
se confundirá com a primeira tanto quanto a energética
moderna, se bem que admitindo a unidade da força sob
suas diversas manifestações, não se confunde com as
físicas antigas que explicavam todos os fenômenos da
natureza por meio de um princípio único, como o fogo,
a água, ou o ar (MM: 82).

A
136 Razão e Diferença

O projeto de constituição dessa ciência dos costumes pode ser


interpretado como a versão pessoal que Lévy-Bruhl apresenta de
uma tendência muito disseminada em sua época, especialmente na
França, onde a influência positivista se faz sentir de modo agudo.
Ao contrário dos livros anteriores (com a possível exceção de A Idéia
de Responsabilidade), A Moral e a Ciência dos Costumes procura
expor com toda clareza as posições pessoais de seu autor: “o
conceito dessa ciência”, escreve Lévy-Bruhl pensando em seus
críticos, “que é vazio para vocês, é pleno para mim. A realidade
moral que constitui seu objeto, eu a considero como uma ‘natureza’,
que me é familiar sem dúvida, que não me é, contudo, menos
desconhecida, e cujas leis ignoro” (MM: XIV). O próprio uso da
primeira pessoa do singular, bastante incomum em um autor tão
discreto, revela, ao lado das evidências já apontadas, uma adesão
apaixonada ao empreendimento positivista — adesão que, como
vimos, já era nítida no livro sobre a história da filosofia francesa e,
especialmente, naquele sobre o positivismo. Comte é, em 1903,
explicitamente considerado o precursor e o fundador dos estudos
positivos sobre a realidade social em geral e sobre a moral em
particular (MM: 176-7).
Como bem sabemos, apesar das intenções do fundador e dos
discípulos que pretendiam uma definição unívoca, positivismo pode
significar coisas muito diferentes: “desconfiança com respeito a toda
metafísica, culto da experiência, crença na eficácia moral da ciência,
hierarquia das ciências, noções de progresso e evolução, subordi-
nação do indivíduo à sociedade, teoria dos meios ambientes,
estabelecimento da moral sobre a solidariedade humana, reconhe-
cimento da grandeza social do catolicismo e da Idade Média, criação
enfim de uma sociedade nova…”2. A diversidade de aspectos
privilegiados revela bem a polissemia e incerteza que o termo
acabou ganhando. Mais próximo de nós, Ferrater-Mora mostra
claramente como positivo se associa a noções bem distintas, como
as de “relativo”, “orgânico”, “preciso”, “certo”, “útil”, “real”, “social”,
“prático”, “anti-metafísico”, “experiência”, “moral científica”, “hie-
rarquia das ciências”, “solidariedade social”, “sociedade nova”,
“progresso e evolução”, entre outras. Praticamente todos esses
conceitos, com as valorações de que estão carregados, estão
presentes no pensamento do Lévy-Bruhl deste período. Creio,
todavia, que não seria muito difícil perceber que seu enfoque
privilegia acima de tudo, as idéias de sociedade (como objeto de
conhecimento fundamental); experiência (do lado do próprio
processo de conhecimento); progresso e moral científica (como
O Sábio como Astrônomo 137

objetivos a serem atingidos). Não há dúvida, tampouco, que a noção


central, na medida em que opera a síntese das demais, é a de relativo
ou relatividade — noção que, como vimos, já aparecia nas obras
anteriores, mas que aqui ganhará uma dimensão especial, a de idéia
responsável pela articulação entre sujeito, objeto e objetivo do
conhecimento.
Para Lévy-Bruhl, a maior revolução que Comte teria provoca-
do na teoria do conhecimento foi a inversão do privilégio que desde
Platão o saber ocidental concedia ao “absoluto”, ao que não se
modifica nem pode ser corrompido. Comte teria mostrado que a
ciência só se aplica efetivamente aos fenômenos sensíveis e que
tudo a que pode aspirar é a determinação das leis de funcionamento
de tais fenômenos. Assim, “relativo” predica o objeto de conheci-
mento (sensível e cambiante), o sujeito que conhece (já que
conhecer é uma faculdade limitada por certos constrangimentos que
se impõem a esse sujeito) e a finalidade do processo de conheci-
mento (sempre inadequado e pronto para se modificar e aperfeiço-
ar). Em A Moral e a Ciência dos Costumes, o objeto a conhecer é
evidentemente a moral, entendida no sentido das moralidades
empíricas, que seriam apenas — o livro não cansa de repetir — uma
das “séries sociais” solidária de todas as outras, o que significa que
o verdadeiro objeto da ciência dos costumes é a própria sociedade
encarada como um todo. A forma de conhecer consistiria na
aplicação dos métodos experimentais das ciências já constituídas à
realidade moral e social, ainda que algumas adaptações precisassem
ser feitas. Enfim, todo esse esforço pretende acima de tudo
possibilitar a intervenção racional nesta realidade, adequando as
práticas e representações aos progressos já obtidos nas outras séries
sociais, em especial na ciência. A noção de relatividade permeia,
portanto, todos os níveis — e é precisamente essa noção que a maior
parte dos comentadores considera prova do caráter inovador do
livro.
No entanto, e sem querer cair em uma espécie de nominalis-
mo exagerado, o fato é que relativismo também pode significar
coisas muito diferentes. Ferrater-Mora, por exemplo, distingue dois
“tipos” de relatividade (epistemológica e ética), bem como dois
“modos” de manifestação de ambas: um “radical” (que pretenderia
proscrever as oposições verdadeiro/falso ou bom/mau) e um
“moderado, que se contentaria em situar essas oposições de acordo
com “circunstâncias, condições e momentos” que podem, por sua
vez, ser objetivos ou subjetivos. Isso significa que o “relativismo
moderado”, epistemológico ou ético, pretende demonstrar que
138 Razão e Diferença

traços humanos, raciais, culturais ou históricos devem necessaria-


mente ser levados em conta para que as próprias noções de
conhecimento ou moral façam sentido. Eu diria que no caso do
positivismo, e conseqüentemente no do Lévy-Bruhl de 1903,
estamos às voltas com um relativismo bastante moderado, simulta-
neamente epistemológico e ético, relativismo que insiste no valor
dos contextos históricos e culturais como condicionantes do saber
e da moralidade. É possível, contudo, ir um pouco além dessa
simples constatação, afirmando que é a noção de progresso, tão
fundamental para os positivistas, que funciona como uma espécie
de operador que “modera” esse relativismo manifesto. A ciência e
a moral podem muito bem ser relativas, mas apenas quando se as
encara do ponto de vista de uma sociedade ou de um contexto
histórico específico. Ao contrário, quando olhadas do ponto de vista
da “humanidade” — como justamente pretendia Comte — seu
suposto desenvolvimento progressivo, sua “evolução”, assumem
logo o aspecto de um valor absoluto. Lévy-Bruhl já havia percebido
claramente este ponto desde 1900, ao afirmar que para Comte,
apenas a “humanidade” escaparia do caráter relativo que marca
todos os conceitos (PC: 383-4) — e mesmo antes, embora a partir
de uma perspectiva crítica, ao mostrar como a lei dos três estados
funcionaria como “postulado supremo” (absoluto, eu diria) do
positivismo (IR: 237).
Essa adesão ao espírito positivista não deixa, contudo, de
apresentar um outro lado. Lévy-Bruhl, na verdade, sempre foi muito
sensível ao que considerava os pontos fracos do sistema de Comte,
especialmente no que diz respeito à sociologia. Já no livro dedicado
inteiramente a sua obra, um dos postulados essenciais da “estática
social” comtiana — o de que a família seria o “elemento social
último” — é explicitamente criticado (PC: 289-90). Além disso, como
vimos, toda a “dinâmica social” é considerada muito mais como uma
filosofia da história ainda especulativa do que como uma sociologia
empírica e científica (PC: 416-7). Em A Moral e a Ciência dos
Costumes essas críticas serão retomadas (cf. pp. 121-2 e 186-7, por
exemplo) e em As Funções Mentais…, Comte chegará mesmo a ser
encarado como um filósofo puro, que teria se contentado em afirmar
a necessidade do estudo sociológico empírico das faculdades
superiores do homem, sem jamais tê-lo empreendido de fato,
limitando-se a enunciar a priori a lei dos três estados (FM: 4-7). Se
em 1910 Lévy-Bruhl já iniciara sua longa deriva para outras direções,
mesmo no texto bastante simpático ao positivismo de onze anos
antes, Comte é visto sobretudo como um precursor que “em uma
O Sábio como Astrônomo 139

parte de sua filosofia (…) representa as tendências gerais de seu


século; em outra exprime mais especificamente as aspirações
particulares da geração à qual pertencia”, aspirações que só iriam se
consolidar realmente um pouco mais tarde (HP: 393). O erro capital
de Comte teria sido ter tentado atingir globalmente “a inteligibilida-
de do vasto conjunto que se oferece ao estudo” em vez de ter
desenvolvido trabalhos parciais e aprofundados, erro comum à
maior parte dos “sociólogos contemporâneos”, com a grande
exceção de “Durkheim e sua escola” (MM: 117). Na verdade, é
justamente Durkheim — “verdadeiro herdeiro de Augusto Comte”
(PC: 413) — que parece fornecer a inspiração para A Moral e a
Ciência dos Costumes. Citando As Regras…, Lévy-Bruhl afirma estar
“plenamente de acordo com o espírito desta obra”, bem como “feliz
em reconhecer aqui o que devemos a seu autor” (MM: 14, nota 1).
Pelo menos em duas outras passagens (pp. 24 e 99-100), Durkheim
é saudado como o verdadeiro criador da prática, senão da idéia, de
uma ciência objetiva da realidade social e moral. As relações entre
os pensamentos de Lévy-Bruhl e Durkheim — bem como a escola
sociológica francesa em geral — não são nada simples e será preciso
retornar a elas. Algumas colocações podem e devem, entretanto, ser
antecipadas neste momento em que Lévy-Bruhl não se pensa ainda
como cientista social, se é que chegará a fazê-lo algum dia.
Alguns historiadores do pensamento antropológico (cf. Lowie
1937: 264-70 ou Voget 1978: 495-500), consideram que Lévy-Bruhl
seria um adepto dos postulados da “escola”, embora praticasse
alguns “desvios”, como diz Voget, que os qualifica inclusive de
“psicológicos” na medida em que os fatos sociais que interessavam
a Durkheim seriam reduzidos ao domínio do puro “intelecto”. Do
mesmo modo, Lowie pensa que ele seria o mais filosófico dos já
excessivamente filosóficos autores que se reuniam na “escola”. Yash
Nandan (1977: XXXIX-XLIII), em um livro de pretensões estritamen-
te bibliográficas, prefere não entrar na discussão acerca da maior ou
menor fidelidade de Lévy-Bruhl às “regras do método sociológico”,
tratando-o simplesmente, na classificação que esboça dos vários
membros da “escola”, como um “durkheimiano no limbo”, o que
evidentemente afirma sua pertinência a essa tradição. Evans-
Pritchard (1965: 111-2) é mais cuidadoso, considerando que apesar
de algumas semelhanças entre os dois autores, seria muito difícil
assimilar completamente o pensamento de Lévy-Bruhl ao da
“escola”, frisando inclusive que ele próprio “sempre recusou a
inclusão no grupo de Durkheim” — o que não o impede de apontar,
como Lowie, o caráter pretensamente mais “filosófico” de sua obra.
140 Razão e Diferença

Lévi-Strauss (1946: 539), a partir de uma perspectiva mais crítica, crê


que o que aproximaria os dois autores é a persistência no pensa-
mento de ambos de certas “sobrevivências” filosóficas — hipóstase
da sociedade, manutenção de alguns dualismos bem tradicionais,
etc… ; e que aquilo que os separa seria o fato de Lévy-Bruhl ter
recusado justamente “a parte essencial do ensino de Durkheim”, sua
metodologia, tendo perdido dessa forma todos os meios de que este
último ainda dispunha para controlar suas inclinações filosóficas
mais tradicionais.
Antes de avaliar este debate, vale a pena prestar atenção no
que dizem os que observaram direta ou indiretamente o relaciona-
mento entre os autores, bem como nos depoimentos de alguns que
dele participaram. Já observamos que em 1903, Lévy-Bruhl buscava
explicitamente associar-se ao empreendimento de Durkheim; este,
por sua vez, em uma resenha de A Moral… publicada no Année
Sociologique, não demonstra qualquer dúvida a respeito dessa
associação: “encontrar-se-á nesta obra, analisada e demonstrada
com um raro vigor dialético, a idéia que está na base mesmo de tudo
o que fazemos aqui, a saber, que existe uma ciência positiva dos
fatos morais, e que é sobre esta ciência que devem se apoiar as
especulações práticas dos moralistas” (Durkheim 1903: 467). Segue-
se a isso um resumo elogiosos do livro, com ênfase especial na
necessidade de separação entre a prática e a teoria, bem como no
caráter relativo tanto da moral em si mesma quanto da ciência que
deve estudá-la e reformá-la — pontos que, como vimos, são
considerados centrais pelo próprio Lévy-Bruhl. É bem verdade,
como veremos, que a posição de Durkheim alterar-se-á bastante nos
anos seguintes, embora a amizade tenha continuado a uni-lo a Lévy-
Bruhl até sua morte3. Marcel Mauss, por sua vez, mesmo no
emocionado necrológio de 1939, jamais deixará de assinalar suas
críticas e ressalvas ao trabalho deste último — e isso desde 1923 até
observar, alguns anos mais tarde, que este jamais se alinhara entre
os “sociólogos de estrita obediência” (Mauss 1929: 131), ou seja,
entre os que seguiam os ensinamentos de Durkheim. De qualquer
forma, é interessante observar que os percursos desses dois
contemporâneos são muito semelhantes. De formação filosófica,
forjados intelectualmente na mesma tradição, os dois parecem ter
sentido num determinado momento de suas vidas a necessidade de
se afastar das especulações dos filósofos, especulações que come-
çaram a lhes parecer excessivamente abstratas e desligadas da vida
real. É verdade que Durkheim começou a se interessar pela
sociologia cerca de dez anos antes de Lévy-Bruhl e que a partir de
O Sábio como Astrônomo 141

1910 seus caminhos se afastarão bastante, não obstante os proble-


mas tratados em As Funções Mentais… e em As Formas Elemen-
tares… serem muito semelhantes — como o próprio Durkheim
reconheceu explicitamente (Durkheim 1912) e como veremos
adiante. Em 1903, contudo, ambos estão especialmente interessados
na questão moral e é nessa época, sem dúvida, que seus trabalhos
e seus pensamentos estarão mais próximos.
Essa proximidade fica ainda mais clara se recordarmos que a
moral parece ter sido a grande preocupação de Durkheim durante
toda a vida. Os primeiros artigos que publicou já abordavam
diretamente essa questão e os cursos ministrados em Bordeaux
entre 1888 e 1905 diziam respeito justamente a esse tema (assim
como os da Sorbonne, a partir de 1908). Da Divisão do Trabalho
Social, sua tese de doutorado de Estado, de 1893, é explicitamente
um trabalho sobre a moral, ponto que fica ainda mais nítido ao
recorrermos à Introdução da primeira edição, suprimida pelo
próprio autor nas edições seguintes4. O editor dos “textos” de
Durkheim foi de fato bastante feliz ao renomear esta introdução
“definição do fato moral”, já que pretende, no consagrado estilo da
“escola”, atingir um conceito preliminar de “moral” que pudesse
orientar a pesquisa ulterior que forma justamente o corpo de Da
Divisão do Trabalho Social — obra sobre a moralidade, portanto.
Ora, a formulação que Durkheim crê atingir é praticamente idêntica
à que, dois anos mais tarde, em As Regras do Método Sociológico,
será empregada a fim de definir o “fato social” como objeto da
sociologia em geral. Vale a pena comparar os dois textos, e se
lembro aqui definições mais que conhecidas, é no intuito de mostrar
como o objeto da ciência social que Durkheim pretende estar
fundando extrai toda sua realidade do “fato moral” dos antigos
filósofos, ainda que o primeiro seja definido de maneira aparente-
mente distinta:
1. (1893: 287) - Denomina-se fato moral para uma espécie
social dada, considerada em uma fase de seu
desenvolvimento, toda regra de conduta à qual se liga
uma sanção repressiva difusa na média das sociedades
desta espécie, consideradas no mesmo período de sua
evolução.
2. (1895: 14) - É fato social toda maneira de fazer, fixa ou
não, suscetível de exercer sobre o indivíduo um
constrangimento exterior; ou ainda, que é geral na
extensão de uma dada sociedade tendo uma existência
própria independente de suas manifestações individuais.
142 Razão e Diferença

A modificação mais importante, quando se passa de uma


definição a outra, é a substituição da expressão “toda regra de
conduta…” por “toda maneira de fazer…”, que atesta, por um lado,
a direção cada vez mais sociologizante que leva a passar das
“representações” para a “fisiologia” e mesmo para a “morfologia”
sociais; mas que atesta também, e principalmente, o parentesco, a
quase identidade entre “moral” e “social”5, explicando ainda o fato
de Durkheim jamais ter se afastado dessa questão. No final da vida,
já muito doente, aproveitará uma permissão médica para escrever,
entre março e setembro de 1917, seu último trabalho, uma Introdu-
ção à Moral. Este texto deveria consistir, segundo Mauss que o
publicou em 1920, na abertura de um livro inteiramente dedicado
à moral, livro que há muito Durkheim planejava escrever (Durkheim
1917 - cf. nota de Mauss, p. 313). A proximidade entre uma
sociologia que sempre se pretendeu “positiva” ou inovadora e
preocupações morais ou moralizantes bem antigas é bem maior do
que esta disciplina gosta de reconhecer. Bréhier (1945: 1130-3) leva
ainda mais longe essa associação, ao sugerir que “a sociologia de
Durkheim é (…) levada a colocar e a resolver questões que são da
alçada da filosofia”, numa verdadeira “transmutação dos problemas
filosóficos em problemas sociológicos”. Dilemas tradicionais em
filosofia, como as oposições entre ciência e consciência, empirismo
e relativismo, individualismo e coletivismo, passariam a receber um
tratamento que se pretende empírico e mais eficaz que as especula-
ções dos filósofos. Tratamento que, na verdade, estaria assentado
numa operação capital: a “sociedade” passa a ser condição de
possibilidade da moral, da religião e do conhecimento, sendo
introduzida em todos os lugares em que a filosofia racionalista
tradicional diz “a priori”. A ruptura com a filosofia em termos da
forma de pensar é, contudo, bem menos profunda do que em geral
se supõe ou pretende.
Em 1903, as posições de Lévy-Bruhl acerca dessas questões
são fundamentalmente as mesmas que as defendidas por Durkheim.
Na verdade, ele já as enunciara desde 1899, ao elogiar os trabalhos
de Guyau, filósofo que teria se dado conta, ainda no século XIX, que
a sociologia nascente poderia propor “uma solução nova” para as
velhas questões que a filosofia tradicional teria tentado resolver sem
muito sucesso (HP: 456-7). Desde essa época, entretanto, já se pode
perceber algo que começava a opor os dois autores. Porque se em
certo sentido Lévi-Strauss (1946: 539) tem razão, ao afirmar que
Durkheim teria permanecido muito mais próximo de Comte,
sustentando a absoluta transcendência do social sobre o individual
O Sábio como Astrônomo 143

e ao atribuir à sociedade todas as forças que promovem o


desenvolvimento, inclusive e principalmente a que faria surgir o
próprio indivíduo como realidade destacada do todo e relativamen-
te autônoma, em outro é inegável que Lévy-Bruhl permaneceu
muito mais comtiano. Durkheim, como se sabe, jamais se contentou
realmente com o privilégio que o positivismo concedia às crenças
e representações, tratando de deslocar os fenômenos mentais da
ordem das causas para a das conseqüências. A teoria do determinis-
mo sociológico ou morfológico é a pedra fundamental de todo o
esforço teórico da escola sociológica francesa. Nesse sentido, é
importante observar que mesmo em A Moral e a Ciência dos
Costumes, Lévy-Bruhl não chega em momento algum a aderir
completamente a esse postulado morfologizante, limitando-se a
mencionar a “solidariedade entre as séries sociais”, sem pressupor
determinismos ou processos causais unidirecionados. O próprio
fato de que o objetivo principal do livro — estabelecer as bases de
uma ciência positiva dos costumes — seja perseguido unicamente
através de uma crítica das concepções filosóficas tradicionais e das
“morais teóricas”, mostra bem a distância em relação a Durkheim,
que, tendo sempre preferido a análise das formas concretas de
organização e solidariedade sociais, veria aí sem dúvida um método
estéril. Isso significa que o que será chamado mais tarde “mentalis-
mo” de Lévy-Bruhl se opõe desde esse momento ao sociologismo
explícito da escola sociológica francesa.
Por outro lado, mesmo entre os “sociólogos de estrita obedi-
ência”, a questão do estatuto a ser concedido aos fenômenos de
ordem psíquica nunca deixou de ser problemática, o próprio
Durkheim tendo oscilado sempre entre um determinismo socioló-
gico estrito (mais forte talvez no início da obra) e o reconhecimento
de que a vida em sociedade se compõe fundamentalmente de
representações. Esse pode ser um sinal de que a própria oposição
esteja mal colocada e que devido a isso Lévy-Bruhl jamais a tenha
levado excessivamente a sério. Poderíamos traduzir sua hipótese
implícita dizendo que de seu ponto de vista, os fatos de ordem
“psicológica” podem e devem ser estudados de um prisma tão
objetivo quanto o que, nas ciências em geral e na sociologia
durkheimiana em particular, é aplicado ao conhecimento de
fenômenos mais cristalizados, incluindo-se aí a própria organização
social concreta. É por isso que por mais “mentalista” que possa
parecer, a perspectiva adotada em A Moral e a Ciência dos Costumes
recusa frontalmente qualquer tentativa para se atingir os fatos
morais “de dentro”, como se costuma dizer. A compreensão é
144 Razão e Diferença

explicitamente oposta ao conhecimento, entendido como aborda-


gem exterior e objetiva dos fatos sociais mesmo quando apreendi-
dos em seu nível de existência mental ou psicológico (MM: 112-3).
O erro da reflexão filosófica tradicional teria sido a adoção do ponto
de vista dos que fornecem os testemunhos e produzem os documen-
tos com os quais se trabalha, em vez de analisar objetivamente esses
testemunhos e documentos (MM: 117-8). Ao fazê-lo, perderia a
capacidade de se dar conta de que a consciência não é tão
“transparente” para si mesma quanto parece e acredita; de que,
pensando ter atingido estados de consciência outros, podemos estar
simplesmente projetando nossos próprios julgamentos sobre reali-
dades e homens muito diferentes daqueles com que estamos
acostumados; de que, enfim, tal procedimento impediria atingir e
revelar as leis dos fenômenos investigados (MM: 119-20). O próprio
Comte ter-se-ia enganado, ao considerar a família, unidade social
que lhe era mais habitual, o elemento mínimo universal de
constituição da sociedade humana. Isso demonstraria que o postu-
lado positivista que afirma que em sociologia o conhecimento do
todo precede o das partes deveria ser substituído pela investigação
metódica de cada uma dessas partes até que o todo pudesse ser
reconstituído (MM: 121-2).
Essas posições evocam imediatamente a questão da “compre-
ensão”, que nas ciências humanas e sociais é, como se sabe, um
velho problema. Aqui não é certamente o lugar para investigá-lo de
forma mais profunda, ainda mais que o debate parece longe de ter
se encerrado. Algumas observações são, contudo, necessárias.
Mesmo a crítica radical que Lévy-Bruhl efetua do método com-
preensivo em A Moral… foi objeto de uma contestação explícita por
parte de Georges Gurvitch. Num pequeno livro de 1937, significa-
tivamente intitulado Moral Teórica e Ciência dos Costumes, procu-
rou demonstrar a absoluta impossibilidade de recusar a compreen-
são nas ciências sociais em geral. Para Gurvitch, a “dessubjetivação”
proposta por Lévy-Bruhl seria válida se significasse apenas a
eliminação da “nossa subjetividade para compreender a subjetivida-
de específica dos agentes em questão”, nunca a dessubjetivação da
própria realidade moral. Esta só poderia apresentar uma existência
subjetiva, o que significa que “dessubjetivá-la” equivaleria a negá-
la enquanto realidade sui generis, o que contrariaria todos os
princípios científicos defendidos pelo próprio Lévy-Bruhl (Gurvitch
1937: 30). Invocando a sociologia compreensiva de Weber6, Gurvitch
descarta a busca de leis como tarefa exclusiva da ciência, repudian-
do ao mesmo tempo a “arte moral racional” proposta por Lévy-Bruhl
O Sábio como Astrônomo 145

em nome da manutenção de uma “moral teórica” que pretenderia


atingir os valores, o “alógico”. Esta moral deveria coexistir com uma
“ciência dos costumes” dedicada a estudar somente os fatos e a
determinar, na medida do possível, algumas leis de funcionamento
dos sistemas morais (idem: 37). Gurvitch vai ainda mais longe,
sugerindo que o próprio Lévy-Bruhl não defenderia, em 1937, a
“explicação” contra a “compreensão”, como havia feito com vee-
mência, em 1903. Isso porque em seus trabalhos a respeito da
“mentalidade primitiva”, um método compreensivo, e mesmo
introspectivo, teria substituído progressivamente as ambições pura-
mente explicativas de seu trabalho sobre a moral (idem: 30-5). Se
essa interpretação corresponde ou não à realidade — ou melhor, se
é uma versão plausível do desenvolvimento intelectual de Lévy-
Bruhl — é uma questão delicada que será deixada para mais tarde.
Por ora, basta observar que este último jamais sustentou explicita-
mente essa posição nem confessou qualquer abandono das teses de
1903, mesmo nos Carnets tão severos para com suas posições
anteriores. Por outro lado, Florestan Fernandes observou com razão
que em seus trabalhos propriamente etnológicos, Lévy-Bruhl sem-
pre foi muito cauteloso, e que se é verdade que admitiu que “a
realidade, quando se trata da vida humana [não] é tão acessível”
quanto supõem alguns, também é verdade que sustentou que “a
comunicação espiritual acima das diferenças culturais [não] é tão
simples” quanto pensam outros (Fernandes 1954: 128). Em suma,
que o princípio diretor adotado teria sido um “discreto pessimismo
sobre o alcance limitado dos recursos endopáticos da etnologia (…),
coerência e prudência do etnólogo” (idem: 134).
De qualquer forma, mesmo nesse momento, o debate pode
ser instrutivo. Poderíamos indagar, com Akoun (1973: 105-9), se esta
oposição entre método explicativo e método compreensivo não
derivaria de uma contradição inerente às ciências sociais como um
todo, que se exprime tanto epistemológica quanto historicamente
— ao lado das pretensas distinções entre uma concepção de ciência
social pensada como forma de conhecimento original, empírico,
fundado em modelos estatísticos e matemáticos, e outra que a
definiria como inspirada por uma tradição de fundo filosófico mais
preocupada com descrições e análises não redutoras. Do ponto de
vista epistemológico, essas formas de saber parecem dilaceradas
entre seu modelo (as ciências da natureza) e seu objeto (o “homem”
ou mesmo a “sociedade”), que as disciplinas inspiradoras cuidado-
samente excluem de seu campo de investigação. De uma perspec-
tiva mais histórica, a conexão do surgimento das ciências sociais
146 Razão e Diferença

com o capitalismo emergente coloca seu objeto de estudo em uma


posição bastante ambígua: ora encarado como simples elemento de
uma série, ora pensado como fonte suprema de todos os valores, o
indivíduo ou a sociedade podem ser tratados tanto estatística quanto
filosoficamente. A carreira de Lévy-Bruhl, ao lado das evidências
expostas por Akoun, poderia entretanto sugerir que essas opções
são imaginárias e que se a ciência social certamente não se confunde
com as antigas formas de filosofia, ela tampouco lhes é absoluta-
mente estranha ou simplesmente superior. Essa carreira pode
aparecer assim como uma espécie de modelo reduzido, em dimen-
sões biográficas, de todo o processo que levou à constituição e à
cristalização das ciências humanas e sociais. Se é verdade que elas
tiveram que exorcizar antigos fantasmas metafísicos, isso não
significa que a recusa global das questões filosóficas — e mesmo de
algumas respostas — seja com certeza o melhor caminho para
garantir sua sobrevivência e seu desenvolvimento7.
O fato é que ao menos em 1903, Lévy-Bruhl se incluía entre
os que pretendiam romper todas as amarras que os ligavam à
filosofia tradicional. A crítica radical das morais teóricas e de seu
método puramente compreensivo e introspectivo pretendia justa-
mente atingir esse objetivo tão difundido entre os homens da época.
A alternativa teria sido indicada por Comte e Durkheim, a utilização
de um método comparativo, que a partir das observações empíricas
efetuadas pela história e pela etnografia poderia chegar a determinar
as leis de funcionamento dos fenômenos morais e sociais (MM: 125).
O estudo de sociedades distintas da nossa, do ponto de vista
histórico ou geográfico, permitiria dessa forma alcançar uma
objetividade que as especulações dos filósofos acerca de si mesmos
ou daquilo que lhes é mais familiar jamais poderiam atingir. Os
progressos da história e da etnografia “nos fazem entrever um
estudo dos mecanismos das representações coletivas que seria
científico” (MM: 116). Todo esse esforço está baseado no que Lévy-
Bruhl considera a intuição mais importante de Comte, o caráter
sociológico do que denomina “funções mentais superiores” do ser
humano (MM: 78). Esta hipótese serviria para abolir todas as
fronteiras entre psicologia, história e sociologia. A pesquisa das
ciências humanas revelaria certas leis gerais de funcionamento do
espírito humano, que possuiriam caráter mais que psicológico,
constituindo uma verdadeira antropologia — teoria sobre o homem
que, ao contrário das especulações metafísicas e filosóficas, deveria
necessariamente levar em conta a diversidade real das manifesta-
ções dessa natureza humana simultaneamente individual e social:
O Sábio como Astrônomo 147

a condição prévia e necessária do progresso da ‘física


social’ é a exploração metódica, pela história, dos fatos
sociais do passado, e, ao mesmo tempo, a observação das
sociedades existentes que representam talvez estados
mais antigos de nossa própria evolução, sendo assim,
frente a nós, como o passado vivo (MM: 127).
É assim que as sociedades ditas primitivas ou inferiores
entram definitivamente na obra e na vida de Lucien Lévy-Bruhl. A
Moral e a Ciência dos Costumes foi publicado, lembremos, no
mesmo ano em que se passa a “estória dos três livros chineses”, o
que permite duvidar mais uma vez do estatuto determinante
retrospectivamente atribuído a esse episódio. Longe de afirmar que
os “trabalhos anteriores não pareciam ter me preparado [para os]
estudos antropológicos” (BP2: 20-1), eu diria antes que quase tudo
nesses trabalhos apontava nessa direção. Ou melhor: que depen-
dendo talvez de um estímulo — os três livros chineses? — a
antropologia social era um dos destinos possíveis de Lévy-Bruhl.
Isso não quer dizer que os “primitivos” estivessem completa-
mente ausentes dos trabalhos anteriores a 1903. Já A Idéia de
Responsabilidade, como vimos, recorria a informações prove-
nientes das sociedades denominadas inferiores para tentar recons-
tituir a “formação da idéia de responsabilidade”. A crítica à preca-
riedade dos dados, a recusa em associar os “selvagens à natureza”,
o pressuposto de que aí a individualidade estaria inteiramente
submetida ao social…, tudo isso já estava claramente presente em
1884 (IR: 138-52). No livro sobre o desenvolvimento da consciência
nacional alemã (AL: 153-88) e em A Filosofia de Jacobi (PJ: 47-8),
Lévy-Bruhl retoma em diversas ocasiões a crítica ao unitarismo
excessivo dos iluministas franceses, louvando o esforço alemão em
adotar um ponto de vista que levasse em conta a real diversidade
histórica e etnográfica da humanidade. É importante observar
também que algumas características centrais da filosofia do senti-
mento de Jacobi — “misoneísmo”, “antropocentrismo”, recusa do
acaso e “ocasionalismo”, “duplo realismo”, assimilação da certeza à
crença, entre outras — remetem para determinados traços isolados
mais tarde no que se denominará “mentalidade primitiva”. No livro
sobre a história da filosofia francesa e em A Filosofia de Augusto
Comte, o espaço ocupado por esse debate entre os defensores da
unidade do gênero humano e os que se interessam pela diversidade
da humanidade amplia-se notavelmente. Lévy-Bruhl não mede
elogios para os segundos, mais sensíveis à necessidade de evitar a
redução da humanidade em geral aos valores de sua própria
148 Razão e Diferença

sociedade e época histórica (Fontenelle, Rousseau, Comte e Taine,


principalmente), ao mesmo tempo em que admite e lamenta que
nenhum deles tenha levado essa perspectiva suficientemente longe.
É claro, entretanto, que em A Moral… o papel desempenhado
pelas referências às sociedades primitivas é bem mais importante
que nesses outros livros. Em primeiro lugar, essas sociedades
funcionam aqui como instrumento metodológico destinado a de-
monstrar o caráter objetivo dos fatos morais. Como vimos, a
observação exclusiva de nossa própria sociedade tenderia a criar a
ilusão subjetiva de que esses fenômenos dependeriam apenas de
nossa consciência e vontade; encaradas “de fora”, seu estatuto de
realidade concreta, comparável aos fatos físicos, ressaltaria de
imediato (MM: VII-VIII; 26): “do ponto de vista de fora, ou da
ciência, o conjunto das prescrições morais não nos aparece mais
com os mesmos caracteres. Nós não os julgamos mais a priori os
melhores possíveis, nem sagrados, nem divinos. Nós os apreende-
mos como solidários, de fato, do conjunto das outras séries
concomitantes de fenômenos sociais” (MM: 198). As belas tentativas
dos filósofos do século XVIII em reconstituir abstratamente uma
“moral natural” ou uma “religião natural” não seriam capazes de
resistir à observação efetiva das sociedades diferentes da nossa, que
revelam imediatamente o caráter preconceituoso e narcisista dessas
reconstituições (MM: 200-3). Esta é a principal lição que o estudo das
sociedades outras pode nos fornecer, a prova do caráter realmente
sociológico, ou seja relativo, da moralidade, e da conseqüente
impossibilidade de analisá-la a priori e abstratamente: “o ideal moral
(…) de uma sociedade, qualquer que seja, é uma expressão de sua
vida, da mesma forma que sua língua, sua arte, sua religião, suas
instituições jurídicas e políticas” (MM: 270-1).
Esse caráter fundamental das sociedades primitivas na cons-
tituição de uma ciência dos costumes seria o responsável pela
insistente recusa dos críticos em aceitar o valor de seu estudo para
a reflexão moral. Para eles, qualquer referência a estas sociedades
seria supérflua, moralmente inútil, já que nada teríamos a aprender
com os “selvagens”. Lévy-Bruhl, ao contrário, crê que para aquele
que não deseja cair nas armadilhas da moral teórica, “as ‘histórias
de selvagens’ são tão indispensáveis para a constituição dos diversos
tipos sociais quanto o estudo dos organismos inferiores para a
fisiologia humana” (MM: V). Não é muito difícil compreender as
verdadeiras razões dos críticos e é a partir dessa compreensão que
o recurso aos dados provenientes das sociedades primitivas recebe-
rá um uso polêmico em A Moral e a Ciência dos Costumes. O que
O Sábio como Astrônomo 149

os críticos não poderiam em hipótese alguma aceitar é que os fatos


morais pudessem ser analisados de modo tão objetivo quanto os
fatos naturais e, principalmente, que as lições extraídas da observa-
ção de outras sociedades pudessem ser aplicadas à nossa, desmen-
tindo pressupostos e preconceitos muito arraigados. Isso significa
que as “histórias de selvagens” também poderiam ser utilizadas
como instrumento nesse combate que Lévy-Bruhl pretende mover
contra visões de mundo que considera conservadoras e transcen-
dentalistas. Se levarmos em conta a obra anterior, a novidade de A
Moral…, no que se refere à utilização dos dados relativos às
sociedades primitivas, é que estes passam a desempenhar uma
função muito mais considerável do ponto de vista “arquitetônico”
que nos demais livros, onde seu uso era quase exclusivamente
“polêmico”. Em 1903, os trabalhos etnográficos deixam de ser
encarados apenas (já que esse uso, sem dúvida, permanece) como
simples artifício metodológico ou argumento de discussão, pas-
sando a constituir em si mesmos objeto de reflexão. Nesse sentido,
Lévy-Bruhl já enunciará nesse momento alguns traços do que pouco
mais tarde se tornará seu tema quase exclusivo, o pensamento ou
a “mentalidade” dos que vivem nessas sociedades ditas primitivas.
Desse ponto de vista, poderíamos dizer que esse livro sobre a moral,
aparentemente apenas crítico e programático, é também uma
espécie de introdução geral aos estudos da “mentalidade primitiva”.
Isso porque as sociedades primitivas, além de comprovarem a
possibilidade de um estudo objetivo dos fatos morais, ao facilitarem
a separação entre teoria e prática (MM: 1), aparecem como
verdadeiras “experiências” que o processo global de desenvolvi-
mento da humanidade ofereceria ao observador. Elas permitiriam “a
restituição do estado moral e mental de uma humanidade relativa-
mente primitiva, restituição que o esforço mais engenhoso e
pertinaz jamais poderia realizar partindo unicamente da humanida-
de observada nas civilizações históricas” (MM: 231). Trata-se da
possibilidade de atingir “sentimentos e hábitos mentais indecifráveis
para nós”, que nunca chegaríamos a imaginar por conta própria,
apesar deles, em certo sentido, continuarem a existir em regiões
muito profundas e bastante ocultas de nosso próprio pensamento
— um motivo a mais para privilegiarmos o estudo de sociedades
onde esses processos apareceriam com a nitidez que não possuem
mais entre nós (MM: 230-1). Ora, essa posição requer, evidentemen-
te, a hipótese de que “o processo de desenvolvimento das socieda-
des históricas obedece em toda a parte às mesmas leis” (MM: 210),
o que poderia sugerir uma identificação dos pontos de vista aqui
150 Razão e Diferença

defendidos com os dos adeptos da “escola antropológica inglesa”,


o evolucionismo unilinear vitoriano.
Na verdade, Lévy-Bruhl é mais cuidadoso: a tese de uma
evolução uniforme da humanidade deveria ser tomada simplesmen-
te como “hipótese (…) ‘heurística’, não como explicativa”. Não
deveríamos confundi-la com uma tentativa de “construir a priori um
homem supostamente primitivo”; trata-se antes de usá-la como
diretriz possibilitando a observação e a comparação das diferentes
sociedades humanas (MM: 209). A idéia de um “homem primitivo”
não pode ser mais que um “esquema vazio a ser preenchido pela
análise e comparação dos diferentes processos de desenvolvimento
social que realmente se produziram — análise e comparação que
nos possibilitarão separar aquilo que é comum daquilo que não o
é” (idem). Ao contrário do tema evolucionista mais comum, não se
trata de provar que a diferença não passaria de um fenômeno da
semelhança; trata-se de discernir, de forma empírica, o semelhante
e o diferente. Para fazê-lo, Lévy-Bruhl crê ser absolutamente
necessário colocar entre parênteses nossos próprios hábitos men-
tais, esforçando-se por não projetar nossos modos de pensar sobre
os dos outros e em não pressupor que seríamos capazes de
reconstituir introspectivamente estados de consciência muito dife-
rentes dos nossos. Porque essas consciências outras,
possuem modos de se representar os objetos, agrupar
suas representações, imaginar, classificar seres, extrair
conseqüências [que] exprimem emoções coletivas tão
profundamente diferentes das nossas, que temos uma
dificuldade extrema em restituí-las, mesmo através do
maior esforço de sutileza intelectual de que sejamos
capazes. Existe aí uma lógica, uma simbólica, toda uma
vida mental que não podemos ler como um livro aberto,
remetendo-a simplesmente à nossa. É preciso decifrá-la
penosamente, afastando o máximo possível nossos
próprios hábitos mentais (MM: 209-10).
O Lévy-Bruhl que conhecemos, ou ao menos de quem já
ouvimos falar, parece estar inteiramente presente aqui. O que a
observação das sociedades primitivas poderia permitir é o acesso
empírico a formas de sentir e pensar que nos são, ao menos em
aparência, completamente estranhas. Nessas sociedades, sentimen-
tos, crenças e representações não estariam separados como entre
nós, constituindo antes um bloco que poderíamos atingir de um só
golpe (MM: 225); o indivíduo não estaria tampouco destacado do
O Sábio como Astrônomo 151

social (MM: 232); enfim, a “imaginação coletiva trai já [uma]


indiferença à contradição lógica” (MM: 242). Tudo isso abriria a
possibilidade de investigação de uma série de questões que a
observação exclusiva de nossa própria sociedade torna muito difícil
ou impossível responder: até que ponto são os sentimentos que
determinam a ação? (MM: 224); até que ponto a “consciência
individual” é universal, seja ela a consciência moral ou aquela
psicologicamente mais geral? (MM: 213-5); até que ponto, enfim,
formas de pensamento que consideramos as únicas possíveis de fato
o são? (MM: 215). Questões que repercutem imediatamente no
interior de nossa própria forma de pensar e viver em sociedade.
Toda essa discussão possui, é claro, enorme alcance no que
diz respeito aos fenômenos morais, já que serviria ao menos de
advertência para a necessidade de estudos científicos objetivos,
anteriores a qualquer tentativa de legislar nessa matéria. A oposição
entre a ciência dos costumes e a moral teórica tradicional visa
precisamente efetuar essa passagem do normativo ao positivo, ou
antes, submeter lógica e cronologicamente o primeiro ao segundo.
Mas, acima de tudo, essas posições e os questionamentos que delas
derivam possuem um alcance psicológico: se admitirmos, ainda que
a título de hipótese, que uma psicologia total deveria ser capaz de
dar conta simultaneamente dos sentimentos e das representações;
que o indivíduo não é a unidade natural sobre a qual a investigação
obrigatoriamente incide; que as funções mentais “superiores”
podem ser coletivas, não individuais, teríamos nas mãos todos os
meios de evitar a psychologist’s fallacy que William James já
denunciara (MM: 233). Poderíamos assim reconhecer “o caráter
primitivamente social de tudo o que é propriamente humano em
nós”, admitindo, dessa vez com Comte, que a psicologia verdadei-
ramente científica deveria ser, antes de tudo, uma sociologia (idem).
Essa posição fortemente sociologizante tem uma série de
conseqüências muito importantes que repercutirão ao longo do
trabalho futuro de Lévy-Bruhl com uma insistência que chega quase
a ser uma obsessão. A mais importante delas, de um ponto de vista
ao mesmo tempo metodológico, epistemológico e teórico, é certa-
mente o duplo papel que o sociologismo desempenha frente à
grande questão da possibilidade de comunicação com, e compre-
ensão de, realidades mentais e sociais muito diferentes das nossas.
Porque se por um lado, a hipótese do caráter sociológico das
funções mentais sugere uma enorme dificuldade para resolver essa
questão — na medida em que sendo as sociedades manifestamente
diferentes, as funções mentais a elas ligadas também o seriam — por
152 Razão e Diferença

outro, abre uma alternativa para a superação do impasse. Se


fôssemos efetivamente capazes de reconduzir, ou mesmo de
reduzir, as formas de pensamento a seu substrato social, toda a
investigação poderia incidir precisamente sobre este substrato.
Sendo mais objetivo, o recurso a ele evitaria todos os problemas
derivados da dificuldade em compreender mentalidades aparente-
mente tão distintas que só poderiam ser ignoradas por nós, ou
atingidas de forma apenas ilusória. Essa é, como se sabe, a posição
de Durkheim e da escola sociológica francesa; parece que foi
também, ao menos durante certo tempo, a opinião de Lévy-Bruhl.
Seus problemas só irão realmente se complicar quando essa
hipótese sociológica — ou antes morfológica, na medida em que a
tese mais geral do caráter propriamente sociológico das funções
mentais jamais será abandonada — for deixada de lado. Nesse
momento, ele se verá privado do operador que permitia efetuar a
conexão entre fenômenos mentais de estrutura e funcionamento
muito diferentes. Mas é exatamente aí — e talvez por isso mesmo
— que a originalidade de sua obra virá a se manifestar.
É verdade que A Moral e a Ciência dos Costumes não pretende
descrever em detalhes as diferenças entre esses universos mentais
que são aí delimitados e distinguidos; pretende ainda menos
analisar ou propor uma explicação para essas diferenças. Tudo isso
ficará para depois. Este livro, contudo, já faz essas constatações,
projetando-as, de modo bastante típico ao início do século, numa
pretensa escala histórica de desenvolvimento e evolução da huma-
nidade. Embora as posições de Lévy-Bruhl não sejam, como nunca
chegarão a ser, completamente “evolucionistas”, a questão que
tenta articular ainda como filósofo é a mesma que se encontra no
cerne da pesquisa em antropologia social: será possível sustentar —
e em caso afirmativo, como — a hipótese da “unidade do gênero
humano” frente à constatação cada vez mais ampla de uma
impressionante diversidade sócio-cultural? Eu diria ainda que mes-
mo nesse momento inicial, Lévy-Bruhl já busca a originalidade que
será sua marca pessoal nos anos ainda por vir. Ao contrário do
evolucionismo tradicional — e ao contrário também de boa parte da
tradição antropológica posterior e mesmo contemporânea — ele
prefere partir do fato da diversidade, deixando a questão da unidade
em aberto, reservando-a para um futuro meio incerto8. O desafio já
está de algum modo lançado para ele mesmo e para os outros: como
desenvolver uma psicologia, uma sociologia, uma antropologia —
que Lévy-Bruhl como bom aluno de Comte jamais distingue
O Sábio como Astrônomo 153

completamente — sem ter como hipótese orientadora a “unidade do


gênero humano”?

A
A Moral e a Ciência dos Costumes é uma obra que pode ser
encarada de dois pontos de vista. Como polêmica, denuncia as
resistências ao desenvolvimento de uma ciência objetiva da realida-
de moral de inspiração e métodos sociológicos. Não que essas
resistências não sejam compreensíveis: “adestramento, educação,
conformismo social…”, tudo isso funcionaria como obstáculo para
esse desenvolvimento, especialmente quando se trata de um saber
que pretende se introduzir na vida mais cotidiana dos homens (MM:
195-7). É “normal”, portanto, que se resista a essa investigação que
quer desvelar o que há de mais obscuro e arraigado nas consciên-
cias, fazendo das crenças e sentimentos mais fundamentais seu
objeto de estudo. Investigação que busca, por exemplo, estabelecer
que o código moral que adotamos — e no qual cremos com força
quase religiosa — poderia depender apenas de uma tradição já meio
morta, de “crenças de que perdemos até a lembrança e que
subsistem sob a forma de tradições imperativas e sentimentos
coletivos enérgicos” (MM: 196). Por mais compreensíveis que essas
resistências possam ser, é imperativo vencê-las — e é esse o
verdadeiro sentido das alusões finais ao “saber que liberta” (MM: 292).
Do ponto de vista “arquitetônico”, A Moral… sustenta que “os
sentimentos morais de uma dada sociedade dependem do modo
mais estrito de suas representações, crenças e costumes coletivos”
(MM: 236-7). Isso não significa um determinismo rígido, supondo
uma independência entre representações e sentimentos que não
pode deixar de ser imaginada quando se pretende que as primeiras
determinem os segundos. Ao contrário, “não concebemos nem
representações sem sentimentos, nem sentimentos sem representa-
ções” (MM: 228). Isso não significa tampouco que essa solidariedade
se estabeleça na forma de um bloco homogêneo, cuja evolução seria
perfeitamente sincronizada; ao contrário — e esse ponto é funda-
mental — os sentimentos mudariam de modo muito mais lento que
as representações, o que implica que sentimentos mais antigos,
solidários outrora de outras formas de representação, podem
subsistir e funcionar como obstáculos para o desenvolvimento de
novas concepções acerca do mundo e do homem (MM: 243-9).
Nessa época, a única solução que Lévy-Bruhl crê possível é de
caráter fortemente cientificista: constituir uma psicologia livre de
154 Razão e Diferença

todas as ilusões pseudo-racionalistas, que se dedique ao estudo dos


sentimentos tanto quanto ao das representações; psicologia cujo
método só poderia ser sociológico e que, ao conhecer objetivamen-
te a natureza dos sentimentos, tornar-se-ia apta a modificá-los —
tarefa muito mais difícil que a transformação das representações
(MM: 226; 249-51). Pode-se imaginar a vantagem em analisar esses
sentimentos lá onde podemos encontrá-los como que à flor da pele.
De acesso muito difícil entre nós — ao menos em seu estado mais
puro, uma vez que estariam recobertos por representações e mesmo
por crenças de outra natureza — é nas sociedades primitivas que
poderíamos observá-los em sua plenitude. É aqui que psicologia,
sociologia e etnografia se encontrariam definitivamente para cons-
tituírem um saber virtualmente total a respeito da vida humana,
saber que não deveria deixar de fora qualquer aspecto dessa
realidade, merecendo conseqüentemente o nome de antropologia.
Há mais. Para Lévy-Bruhl, as resistências opostas pelos
sentimentos às mudanças, a lentidão com que efetivamente se
transformam, seriam tão fortes que mesmo nas obras dos autores
que buscaram inovar, rompendo com a tradição religiosa ou
metafísica, resíduos dessa mesma tradição permanecem bastante
nítidos. O caso mais impressionante é o de Comte, cuja obra
representaria paradoxalmente a mais completa ambigüidade entre
a perspectiva teológico-metafísica e a positiva. Constituindo a
sociedade simultaneamente como “natureza” (objeto de estudo da
sociologia) e como “divindade” (na forma do objeto de culto da
“religião da humanidade”)9, a obra do próprio “fundador da
sociologia mostra do modo mais nítido a que ponto a representação
moderna da realidade social está ainda misturada ao sentimento, e
que esforços serão necessários para que se torne realmente objetiva
e propriamente científica” (MM: 253). Nesse contexto, vale observar
que anos mais tarde, em 1930, numa carta endereçada a Davy, Lévy-
Bruhl demonstrará seu acordo acerca dos pontos que, segundo este
autor, o separariam de Durkheim. Ele aí afirma que a obra deste seria
comandada por “postulados que implicam uma metafísica e uma
moral” e que “sou mais empirista, mais relativista e (…) não faço da
ciência a mesma idéia que Durkheim” (citado em Davy 1957: 471).
Observações que mostram que ainda nessa época, a sociologia
parecia a Lévy-Bruhl muito marcada por preconceitos transcenden-
talistas.
O aspecto polêmico de A Moral e a Ciência dos Costumes
desemboca numa série de dicotomias muito difíceis de serem
superadas: progresso/tradição, representação/sentimento, ciência/
O Sábio como Astrônomo 155

religião-metafísica. Por outro lado, esbarra inevitavelmente em um


problema típico das teorias evolucionistas ou do progresso, o de
como explicar a “estagnação” da evolução ou o “fracasso” do
progresso em tantas sociedades — e mesmo em certas áreas da
nossa. Se até Comte, que pretendia fundar o conhecimento positivo
da realidade humana, acabou se perdendo no caminho, propondo
uma metafísica (na forma de sua “filosofia da história”) e uma
teologia (a “religião da humanidade”) no lugar de uma verdadeira
ciência e de uma arte racional, que garantias poderíamos ter de que
o processo de desenvolvimento será de fato conduzido a bom
termo? É claro também que esses temas — as oposições e as
dificuldades do progresso — se articulam, o recurso às primeiras
resolvendo aparentemente as segundas. Procedimento muito geral,
que no caso de Lévy-Bruhl assume um aspecto característico: as
resistências só poderiam provir dos sentimentos e a solução só
poderia residir num retorno ao conhecimento científico puro, que,
ao investigar os próprios sentimentos, nos tornaria capazes de
transformá-los racionalmente na direção adequada. Trata-se, conse-
qüentemente, de uma espécie de hiper-positivismo, que pretende
se afastar do lado místico do próprio Comte, alguma coisa semelhan-
te a um saber total.
Há ainda outra maneira de encarar A Moral e a Ciência dos
Costumes: situando o livro para além de todo seu lado polêmico e
de todo cientificismo que inegavelmente apresenta. Em 1953, por
ocasião das comemorações do cinqüentenário da publicação deste
livro, Maurice Leenhardt, já muito doente, escreveu um emocionado
“testemunho” de suas relações com Lévy-Bruhl:
alguma coisa o perturbava, a conduta humana e a razão
permaneciam paralelas, com ou sem interpenetração.
Existem modos de afetividade irredutíveis… e é isso que
levou o grande senhor, às vésperas de sua morte, a
escrever: ‘é preciso tomar partido’…. Mas ele não havia
tomado seu partido. Lógico, ele havia trabalhado durante
toda sua vida para determinar o papel da lógica no espírito
humano, e eis que finalmente foi conduzido a um
impasse, impossível ir mais adiante…, a menos que caísse
em contradição…, a menos que ultrapassasse a lógica
(Leenhardt 1957: 415).
É significativo que Leenhardt tenha escrito essas palavras —
que se referem aos trabalhos sobre a mentalidade primitiva — para
uma comemoração relativa ao livro sobre a moral. Se abandonarmos
seu aspecto puramente polêmico, esse livro pode aparecer como
156 Razão e Diferença

algo diferente e inovador. Não se trata aí, somente, de demarcar e


permanecer em dicotomias como as mencionadas; trata-se também,
e principalmente, de um primeiro esforço visando sua superação.
Enquanto polemista, Lévy-Bruhl não parece mesmo ter alternativas
senão “tomar partido” do lado do progresso, das representações e
da ciência; enquanto pensador — e é aqui que seu pensamento
verdadeiramente começa — pode já apontar para as enormes
dificuldades em se trabalhar com essas oposições, no fundo tão
tradicionais, sugerindo que elas deveriam ser, ao menos provisori-
amente, postas de lado, a fim de que a imensa diversidade de modos
de vida e pensamento pudesse ser encarada de frente, sem
pressupostos e sem preconceitos.
Eu dizia que a originalidade de Lévy-Bruhl reside nesse
esforço para captar as diferenças em si mesmas, sem procurar
reduzi-las de antemão a uma unidade previamente dada como
conhecida — mas também sem postular antecipadamente que esta
não existiria. Assim encarada, sua obra poderia aparecer novamente
como modelo reduzido do despertar da consciência ocidental para
a questão da diferença. Como diz Todorov (1982: 12), “a descoberta
da América, ou antes, a dos americanos, é o encontro mais
espantoso de nossa história”. Nós bem sabemos, contudo, como o
Ocidente reagiu a partir do século XVIII a este encontro. Se
afastarmos as interpretações simplesmente naturalistas ou racistas,
os “americanos” serão encarados como ilustração de uma natureza
humana original que, ao longo da história, nada teria feito a não ser
se complicar — para o bem ou para o mal (reação iluminista); ou
ainda, os “americanos” seriam hoje exatamente o que nós próprios
fomos em nosso passado, e se tempo lhes for concedido serão um
dia exatamente o que somos hoje (reação evolucionista). Desse
ponto de vista, o trabalho de Lévy-Bruhl poderia ser interpretado
como uma reação a essa reação tranqüilizadora: em vez de exorcizar
preliminarmente o “espanto”, trata-se de partir dele. Num primeiro
momento, esse trabalho parece ter consistido em uma tentativa para
superar esse espanto após tê-lo admitido. Rapidamente esta posição
ainda tranqüilizadora será ultrapassada e essa superação do espanto
passará a ser considerada radicalmente impossível. Nesse momento,
tratar-se-á, para Lévy-Bruhl, de compreender as raízes da ininteligi-
bilidade recíproca que marca nossas relações com os “outros”, bem
como as do “espanto” que disso inevitavelmente decorre. Tratar-se-
á, para nós, de tentar descobrir o que Descartes pode fazer na
América.
O Sábio como Astrônomo 157

Notas
1. Lévy-Bruhl certamente
compartilhava com outros judeus do pós-assimilação do
otimismo cívico fundador da IIIª República, da crença na
necessidade e no valor de uma moral laicizada; ele tinha em
comum com outros universitários a fé na ciência; com outros
filósofos (e contra outros) a convicção de que um saber
positivo poderia se estabelecer em certas áreas onde outrora
havia reinado uma filosofia especulativa; com outros filóso-
fos e intelectuais o sentimento de que as questões políticas
e sociais exigiam uma resposta filosófica, que a série dos
problemas e das discussões recobertas pelos termos ‘ques-
tões sociais’ e ‘socialismo’, deveria ser introduzida em
filosofia — abertura e renovação temáticas que representam
a penetração dos problemas dos filósofos não ligados a
Cousin e exteriores à Universidade nas velhas problemáticas
da filosofia universitária (Chamboredon 1984: 477).
Na verdade, a descrição diz respeito a Durkheim. É fácil perceber,
contudo, como se aplica também a Lévy-Bruhl — e sem dúvida a muito outros.
Se levarmos em conta as enormes diferenças entre as obras desses autores,
podemos meditar um pouco sobre o famoso peso das “influências”.
2. A observação é de Th. Ruyssen, “um observador do fim do século
XIX”, citada por René Verdenal (1973a: 233).
3. Basta observar as cartas de Durkheim a Lévy-Bruhl, publicadas por
Georges Davy em 1973. O mesmo Davy (1931) já havia dedicado todo um
capítulo de seu livro de história da sociologia para a análise das relações entre
os “pontos de vista de Durkheim e de Lévy-Bruhl. Trata-se aí de um trabalho
de comparação mais cuidadoso que a maioria dos julgamentos um tanto
apressados acima mencionados e que mostra perfeitamente tudo o que
aproxima e tudo o que afasta os dois autores. Como a análise de Davy incide
sobretudo nas questões relativas aos “primitivos”, será enfocada mais detida-
mente nos dois próximos capítulos.
4. Isso não se deve a qualquer tipo de mudança de posição. Em nota
acrescentada à segunda edição, de 1902, Durkheim explica as razões da
supressão: ela se destinava, diz ele, a questionar “a definição abstrata do valor
moral; na primeira edição deste livro nós desenvolvemos longamente as razões
que provam, para nós, a esterilidade deste método (…). Acreditamos hoje
poder ser mais breves. Há discussões que não devem ser indefinidamente
prolongadas” (Durkheim 1893: 257, nota).
5. Durkheim o afirma quase explicitamente: “Kant admite Deus porque
sem essa hipótese a moral seria ininteligível. Nós admitimos como postulado
que a sociedade seja especificamente distinta dos indivíduos, porque de outra
forma a moral seria sem objeto e o dever não teria em que ser aplicado”
(Durkheim 1906: 68).
6. É preciso observar que Weber está ausente de toda a obra de Lévy-
Bruhl (como também da de Durkheim). Esta ausência, como a de Freud (citado
apenas uma vez de passagem, nos Carnets póstumos), é bastante curiosa na
158 Razão e Diferença

medida em que vários dos temas abordados por Lévy-Bruhl têm correspondên-
cia com as questões investigadas por esses dois autores. No caso de Freud,
Tambiah (1990: 93-5) enumerou uma série de associações possíveis entre seus
conceitos e os de Lévy-Bruhl, lembrando, ao mesmo tempo, que os dois
autores se encontraram pelo menos uma vez, em 1935. Merllié (1989a: 431,
nota 34) menciona o mesmo encontro, acreditando que o emprego do termo
“recalque” em A Mitologia Primitiva poderia ser resultado dele — o que é
duvidoso. É sempre difícil explicar essas “ausências”. Talvez a recusa ra-
dicalmente positivista de Lévy-Bruhl em admitir procedimentos compreensi-
vos e introspectivos possa constituir uma parte da explicação. É verdade que
hoje em dia tendemos a minimizar essas querelas metodológicas — e também
nacionais, dada a clara oposição entre franceses e alemães que chegou a
dificultar a penetração da psicanálise na França — mas pode ser que isso se
deva apenas ao fato estarmos buscando novas sínteses para poder prosseguir
em nosso trabalho. É difícil imaginar a força que disputas deste tipo podem ter
tido no momento em que estavam sendo travadas entre pensadores que
pretendiam nada menos que a delimitação de um novo campo de saber, com
o estabelecimento dos métodos de investigação a ele adequados.
7. Como diz com ironia talvez excessiva Pierre Clastres (1974: 24), é
preciso sempre questionar a “pretensão comum às ciências humanas, que
crêem assegurar seu estatuto científico rompendo todas as ligações com o que
elas chamam de filosofia (…). Devemos temer que, sob o nome de filosofia,
seja simplesmente o próprio pensamento que se busca esvaziar (…). Rumina-
ção triste que afasta de todo saber e de toda alegria”.
8. Evans-Pritchard (1965: 114) demonstrou que essa escolha da
diversidade como ponto de partida faz a originalidade de Lévy-Bruhl, estando,
por outro lado, na raiz de uma série de incompreensões de que sua obra teria
sido vítima.
9. É o que René Verdenal (1973a: 229-33) denomina de passagem entre
a “sociologia” e a “sociolatria”. Essa ambigüidade não me parece exclusiva do
positivismo, aparecendo, ainda que de forma talvez menos explícita, em
diversos autores.
4
Malentendido Sobre a Vida Filosófica
Psicologia e Sociologia

É no momento em que alguém começa a levar a


filosofia a sério que todo o mundo pensa o contrário.
Humano Demasiado Humano

Há uma forma recorrente de recortar e periodizar a obra de


Lévy-Bruhl. Desse ponto de vista, existiriam em primeiro lugar os
trabalhos de filosofia e história da filosofia, de A Idéia de Responsa-
bilidade até A Filosofia de Augusto Comte; em seguida, um livro de
transição — A Moral e a Ciência dos Costumes — que marcaria sua
passagem para as ciências sociais com preocupações já sociológicas
em suas intenção, embora ainda filosóficas em sua essência. Após
isso, entre 1910 e 1938, seis livros propriamente etnológicos: As
Funções Mentais nas Sociedades Inferiores e A Mentalidade Primi-
tiva representariam o momento de afirmação de teses ainda pouco
elaboradas; com A Alma Primitiva teria início um processo de
relativização dessas posições iniciais que prosseguiria com ênfase
cada vez maior através de O Sobrenatural e a Natureza na
Mentalidade Primitiva e A Mitologia Primitiva, para atingir seu
ponto máximo com a publicação de A Experiência Mística e os
Símbolos entre os Primitivos. Enfim, os Carnets póstumos seriam o
lugar de uma revisão ainda mais radical das posições anteriormente
defendidas, inclusive daquelas tidas como mais fundamentais:
abandono de noções como as de “prelogismo” e “lei de participa-
ção”, renúncia a opor dois tipos de mentalidade, reconhecimento da
unidade profunda do espírito humano….
Como qualquer periodização — biográfica, intelectual, teóri-
ca ou mesmo histórica — esta não é em si mesma nem falsa nem
verdadeira. A questão é avaliar sua pertinência para uma possível
utilização das idéias de Lévy-Bruhl e verificar a que leitura esta
periodização conduz. Nela, vemos um autor que abandona uma
160 Razão e Diferença

carreira filosófica para se dedicar a estudos etnológicos aparente-


mente pouco relacionados com a filosofia. Vemos, em seguida, este
autor deixar de lado um certo “dogmatismo inicial” — a tese de uma
mentalidade “prelógica”, talvez inferior à nossa — para desembocar
em um “agnosticismo completo”, afirmando a impossibilidade de
compreensão dessa mentalidade1. Finalmente, observaríamos nos
Carnets como Lévy-Bruhl teria se tornado cético em relação à
própria obra, que havia consumido quase trinta anos de sua vida.
Eu gostaria de propor aqui uma outra leitura — e isso por duas
razões. Em primeiro lugar, porque esse recorte tradicional se choca
com certas dificuldades concretas, por exemplo, a absoluta seme-
lhança entre teses adiantadas desde As Funções Mentais… e
posições expostas nos Carnets. Além disso, é indiscutível que a
leitura convencional conduziu à desconfiança, por vezes ao despre-
zo e à recusa radical e preliminar dos trabalhos de Lévy-Bruhl. Sendo
meu objetivo aqui mostrar que é possível extrair algo de seu
pensamento, esforcei-me por encará-lo de outra perspectiva que,
melhor que a tradicional, pudesse permitir atingir esse resultado.
Para isso, foi necessário estabelecer um novo recorte e uma nova
periodização da obra, aparentemente mais simples que os ante-
riores, na medida em que seguem um esquema cronológico mais
direto. Seria possível sustentar que na década de 1880 a 1890, Lévy-
Bruhl escreveu seus trabalhos de “formação”, A Idéia de Responsa-
bilidade e A Alemanha desde Leibniz; que entre 1890 e 1900,
produziu uma obra de história da filosofia propriamente dita, de
forte inspiração positivista, que compreende os livros sobre Jacobi
e Comte, bem como o trabalho sobre a filosofia francesa moderna;
que entre 1900 e 1910, sua preocupação passará a ser essencialmente
sociológica, num sentido ainda bastante comtiano, embora já
marcado pelas posições de Durkheim e da escola sociológica
francesa — seu livro sobre a moral e As Funções Mentais… fazem
parte deste período –; enfim, que entre 1920 e 1940, serão
elaborados os trabalhos propriamente etnológicos, construindo
nesse momento um pensamento verdadeiramente original, de A
Mentalidade Primitiva aos Carnets. Os anos “em branco”, de 1910
a 1920, serão dedicados quase inteiramente a uma participação ativa
no esforço de guerra, o que não é, apesar das aparência, inteiramen-
te estranho ao desenvolvimento do pensamento de Lévy-Bruhl.
Com esse esquema aparentemente tão linear e regular não
pretendo, contudo, sugerir que a evolução desses trabalhos tenha
seguido um caminho simples: nem o de um progresso ascendente,
que iria de posições fortemente etnocêntricas a um saudável
Malentendido sobre a Vida Filosófica 161

relativismo, nem um recuo de idéias bem estabelecidas a um


ceticismo inseguro de si mesmo. Ao contrário, parece-me que esse
percurso é cheio de idas e vindas, correspondendo a uma triagem
progressiva, a uma elaboração cada vez maior tanto dos temas
tratados quanto da terminologia empregada. Não se trata, portanto,
de supor uma rígida continuidade em sua obra (progressiva ou
regressiva, pouco importa) ou imaginar uma ruptura radical que a
cortasse em duas. O que eu gostaria de investigar é, como diz
Deleuze, o “conjunto de forças” que faz com que essa obra oscile
entre diferentes níveis e atravesse diversos limiares. Forças inerentes
à própria obra — as imprecisões e contradições internas às quais
Lévy-Bruhl sempre foi tão sensível — e forças externas, provenien-
tes de diferentes regiões (o avanço da pesquisa e teoria antropoló-
gicas, as mudanças na filosofia, as transformações e acontecimentos
políticos…), que, combinando-se com as primeiras, exigem que um
autor avesso a todos os dogmatismos reconsidere constante e
ininterruptamente seu próprio pensamento.
Já foram analisadas as obras dos períodos que denominei de
“formação” e de “história da filosofia”, bem como o livro já
sociológico sobre a moral. Trata-se agora de entrar no tema
específico deste trabalho, analisando o outro lado dessas preocupa-
ções. Sustentei acima, que os temas filosóficos que mais interessa-
ram a Lévy-Bruhl descortinavam duas possibilidades para o desen-
volvimento de um pensamento original e próprio: de um lado, a
questão da moral; de outro, a investigação do que denomina
“funções mentais” — a tentativa de analisar o “espírito humano” a
partir de uma perspectiva distinta da adotada pelo introspeccionis-
mo filosófico tradicional. O trabalho sobre a moral, primeiro
caminho tentado, acabou por demonstrar que para ser convenien-
temente tratado, este tema exigia uma crítica das concepções
dominantes da natureza humana e de seu funcionamento concreto,
bem como a elaboração de uma nova psicologia de base sociológica
e etnológica que pudesse se converter numa verdadeira antropolo-
gia científica. O principal dessa crítica foi, como vimos, elaborado
em A Moral e a Ciência dos Costumes. Em As Funções Mentais…, o
esforço deverá se concentrar no estabelecimento positivo dessa
nova psicologia, a partir de documentos de caráter etnológico
provenientes do que Lévy-Bruhl denomina, com espírito ainda
típico do organicismo evolucionista do século XIX, “sociedades
inferiores”.
Isso não significa, contudo, como parece sugerir a maior parte
dos comentadores, e algumas vezes o próprio autor, que os temas
162 Razão e Diferença

diretamente abordados em As Funções Mentais… sejam ab-


solutamente novos na obra de Lévy-Bruhl. Ao contrário, vimos que
desde A Idéia de Responsabilidade uma série de informações
relativas às sociedades primitivas são constantemente utilizadas
como ponto de apoio para os raciocínios a serem desenvolvidos, já
que o método “geológico” empregado exige que dados desse tipo
sejam incluídos na investigação. Há mais, todavia. O interesse
constante — inicialmente a partir de uma perspectiva crítica, depois
com adesão cada vez maior — pela “lei dos três estados” de Comte,
só poderia convidar à meditação sobre sociedades que supostamen-
te ilustrariam o momento dito “teológico” de evolução da humani-
dade (IR; HP; PC; MM); do mesmo modo, a discussão a respeito do
privilégio concedido alternativamente à unidade do espírito huma-
no ou à diversidade empírica dos costumes — que tanto atrai Lévy-
Bruhl e que, para ele, oporia iluministas de um lado, tradicionalistas
e românticos de outro — pede sem dúvida uma atenção especial
para as “outras” sociedades (AL; PJ; HP; PC; MM); a questão crucial
acerca da possível existência de uma “lógica dos sentimentos” cuja
presença muito discreta em nossa sociedade só poderia ser compen-
sada metodologicamente pela observação de culturas onde se
manifestasse com toda a força (PJ; HP; PC; MM); a necessidade de
levar em conta o caráter sociológico das “funções mentais superio-
res”, que só ficaria realmente claro em sociedades onde as indivi-
dualidades fossem menos marcadas do que entre nós (HP; PC; MM);
o desejo de constituir uma psicologia objetiva que englobasse ao
mesmo tempo representações e sentimentos, que não separasse o
indivíduo do meio social em que vive e que só poderia se realizar
com o auxílio desses verdadeiros “laboratórios” naturalmente
oferecidos pelas sociedades primitivas (HP; PC; MM); as clássicas
questões acerca do progresso e da evolução, que para serem
satisfatoriamente respondidas dependeriam da observação concre-
ta de grupos humanos supostamente situados em patamares histó-
ricos distintos (HP; PC: MM); a necessidade de não projetar nossos
próprios hábitos, conceitos e julgamentos sobre realidades apenas
superficialmente familiares — tudo isso enfim, requer que nosso
espírito e nosso conhecimento sejam testados a partir de um material
muito diferente daquele com o qual estão acostumados a trabalhar
(MM). Não é de estranhar, portanto, que os “primitivos” sempre
tenham estado presentes no pensamento de Lévy-Bruhl.
Todos esses problemas reaparecerão sinteticamente em As
Funções Mentais nas Sociedades Inferiores — mas de um modo que
os converterá nas questões centrais do trabalho. Ao lado e acima de
Malentendido sobre a Vida Filosófica 163

todos eles, situa-se um tema que jamais deixou de perturbar o autor,


tema que de uma forma ou de outra também está presente em todos
os livros anteriores. Trata-se da questão das “resistências” ao
progresso ou, o que significa a mesma coisa, das “sobrevivências”
da tradição. Seja na dificuldade em aceitar a investigação filosófica
ou científica de valores tidos como transcendentes (IR; MM), na
incapacidade de romper realmente com tradições filosóficas supe-
radas (AL; PJ; HP), na insistência em construir filosofias do sentimen-
to anti-racionalistas por vocação (PJ; HP), na persistência de temas
antiquados mesmo nos pensadores mais revolucionários (HP; PC;
MM), ou no repúdio da assimilação da sociedade à natureza (MM),
em tudo isso a tradição parece bem mais viva do que supostamente
deveria estar. É muito difícil que um herdeiro e defensor da filosofia
racionalista francesa, iluminista ou positivista, pudesse ter deixado
de colocar esse problema. Em As Funções Mentais… ele será
diretamente investigado a partir dos dados referentes ao “tipo” de
sociedade que justamente parece ter permanecido à margem do
progresso e da evolução. Tanto é verdade, que esse livro de
aparência tão etnológica, onde a sociedade ocidental praticamente
não é mencionada, se encerra com a esperança de que os estudos
acerca dos “primitivos” possam servir para lançar uma nova luz
sobre uma das mais antigas questões que a filosofia ocidental se
coloca. Após completar toda a sua apreciação do “prelogismo”,
Lévy-Bruhl crê poder concluir:
daí os conflitos de mentalidade, tão agudos, por vezes tão
trágicos, quanto os conflitos de deveres. Eles provêm,
também, de uma luta entre hábitos coletivos, uns mais
antigos, outros mais recentes, diferentemente orientados,
e que disputam a direção do espírito, como exigências
morais de origem diversa dilaceram a consciência. É sem
dúvida assim que caberia explicar os pretensos combates
da razão consigo mesma, e aquilo que há de real em suas
antinomias. E se é verdade que nossa atividade mental é
lógica e prelógica ao mesmo tempo, a história dos dogmas
religiosos e dos sistemas filosóficos pode ser esclarecida
doravante com uma nova luz (FM: 455).
Em certo sentido, tudo está aí: lei dos três estados, raízes da
diversidade humana, perenidade dos sentimentos, caráter social da
psicologia, progresso e resistências a ele, sobrevivências, etc….
Cabe, pois, indagar como Lévy-Bruhl pôde chegar a esse ponto.

A
164 Razão e Diferença

O objetivo explícito de As Funções Mentais nas Sociedades


Inferiores é estabelecer “quais são os princípios diretores da
mentalidade primitiva”, ou seja, “determinar as leis mais gerais a que
obedecem as representações coletivas nas sociedades inferiores”
(FM: 2). Lévy-Bruhl inscreve assim seu estudo, ao menos parcial-
mente, na tradição durkheimiana, na medida em que a noção de
representações coletivas desempenhará, como no caso de Durkheim,
uma função essencial. O livro inicia com uma definição en gros dessa
categoria sociológica:
as representações chamadas coletivas (…) podem ser
reconhecidas pelos seguintes sinais: são comuns aos
membros de um determinado grupo social; transmitem-se
aí de geração a geração; impõem-se aos indivíduos e
despertam neles, segundo os casos, sentimentos de
respeito, temor, adoração, etc…, por seus objetos. Não
dependem do indivíduo para existir. Não que impliquem
um sujeito coletivo distinto dos indivíduos que compõem
o grupo social, mas porque se apresentam dotados de
caracteres que não podem ser explicados através da
consideração exclusiva dos indivíduos como tais (FM: 1)2.
Isso significa, em primeiro lugar, que as divisões, categorias
e a própria terminologia empregadas pela psicologia tradicional —
sempre limitada ao estudo de indivíduos — devem ser, ao menos
provisoriamente, abandonadas e substituídas por noções derivadas
de um estudo sociológico. Apesar disso, não deixa de ser verdade
que os objetivos últimos da pesquisa são ainda bastante psicológi-
cos, o que já marca uma certa distância em relação à abordagem
durkheimiana mais ortodoxa. Durkheim, de fato, jamais se preocu-
pou precisamente com a determinação das leis que regeriam as
representações coletivas, sua intenção tendo sempre sido recondu-
zir essas representações ao substrato morfológico que constituiria
sua origem. Lévy-Bruhl, ao contrário, possui uma certa ambição
psicológica, embora sustente que seu método é antes de tudo
sociológico. Tais são, de qualquer forma, os balizamentos teóricos
e metodológicos que estabelece para esse “primeiro” trabalho.
Seu ponto de partida é uma marcada oposição entre a ordem
do indivíduo e a da sociedade. Oposição que se duplica com a
distinção entre a “nossa” sociedade e as sociedades “inferiores” ou
“primitivas”, termos reconhecidos como “impróprios”, embora de
“uso quase indispensável”, desde que se especifique que pretendem
apenas se referir às “sociedades mais simples que conhecemos”
(FM: 2, nota 1). A duplicação da oposição é fundamental, pois ao
Malentendido sobre a Vida Filosófica 165

supor o caráter mais marcadamente sociológico das sociedades


primitivas, delimita imediatamente o objeto empírico da investi-
gação: para estudar as leis que regem as representações coletivas —
distintas das que governam as individuais — seria necessário voltar-
se para os grupos que as fornecem em seu estado quase puro, onde
os “espíritos estão ocupados antecipadamente por um grande
número de representações coletivas” (FM: 76). Essas representa-
ções, tidas desde o início como típicas das sociedades primitivas (o
que não significa que sejam exclusivas delas), apresentariam uma
série de características que as diferenciariam dos fenômenos psico-
lógicos com que nossa tradição e mesmo nossa ciência nos
acostumaram. Elas seriam eminentemente sociais, concretas, emo-
cionais, vividas, sentidas, sintéticas e presas às imagens; opostas,
portanto, termo a termo a nosso próprio pensamento, individual,
abstrato, racional, concebido, elaborado, analítico e conceitual (FM:
27-30; 141; passim). Todos os problemas teóricos adviriam do fato
da psicologia tradicional tender a tratar as representações coletivas
de acordo com o modelo fornecido pelo pensamento conceitual, o
que conduziria tanto a dificuldades insuperáveis quanto a precon-
ceitos deploráveis — como o que assimila os primitivos às crianças,
por exemplo (FM: 27). Seria necessário, portanto, desenvolver todo
um vocabulário científico adequado ao estudo desse tipo de
fenômenos bastante novos enquanto objeto de reflexão científica.
Evidentemente, Lévy-Bruhl acredita ser a observação sociológica o
único meio capaz de fornecer o caminho para essa pesquisa, que
teria como recompensa a descoberta das leis específicas que
governariam as representações coletivas.
Pode-se reconhecer aqui ainda a marca de Comte: “que as
funções mentais superiores devam ser estudadas pelo método
comparativo, isto é, sociológico, não é uma idéia nova. Augusto
Comte já a havia claramente enunciado no Curso de Filosofia
Positiva” (FM: 4). Além das idéias de Comte, os trabalhos da escola
sociológica francesa, bem como as pesquisas efetuadas por “antro-
pólogos e etnógrafos de diferentes países”, são mencionados como
condição de possibilidade da investigação que se pretende condu-
zir. São citados igualmente psicólogos como Ribot e Maier, porque,
mais que outros, teriam se esforçado para libertar sua disciplina dos
quadros rígidos da lógica tradicional, convertendo os sentimentos
e emoções — em geral negligenciados pela psicologia mais
interessada nas faculdades intelectuais — em objeto a ser também
investigado a fundo. Apesar de todos esses reconhecimentos de
dívida intelectual, Lévy-Bruhl atribui uma certa originalidade a sua
166 Razão e Diferença

obra na medida em que o método sociológico, apenas preconizado


por Comte e praticado com exclusividade talvez excessiva pela
escola sociológica francesa, se combinaria aí com o interesse dos
psicólogos em estudar as representações em si mesmas, fazendo
aparecer assim um novo objeto, “a determinação das leis mais gerais
das representações coletivas (aí compreendidos seus elementos
afetivos e motores), nas sociedades mais inferiores que nos são
conhecidas” (FM: 3).
De qualquer forma, a questão do individual e do coletivo —
indivíduo e sociedade, personalidade e cultura, ou como se quiser
denominá-la — faz parte integrante do campo das ciências sociais
e humanas desde seu surgimento. O emparelhamento, em estilo
evolucionista, dessa questão com a oposição civilizado/primitivo
não deixa, por sua vez, de ser típico da segunda metade do século
XIX e já vimos como o próprio Lévy-Bruhl fazia essa assimilação de
modo quase natural desde A Idéia de Responsabilidade, passando
por praticamente todos os livros que escreveu até 1910. A novidade,
em As Funções Mentais…, é que em vez de simplesmente utilizar a
dicotomia para esclarecer a natureza das sociedades primitivas em
oposição à nossa, aquelas são encaradas como fornecendo a
oportunidade para uma experiência que poderia conduzir até a
determinação das leis do pensamento coletivo. Em outros termos,
não se trata simplesmente de acompanhar o suposto progresso que
levaria do coletivo ao individual (como no caso do evolucionismo
social mais tradicional); nem (como fariam Durkheim e os “soció-
logos de estrita obediência”) de analisar como transformações de
ordem rigorosamente sociológica poderiam determinar a emergên-
cia da individualidade; tampouco se trata de apenas utilizar as
sociedades primitivas como modelos concretos e simples, onde as
complexas relações entre fatores culturais e psicológicos poderiam
ser melhor analisadas (como o viriam a fazer mais tarde os
antropólogos da chamada “escola de cultura e personalidade”). Na
verdade, Lévi-Strauss tem razão ao afirmar que mais que ninguém,
Lévy-Bruhl teria se aproximado do programa rapidamente sugerido
por Durkheim no prefácio à segunda edição de As Regras do Método
Sociológico — programa que propõe a constituição de uma psicolo-
gia puramente formal, que poderia em futuro indeterminado reunir
as leis das psicologias individual e coletiva. É claro que logo após
reconhecer o que crê ser um mérito de Lévy-Bruhl, Lévi-Strauss
censura seus “equívocos”, que consistiriam em ter inicialmente
rechaçado “as representações míticas para a antecâmara da lógica”
e, depois, ao tentar se corrigir, em ter “jogado fora, com a água do
Malentendido sobre a Vida Filosófica 167

banho, também o bebê: negando à ‘mentalidade primitiva’ o caráter


cognitivo que lhe concedia no início e lançando-a no interior da
afetividade” (Lévi-Strauss 1973: 36). O curioso é que Lévi-Strauss
parece revelar, ainda que de modo negativo, o estranho parentesco
— ao qual ainda retornaremos — que apesar de tudo o liga a Lévy-
Bruhl. De fato, a definição da antropologia como psicologia formal,
abolindo todas as diferenças entre a ordem do indivíduo e a da
sociedade parece muito adequada para definir o trabalho de ambos.
Alguns anos antes dessas afirmativas, datadas de 1960, o
mesmo Lévi-Strauss esboçou uma redução do pensamento de Lévy-
Bruhl a uma espécie de elaboração, dentro do espírito iluminista, da
oposição indivíduo/sociedade. Para ele, o tema central deste último
seria um protesto “contra a tese segundo a qual as representações
e atividades sociais seriam sínteses mais complexas e moralmente
mais elevadas do que as realizações individuais” (Lévi-Strauss 1946:
537). Para Lévy-Bruhl, “tudo o que foi realizado pelo homem, o foi
não sob a influência do grupo, mas contra ele”, de modo “que o
espírito individual só pode estar adiantado em relação ao espírito do
grupo” (idem: 539). Lévy-Bruhl seria, portanto, do ponto de vista
ideológico, um anti-Durkheim, uma vez que este teria sempre
defendido a tese do caráter eminentemente social do conhecimento
e da moral. E isso a despeito de ambos terem incorrido no mesmo
erro fundamental, o de “hipostasiar uma função”, encarando a
sociedade como substância (idem). Pior para Lévy-Bruhl, que além
desse equívoco fundamental, teria também recusado exatamente o
que ainda poderia manter para nós o interesse em Durkheim, “a
parte essencial do ensino (…), a metodologia” (idem).
De minha parte, penso que Lévi-Strauss exagera um pouco.
Exagera porque isola um tema que certamente serviu como um dos
pontos de partida de Lévy-Bruhl, mas que se complicou enorme-
mente ao longo de sua obra, assumindo uma forma bem mais
complexa do que a que possui nos trabalhos da própria escola
sociológica francesa. Para Durkheim, o problema nunca chegou a
ser complicado demais. Como demonstrou Duarte (1984: 9), o que
a “escola” se vê obrigada a supor é que individualidades “infra-
sociais” são articuladas pela efervescência inter-individual que
produziria a sociedade, pensada como entidade pairando acima dos
indivíduos reais. Trata-se, grosso modo, da idéia durkheimiana da
“horda primitiva”, modelo puramente teórico, representando uma
espécie de grau zero da vida social. A partir dessa catálise inicial, o
desenvolvimento conduziria à liberação progressiva de uma indivi-
dualidade “hiper-social”, resultante da própria vida em sociedade e
168 Razão e Diferença

típica das sociedades complexas, especialmente da nossa. A dificul-


dade, como se sabe, é sobretudo de ordem prática e moral: como
combinar em doses corretas a progressiva independência dos
indivíduos com as necessidades sociais sempre presentes a fim de
evitar a “anomia”? Parece-me que nem Mauss nem mesmo os
herdeiros mais distantes do pensamento durkheimiano, como
Dumont, conseguiram se livrar inteiramente dessa questão, impe-
dindo-se assim de pensar o que denominamos “indivíduo” e
“sociedade” como formas de objetivação resultantes de forças
menos visíveis, situadas num nível mais fundamental. Lévi-Strauss
foi provavelmente o primeiro a fazê-lo, embora de forma não muito
explícita, ao situar essas forças objetivantes sobre um plano
puramente lógico. A noção de inconsciente estrutural é proposta
justamente, lembremos, para assinalar uma dimensão em que a
oposição entre indivíduo e sociedade não pode mais funcionar (cf.
Lévi-Strauss 1950: XXX-XXXII).
Lévy-Bruhl, por seu lado, apesar das aparências, pretende
assumir nesse debate uma posição muito mais empirista, como
escreveu a Davy. Num primeiro momento, parece recusar a questão,
tentando simplesmente dar conta do que considera diferenças
específicas e concretas entre os fenômenos individuais e coletivos
— posição que, é claro, continua mantendo a oposição indivíduo/
sociedade. Os “primitivos” entrarão no debate apenas como uma
forma de equivalente empírico do segundo termo do par, já que o
primeiro seria ilustrado por nós mesmos, por nossa atividade mental
aparentemente livre dos constrangimentos sociais. Os problemas
começarão a surgir na medida em que esses primitivos forem
deixando de ser simples modelos para se converterem no objeto
mesmo da investigação, condição que se tornará progressivamente
mais nítida sob a pressão de dados sentidos como cada vez mais
espantosos. A oposição entre o indivíduo e a sociedade cederá a
primazia para aquela entre os primitivos e nós mesmos, oposição
que irá se acentuando até o ponto em que será preciso indagar como
nós chegamos a ser o que efetivamente somos. Isso significa que a
estranheza dos primitivos servirá, paradoxalmente, para revelar
nossa própria singularidade: partindo, sem dúvida, da idéia
durkheimiana de que as “formas elementares” forneceriam sempre
a chave explicativa dos sistemas complexos, Lévy-Bruhl acabará por
descobrir paulatinamente que, ao contrário, apenas o auto-estra-
nhamento pode tornar interessante e significativa a observação das
outras sociedades e que esta observação, longe de diminuir esse
estranhamento, acaba por ampliá-lo de modo considerável. A
Malentendido sobre a Vida Filosófica 169

“anatomia do homem” passará a ser a chave da do macaco. Não no


sentido em que a primeira acaba sendo reduzida ao monótono
desenvolvimento das virtualidades já contidas na segunda; ao
contrário, a passagem deverá ser pensada como imprevisível e
como dependente em grande parte das forças do acaso, de forma
que somente a aproximação entre o “macaco” e o “homem” poderia
chegar a revelar, senão o estranho caminho percorrido, pelo menos
o ponto em que as diferenças se tornam quase insuperáveis.
Como já foi mencionado de passagem, Florestan Fernandes
(1954: 122) sustenta que os problemas levantados por Lévy-Bruhl
estão relacionados “aos efeitos dos processos de secularização da
cultura e de racionalização no plano das doutrinas filosóficas e à
crise dos diversos sistemas filosóficos ditos ‘espiritualistas’, produ-
zida pelo novo clima de idéias e pela valorização do pensamento
científico”. Esses processos estão sem dúvida enraizados numa certa
forma de universalismo de tendência cientificista que, como todo
universalismo, tem um problema crucial, saber como integrar aquilo
que apesar de tudo insiste em escapar dele, a diferença. A própria
ciência, que “surge em uma civilização em que a explicação racional
das coisas e das condições de existência atingiu progressivamente
todas as esferas possíveis, da natureza às relações dos seres
humanos entre si ou com o sobrenatural”, dificilmente poderia
deixar de ser etnocêntrica, ao menos de modo residual (idem: 122-
3). Ora, como herdeiro confesso dessa tradição universalista,
escrevendo antes que uma crítica mais radical do etnocentrismo
tivesse sido elaborada, Lévy-Bruhl só pode trabalhar com os
elementos de que dispõe: razão/emoção, indivíduo/sociedade,
nós/eles…. Que esses termos soem de forma antiquada, que essas
oposições sirvam de ponto de partida e, às vezes, de apoio, não deve
levar a uma condenação preliminar, mas à surpresa frente ao fato
de que, com um material teoricamente tão limitado e ideologica-
mente tão comprometido, Lévy-Bruhl tenha conseguido chegar tão
longe.
Se há algo de que não é possível duvidar é que ao menos a
intenção de Lévy-Bruhl é claramente anti-etnocêntrica — embora
com algumas nuances. Se limitarmos o sentido do etnocentrismo a
seus aspectos cognitivos — tendência a projetar sobre outras
culturas as categorias específicas da nossa, concedendo a estas,
implícita ou explicitamente, um alcance supostamente universal —
podemos mesmo chegar a dizer que ninguém é menos etnocêntrico
do que ele, pois é difícil encontrar um autor que tenha com os
próprios termos que emprega os cuidados de Lévy-Bruhl, que chega
170 Razão e Diferença

quase ao paroxismo nessa questão. Mas é justamente aí que o


problema se complica. Por etnocentrismo compreendemos em
geral duas coisas bem diferentes: por um lado, esse etnocentrismo
de ordem cognitiva; por outro, um etnocentrismo que poderia ser
chamado moral ou ético. Se o primeiro significa a projeção e
universalização de conceitos e categorias do conhecimento, o
segundo possui um sentido mais ambíguo, já que pode se referir
tanto à tendência em aplicar valores morais típicos de nossa
sociedade a contextos culturais diferentes, quanto a um certo modo
de nos situarmos em posição de pretensa superioridade frente às
outras sociedades. As duas coisas podem ocorrer em conjunto,
embora isso não seja estritamente necessário: no primeiro caso, o
etnocentrismo moral poderia ser considerado como uma simples
variante do cognitivo; no segundo, contudo, pode ou não se
distinguir bastante deste. Um anti-etnocentrismo radical, cognitivo
ou moral no primeiro sentido, afirmando uma diferença realmente
substantiva e irredutível entre formas de conhecimento e sistemas
de valores que prevalecem em nossa sociedade e os que predomi-
nam em outras, poderia conduzir facilmente à afirmação de uma
superioridade absoluta da primeira sobre as segundas. Não se trata
de dizer, como foi sugerido algumas vezes, que essa seja a posição
de Lévy-Bruhl, mas se levarmos essas distinções em conta, podere-
mos avaliar a complexidade desta posição.
Isso não significa que aquela defendida pela maior parte dos
antropólogos, ou por autores inspirados pela antropologia, deixe de
sê-lo. Geertz (1984: 15), por exemplo, só distingue os dois tipos de
etnocentrismo para recusá-los mais rigorosamente; Sperber (1982:
10) — que também faz a distinção — repudia, sem muitos
esclarecimentos aliás, o etnocentrismo moral, embora acabe acei-
tando o cognitivo, na medida em que recusa radicalmente qualquer
relatividade do conhecimento. Lévi-Strauss, por sua vez, apesar de
algumas versões acerca de seu pensamento, jamais deixou de
afirmar a superioridade empírica do conhecimento científico sobre
o pensamento selvagem ou mítico3. Todorov, em um livro signifi-
cativamente intitulado Nós e os Outros, não tem dúvida em afirmar
a possibilidade, e mesmo a necessidade, de julgamentos cognitivos
e éticos universalmente válidos (Todorov 1989: 426-9). Discussão
difícil, que tende a aparecer contemporaneamente sobretudo na
forma do debate em torno do relativismo cultural, merecendo pois
uma análise bem mais detalhada. Por ora, trata-se apenas de situar
de modo preliminar o pensamento de Lévy-Bruhl frente a uma
Malentendido sobre a Vida Filosófica 171

questão que é co-extensiva ao desenvolvimento da teoria antropo-


lógica e que hoje em dia parece ressurgir com nova força.
Desse ponto de vista, este pensamento é de fato bastante
complexo. Já havíamos observado, em A Moral e a Ciência dos
Costumes, a recusa explícita em aceitar a pretensa universalidade
dos valores morais, bem como a possibilidade de aplicá-los de
forma transhistórica ou transcultural. Veremos também que a partir
de As Funções Mentais…, essa recusa se ampliará e radicalizará,
voltando-se sobretudo para as categorias cognitivas. Apesar disso,
apontar o etnocentrismo como o pecado capital de Lévy-Bruhl é
quase uma unanimidade entre os antropólogos. Isso só pode
ocorrer, entretanto, em virtude de uma certa banalização do termo,
reduzido em geral ao que se supõe ser o resultado de seu raciocínio
ou de suas pesquisas, a saber, a hierarquização das culturas. Lévy-
Bruhl pode muito bem ter recusado a extensão de nossos conceitos
e valores para as outras sociedades; como se imagina, ao mesmo
tempo, que acabou por opor como ninguém dois tipos de sistema
social (“nós” e “eles”), acredita-se facilmente que teria chegado a
uma posição etnocêntrica muito mais exacerbada do que alguém
jamais tinha sonhado propor anteriormente. Perspectiva tradicional-
mente aceita, ainda que alimentada muito mais, não é demais
repetir, pela leitura de comentadores de segunda ou terceira mão
que pelo contato direto com os textos do autor. De qualquer forma,
eu gostaria de investigar o tema mais diretamente, com um pouco
mais de profundidade, tentando propor outro ângulo de abordagem
dessa obra, que, se não for mais “correto”, poderia ser ao menos
mais útil. Minha hipótese é que o anti-etnocentrismo — ou o
relativismo — de aparência radical só pode conduzir a conclusões
opostas a sua inspiração inicial, a não ser que seja realmente levado
às últimas conseqüências. Deste ponto de vista, o desenvolvimento
progressivo dos trabalhos de Lévy-Bruhl consistiria justamente num
gigantesco esforço nessa direção, a despeito dos recortes tradicio-
nais que se costuma aplicar a sua obra.
A principal dificuldade em situar de modo claro e definitivo
a posição de Lévy-Bruhl a respeito dessas questões provém, ao
menos em parte, de sua aceitação implícita da distinção kantiana
entre “razão pura” e “razão prática”. Mesmo nos momentos em que
leva mais longe seu relativismo cognitivo, parece evitar cuidadosa-
mente, a não ser por brevíssimas alusões, todo e qualquer recurso
a julgamentos de valor, seja a respeito dos méritos respectivos de
formas de conhecimento que considera bastante heterogêneas, seja
valorizando globalmente a civilização ocidental em detrimento das
172 Razão e Diferença

outras culturas. É verdade que o vocabulário empregado (socieda-


des “inferiores”, “primitivas”, “baixas”…; pensamento “infantil”,
“imaginário”, etc.), certas posições explicitamente assumidas (apoio
ao trabalho dos missionários, por exemplo), sua formação intelec-
tual e cultural enfim, parecem apontar firmemente na direção de
uma crença bem estabelecida na superioridade ocidental. De
qualquer forma, isso jamais aparece na obra propriamente dita; ao
contrário, críticas aos preconceitos contra as sociedades primitivas
não deixam de estar presentes, de As Funções Mentais… aos
Carnets4.

A
Em As Funções Mentais nas Sociedades Inferiores, Lévy-Bruhl
lamenta explicitamente as dificuldades de utilização dos dados
relativos às sociedades primitivas, sublinhando que a maior parte
dos observadores teria prestado atenção apenas “àquilo que lhes
parecia mais notável, mais estranho, àquilo que mais aguçava sua
curiosidade” (FM: 23). Por outro lado, adverte para os preconceitos
que podem derivar do que considera um excessivo apego a
qualquer tipo de “teoria sociológica”, reivindicando mesmo uma
certa vantagem para as observações efetuadas por alguns viajantes
de pouca ou nenhuma formação teórica sobre aquelas voltadas
acima de tudo para a confirmação ou refutação de postulados e
teorias científicas (FM: 23-4). Quase um quarto de século mais tarde,
ele ainda reafirmaria essa posição, ao escrever, em sua carta a Evans-
Pritchard, que “mais de um pesquisador que foi fazer field work
munido de um questionário fornecido por um antropólogo eminen-
te e que o seguiu ao pé da letra não relatou nada de interessante,
ao menos para mim” (LE: 409). Ainda no espírito de As Funções
Mentais…, o “carnet” de 1º de janeiro de 1939 observa que seria
preciso combater “os preconceitos que se tem freqüentemente
quando se trata de comparar as civilizações primitivas à nossa.
Tendência a considerar como absurdo ou grotesco, ou em todo caso
como inferior, aquilo que choca nossos hábitos” (CL: 209). Obser-
vações que hoje em dia podem passar por óbvias ou tímidas, mas
que, formuladas por um homem moral e intelectualmente formado
ainda no século XIX — acerca de quem também costumamos nutrir
nossos preconceitos — não são nada desprezíveis.
Não há nada de estranho, portanto, no fato de que cerca de
metade da Introdução de As Funções Mentais… seja dedicada à
Malentendido sobre a Vida Filosófica 173

contestação de certas posições comuns a respeito das sociedades


primitivas, em especial das defendidas pelos que fazem parte do que
Lévy-Bruhl gosta de denominar “escola antropológica inglesa”, ou
seja, o evolucionismo social vitoriano. É verdade que uma homena-
gem preliminar é prestada a essa corrente de pensamento. Admite-
se que os autores a ela ligados teriam sido os primeiros a levar
realmente a sério o princípio de Comte segundo o qual, na medida
em que as “funções mentais superiores” possuem um caráter acima
de tudo sociológico, seu estudo só poderia ser efetivamente
conduzido pelo método comparativo que a sociologia propunha. O
próprio Comte, entretanto, teria se limitado a propor esse estudo,
sem jamais ter praticado de fato o tipo de comparação que defendia.
Confinado a uma concepção ainda excessivamente filosófica da
“humanidade”, teria se contentado em exprimir a priori a lei
dinâmica dos três estados e, por outro lado, uma concepção do
“quadro cerebral” do homem em nada apoiado sobre observações
concretas acerca das diferentes sociedades humanas empiricamente
existentes. Além disso, o que seria ainda mais grave, o fato de sua
doutrina ter sido explicitamente construída a partir de considera-
ções relativas unicamente ao “desenvolvimento da civilização
mediterrânea”, não parece fazê-lo duvidar por um só instante de sua
validade “para todas as sociedades humanas” (FM: 4-5).
Os antropólogos ingleses, de maneira inteiramente distinta,
teriam efetivamente se posto a trabalhar, tratando de aplicar de
forma concreta o método comparativo à observação das sociedades
primitivas. Da lição de Comte, no entanto, parecem só ter retido a
metade (o lado metodológico), esquecendo que o método proposto
só faria sentido a partir do postulado do caráter social das funções
mentais. Desse modo, os evolucionistas teriam cometido dois erros
fundamentais: tentar dar conta dessas funções de um ponto de vista
inspirado pela psicologia individual de inclinação associacionista
(FM: 17-8); não ter colocado a questão da possível diferença entre
as funções mentais tal qual se manifestam nas sociedades primitivas
e naquelas de onde os próprios teóricos provêm — o que derivaria
diretamente do primeiro equívoco (FM: 6-7). Nesse sentido, a
reiterada crítica ao associacionismo psicológico — “hipótese geral
cara à escola antropológica inglesa” (FM: 7) — funciona justamente
para marcar a distância que Lévy-Bruhl pretende estabelecer entre
suas próprias idéias e a posição defendida pelos “ingleses”, redutível
no fundo ao “axioma” da “identidade de um ‘espírito humano’
perfeitamente semelhante a si mesmo do ponto de vista lógico, em
todos os tempos e em todos os lugares” (idem).
174 Razão e Diferença

Como é fácil observar, esta é a mesma crítica lançada em A


Moral e a Ciência dos Costumes contra o “primeiro postulado da
moral teórica”: as duas posições implicam que “o axioma assume o
lugar de demonstração”, que em vez de tentar dar conta dos fatos
estranhos, seus defensores pressupõem que toda estranheza e
diferença não passam de uma “ilusão psicológica”, derivada da
simples má aplicação de princípios lógicos universais (FM: 8-9). A
questão verdadeiramente fundamental — “as funções mentais
superiores são idênticas nessas sociedades e na nossa”? (FM: 9) —
é deixada de lado, de modo que todas as hipóteses e resultados a
que chegam os antropólogos ingleses poderiam legitimamente ser
colocados em dúvida até que uma resposta positiva para essa
questão fosse realmente formulada. Suas explicações podem ser até
mesmo “plausíveis”, “verossímeis”. Isso se deve, contudo, justamen-
te ao fato de estarem baseadas em pressupostos e conjecturas com
que estamos habituados, não na investigação concreta e livre do
problema, o que faz com que essas explicações tendam a ser o
oposto das explicações “verdadeiras” (FM: 10-13).
O duplo erro da escola inglesa seria supor que, como diz
Frazer, “na evolução do pensamento, como na da matéria, o mais
simples é primeiro no tempo” (FM: 11), imaginando, como conse-
qüência imediata dessa hipótese, que nas “origens” estaríamos
sempre às voltas com “um espírito humano individual, supostamen-
te virgem de toda experiência” (FM: 14). Concepções absolutamente
inaceitáveis para Lévy-Bruhl: a segunda seria “tão quimérica quanto
a do homem anterior à sociedade”; a primeira, além de factualmente
inexata, seria também metodologicamente perigosa na medida em
que faria crer que explicações muito simples seriam suficientes lá
onde têm justamente a necessidade de serem muito complicadas”
(idem). O passo original que Lévy-Bruhl dá aqui é o abandono das
preocupações genéticas imanentes ao evolucionismo. De seu ponto
de vista, o social, as representações coletivas, são dados a priori,
todo esforço para supor um momento prévio a sua existência, ainda
que apenas logicamente anterior, estando condenado de antemão
ao fracasso. Seria preciso, conseqüentemente, empreender “a
análise dessas representações, sem idéia preconcebida a respeito do
mecanismo mental de que dependem” (FM: 17), o que significa que
os postulados da “escola antropológica inglesa” deverão ser subs-
tituídos por outros, tomados de empréstimo à “escola sociológica
francesa”: solidariedade dos fatos sociais entre si; subordinação da
mentalidade e das representações coletivas de cada sociedade ao
tipo de instituições e costumes aí vigentes (FM: 19).
Malentendido sobre a Vida Filosófica 175

Isso não quer dizer, entretanto, adesão completa e incondici-


onal às teses durkheimianas: entre Comte, os antropólogos ingleses
e Durkheim, Lévy-Bruhl tentará operar uma síntese original. Se a
intuição sobre o caráter social das funções mentais é extraída do
primeiro e se sua utilização prática é tomadas aos segundos, pode-
se sugerir que em certo sentido Lévy-Bruhl utiliza Comte e os
ingleses para se corrigirem mutuamente. Trata-se de empreender
uma pesquisa sociológica a propósito das leis de funcionamento do
espírito humano a partir de comparações transculturais que não se
contentem em buscar — e encontrar — o semelhante, mas que
estejam atentas sobretudo às diferenças. Além disso, os evolucionis-
tas, apesar de seus erros e preconceitos, fornecem ainda mais, ao
demonstrarem, ainda que através da pura justaposição dos fatos a
existência de um conjunto de fenômenos comuns a um enorme
número de sociedades diferentes. Desse modo, a questão da
existência de um “tipo” reunindo propriedades muito difundidas em
culturas empiricamente distintas fica colocada. Nesse momento,
intervém a contribuição da escola sociológica francesa. Se abando-
narmos os pressupostos psicológicos individualistas e universalistas
dos antropólogos ingleses e se aproximarmos sua demonstração da
noção durkheimiana de “tipo social”, poderíamos abrir um vasto
campo de pesquisas acessível a métodos mais objetivos e a
princípios teóricos mais adequados. Conduzir um trabalho compa-
rativo que possibilitasse o estabelecimento de uma psicologia
experimental e objetiva distante do introspeccionismo implícito ao
associacionismo adotado pelos evolucionistas, tal parece ser a
pretensão de Lévy-Bruhl. Após ter corrigido Comte e a antropologia
inglesa — um com o auxílio do outro — é para a escola sociológica
francesa, com suas noções de tipo social e determinação sociológica
das representações coletivas, que se volta. Entretanto, mesmo aqui
algumas modificações importantes serão introduzidas no quadro
teórico que toma como referencial.
Sabe-se que Durkheim tentou, em especial no quarto capítulo
das Regras…, definir o objeto da sociologia situando-o em um nível
intermediário entre aquele, concreto demais, da sociedade, e
aquele, excessivamente abstrato, da humanidade. Procurava, as-
sim, livrar-se dos impasses em que se debatia a ciência social de sua
época e, ao mesmo tempo, encontrar o verdadeiro lugar da
sociologia, entre o estilo puramente monográfico dos historiadores
e a filosofia da história de Comte e dos evolucionistas (cf. Lévi-
Strauss 1946: 527-8). A noção de “tipo social” foi introduzida
justamente para que esses objetivos pudessem ser alcançados e a
176 Razão e Diferença

“constituição dos tipos sociais” foi definida como a tarefa da parte


mais importante da sociologia, a “morfologia social” (Durkheim
1895: 81). Enfim, para constituir efetivamente esses tipos, Durkheim
crê ser possível e necessário classificá-los de acordo com seu “grau
de composição”, sua complexidade crescente, da “horda” primitiva
— noção, já o dissemos, puramente teórica, correspondendo
idealmente a um sistema social absolutamente homogêneo — até as
modernas sociedades dotadas de uma organização baseada na
divisão do trabalho e na solidariedade orgânica (Durkheim 1895:
cap. IV). Sabe-se igualmente que o outro pólo dessa sociologia é
constituído pela “fisiologia social”, encarada ora como o estudo do
que Comte chamava dinâmica social, ora como devendo se dedicar
à análise das representações coletivas — concepção que parece ir
ganhando espaço cada vez maior ao longo da evolução da obra de
Durkheim até assumir um papel central em As Formas Elementares
da Vida Religiosa. De qualquer forma, seja como “dinâmica” ou
como “representações”, o objeto dessa fisiologia social seria deter-
minado pela base morfológica, ainda que uma certa autonomia seja
admitida. Disso decorre o privilégio absoluto concedido à explica-
ção causal: a organização social concreta seria, em última instância,
a “causa” do funcionamento da sociedade ou das representações
coletivas. Além disso, na medida em que os tipos sociais são
organizados por complexidade crescente, cumpriria investigar o
engendramento dos tipos superiores a partir e pelos inferiores
(Durkheim 1895: cap. V). Durkheim pode muito bem, como diz
Lévi-Strauss, ter pretendido contornar o evolucionismo com sua
noção de tipo social; a maneira de pensar a noção e estabelecer os
tipos faz, contudo, que preocupações de ordem genética e relativas
à transição entre os tipos venham a ocupar um lugar central em seu
pensamento.
Lévy-Bruhl, de sua parte, admira a sociologia durkheimiana,
acreditando que poderia vir a fornecer uma alternativa para escapar
à filosofia da história positivista e ao individualismo psicológico
evolucionista sem cair no estilo puramente descritivo do historicis-
mo monográfico. Essa sociologia, “sem dúvida conduzirá a uma
teoria do conhecimento positiva e nova, fundada sobre o método
comparativo” (FM: 2) — e o prefácio à terceira edição de A Moral
e a Ciência dos Costumes, datado do mesmo ano em que se publica
As Funções Mentais…, invoca a necessidade de “constituição dos
diversos tipos sociais” (MM: IV-V). O problema é que o modelo
genético e transformista parece jamais ter interessado tanto a Lévy-
Bruhl quanto interessava a Durkheim. Além disso, sua intenção
Malentendido sobre a Vida Filosófica 177

declarada de conduzir um estudo essencialmente psicológico, ainda


que com um método sociológico, só poderia esbarrar, do ponto de
vista dos “sociólogos de estrita obediência”, na necessidade de
estudos morfológicos prévios. É por isso que desde As Funções
Mentais… — diferença que se agravará com o tempo — a adesão
ao sociologismo durkheimiano será muito limitada. Mesmo admitin-
do teoricamente que os tipos de mentalidade dependam dos tipos
de sociedade, Lévy-Bruhl acredita ser possível deixar a questão
causal provisoriamente de lado, tentando “constituir, senão um tipo,
ao menos um conjunto de caracteres comuns a um grupo de tipos
vizinhos uns dos outros, e definir assim os traços essenciais da
mentalidade própria às sociedades inferiores” (FM: 21). Os proble-
mas de origem e determinação — de explicação, no sentido
durkheimiano — são deixados para mais tarde em benefício de um
trabalho preliminar, reconhecido como basicamente descritivo. Ele
teme acima de tudo, que uma explicação precoce e excessivamente
rigorosa acabasse por conduzir ao mesmo tipo de resultado
decepcionante atingido pelos evolucionistas que, de tão certos que
estavam de que tudo poderia ser explicado por hipóteses intelectu-
alistas, desembocaram em puras conjecturas absolutamente in-
comprováveis: “é precisamente essa explicação que os impediu de
ir mais longe. Eles a possuíam completamente pronta. Eles não a
buscaram nos próprios fatos; eles a impuseram a estes” (FM: 6).
Não chega portanto a ser surpreendente, embora seja curioso,
que em uma carta endereçada a Lévy-Bruhl, datada de 18 de agosto
de 1909, Durkheim proteste contra a intenção do amigo em excluir
sistematicamente o termo primitivo de sua próxima obra, justamen-
te As Funções Mentais nas Sociedades Inferiores. Embora Durkheim
afirme que sua crítica visava apenas “um excesso de purismo que
tem seus inconvenientes” (in Davy 1983: 320), creio que ela vai bem
mais longe e que Durkheim, quaisquer que tenham sido suas
ressalvas, não podia, do ponto de vista teórico, abrir mão dessa
noção de “primitivo”. É verdade que Lévy-Bruhl seguiu seu conse-
lho, concordando tanto em manter o termo no corpo do livro quanto
em suprimi-lo do título — outra opinião de Durkheim, que pensava
que, embora verdadeira, a expressão qualificava de maneira apenas
secundária o objeto aí tratado, de modo apenas cronológico e não
através de suas “características internas” (idem). Independente
disso, o termo “primitivo” permanece meramente referencial, com
todos os inconvenientes admitidos, o que não ocorre no pensamen-
to de Durkheim. Lévy-Bruhl propõe uma simplificação heurística,
opondo a “mentalidade própria às sociedades inferiores” à “das
178 Razão e Diferença

sociedades oriundas da civilização mediterrânea” (FM: 21). Trata-se


de um procedimento que se pretende puramente metodológico,
embora seja exatamente essa oposição que irá orientar praticamente
todas as leituras de sua obra. Nesse caminho, Lévy-Bruhl deveria
encontrar inevitavelmente a escola antropológica inglesa, preocu-
pada “sempre em mostrar a relação da mentalidade ‘selvagem’ com
a mentalidade ‘civilizada’” (FM: 16). Já sabemos, contudo, que o
método empregado e as conclusões que viriam a ser atingidas não
podem ser os dos evolucionistas. Estes acreditavam demais na
unidade a priori do espírito humano, de modo que o contraste entre
os dois tipos de mentalidade só poderia conduzir, ao estabelecimen-
to do que Cazeneuve (1963: 21-2) denominou “diferenças ocasio-
nais” — diferenças pensadas como derivando de condições pura-
mente extrínsecas, ou mais precisamente, do simples fato de os
primitivos não terem tido ainda tempo suficiente para acumular as
experiências e o saber necessários para controlar a aplicação dos
princípios universais do pensamento. Para Cazeneuve, o projeto
mais geral de Lévy-Bruhl seria justamente substituir essas diferenças
meramente ocasionais por “diferenças fundamentais”, derivadas
dos meios sociais distintos em que se constituem as diversas formas
de pensamento (idem). Isso não significa, de modo algum, diferen-
ças absolutas: “há caracteres comuns a todas as sociedades huma-
nas, pelos quais elas se distinguem das outras sociedades animais
(…). Por conseguinte, as funções mentais superiores apresentam
em toda parte um fundo que não pode deixar de ser o mesmo” (FM:
20). Mas, ainda que verdadeiro, isso não eliminaria o fato de que “as
sociedades humanas, como os organismos, podem apresentar
estruturas profundamente diferentes umas das outras e, conseqüen-
temente, diferenças correspondentes nas funções mentais superio-
res” (idem). Ou seja: “a mentalidade das sociedades inferiores não
é sem dúvida tão impenetrável (…), mas não é tampouco comple-
tamente inteligível para nós” (FM: 70).
Ora, essas declarações do autor sugerem que convém matizar
a oposição proposta por Cazeneuve. Estabelecer “diferenças funda-
mentais” não é, parece-me, o projeto geral de Lévy-Bruhl. Estas
diferenças decorrem de um ponto mais fundamental, do abandono
do postulado universalista do evolucionismo social, em decorrência
portanto da força dos fatos analisados, não como um axioma que
deveria substituir outro. Trata-se ao mesmo tempo de um procedi-
mento metodológico e de uma escolha teórica: partir das diferenças,
pronto a admitir a unidade se essa for empiricamente revelada pela
experiência, não postular antecipadamente essa unidade, o que
Malentendido sobre a Vida Filosófica 179

tornaria muito difícil admitir as diferenças. Como afirmou Florestan


Fernandes (1954: 134-5), a unidade da condição humana é sobre-
tudo uma “fonte de problemas novos, não um meio para a solução
de problemas antigos”. Isso significa que mesmo aceitando em
princípio a unidade do espírito humano, não se poderia fazer dela
um dogma que solucionaria sem muito custo as questões de fato que
se colocam diante de nós. Ao contrário, na medida mesmo em que
o homem é pensado como um, as diferenças realmente observáveis
só podem se tornar ainda mais espantosas, propondo um gigantesco
desafio intelectual. O que se pretende afastar desse modo é a crença
iluminista, positivista e evolucionista em uma unidade tranqüila do
pensamento humano — unidade profunda que não conheceria
senão diferenças ocasionais e conflitos transitórios. Sabe-se que as
noções de progresso, nos dois primeiros casos, e de evolução, no
segundo, funcionam justamente no sentido de exorcizar o fantasma
da diferença, ao tratá-la como simples preparação para o presente
ou mera sobrevivência do passado. Também deste ponto de vista,
não creio que Durkheim tenha se afastado substantivamente do
fundo teórico e ideológico constituído por essas formas de encarar
a diversidade humana. Davy (1931: 221-3) tentou caracterizar sua
posição a esse respeito como um “dualismo de superposição”
opondo no interior do próprio ser humano, o individual e o coletivo,
sendo que, se o primeiro aspecto é mais ou menos comum e
universal, o segundo seria responsável pelas diferenças observá-
veis. No entanto, a idéia de uma complexificação progressiva dos
tipos sociais, ainda que Durkheim tenha procurado não lhe dar a
forma de uma evolução unilinear, bem como a hipótese de uma
constituição social e histórica das categorias do pensamento, ainda
que não se trate de um progresso simples, dificilmente permitem
ocultar um evolucionismo implícito ou, às vezes, explícito. As
críticas que Durkheim, Mauss e todos os sociólogos de estrita
obediência sempre dirigiram a Lévy-Bruhl revelam claramente essa
postura: o que lhe censuram é ter aprofundado de tal modo a
diferença entre mentalidade primitiva e pensamento contemporâ-
neo a ponto de tornar impossível dar conta da transição de uma ao
outro. Ora, esta transição é, para a escola sociológica francesa, o
fenômeno essencial, pois nela residiria justamente a explicação
causal da sociedade humana, que Durkheim considera a única
verdadeiramente científica.
Ao distinguir Lévy-Bruhl de Durkheim, atribuindo ao primeiro
um “dualismo de divergência” oposto ao de “superposição” do
segundo, Davy ainda parece marcado pelas antigas críticas da
180 Razão e Diferença

escola, às quais ainda retornaremos. Para ele, Lévy-Bruhl transpor-


taria para a diferença entre duas frações da humanidade a cisão que
Durkheim alojava no interior do ser humano em geral. Veremos
adiante que essa posição não é tão clara e que Lévy-Bruhl parece
ter oscilado ao longo de sua obra entre os dois tipos de dualismo
isolados por Davy, sem que isso configure um processo linear de
qualquer tipo. Por ora, basta assinalar que desde As Funções
Mentais… seu pensamento é bem mais cauteloso. Na medida
mesmo em que a oposição entre os dois tipos de mentalidade é tida
como puramente metodológica, ela dificilmente poderia chegar a
ser encarada como um dualismo de fato, o que faz com que as
opiniões acerca deste ponto sejam bastante variadas. Poirier (1957:
528-9), por exemplo, acredita que um “dualismo aparente” e apenas
inicial se transmuta no final da obra em um “monismo fundamental”;
o próprio Davy (1957: 492-3), por outro lado, tentou mostrar o que
considera o fracasso dos escritos tardios de Lévy-Bruhl em seu
esforço para “resolver o dualismo” na direção de um monismo;
Cazeneuve (1961: 44-5), por sua vez, parece ter tentado de alguma
forma combinar esses dois pontos de vista, sustentando que a partir
de uma posição final monista, Lévy-Bruhl teria tentado fundar uma
“sociologia pluralista do conhecimento”. De minha parte, acredito
que se levarmos realmente a sério — e não há razões para não o
fazer — as explicações que o próprio autor fornece em As Funções
Mentais… para opor os dois tipos de mentalidade, podemos chegar
a outra conclusão. Mais uma vez cumpre lembrar que tratava-se
apenas de uma oposição heurística destinada a melhor isolar esses
traços da mentalidade primitiva:
Há uma vantagem evidente para um primeiro esboço de
estudo comparativo, em escolher os dois tipos mentais,
acessíveis a nossas investigações, entre os quais a distân-
cia é maxima. É entre eles que as diferenças essenciais
estarão mais marcadas, tendo então, por conseguinte,
menos chance de escapar de nossa atenção. Além disso,
é partindo deles que se poderá mais facilmente abordar
em seguida o estudo das formas intermediárias ou de
transição (FM: 21).
Na verdade, como demonstrou Deleuze (1986: 89-90), a
questão do dualismo não é simples. É possível discernir, atrás desse
termo, pelo menos três modos bem diferentes de colocar o
problema. A primeira modalidade é a única que configuraria um
dualismo “verdadeiro”, postulando uma diferença realmente irredu-
Malentendido sobre a Vida Filosófica 181

tível entre dois pólos quaisquer. Haveria uma outra, na qual o


dualismo funcionaria apenas como uma etapa provisória a ser
ultrapassada na direção de um monismo mais fundamental. Como
vimos, o pensamento de Lévy-Bruhl foi em geral interpretado de
acordo com um desses dois modelos, com ênfase bem maior no
primeiro. Penso, ao contrário, que seu “dualismo” se enquadraria
melhor na terceira modalidade isolada por Deleuze, aquela na qual
a divisão dual funciona como simples meio para atingir um
pluralismo radical. Tentaremos adiante verificar se ele de fato
conseguiu atingir este ponto, mas desde já é possível afirmar, a partir
da leitura direta e textual de As Funções Mentais nas Sociedades
Inferiores, que este é um dos caminhos possíveis para o qual seu
pensamento aponta.

A
Vê-se logo que a problemática particular de Lévy-Bruhl é a
mesma da antropologia dita social ou cultural como um todo. Em
termos muito simples e conhecidos, trata-se de articular o postulado
da unidade humana com o fato da diversidade cultural. Tema para
nós tão evidente que costumamos esquecer seu fundo e passado
filosóficos, de tal forma que quando Lévy-Bruhl diz proceder de
“Spinoza e Hume mais que de Bastian e Tylor” (LE: 413), isso não
deve ocultar o fato de que em certo sentido os dois últimos também
“procedem” dos primeiros. Pois sabemos que é justamente com a
filosofia iluminista que as sociedades descritas a partir do século XVI
entrarão nos esquemas explicativos e doutrinas ocidentais. Se
durante quase duzentos anos essa abordagem se manteve em nível
puramente descritivo, o século XVIII logo se encarregou, senão de
explicar essas sociedades, ao menos de tentar pensá-las teoricamen-
te. Hélène Clastres (s/d: 205-8) demonstrou que a impossibilidade
de uma explicação propriamente dita derivava da disjunção opera-
da pelas Luzes entre seu interesse pelos “selvagens” concretos e sua
utilização como modelos de ordem teórica ou moral. De qualquer
forma, os iluministas procuraram dar conta dos traços distintivos
que singularizariam essas sociedades outras em relação à nossa. Se
acrescentarmos que, com uma ou outra exceção, o pensamento
iluminista era claramente monogenista, perceberemos como estão
reunidos aí todos os elementos que um século mais tarde deveriam
constituir a antropologia social ou cultural propriamente dita. A
primeira operação efetuada pelo pensamento iluminista diante do
182 Razão e Diferença

material fornecido pela observação das sociedades primitivas, é


substituir o fato cru da diferença, pensada em geral como alteridade
quase irredutível durante os séculos XVI e XVII, pelo postulado da
identidade humana. Em vez de partir das diferenças, tratava-se de
dar conta delas por meio da noção de “natureza humana”, conce-
bida como substantivamente invariável e pensada nos termos de
uma psicologia empirista combinada com o ideal racionalista
herdado do século anterior. As operações mentais são encaradas
como limitando-se a combinar sensações recebidas do mundo
exterior para produzir idéias cada vez mais desenvolvidas, sofisti-
cadas e difíceis de serem reduzidas a sua verdadeira origem. A razão
(operador das combinações) e o progresso (entendido em sentido
puramente intelectual) aparecem como os conceitos centrais desti-
nados a representar e a explicar a natureza humana e seu desenvol-
vimento. A noção de progresso tomada em si mesma não parece
necessitar de qualquer explicação, pois este é tido como enraizado
desde sempre na própria essência do homem. A única coisa que
restaria para ser explicada, portanto, é a aparente inexistência em
determinados grupos humanos de um processo dessa natureza. O
problema, quando se parte das semelhanças, é que é sempre difícil
chegar às diferenças. Para fazê-lo, os iluministas se viram obrigados
a recorrer ao meio externo, fonte das sensações, uma vez que seu
pressuposto de base é que o meio interno — a razão — seria
essencialmente homogêneo e invariante. A maior ou menor riqueza
dos estímulos exteriores seria desse modo o único fator capaz de
explicar a diversidade cultural, reduzida assim a uma simples
oposição entre o progresso e sua ausência. Deriva daí igualmente
a ênfase no clima e outras variáveis do meio ambiente como
fundamentos das diferenças observáveis entre os vários grupos
humanos e as distintas sociedades.
A antropologia social ou cultural que se constitui no século
XIX mantém, com o evolucionismo social, as premissas básicas do
pensamento iluminista a respeito da diferença humana: unidade da
natureza do homem (o que significa que a “humanidade” continua
sendo o verdadeiro objeto da análise) e diferenciação meramente
ocasional, sempre redutível a um escalonamento cronológico
bastante simples. É verdade, por outro lado, que o desenvolvimento
cultural passa a ser encarado nos termos de um movimento
propriamente sociológico, análogo e em continuidade com a
evolução biológica das espécies, um pouco diferente da noção de
um progresso basicamente intelectual que prevalecia com o ilumi-
nismo — ainda que em alguns autores, Tylor por exemplo, essa
Malentendido sobre a Vida Filosófica 183

noção continue a desempenhar um papel central. Em outros termos,


esquematizando bastante, se para os iluministas, em última análise,
o progresso intelectual movimenta a sociedade como um todo, a
maior parte dos evolucionistas parece ter invertido a colocação,
sustentando que a evolução propriamente sociológica determinaria
os avanços intelectuais. É claro que essas distinções são bem mais
ambíguas na prática, como o prova a persistência no evolucionismo
social do esquema geral de uma psicologia empirista, ancorada
neste momento no associacionismo, mas em tudo semelhante ao
sensualismo do século XVIII. Da mesma forma, assim como o
iluminismo só podia se interessar mais em explicar o “não-
progresso” que o progresso, a verdadeira questão evolucionista é a
da “não-evolução”, já que a evolução propriamente dita é tomada
como natural, não necessitando em última instância de qualquer
explicação. Enfim, que o papel determinante outrora atribuído ao
meio ambiente se desloque para o eixo puramente sociológico
(Morgan, por exemplo, que também incluía, como boa parte dos
evolucionistas, fatores de ordem biológica) ou para um esquema
meio sociológico, meio psicológico (Tylor, entre outros), em nada
altera o fundo da questão: as semelhanças entre o iluminismo e o
evolucionismo, ao menos quando encarados deste ponto de vista,
continuam a ser marcantes5.
Sabe-se que muita água correu, em termos de teoria antropo-
lógica, desde o final do século passado. É evidente, contudo, que
a questão geral da unidade e da diferença humanas permanece bem
no centro de nossa reflexão. A antropologia continua claramente às
voltas com o intelectualismo, ao mesmo tempo universalista e
individualista, sob o signo do qual se constituiu. Isso significa que
ainda enfrenta o problema crucial inerente a esse tipo de pensamen-
to, saber, em última instância, como levar realmente a sério a
questão da diferença, sem pensá-la em termos puramente negativos
ou residuais. Sabe-se também que é justamente uma forma simplista
de psicologia que desemboca nesse tipo de raciocínio, psicologia
que Lévy-Bruhl recusava, em especial devido à aparente facilidade
com que pretendia dar conta das diferenças. Esta recusa é bastante
antiga, presente em seu pensamento desde a História da Filosofia
Moderna na França e A Filosofia de Augusto Comte. Lévy-Bruhl
oporá ao sensualismo e ao empirismo iluministas e evolucionistas
uma psicologia inspirada no positivismo de Comte, que concederá
ao “meio interno” um papel muito mais fundamental, ao considerar
o espírito humano essencialmente ativo, não puro produto de
estímulos exteriores. Um pensador formado na tradição kantiana
184 Razão e Diferença

não poderia, de fato, aceitar que o espírito não elaborasse e


transformasse de modo autônomo as imagens e sensações recebidas
pelos sentidos6.
Nesse sentido, o modelo psicológico proposto em As Funções
Mentais… consiste justamente em uma antítese do sensualismo e do
empirismo. Em primeiro lugar, as representações coletivas não
obedeceriam inteiramente às leis da psicologia individual. Tendo
sua origem no meio social e sendo engendradas em função das
necessidades de comunicação e consenso do grupo, só poderiam
refletir, se é que esse termo pode ser legitimamente empregado
aqui, variáveis sociológicas, não um mundo exterior supostamente
objetivo. Isso significa que podem estar diferentemente orientadas
de acordo com as sociedades em que existam. Em segundo lugar,
e esse é o ponto fundamental, essas representações coletivas
estariam intercaladas entre os estímulos externos e as reações por
estes provocadas. Nos termos do próprio autor, entre as sensações
(captadas pelos sentidos) e as percepções (integração mental desses
estímulos), as representações coletivas funcionariam como media-
dores que, filtrando, selecionando e organizando as primeiras,
constituiriam as segundas:
os primitivos não percebem nada como nós. Do mesmo
modo que o meio social em que vivem é diferente do
nosso, e precisamente porque é diferente, o mundo
exterior que percebem difere também daquele que per-
cebemos. Sem dúvida, possuem os mesmos sentidos que
nós (…) e a mesma estrutura do aparelho cerebral. Mas
é preciso levar em conta aquilo que as representações
coletivas fazem entrar em cada uma de suas percepções
(…). Os objetos familiares são reconhecidos de acordo
com as experiências anteriores, em suma, todos os
processos fisio-psicológicos da percepção funcionam
neles como em nós. Mas seu produto é logo envolvido em
um estado de consciência complexo, onde dominam as
representações coletivas. Os primitivos vêem com os
mesmos olhos que nós: não percebem com o mesmo
espírito (FM: 37-8)7.
À psicologia meio empirista, meio racionalista do iluminismo,
opõe-se, portanto, um modelo sociologizante, que supõe que o
operador da articulação das sensações em percepções não consiste
em leis ou razão universais, mas num conjunto de representações
que não poderia provir do próprio indivíduo, sob pena de todo o
raciocínio encerrar-se em um círculo vicioso. Ao mesmo tempo, são
Malentendido sobre a Vida Filosófica 185

essas reflexões e posições que delimitam o objeto a ser investigado.


Trata-se de captar a “orientação” específica das representações
coletivas próprias a um certo tipo de sociedade, orientação que será
evidentemente encarada como responsável pelos modos de funci-
onamento que os processos psicológicos aí assumiriam. Mais uma
vez, psicologia e sociologia se fundem para constituir uma verda-
deira antropologia que tomará a questão das orientações possíveis
do pensamento como tema central8.
Antes de analisar a forma pela qual Lévy-Bruhl caracteriza
essa “orientação” nas sociedades primitivas e os traços de “menta-
lidade” que dela serão derivados, é preciso colocar um problema
preliminar evocado rapidamente acima. Este problema, além de
extremamente delicado, parece ter conduzido todas as leituras já
propostas da obra aqui analisada. Como vimos, Lévy-Bruhl acredi-
tava ser preciso opor, ainda que apenas metodologicamente, o
“nosso” pensamento à mentalidade “deles” a fim de poder estudar
a orientação geral e as características específicas desta última. Essa
posição faz com que uma questão evidente salte imediatamente aos
olhos de qualquer antropólogo: afinal de contas, quem são “eles”?
E quem somos “nós”? Antiga questão, que tende a ser colocada em
termos extremamente críticos. Presta-se menos atenção, contudo,
no fato de ter sido antecipadamente respondida. Desde 1923, Mauss
já fazia uma observação desse tipo, ao assinalar por um lado,
referindo-se à dificuldade em aplicar o termo “primitivo” com tanta
facilidade como o faria Lévy-Bruhl, que “a meu ver, apenas os
australianos, os únicos sobreviventes da era paleolítica, merecem
este nome” (Mauss 1923: 26); por outro, que as sociedades que este
autor denominava identicamente primitivas apresentariam enormes
diferenças entre si, assim como muitas semelhanças com as socie-
dades modernas (idem). Bergson, em 1932, também esboçava o
mesmo tipo de crítica, ao censurar Lévy-Bruhl por ter supostamente
reificado a noção de “mentalidade primitiva”, fazendo crer, desse
modo, que esta possuiria uma localização espacial e temporal
precisa e limitada (Bergson 1932: 86-7). Também pensadores de
formação religiosa, como Allier (1927) e Cailliet (1938), formularão
críticas mais ou menos equivalentes. No que concerne à antropolo-
gia contemporânea, Evans-Pritchard foi o primeiro a colocar nitida-
mente a questão, e isso desde 19349. Ele se pergunta claramente
“quem, na realidade, somos nós, e quem os primitivos? (…). Será
que (…) a mentalidade dos filósofos da Sorbonne e dos camponeses
da Bretanha ou dos pescadores da Normandia é a mesma?” (Evans-
Pritchard 1965: 123). Isso significa levar ainda mais longe a crítica
186 Razão e Diferença

de Mauss: além de distinguir os supostos primitivos entre si, seria


preciso também isolar as “diferenças internas entre nós, as camadas
sociais e ocupacionais diferentes dentro da nossa sociedade (…), a
diversidade nos diferentes períodos de nossa história” (idem). Como
o mesmo Evans-Pritchard, que admirava bastante Lévy-Bruhl, supõe
que apesar de tudo seu trabalho não deixava de colocar um
problema real para a investigação antropológica (Evans-Pritchard
1965: 128-9 e 1966:6), creio valer a pena examinar mais atentamente
essa questão10.
Comecemos por devolver a palavra ao próprio Lévy-Bruhl.
Também em 1934, ele enviou uma bela carta a Evans-Pritchard,
onde pretendia sobretudo agradecer, bem como corrigir em alguns
pontos, o artigo que este acabara de publicar a respeito de sua obra.
Ele aí admite (“I plead guilty”) ter apresentado o “selvagem (…)
como mais místico e o civilizado como mais racional do que de fato
o são” (LE: 409), acrescentando logo tê-lo feito
on purpose: quis trazer plenamente à luz o aspecto místico
da mentalidade primitiva em contraste com o aspecto
racional da mentalidade de nossas sociedades (…), o
selvagem não é tão exclusivamente místico (…), o civili-
zado não é tão regularmente racional. Talvez eu tenha
errado em insistir com tanta força sobre essas diferenças.
Eu pensava que a escola antropológica havia suficiente-
mente mostrado as semelhanças. Sobre esse ponto, penso
que aqueles que a nós se seguirem saberão observar a
justa medida (idem).
Um pouco adiante, Lévy-Bruhl recusa o qualificativo de
“caricatura” com que Evans-Pritchard critica o retrato que teria feito
da mentalidade primitiva: “não, não é uma caricatura (…). Mas é
uma imagem, onde eu quis fazer ressaltar vigorosamente um traço
dominante, deixando os outros na sombra (e é assim que, com
efeito, procedem freqüentemente os caricaturistas)” (LE: 409-10). É
claro que tudo isso, escrito em 1934, pode depender de considera-
ções apenas retrospectivas. O fato, contudo, é que já em 1910, esta
posição estava bem explicitada. À questão “quem somos nós?”,
Lévy-Bruhl fornecia uma resposta muito clara:
no que concerne à mentalidade própria à nossa socieda-
de, que deve me servir simplesmente de termo de
comparação, eu a considerarei como suficientemente
bem definida pelos trabalhos dos filósofos, lógicos e
psicólogos, antigos e modernos, sem prejuízo do que uma
Malentendido sobre a Vida Filosófica 187

análise sociológica ulterior poderá modificar nos re-


sultados obtidos por eles até o presente (FM: 21).
Ou seja: não se trata nem da “nossa sociedade” tomada
globalmente, nem de um tipo de mentalidade que estaria perfeita-
mente distribuído no interior dessa sociedade. Trata-se claramente
de um certo tipo de desenvolvimento do pensamento ocidental, que
por mais dominante que possa ser considerado e por maior que seja
a influência que possa exercer no corpo social como um todo, está
bem longe de constituir a forma única através da qual pensaríamos.
Talvez haja, aqui ainda, um eco longínquo do esquema positivista,
que supõe que as formas superiores do pensamento se difundiriam
pela sociedade a partir de seu foco de produção, as ciências. A
verdade, contudo, é que nem uma palavra é dita sobre isso e que,
como veremos, as conclusões serão bem diferentes das hipóteses de
Comte, ainda que estas possam eventualmente ter servido de ponto
de partida11.
A resposta para a questão correlata — “quem são eles?” — é
mais difícil de ser isolada e é duvidoso que Lévy-Bruhl tenha
chegado a assumir uma posição nítida acerca deste problema.
Vimos que define os primitivos, de modo bastante convencional na
época, como “os membros das sociedades mais simples que
conhecemos” (FM: 2, nota 1). Entretanto, isso é evidentemente
insuficiente quando queremos uma conceituação mais clara. Talvez
uma indicação mais segura possa ser encontrada através de um
pequeno desvio, observando-se a ênfase colocada na delimitação
das representações coletivas como verdadeiro e único objeto de
análise em As Funções Mentais…. Após apresentar algumas carac-
terísticas da mentalidade primitiva, Lévy-Bruhl faz questão de
acrescentar que estas só são aplicáveis “às representações coletivas
e suas ligações. Considerado como indivíduo, enquanto pensa e age
independentemente, se isso é possível, de suas representações
coletivas, um primitivo sentirá, julgará, se conduzirá o mais freqüen-
temente do modo que nós esperaríamos. As inferências que ele fará
serão justamente as que nos parecem razoáveis nas circunstâncias
dadas” (FM: 79). É verdade que essa ênfase poderia significar apenas
uma oposição, à maneira de Durkheim, entre o objeto da psicologia
e o das ciências sociais. Poderia significar também, o que me parece
mais interessante, um esforço para caracterizar o objeto da investi-
gação como uma forma de pensamento que, por mais rudimentar
que Lévy-Bruhl possa considerá-la nessa época, é uma forma já
elaborada, que não se reduz às reações naturais e espontâneas dos
188 Razão e Diferença

indivíduos. Dito de outro modo e sem querer forçar muito os termos,


parece-me que Lévy-Bruhl opõe duas maneiras segundo as quais o
pensamento pode estar organizado: uma, encontrada sobretudo nas
representações coletivas (em especial naquelas das “sociedades
inferiores”); outra, que os “filósofos, lógicos e psicólogos” historica-
mente impuseram a nós. Se em 1910, afirma-se ainda o caráter
“natural” dessas duas formas de pensamento — uma propriamente
originária, outra que dela derivaria através de um desenvolvimento
necessário do tipo do proposto pela lei dos três estados de Comte
— logo virá o tempo em que será possível subverter essa formula-
ção, substituindo-a pela questão crucial de como o pensamento
“lógico” tal qual o conhecemos pôde ter se constituído a partir desse
fundo “prelógico” (cf. Schul 1957: 402-3). O caráter não-natural e
não-necessário dessas duas formas de organização do pensamento
poderá nesse momento ser ao menos entrevisto12.
Nesse sentido, é curioso, como observa Davy (1950: 239), que
durante um certo período, a expressão “os primitivos de Lévy-Bruhl”
tenha se convertido em uma espécie de fórmula sintética, muito
difundida em certos meios, para se referir às sociedades não-
ocidentais. Ele não vê aí mais que a prova da “reputação” interna-
cional do autor. Leenhardt (1949: XIII) prefere outra interpretação:
Lévy-Bruhl não teria descrito ‘o indígena, e poder-se-ia mesmo dizer
que o primitivo de que fala não existe realmente. Ele revelou,
contudo, em seu caminho um tipo de mentalidade”. Tratar-se-ia de
um “tipo ideal”, no sentido weberiano do termo? Essa é, por
exemplo, a opinião de Fauconnet (BP1: 45), que acredita que a
noção de mentalidade primitiva, como a do “estado teológico de
Augusto Comte”, não passaria de uma entidade abstrata concreta-
mente inexistente. De minha parte, não creio que se trate de nada
disso. O parentesco entre a noção de tipo ideal e o método
compreensivo é suficientemente conhecido para evitar maiores
comentários. Mas, assim como o procedimento metodológico de
Lévy-Bruhl parece-me muito afastado da “compreensão” (apesar do
que diz Gurvitch), também o objeto que constrói para sua análise
não é constituído enquanto “tipo ideal”. Utilizando uma terminolo-
gia bem mais contemporânea, eu diria que o que está em jogo nos
trabalhos sobre a “mentalidade primitiva” é uma espécie de compa-
ração por contraste que, incidindo sobre dados muito concretos,
conduz ao isolamento das diferenças entre formas de organização
do pensamento. Não importa muito, desse ponto de vista, saber se
os traços isolados estão ou não concretamente presentes, ou se algo
como “o primitivo” ou “a mentalidade primitiva” existam empirica-
Malentendido sobre a Vida Filosófica 189

mente. Também não importa indagar se a investigação é conduzida


“de fora” (por explicação) ou “de dentro” (por compreensão). Lévy-
Bruhl se colocou — querendo-o ou não, o que tampouco importa
— no interstício de dois modos de pensar (dualismo provisório) não
para delimitar simplesmente uma distância que saberia de antemão
destinada a ser vencida, mas para levar a sério uma diferença que
não tinha qualquer segurança de poder explicar, compreender ou
mesmo descrever.
É por isso que ele não apenas, como revelou Florestan
Fernandes, sempre mostrou certa reserva em relação à possibilidade
de realmente “compreender” o outro, como também nunca de-
monstrou confiança total em nossa capacidade de “explicar” essas
outras sociedades ou mentalidades. Se aceitássemos a distinção
clássica, talvez rigorosa demais, entre etnologia e antropologia,
seríamos forçados a dizer que Lévy-Bruhl sempre se inclinou na
direção da segunda, pois não se trata de dar conta de uma sociedade
ou mesmo de um grupo delas, seu verdadeiro objetivo encontran-
do-se, num certo sentido, entre as sociedades. Ainda que defina
explicitamente seu objeto como o “mecanismo mental” que regula-
ria “as representações coletivas das sociedades inferiores” (FM: 21),
isso não significa que tenha pretendido reduzir as várias formações
culturais a alguns traços de natureza psicológica, característicos do
ser humano enquanto tal — mesmo que esses traços pudessem ser
definidos em sentido puramente formal ou lógico. Ao contrário,
situar-se entre as sociedades só poderia significar um encontro
direto com a diferença, no que esta tem de impenetrável e de
rebelde à explicação. Daí sem dúvida as dificuldades e as incompre-
ensões de que sua obra foi vítima; daí também, por outro lado, o
fascínio e o interesse que seu pensamento ainda comporta hoje para
nós.

A
A verdade é que, ao menos em As Funções Mentais…, a
posição de Lévy-Bruhl oscila entre dois pólos. Por um lado, tende
a aprofundar de forma radical a diferença entre nosso pensamento
e a mentalidade primitiva: “as representações coletivas dos primiti-
vos diferem, então, profundamente de nossas idéias ou conceitos;
elas não são nem mesmo seu equivalente” (FM: 30). Ou , bem mais
adiante no livro, “nosso modo de apresentar esses fatos, necessari-
amente de acordo com nossos hábitos mentais, e submetido às
190 Razão e Diferença

regras de uma linguagem que reflete tais hábitos, os falsifica ao


exprimi-los” (FM: 282). Por outro lado, parece também admitir a
possibilidade de penetração, ainda que parcial, nesse tipo de
mentalidade e de representações coletivas:
ora, de fato, podemos ao menos tentar apreender como
as representações se ligam na mentalidade dos primitivos.
Compreendemos sua línguas, fazemos negócios com
eles, chegamos a interpretar suas instituições e suas
crenças: há então uma passagem possível, uma comuni-
cação praticável entre sua mentalidade e a nossa. Sob
essas reservas, não obstante, essas mentalidades são
diferentes (FM: 68).
Trata-se, portanto, de uma oscilação entre a possibilidade de
acesso à diferença e a hipótese de que esse acesso seria (quase)
impossível. Para contornar essa enorme dificuldade, a única saída
vislumbrada é voltar-se decididamente para os “fatos”, tentando
“descrever e analisar” as representações coletivas dos primitivos,
sua orientação geral e seus caracteres específicos (FM: 111). Para
cumprir esses objetivos, uma espantosa proliferação terminológica
será engendrada — o que sempre constituiu um dos pontos de
atração, bem como de recusa, da obra. Essa proliferação, contudo,
é fundamental, pois é justamente através dela que Lévy-Bruhl
tentará dar conta de seu objeto e escapar do impasse que delimitou.
É necessário, portanto, dedicar uma atenção especial a essa questão,
terminológica apenas em aparência, uma vez que comporta em sua
essência problemas epistemológicos e teóricos de grande alcance.
Se é verdade, como diz Deleuze, que fazer filosofia é acima
de tudo produzir conceitos, não pode haver dúvida de que é com
As Funções Mentais nas Sociedades Inferiores que Lévy-Bruhl
“começa a levar a filosofia a sério”. A invenção de um aparato
terminológico novo — ou, ao menos, a utilização de conceitos
tradicionais em sentido bastante distinto do original — é impressio-
nante em toda a sua obra, começando justamente com o livro de
1910. Leenhardt lembra as dificuldades encontradas para lidar com
realidades consideradas inadequadamente exploradas, bem como
a necessidade de criar uma nova linguagem mais ajustada a seu
objeto:
uma vez que se tratava de formular seu pensamento em
meio aos dados inumeráveis e novos que descobre, uma
dificuldade surgiu: as diferenças para com nossos hábitos
mentais são tão consideráveis que nenhum vocabulário
Malentendido sobre a Vida Filosófica 191

atual pode exprimi-los. Lévy-Bruhl foi forçado a criar uma


linguagem adequada. Ele conseguiu impô-la durante um
certo tempo. Mas a que preço! (Leenhardt 1949: VIII).
Esse “preço” diz respeito tanto às enormes dificuldades que
o próprio Lévy-Bruhl encontrou ao longo de sua obra para lidar com
a linguagem que havia criado, quanto, especialmente, às críticas,
incompreensões e malentendidos que esta linguagem sempre
suscitou. Já em 1910 ele explicava essa necessidade de criar novos
termos ou desviar o sentido dos antigos: “se renunciarmos a esse
postulado”, escreve, referindo-se ao axioma evolucionista da unida-
de do espírito humano,
então os termos, divisões, classificações, dos quais nos
servimos para a análise de nossas funções mentais não
convêm mais para funções que diferem delas, e tornam-
se ao contrário uma fonte de confusão e de erro. Para o
estudo da mentalidade dos primitivos, que é novo, talvez
seja preciso uma terminologia nova. Ao menos será
indispensável especificar o novo sentido que deve tomar
um certo número de expressões recebidas, quando se as
aplica a um objeto que difere daquele que designavam até
aqui (FM: 27-8).
Trata-se de inovações e adaptações lingüísticas que preten-
dem alcançar uma melhor adequação ao tipo de realidade que
desejam descrever e explicar. Necessidade epistemológica conse-
qüentemente, que, enquanto intenção e resultado, não parece ter
sido muito bem recebida ou compreendida, sendo encarada em
geral como simples proliferação lingüística desprovida de qualquer
função teórica ou de conhecimento.
A primeira restrição ao vocabulário da psicologia tradicional
é ter sido construído com a finalidade de dar conta de fenômenos
cujo caráter seria acima de tudo intelectual ou cognitivo. A própria
noção de representação, ponto de partida e objeto último de As
Funções Mentais…, compartilharia dessa dificuldade: simplificação
(já que os aspectos motores e emocionais são deixados de lado)
justificável talvez no estudo de nossa própria psicologia, mas não
para a análise das representações coletivas em que esses aspectos
estariam absolutamente imbricados. A atividade mental dos primi-
tivos seria “excessivamente pouco diferenciada para que seja
possível considerar separadamente as idéias ou imagens dos
objetos, independentemente dos sentimentos, emoções, paixões
que evocam essas idéias, ou que são evocados por elas (…); os
192 Razão e Diferença

elementos emocionais são partes integrantes das representações”


(FM: 28), por mais difícil que nos seja imaginar uma realidade dessa
natureza. Isso significa que a própria noção de representação
deveria ser entendida em sentido simultaneamente intelectual e
afetivo, o que lembra a idéia positivista — exposta em A Filosofia
de Augusto Comte e já trabalhada em A Moral e a Ciência dos
Costumes — segundo a qual a “lógica dos signos” com que
estaríamos habituados a operar repousaria sempre sobre uma
“lógica das imagens e dos sentimentos” mais fundamental, cujos
princípios seriam heterogêneos em relação aos daquela. Compreen-
didas nesse sentido intelectual e afetivo, as representações coletivas
das sociedades primitivas tornar-se-iam passíveis de serem bem
caracterizadas. Do ponto de vista de sua orientação mais geral,
essa atividade mental é mística. Empregarei este termo,
na falta de um melhor, não aludindo ao misticismo
religioso de nossas sociedades, que é alguma coisa de
muito diferente, mas no sentido estritamente definido em
que ‘místico’ se diz da crença em forças, influências, ações
imperceptíveis para os sentidos, e entretanto reais (FM:
30).
Lévy-Bruhl pretende certamente dizer, com essa primeira
definição, que as “forças”, “influências”, “ações”, são sentidas como
reais, embora não sejam captadas pela sensibilidade propriamente
dita. Na medida em que as sensações, sentimentos e representações
são pensados como bloco indissociável na percepção dos primiti-
vos, isso só poderia significar que “a realidade em que se movem
os primitivos é ela própria mística” (idem). Tudo o que existe estaria
dotado de “propriedades místicas”, tidas como tão ou mais objetivas
que as sensíveis, por mais estranho que isso possa nos parecer. Para
ser um pouco mais preciso, o que se sustenta é que a própria
distinção (para nós tão óbvia e evidente) entre o sensível e o
“místico” não teria muito valor do ponto de vista da mentalidade
primitiva, que mesmo sendo capaz de efetuá-la, não lhe atribuiria
maior importância (FM: 33).
É exatamente essa orientação geral da mentalidade primitiva
que torna, desde a partida, tão difícil compreender o tipo de
representações dela derivadas. Todas as distinções que estamos
habituados a fazer, todos os níveis e esferas que separamos quase
espontaneamente, todos esses recortes com que nos acostumamos,
podem muito bem não possuir qualquer sentido quando projetados
sem crítica prévia sobre essa realidade mental e social:
Malentendido sobre a Vida Filosófica 193

até na percepção comum, até na apreensão banal dos


objetos mais simples, se revela a diferença profunda que
existe entre a mentalidade dos primitivos e a nossa. A dos
primitivos é fundamentalmente mística, por causa das
representações coletivas, místicas elas próprias, que fa-
zem parte integrante de toda percepção. A nossa deixou
de sê-lo, ao menos no que diz respeito à maior parte dos
objetos que nos cercam. Nada é semelhante para eles e
para nós. Existe aí, para um homem de nossa sociedade,
falando nossa língua, uma dificuldade insuperável para
entrar em sua maneira de pensar (FM: 38).
O misticismo primitivo seria, portanto uma barreira virtual-
mente intransponível. Ao lado disso, e bem ao contrário do que
poderíamos crer, não é simplesmente compartilhando do modo de
vida das sociedades em que predomina, nem se esforçando para
pensar no estilo de sua mentalidade, que esse problema poderia ser
resolvido: “quanto mais se vive com eles, quanto mais alguém se
aproxima de sua atitude mental, mais se sente que é impossível
submeter-se inteiramente a ela” (FM: 38-9). A pesquisa empírica
intensiva, se bem conduzida e livre de preconceitos teóricos,
revelaria a profunda diferença que nos separa, mais que uma
suposta identidade que evitaria todas as dificuldades. Não deverí-
amos permitir, conseqüentemente, que o que nos é mais familiar
atue de modo a impedir o reconhecimento de uma diferença real e
talvez intransponível. É por isso que nosso “misticismo” — o do
“homem supersticioso, freqüentemente também do homem religi-
oso de nossa sociedade” (FM: 67) — não pode nos ajudar em nada
e, pelo contrário, pode atrapalhar bastante. Esse misticismo “ociden-
tal” seria de caráter essencialmente dualista, sustentando a existên-
cia de “duas ordens de realidades, umas visíveis e tangíveis,
submetidas às leis necessárias do movimento, as outras invisíveis,
impalpáveis, ‘espirituais’, formando uma espécie de esfera mística
que envolve as primeiras” (idem). O misticismo primitivo, por outro
lado, seria um misticismo total e monista, que não suporia a
existência de “dois mundos em contato um com o outro, distintos
e solidários, penetrando-se um pouco, reciprocamente. Só há um
mundo. Toda realidade é mística, como toda ação, e, por conseguin-
te, também toda percepção” (idem). A conseqüência imediata desse
esforço para distinguir até mesmo o que parece semelhante é que,
neste caso, nossa tendência a apresentar as representações primiti-
vas de forma dualista — em virtude de nosso vocabulário e de
nossos hábitos mentais mais arraigados — deve ser combatida sem
194 Razão e Diferença

trégua, levando-nos a reconhecer que trata-se apenas de insuficiên-


cia nossa e que, para o primitivo, o todo antecede cada uma de suas
partes.
A enfática e repetida crítica ao associacionismo inglês tem
essas considerações por fundamento, demonstrando que esta
modalidade de psicologia e antropologia jamais poderia atingir seu
alvo. Ao indagar, por exemplo, “como o primitivo chega a associar
à percepção de sua sombra as crenças que encontramos quase em
toda parte” (FM: 51 - o grifo é meu), os evolucionistas estão
necessariamente supondo uma separação prévia entre o corpo, a
sombra e crenças místicas, sendo obrigados a desenvolver um
enorme esforço teórico para mostrar como tudo isso pôde vir a ser
fundido. A dificuldade residiria no fato de que a própria questão
estaria mal colocada. Como boa parte da tradição antropológica, o
evolucionismo social pensa que apenas as soluções variam cultural-
mente e que os problemas, em si mesmos, seriam basicamente
idênticos para todas as sociedades e todas as épocas. Do ponto de
vista de Lévy-Bruhl, tudo se passa como se as verdadeiras variáveis
fossem os problemas, as questões que os homens se colocam
através dos tempos e das culturas. A definição da pesquisa susten-
tada pelos evolucionistas não faria sentido para um tipo de
mentalidade em que “a percepção da sombra, como a do próprio
corpo (…) é uma percepção mística, onde o que nós chamamos
sombra (…) é apenas um elemento entre muitos outros. Não há,
então, lugar para buscar como à percepção da sombra foram
justapostas ou unidas tais ou quais representações: estas fazem parte
integrante da percepção, tão longe quanto possamos remontar para
observá-la” (FM: 51-2). Isso só pode significar que “o que para nós
é percepção, para eles é principalmente comunicação” (FM: 57) e
que a distinção entre o subjetivo e o objetivo, tão evidente em nossas
próprias representações, não tem sentido do ponto de vista da
mentalidade primitiva. Em lugar de rejeitar, como costumamos
fazer, tudo o que tende a diminuir a objetividade de uma percepção,
essa mentalidade se orienta preferencialmente para “elementos que,
a nossos olhos, têm um caráter de subjetividade, se bem que aos
olhos dos primitivos eles sejam ao menos tão reais quanto os outros”
(FM: 40-1). A conseqüência desse princípio é que o fato de um
fenômeno ser percebido apenas por uma ou por algumas pessoas
não retira dele, como ocorre em nossa própria sociedade, qualquer
grau de realidade, pois, uma vez que sujeito e objeto não estão
ontologicamente separados, é sempre possível, e mesmo provável,
que existam “percepções privilegiadas” ou indivíduos privilegiados
Malentendido sobre a Vida Filosófica 195

que teriam acesso a determinadas ordens de realidade a que outros


não têm: “o primitivo, longe de considerar como suspeita a
percepção mística da qual está excluído, vê aí, como no sonho, uma
comunicação mais rara, portanto mais significativa, com os espíritos
e forças invisíveis” (FM: 61).
O misticismo — no sentido definido acima e sobre o qual
retornaremos — é portanto a característica central da mentalidade
primitiva, o traço que define sua orientação global, fazendo com que
essa mentalidade esteja sempre pronta a se dirigir para o invisível
mais que para o visível. A partir desse ponto, é possível ir mais longe
na caracterização desse tipo de mentalidade:
se as representações coletivas dos primitivos diferem das
nossas por seu caráter essencialmente místico, se sua
mentalidade, como tentei mostrar, é orientada de modo
diferente da nossa, devemos admitir que as representa-
ções não se ligam entre si em seu espírito como no nosso
(FM: 68).
Aqui se introduz o tema, ou ao menos o termo, que tantos
problemas iria causar a Lévy-Bruhl pelo resto da vida. Definir a
mentalidade primitiva apenas por sua orientação global não chega
a ser uma questão polêmica — muitos autores o fizeram antes e
depois dele. Tentar, por outro lado, apreender o modo pelo qual as
representações se ligam entre si no interior dessa mentalidade,
supondo-o desde o início diferente do que prevalece entre nós, é
um problema bem mais grave e delicado. Porque quem fala em
modos de ligação entre representações ou idéias já evoca, queira ou
não, uma questão de lógica, questão que é ao mesmo tempo o maior
interesse e a maior dificuldade de Lévy-Bruhl. Vimos que ele não
chega a considerar que o pensamento primitivo obedeça a princí-
pios lógicos completamente diferentes dos nossos, o que o tornaria
impenetrável, caráter que tanto os fatos relatados quanto as próprias
investigações existentes desmentiriam por completo. Por outro
lado, na medida em que esse pensamento não é tampouco
imediatamente acessível, compreensível e mesmo explicável para
nós, é-se obrigado a supor que a mentalidade primitiva ao menos
“não obedece exclusivamente às leis da nossa lógica, nem talvez a
leis que sejam todas de natureza lógica” (FM: 70).
O exemplo é por demais conhecido: “os Bororo se vangloriam
de ser araras”, sem deixar, no entanto, de se afirmarem homens: eles
dizem ser A e não-A simultaneamente. Ora, essas proposições
contrariam o que Lévy-Bruhl, dentro da mais pura tradição aristo-
196 Razão e Diferença

télica, considera a lei geral do pensamento, o princípio dito por


antífrase “de contradição”. Ele se vê, assim, constrangido a essa
conclusão:
eis porque a mentalidade dos primitivos pode ser dita
prelógica a título tão justo quanto mística. Trata-se de dois
aspectos de uma mesma propriedade fundamental, mais
que de dois caracteres distintos. Esta mentalidade, se
considerarmos mais especialmente os conteúdos das
representações, será dita mística — e prelógica, se obser-
varmos antes suas ligações (FM: 78-9).
Aqui começa a longa história do “prelogismo”, noção que,
quase vinte anos mais tarde, Lévy-Bruhl considerará pura invenção
de seus críticos, afirmando que ele próprio teria se limitado ao uso
apenas metodológico do termo “prelógico” (BP1: 109). De fato, este
é definido de forma tão restritiva quanto o havia sido o “místico”:
como a simples constatação de que a mentalidade primitiva “não se
sujeita, acima de qualquer coisa, como nosso pensamento, a abster-
se da contradição (…). Assim entendida, ela não se compraz
gratuitamente no contraditório (o que a tornaria regularmente
absurda para nós), mas não pretende tampouco evitá-lo. Ela é mais
freqüentemente indiferente a ele. Donde o fato de ser tão difícil
segui-la” (FM: 79).
Ao contrário de “místico” (termo que, lembremos, não devia
guardar, apesar das aparências, qualquer parentesco com o misticis-
mo religioso ocidental) é evidente que “prelógico” se refere, de um
modo ou de outro, à lógica — e que esta, ao menos como disciplina,
é bem ocidental. Qual poderia ser, portanto, a relação precisa entre
o lógico e o prelógico? O tema sempre foi embaraçoso para o
próprio Lévy-Bruhl. É certo, porém, que desde o início descartou
tanto a anterioridade cronológica quanto a oposição absoluta como
definições de seu neologismo:
Prelógico não deve (…) fazer entender que essa menta-
lidade constitui uma espécie de estado anterior, no
tempo, à aparição do pensamento lógico. Será que teriam
existido grupos de seres humanos ou pré-humanos cujas
representações coletivas não obedeciam ainda às leis
lógicas? Nós o ignoramos: em todo caso, é muito pouco
verossímil. Ao menos, a mentalidade das sociedades de
tipo inferior, que denomino prelógica, na falta de um
nome melhor, não apresenta esse caráter de forma
Malentendido sobre a Vida Filosófica 197

alguma. Ela não é anti-lógica; ela não é tampouco alógica


(idem)13.
Então, por que o prefixo? Vários comentadores tentaram
esclarecer a questão, mas mesmo aqueles que levaram realmente a
sério as ressalvas de Lévy-Bruhl — já que grande parte dos demais
insistiu em tomar o termo no sentido de uma anterioridade
cronológica — encontraram muitas dificuldades. Henri Wallon
(1957: 463-5), por exemplo, sugeriu tratar-se apenas da preocupa-
ção em evitar a projeção de nossas próprias categorias sobre a
mentalidade primitiva, atribuindo assim um caráter mais ou menos
neutro ao termo. Poirier (1957: 515), por sua vez, prefere considerar
o prefixo mero acidente, acreditando que a expressão paralógico
seria mais adequada para caracterizar o que o termo realmente quer
dizer. Van der Leeuw (1928: 2-6), pensa que o termo correto deveria
ser heterológico, já que isso definiria bem o que ele próprio chama
de caráter “assintático” da mentalidade primitiva, no sentido de que
as ligações entre coisas e representações se processariam nela
através de um princípio estranho à lógica pura, fazendo apelo a
laços para nós invisíveis e tornando impossível o encadeamento de
proposições através de uma gramática precisa. Por maior que seja
a boa vontade destes comentadores — citados um pouco aleatori-
amente — creio que suas interpretações apresentam o incoveniente
de se chocarem com a letra do texto de Lévy-Bruhl. Uma perspectiva
mais adequada poderia de fato ser encontrada nesses textos, mais
precisamente no caráter eminentemente “sintético” atribuído às
representações coletivas primitivas:
as ligações entre as representações estão aí dadas, em
geral, com as próprias representações. As sínteses aí
parecem primitivas (…). As representações coletivas (…)
estão sempre comprometidas por prepercepções, pre-
conceitos, preligações, poder-se-ia mesmo dizer por
preraciocínios: e é assim que essa mentalidade, preci-
samente porque ela é mística, é também prelógica (FM:
114-5).
Em outros termos, o famoso “prelógico” significaria somente
que os modos de pensar, ou as formas de efetuar as ligações entre
os conteúdos do pensamento, são acima de tudo variáveis socioló-
gicas e que, ao menos entre os primitivos, nenhum indivíduo teria
a menor liberdade para alterá-los14. Mauss (1923: 25) compreendeu
bem que o termo apresentava esse sentido, embora o utilize para
criticar seu autor. De seu ponto de vista, a “preligação” seria “o signo
198 Razão e Diferença

de todos os estados de consciência coletiva, e não somente das


formas primitivas dessas consciências”, posição que será um dos
pontos de divergência entre a escola sociológica francesa e Lévy-
Bruhl — ponto que deverá ser analisado adiante. Por ora, basta
assinalar a natureza do prefixo “pré”, tão utilizado por este último:
trata-se, em suma, de marcar uma anterioridade ontológica do
coletivo em relação ao individual em determinado tipo de socieda-
de, não uma precedência cronológica, ou mesmo simplesmente
lógica, de uma forma social ou de mentalidade sobre outra.
Desse modo, “o estudo das representações coletivas e de suas
ligações, nas sociedades inferiores, conduziu a constatar uma
mentalidade mística e prelógica que difere, em pontos essenciais, de
nosso pensamento lógico” (FM: 261). A partir do momento em que
acredita ter isolado esses dois traços como característicos da
mentalidade primitiva (respectivamente do ponto de vista de sua
orientação geral e do ponto de vista do modo de ligação entre as
representações), Lévy-Bruhl considera possível determinar uma “lei
geral” que os fundamentaria (FM: 76). Trata-se claramente, ainda em
1910, de um fascínio pelo modelo positivista que, como se sabe, à
pesquisa das causas — tarefa que se atribuem, no caso da
antropologia, tanto a “escola antropológica inglesa” quanto a
“escola sociológica francesa” — pretende opor a determinação das
leis dos fenômenos. Deste ponto de vista, existiria pelo menos um
elemento comum a todas as representações coletivas primitivas, que
poderia permitir a descoberta dessa lei geral: “sob formas e graus
diferentes, todas implicam uma ‘participação’ entre os seres e os
objetos” (idem). Desse modo, a lei que comandaria essas represen-
tações seria uma “lei de participação”, expressão empregada, como
sempre, “na falta de um termo melhor” (idem). É muito difícil,
contudo, fornecer um “enunciado abstrato dessa lei”. De qualquer
forma, uma “aproximação” é possível:
Eu diria que, nas representações coletivas da mentalidade
primitiva, os objetos, seres, fenômenos, podem ser, de
modo incompreensível para nós, ao mesmo tempo eles
mesmos e outra coisa que eles mesmos. De modo não
menos incompreensível, emitem e recebem forças, virtu-
des, qualidades, ações místicas, que se fazem sentir fora
deles, sem que deixem de estar onde estão (FM: 77).
Em suma, um Bororo é um Bororo; mas é também uma arara,
sem deixar, contudo, de continuar sendo um Bororo.
Malentendido sobre a Vida Filosófica 199

A “lei de participação”, portanto, é o exato oposto do


“princípio de contradição”, governando a mentalidade primitiva da
mesma forma que o segundo legislaria sobre nosso próprio pen-
samento. Na verdade, a lei de participação não passaria de um
esforço de aproximação, de uma tentativa de dar forma um pouco
mais compreensível para o fato da participação, característico das
representações coletivas primitivas. Ora, esse fato manifestar-se-ia
aí de várias maneiras, tanto do ponto de vista estático quanto
dinâmico. Ele implica, no primeiro sentido, uma rede de ligações,
interpenetrações e dependências de todos os seres e coisas do
universo entre si. Tudo e todos estariam mergulhados numa espécie
de consubstancialidade universal, que faria com que cada elemento
estivesse, de modo misterioso, conectado a todos os demais. Por
isso é impreciso e inútil afirmar que, entre os primitivos, o corpo vai
se juntar à sombra, ou a vigília ao sono: a síntese seria aí a priori e
o mundo uma espécie de organismo entrecortado de ligações
recíprocas. Essas ligações se manifestariam igualmente de forma
dinâmica, instaurando toda uma série de “ações e reações místicas”
continuamente em processo, de modo que a mentalidade primitiva
se instalaria de bom grado nos antípodas do que o positivismo
define como sendo o pensamento realmente científico:
A natureza que envolve um determinado grupo, tribo ou
família de tribos por exemplo, aparece assim em suas
representações coletivas, não como um objeto, ou como
um sistema de objetos e fenômenos regidos por leis fixas,
segundo as regras do pensamento lógico, — mas como
um conjunto movente de ações e reações místicas, das
quais os objetos, seres, fenômenos são apenas os veículos
e as manifestações (FM: 103-4).
Isso a tal ponto que a própria distinção entre o estático e o
dinâmico perderia qualquer sentido que possa ter em outros
contextos (FM: 102). Se o positivismo consiste justamente em
“constatar as ligações entre os fenômenos sem imaginar ‘entidades
ligantes’, segundo a forte expressão de Malebranche” (PC: 376),
nada mais anti-positivista que essa mentalidade para quem os seres
e as ligações — os termos e suas relações, talvez disséssemos hoje
em dia — não se distinguem substantivamente entre si, de tal modo
que todo ser não passaria de um conjunto de relações, da mesma
forma como toda relação constituiria na verdade um ser. Tudo
participa de todos os seres, relações e forças, e “é ‘participado’ por
eles, segundo a expressão de Malebranche”, novamente (FM: 397).
As menções ao nome de Malebranche, diga-se de passagem, não são
200 Razão e Diferença

nada casuais, uma vez que se conhece bem a origem filosófica do


termo participação, assim como o uso extensivo que, além de Platão
é claro, este filósofo dele fez. Embora Lévy-Bruhl, como sempre,
tente separar o sentido em que utiliza o termo de sua acepção mais
tradicional em filosofia15, as coisas não são assim tão evidentes,
como tentarei demonstrar adiante. Por ora, convém ainda assinalar,
a respeito dessa noção, que, se levarmos realmente a sério o fato da
participação, a distinção entre representações individuais e coletivas
no interior das sociedades primitivas, distinção sobre a qual Lévy-
Bruhl tanto insiste, corre o risco de ficar comprometida. Na verdade,
o que realmente há aí é a
coexistência da lei de contradição e da lei de participação.
Será que é possível imaginar que certas operações são
regidas exclusivamente pela primeira dessas leis, e outras,
exclusivamente também, pela segunda? Como se, por
exemplo, tudo aquilo que é representação individual
resultasse de um pensamento já lógico, enquanto que as
representações coletivas obedeceriam apenas à lei espe-
cífica da mentalidade prelógica? Uma comporta estanque
desse tipo é inconcebível — ainda que seja porque é
muito difícil, para não dizer impossível, traçar uma linha
de demarcação nítida entre as representações individuais
e as coletivas (FM: 112).
Isso significa que a distinção não pode ser tão nítida quanto
podia parecer, o que escapou em geral à maioria dos comentadores
e críticos: na verdade, a participação abole todas as fronteiras entre
o objetivo e o subjetivo, entre o estático e o dinâmico, entre o
individual e o coletivo…
Completa-se assim o triângulo conceitual com o qual Lévy-
Bruhl tentará definir, em As Funções Mentais nas Sociedades
Inferiores, as características básicas da mentalidade que aí qualifica
de primitiva. Misticismo (no que diz respeito à orientação geral
dessa mentalidade), prelogismo (em relação à forma pela qual
estariam ligadas as representações), participação (enquanto princí-
pio geral de funcionamento que, em última análise, tornaria possível
a existência dos outros dois caracteres):
A mentalidade dos primitivos, sendo mística, é necessa-
riamente também prelógica: isto quer dizer que, preocu-
pada sobretudo com as propriedades e forças místicas dos
objetos seres, concebe a relação entre eles sob a lei de
Malentendido sobre a Vida Filosófica 201

participação, sem se inquietar com contradições que um


pensamento lógico não poderia mais tolerar (FM: 110).
O que parece faltar em todo esse modelo é uma verdadeira
explicação para a participação, fundamento de todo o sistema. Essa
é, contudo, uma longa história que veremos um pouco adiante. De
qualquer forma, é esse triângulo conceitual que servirá para definir
as outras características da mentalidade primitiva, bem como, de
modo mais geral, para determinar o mecanismo das “funções
mentais nas sociedades inferiores”. Ainda que os três conceitos
estejam necessariamente interligados, tudo indica que neste mo-
mento a orientação mística desempenha um papel fundamental.
Com esta noção — mais que com a de participação — fica aberto
o caminho para a elaboração de uma espécie de fenomenologia das
representações coletivas primitivas, objetivo principal de Lévy-
Bruhl em 1910. Desse ponto de vista, ele constata simplesmente que
essas representações se inclinariam sempre na direção de uma
busca ativa das propriedades místicas dos seres, coisas e forças, ou
seja, das propriedades que seriam em tudo distintas dos fatores
objetivos que nós próprios tendemos a privilegiar em nosso
pensamento e em nossas percepções. A questão de uma explicação
para uma orientação geral deste tipo parece ter sido ao menos
provisoriamente posta de lado.
Além de caracterizar a mentalidade primitiva em geral, esse
triângulo conceitual servirá igualmente para identificar uma série de
propriedades adicionais dessa mentalidade, constituindo a condi-
ção de possibilidade de sua existência e funcionamento. Ao lado de
místicas, prelógicas e regidas pela lei de participação, as represen-
tações coletivas dos primitivos apareceriam como profundamente
indiferenciadas em um duplo sentido. Em primeiro lugar, como
vimos, porque seria absolutamente impossível separar aí o que
dependeria de funções mentais puramente intelectuais e o que
proviria do sentimento, do afeto e mesmo da atividade motora. Por
outro lado, essa imbricação profunda faria com que o resultado
desse funcionamento cognitivo e afetivo apresentasse, ele também,
um aspecto altamente indiferenciado. O universo seria aí pensado,
percebido e sentido como uma rede de ligações totais, onde cada
ser, coisa ou força — ou mesmo cada aspecto desses seres, coisas
e forças, por mais insignificante que possa parecer — seria já
apreendido como totalidade indiferenciada, na medida em que,
para empregar uma expressão que Lévy-Bruhl só virá a utilizar
202 Razão e Diferença

alguns anos mais tarde, tudo na mentalidade primitiva seria enca-


rado como um “lugar de participações” (cf. AP: 251).
Outra característica dessa mentalidade seria apresentar-se
como singularmente indiferente aos resultados da experiência
sensível:
quando as representações coletivas implicam a presença
de certas propriedades nos objetos, nada poderá dissuadir
os primitivos disto (…). O que denominamos experiência,
e que decide, a nossos olhos, o que é preciso admitir ou
não como real, não tem força contra as representações
coletivas. Os primitivos não têm necessidade desta expe-
riência para atestar as propriedades místicas dos seres e
dos objetos: e, pela mesma razão, permanecem indiferen-
tes aos desmentidos que lhes oferece (FM: 61).
Por mais estranho que possa nos parecer, a “impermeabilida-
de à experiência” seria uma propriedade evidente da mentalidade
primitiva, se levarmos em conta sua preocupação central com o que
escapa à percepção sensível — “orientação mística” — e o fato de
não ter qualquer dificuldade em sustentar proposições a nossos
olhos contraditórias — “prelogismo”. De tal forma que, sob essas
condições, a experiência sensível só poderia mesmo ser desqualificada
em benefício de uma realidade concebida e sentida como superior
(FM: 61-2). Por impermeabilidade à experiência, deveríamos enten-
der que “a experiência não tem nem o poder de corrigir nem o de
instruir” os primitivos, e que “não somente as seqüências mais
evidentes de fenômenos passam em geral desapercebidas (…), mas
freqüentemente também eles crêem com firmeza em seqüências
que jamais se verificam” (FM: 75). Ou, para dizê-lo em termos
filosoficamente mais elaborados, a questão é que “a percepção do
primitivo não faz de modo algum com que a realidade de seus
objetos dependa da possibilidade de controlá-la através do que nós
chamamos de experiência; é mesmo, em geral, o intangível e o
invisível que são, a seus olhos, o que há de mais real” (FM: 353). Se
levarmos o raciocínio às últimas conseqüências — o que Lévy-Bruhl
só virá a fazer alguns anos mais tarde — isso significa que as
condições de possibilidade da realidade não são as mesmas para nós
e para os primitivos.
Decorre daí uma importante conseqüência: “como tudo o que
existe tem propriedades místicas, e como essas propriedades são,
por sua natureza, mais importantes do que os atributos que nos são
informados pelos sentidos” (FM: 33), toda mudança, toda transfor-
Malentendido sobre a Vida Filosófica 203

mação — todo progresso, eu diria — só poderiam ser encaradas com


grande desconfiança, na medida em que apenas a tradição seria tida
como capaz de ensinar a lidar com essas forças misteriosas e,
conseqüentemente, potencialmente perigosas. Toda ruptura da
ordem estabelecida comportaria uma ameaça de liberação de forças
sobre as quais o controle seria extremamente precário, de forma que
a resistência que os primitivos oporiam à menor alteração de seus
hábitos e crenças — universalmente atestada pelos observadores —
não deveria mais ser interpretada como “simples efeito do costume
e de um espírito conservador próprio desses povos. É o resultado
imediato de uma crença ativa nas propriedades místicas dos objetos”
(FM: 35). Trata-se, pois, de um misoneísmo, mas em sentido muito
peculiar: uma espécie de misoneísmo “primitivo”, que opõe uma
resistência ativa à mudança e ao progresso, que estaria pro-
fundamente enraizado em crenças místicas, não consistindo, em
hipótese alguma, uma simples inércia que garantiria a estrita
observância das tradições (FM: 37).
“‘Todas as coisas têm uma existência invisível tanto quanto
visível’, dizem os Igorote das Filipinas” (idem) — e o mesmo poderia
ser afirmado para e por todos os primitivos. Se a existência visível
pode parecer descontínua e recortada, a invisível afirmaria e
garantiria a realidade de uma ligação recíproca de tudo com tudo,
através de uma rede de forças místicas. Poder-se-ia mesmo chegar
a dizer que “uma certa comunidade de essência é (…) imediatamen-
te sentida (…) entre todos os seres que fazem parte da mesma classe,
e que comungam em uma espécie de participação mística” (FM:
429). É preciso observar, contudo, que essa comunidade de
essência, ainda que engendre uma imagem altamente indiferenci-
ada do universo, não se confunde com o puro caos, pois apenas “os
seres que fazem parte da mesma classe” participariam plenamente
dela (idem). Existiria, portanto, ao lado do sentimento de participa-
ção, um “sentimento (…) de não participação com os seres e objetos
que fazem parte das outras classes” (idem). É em parte por isso que
outra característica das representações coletivas primitivas é justa-
mente apreender as coisas como simultaneamente distintas e
idênticas. Trata-se do que Lévy-Bruhl chamará mais tarde dualida-
de-unidade ou, de modo mais geral, multiplicidade-unidade,
propriedade já isolada com nitidez desde as Funções Mentais…:
separados num plano, os fenômenos estariam, no entanto, unidos
em outro, o que satisfaria ao mesmo tempo a evidência sensível de
sua diferença e a crença — não menos evidente, embora mística —
de sua unidade (FM: 426-8). Por isso é inútil indagar, como teria feito
204 Razão e Diferença

a escola antropológica inglesa, acerca da explicação dos fatos


supostamente fornecida pela mentalidade primitiva: tudo o que esta
pretenderia seria imergi-los nessa rede de conexões místicas,
imersão que satisfaria imediatamente o que apenas nós próprios
denominamos necessidade de explicação (FM: 39).
Haveria ainda uma última característica da mentalidade
primitiva que a tornaria igualmente muito distinta do nosso próprio
modo de pensar. É preciso insistir sobre ela, na medida em que
revela um importante aspecto do trabalho de Lévy-Bruhl, a tentativa
de construção do que poderíamos denominar, forçando um pouco
os termos, uma crítica da razão primitiva, no sentido mais kantiano
que as duas primeiras palavras possam ter neste contexto: “o que
impressiona primeiramente é que a mentalidade primitiva analisa
pouco” (FM: 13). Por outro lado, um filósofo formado numa certa
tradição kantiana sabe muito bem que “em certo sentido, todo ato
de pensamento é sintético” (idem). Ora, o que faria que as sínteses
primitivas nos pareçam tão diferentes das praticadas por nossas
próprias operações mentais? É que entre nós, “a síntese implica, em
quase todos os casos, uma análise prévia” (idem). E são justamente
os instrumentos analíticos que cada membro de nossa sociedade
receberia como “herança”: “a disciplina lógica se impõe assim,
irresistivelmente, às operações de cada espírito. As sínteses novas
que opera devem se conformar às definições dos conceitos que
emprega, definições elas mesmas legitimadas por operações lógicas
anteriores” (FM: 114). Tudo se passa como se “nossa herança” — as
regras a que devemos submeter nosso próprio pensamento — fosse
de ordem puramente formal e como se, dentro de certos limites
bastante amplos que essas regras estabelecem, novas sínteses
pudessem ser continuamente elaboradas. Nos termos propostos por
Deleuze e Guattari (1972), obedeceríamos muito mais a uma
“axiomática” que a uma “codificação” ou um “código”. No caso da
mentalidade primitiva, tudo aconteceria de modo inteiramente
distinto: “as sínteses aí parecem primeiras, e (…) quase sempre não
decompostas e não decomponíveis” (idem). O que se receberia aí
da tradição é um conjunto substantivo, onde as sínteses só podem
aparecer como a priori e em relação às quais nenhuma inovação
pode ser tolerada. A tal ponto que é possível afirmar que “a
mentalidade prelógica é sintética em essência” (idem), enquanto
nosso pensamento o seria apenas na medida em que busca sínteses
adequadas à experiência sensível. A mentalidade primitiva estaria
dessa forma submetida a uma codificação extremamente rigorosa:
“ainda que não submetida a um mecanismo lógico, ou antes,
Malentendido sobre a Vida Filosófica 205

precisamente porque não submetida a ele, não é livre. Sua unifor-


midade é o reflexo da uniformidade da estrutura social a que
corresponde e que exprime” (FM: 115). O pensamento primitivo
pode operar com conceitos; estes, na medida em que estão
antecipadamente fixados, não podem, contudo, se oferecer plasti-
camente ao trabalho da lógica, não possuindo, portanto, a capaci-
dade de se compor e decompor, nem de entrar como peças em um
sistema hierárquico superior (FM: 136-7).
Na razão primitiva, como na ciência, os juízos são sempre —
como Mauss já havia demonstrado — sintéticos. Ao contrário desta
última, contudo, o que é realmente a priori no pensamento
primitivo não são categorias puramente formais e operativas, mas
o próprio conteúdo das sínteses, antecipadamente fornecido por
uma tradição virtualmente incontestável. Isso significa que não
apenas as “formas da sensibilidade” (o tempo e o espaço - cf. FM:
129-30) não possuiriam a mesma natureza na mentalidade primitiva
e em nosso pensamento, como também que as “categorias do
entendimento” operariam de forma inteiramente distinta nos dois
casos. Mais precisamente, é muito difícil falar com propriedade em
formas e categorias no caso dos primitivos, na medida em que os
próprios conceitos com que operaria seu pensamento seriam
substantivos, ou seja, plenos de um conteúdo que a sociedade e a
tradição impõem aos indivíduos. Kant provavelmente se enganou
ao imaginar estar definindo o pensamento quando demonstrava
apenas o modo de funcionamento do nosso pensamento — e isso
é sem dúvida válido mesmo para a percepção. Lévy-Bruhl se afasta
desse modelo “ocidental” menos do que crê: para ele, a emergência
do pensamento lógico só poderia se dar no momento em que “as
sínteses primitivas, as preligações entre as representações coletivas,
se dissolverem pouco a pouco e se decompuserem; em outros
termos, se a experiência e as exigências lógicas vencerem a lei de
participação” (FM: 116). Isto é, no momento em que o homem deixa
de se submeter a uma “tradição” para obedecer apenas a uma
“disciplina lógica”.
Lévy-Bruhl pode, assim, resumir todas as características que
acredita ter isolado na mentalidade primitiva:
Essa forma de atividade mental, radicalmente diferente
das que nossa sociedade nos dá a oportunidade de
estudar, não busca então compreender ou explicar seu
objeto. Ela está orientada em um sentido totalmente
distinto: é inseparável das práticas místicas que efetuam
as participações. Ubiqüidade ou multipresença dos seres,
206 Razão e Diferença

identidade do um e do vários, do mesmo e do outro, do


indivíduo e da espécie, tudo o que faria o escândalo e o
desespero de um pensamento assujeitado ao princípio de
contradição é implicitamente admitido por essa mentali-
dade prelógica. Por outro lado, ela é impermeável àquilo
que denominamos experiência, isto é, aos ensinamentos
que a observação pode extrair das ligações objetivas entre
os fenômenos. Ela tem sua própria experiência, toda
mística, bem mais completa, mais profunda, mais decisi-
va, que a experiência freqüentemente ambígua que o
pensamento propriamente dito sabe dever aceitar e
mesmo procurar controlar (FM: 428).
Misticismo, prelogismo, participação, indiferenciação,
misoneísmo, multiplicidade-unidade, impermeabilidade à experi-
ência, comunidade de essência, caráter essencialmente sintético e
não, ou pouco, conceitual: se acrescentarmos o adjetivo “primitivo”
a cada uma dessas expressões — para que não sejam confundidas
com nada que em nossa própria sociedade possa, ainda que de
forma longínqua, evocá-las, criando assim a ilusão de uma seme-
lhança real — teremos o primeiro esboço que Lévy-Bruhl traça de
seu tema, que ocupa toda a Introdução e dois terços da primeira
parte de As Funções Mentais nas Sociedades Inferiores.

A
O terço restante desta primeira parte investiga um tema que
deveria ser, se levarmos a sério o título do livro, o objeto fundamen-
tal da pesquisa. Na realidade, este tema ocupa aí um espaço teórico
restrito, que irá inclusive diminuir com o desenvolvimento da obra
de Lévy-Bruhl, permitindo assim uma abordagem um pouco mais
rápida. Trata-se de definir “as operações da mentalidade prelógica”,
ou seja, mostrar como operariam concretamente nas sociedades
inferiores as “funções mentais superiores”. A tese central é que das
quatro “funções” estudadas, a memória apresentaria nesse tipo de
sociedade uma importância e um desenvolvimento muito maiores
que a abstração, a generalização e a classificação. Preponderância
fácil de ser explicada, desde que levemos em conta o caráter
essencialmente sintético das representações coletivas primitivas. O
lugar central ocupado pela memória — que é sempre, acrescenta o
autor, uma “memória concreta” — seria mesmo uma necessidade
real, tendo em vista possibilitar que as inumeráveis sínteses substan-
Malentendido sobre a Vida Filosófica 207

tivas recebidas da tradição social possam estar sempre presentes, de


uma forma ou de outra, nas consciências individuais. As outras
funções podem ser fundamentais para um pensamento operacional-
mente mais rico, mas indiferente ao conteúdo das sínteses que
efetua. No caso de uma mentalidade misticamente orientada, ao
contrário, tais funções, sem deixar de existir, não são de muita
utilidade, o que faz com que acabem por adquirir uma inclinação
mística. A capacidade de abstração converte-se imediatamente em
uma “abstração mística”, que, ao isolar entre os caracteres que
constituem um ser ou uma coisa os que devem ser efetivamente
retidos, dedicaria uma atenção quase exclusiva a seus aspectos
místicos, não aos sensíveis como faz nossa própria “abstração
lógica”. A generalização, por sua vez, consistiria basicamente no
resultado do sentimento difuso de existência de uma interconexão
mística entre coisas, seres e homens, não no processo de elaboração
puramente lógica de conceitos homogêneos que seria, para nós, o
fundamento da operação. A classificação, enfim, só poderia ser, ela
também, de caráter místico, uma vez que consistiria apenas no
resultado das abstrações e generalizações misticamente orientadas.
É assim que Lévy-Bruhl crê poder explicar as famosas “classificações
primitivas” que Durkheim e Mauss já haviam trazido à luz nesta
época. Para ele, essas classificações não poderiam resultar de
processos metodicamente conduzidos, que levariam a conceitos de
contornos nítidos e bem delimitados, que, por sua vez, propiciariam
a construção de classes distintas, mutuamente exclusivas, dotadas
de valor objetivo e hierarquizáveis em sistemas. Ao contrário, as
“classificações místicas” dependeriam de “participações comple-
xas”, unindo coisas, seres e homens através de uma força mística
compartilhada por todos, que os faria constituir uma “comunidade”
ou, mais precisamente, uma “comunidade de essência”. Em suma,
Lévy-Bruhl procura opor ao caráter abstrato, geral e objetivo dos
conceitos e classes ocidentais, as propriedades concretas, particu-
lares e místicas das operações mentais primitivas16.
Pela segunda e terceira partes de As Funções Mentais… é
possível também passar rapidamente, dados os objetivos deste
trabalho. O material aí reunido revela sobretudo, para falar como
Florestan Fernandes (1954: 130), “o ângulo menos original” da obra
de Lévy-Bruhl, o que compartilha com o século XIX: a utilização de
um método comparativo tomado de empréstimo à escola antro-
pológica inglesa — ao evolucionismo social, portanto. Denunciar o
caráter superficial e descontextualizador deste método é, hoje em
208 Razão e Diferença

dia, uma banalidade; criticar Lévy-Bruhl por tê-lo utilizado é de


“escasso interesse” (idem) — e o próprio autor se encarregará, em
trabalhos posteriores, de tentar escapar dessas limitações metodo-
lógicas. Basta, portanto, observar que procura-se estudar aí as
relações entre a mentalidade primitiva e as línguas faladas nas
sociedades “inferiores”, e as relações entre esta mentalidade e as
“instituições primitivas”. Lévy-Bruhl se esforçará, no primeiro caso,
em demonstrar que, tanto no que diz respeito à linguagem
articulada propriamente dita quanto aos “sistemas de numeração”
dos primitivos, os traços de sua mentalidade já isolados apareceriam
com toda a clareza, inclinando suas línguas e seus sistemas de
numeração numa direção muito diferente daquela seguida por
nosso próprio pensamento. Ao mesmo tempo, uma série de
características, à primeira vista aberrantes, encontrariam, senão sua
“lógica” (o que não parece ser exatamente o caso), ao menos sua
razão de ser. Essas características da mentalidade primitiva podem
passar, assim, a ser consideradas como perfeitamente naturais
dentro das condições gerais sob as quais funcionam.
As “línguas primitivas”, por exemplo, tenderiam para uma
“expressão concreta”, onde a fixação e a atenção nos detalhes seria
muito mais importante do que qualquer tentativa de generalização
(FM: 159). Disso decorreria a importância da “linguagem por gestos”
nas sociedades primitivas (FM: 175-87) e o caráter descritivo dos
vocabulários primitivos (FM: 187-95). Da mesma forma, os sistemas
de numeração empregados nessas sociedades não possuiriam o
caráter abstrato que apresentam entre nós, de modo que os números
seriam inseparáveis dos objetos numerados (FM: 204-34). Entre as
dezenas de exemplos listados nessas páginas, os que mais chamam
a atenção de Lévy-Bruhl são, contudo, os que revelariam o que
denomina “potência mística das palavras” (FM: 196) e “potência
mística dos números” (FM: 235). Ou seja, o fato de o significado e
o poder de referência de palavras e números estarem subordinados
a suas “virtudes místicas”, à capacidade que teriam para provocar
determinados resultados desde que corretamente manipulados.
Não vale a pena insistir agora sobre as razões deste privilégio; basta
lembrar que ao menos em 1910, Lévy-Bruhl não pretendia explicar
as sociedades primitivas, suas instituições, nem mesmo sua menta-
lidade. Tudo o que parece desejar, nesse momento, é isolar os traços
que considerava mais representativos e característicos da mentali-
dade primitiva — uma espécie de fenomenologia, portanto. É nesse
sentido que pode afirmar que o valor místico da linguagem e da
numeração seria uma “contra-prova” dos caracteres mais abrangen-
Malentendido sobre a Vida Filosófica 209

tes que pensava já haver isolado (FM: 261). É também com esse
espírito que é empreendida a descrição das “instituições em que
estão implicadas representações coletivas regidas pela lei de par-
ticipação” (idem). Sob esse rótulo, são alinhadas desde as atividades
mais banais e corriqueiras — caça, pesca, guerra… — até institui-
ções e concepções que, devido a suas óbvias diferenças em relação
às que estamos acostumados, poderiam nos espantar muito: rituais
em geral, práticas e noções relativas à morte e à doença, couvade,
divinação, magia, infanticídio, nominação, iniciação… Qualquer
que seja o caso, atividade banal ou especial, o que se procura
enfatizar não é o que chamaríamos hoje os aspectos “técnicos” da
prática, mas justamente o que podem apresentar de mais “expres-
sivo”. Ou seja, os aspectos que parecem mais desconectadas da
ordem natural objetiva e que, ao menos do ponto de vista dos
primitivos, seriam os mais importantes. Lévy-Bruhl acrescentaria,
contudo, que a própria noção de uma ordem natural assim
concebida — e, conseqüentemente, a distinção entre o “técnico” e
o “expressivo” — dificilmente poderia ser postulada como existindo
de fato para a mentalidade primitiva. Esta, ao contrário, se interes-
saria sobretudo pelas “condições místicas da ordem natural” (FM:
291-5): uma verdadeira “simbiose mística” entre todos os compo-
nentes do universo que se encontrariam em perpétua interação
dinâmica, simbiose “que nosso pensamento lógico não poderia
conceber nitidamente sem desnaturar” (FM: 296).

A
Florestan Fernandes tem efetivamente razão, ao afirmar que
as limitações do tipo de método comparativo empregado por Lévy-
Bruhl apresentam um interesse menor já que são o aspecto menos
original de sua obra. Creio que também está correto ao localizar seu
verdadeiro interesse no modo como são colocadas as “relações
entre compreensão, descrição e interpretação na pesquisa et-
nológica”, posição que denotaria “um talento pioneiro que, se não
foi bem explorado, nem por isso deixa de possuir uma profunda
significação para a moderna etnologia” (Fernandes 1954: 130). Este
ponto fica especialmente nítido no gigantesco esforço efetuado para
estabelecer uma terminologia realmente adequada ao objeto que
pretende exprimir, lugar de confluência de todo o trabalho de Lévy-
Bruhl. Ponto bastante controvertido também, uma vez que o próprio
autor passou o resto da vida tentando precisar e refinar seu
210 Razão e Diferença

vocabulário, bem como afirmando que o que seus termos queriam


verdadeiramente dizer não havia sido compreendido de forma
muito justa, ou mesmo abandonando alguns de seus conceitos
principais e substituindo outros. Não deixa de ser verdadeiro que a
terminologia empregada parece estar calcada sobre um vocabulário
essencialmente psicológico, não sendo de modo algum casual que
desde A Idéia de Responsabilidade o termo participação seja
empregado com uma função muito importante, que será mais tarde
retomada nos livros de história da filosofia e, em especial, em A
Moral e a Ciência dos Costumes (cf. IR: 161-2, e MM: 144-5). Da
mesma forma, a preocupação com a lógica e o misticismo está
claramente presente no trabalho sobre a filosofia francesa e em A
Filosofia de Augusto Comte. Lévy-Bruhl pretende, é claro, que o
sentido no qual esses termos, bem como uma série de outros, são
empregados em As Funções Mentais… e em suas obras subseqüen-
tes seja bastante específico em relação aos significados adotados
pela filosofia ocidental em geral, tendo desenvolvido um grande
esforço na tentativa de precisá-los. Essa posição, entretanto, jamais
chegou a ser muito convincente, sendo sobretudo a respeito dos
termos empregados que o debate em torno de seu pensamento
tendeu a se estabelecer.
Todorov, por exemplo, em um texto relativamente recente,
insistiu muito nesse aspecto, apontando o que considera um
paradoxo. Após constatar a quase obsessão de Lévy-Bruhl em
afirmar que os conceitos por ele empregados não pretendiam
significar o que pareciam estar dizendo, Todorov se pergunta se isso
não demonstraria a existência de uma “mentalidade primitiva” no
espírito do próprio autor. Ao recusar a substituição de seus
conceitos, mesmo admitindo que eram inadequados, não estaria
adotando a crença, que localizara apenas entre os primitivos, num
pertencimento essencial entre os nomes e as realidades por eles
designadas, de tal forma que uma mudança de nome seria sentida
como equivalente a uma transformação do referente (Todorov 1977:
262-3)? Todorov vai ainda mais longe, tentando encontrar outras
características da mentalidade primitiva no pensamento de Lévy-
Bruhl (idem: 278-84), mas não é exatamente este ponto que
interessa no momento. O fato é que esta crítica, bem como o estilo
em que é efetuada, nada tem de novo. Mais de cinqüenta anos antes
de Todorov, Bergson já havia desenvolvido uma argumentação
desse tipo, tentando encerrar Lévy-Bruhl em um paradoxo:
Malentendido sobre a Vida Filosófica 211

Ao censurar o primitivo por não crer no acaso17, ou pelo


menos ao verificar como traço característico de sua
mentalidade que ele não crê no acaso, o senhor não estará
admitindo o acaso? E ao admiti-lo o senhor está bem certo
de não cair nessa mentalidade primitiva que o senhor
critica ou que pelo menos pretende distinguir essencial-
mente da sua? (Bergson 1932: 122).
Problema bastante delicado, portanto: devemos ou não levar
realmente a sério a terminologia empregada por Lévy-Bruhl para
falar da mentalidade primitiva? E, se a resposta for afirmativa, será
possível escapar das armadilhas e paradoxos apontados por Berg-
son e Todorov, entre tantos outros?
Acredito que a primeira questão deva ser respondida afirma-
tivamente. A terminologia empregada, ainda que possa ser conside-
rada hoje em dia substantivamente inadequada, aponta para um
problema real, o de como apreender um pensamento diferente do
nosso sem suprimir no mesmo lance aquilo que constitui sua
diferença específica. Para isso, é preciso abandonar definitivamente
a ilusão, da qual Todorov estranhamente parece compartilhar, de
uma linguagem neutra e transparente em relação à realidade,
admitindo de uma vez por todas que as palavras não têm nada de
inocente e que — coisa que todo lingüista certamente sabe — são
elas que constituem seus referentes. Sendo assim, torna-se necessá-
rio saber se Lévy-Bruhl, de fato, acabou vítima do vocabulário que
criou. Para isso, é essencial analisar os principais termos propostos
com mais cuidado. Em As Funções Mentais…, esses termos são
sobretudo os que constituem o triângulo conceitual já exposto
(misticismo, prelogismo e participação) e as noções de representa-
ção (com a qual, lembremos, se inicia o trabalho) e afetividade
(traço que Lévy-Bruhl considera a característica principal da mentali-
dade primitiva).
A “orientação mística”, como vimos, constitui o traço domi-
nante do pensamento primitivo, embora seja definida de modo
restritivo, visando distingui-la por completo do misticismo religioso
ocidental. Apesar disto, Cailliet (1938: 171) — que recusa, aliás, a
concepção que Lévy-Bruhl tem do místico — reconhece que este
“tem a etimologia a seu favor” já que “o grego latinizado mysticum
quer dizer exatamente: ‘que tem uma significação fechada, oculta’”.
Da mesma forma, o Littré, considerando o vocábulo “misticismo”
um neologismo cuja etimologia estaria justamente em “místico”,
define o primeiro termo de duas maneiras: forma de crença que
admite interações secretas entre o homem e a divindade — o que
212 Razão e Diferença

significaria também uma pretensão em conhecê-la diretamente, sem


intermediários — e como “doutrina que empresta um sentido oculto
aos livros santos, às coisas deste mundo”. Já o segundo termo,
“místico”, é definido exclusivamente em relação à espiritualidade
religiosa, tendo sua etimologia remetida para “mistério” que, por sua
vez, e entre várias acepções, é conceptualizado como tudo aquilo
que “na religião cristã (…) é proposto para ser objeto de fé por parte
dos fiéis, e que parece contradizer a razão humana ou estar acima
desta razão”. O Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia de
Lalande, praticamente repete essas definições, apenas acrescentan-
do a proposta pelo próprio Lévy-Bruhl, além de dois usos “pejora-
tivos” do termo:
1º. Crenças e doutrinas que repousam mais sobre o
sentimento e a intuição (…) do que sobre a observação
e o raciocínio (…).
2º. Crenças ou doutrinas que depreciam a realidade
sensível em benefício de uma realidade inacessível aos
sentidos: crença (particularmente crença moral ou social)
que um indivíduo ou um partido afirmam, sem buscar se
justificar pela argumentação (quer essa crença seja ou
não, em si mesma, suscetível de tal justificativa).
Enfim, é curioso observar que Roger Bastide (1931: 9)
distingue o misticismo enquanto doutrina filosófica do misticismo
enquanto experiência psicológica, opondo, ao mesmo tempo, o
misticismo ocidental de tendências cognitivas (como forma intuitiva
e imediata de acesso a um absoluto que escaparia a nosso
conhecimento discursivo meramente relativo), ao misticismo orien-
tal, de alcance sobretudo moral, concebido como única via para que
o homem se desprenda do universo sensível, mundo de dor e
sofrimento.
O termo é, portanto, bastante polissêmico, ainda que nos
limitemos à experiência ocidental. Como ocorre freqüentemente em
sua obra, Lévy-Bruhl parece ter tomado cuidados excessivos, que só
se justificariam realmente se o conceito apresentasse previamente
um sentido unívoco, o que não é o caso. De qualquer forma, o
significado proposto está longe de ser tão exótico quanto o próprio
autor supõe: realidade do supra-sensível, contato direto com
potências superiores e sentido oculto do universo, são aspectos que
estão presentes tanto em sua definição quanto nas inúmeras
acepções que o “místico” possui na tradição filosófica e religiosa
ocidental. Tudo se passa como se Lévy-Bruhl tivesse escolhido uma
forma significante que lhe pareceu adequada para dar conta de
Malentendido sobre a Vida Filosófica 213

alguns significados presentes tanto entre nós quanto entre os


primitivos. O mais importante, contudo, é que essa forma não
pretende delimitar um objeto (sistema de crenças ou religião
propriamente dita) existente em determinado local e momento, mas
isolar uma propriedade do pensamento humano apenas mais
visível— e portanto mais adequada para uma primeira abordagem
teórica — nas sociedades primitivas do que em nossas próprias
instituições. Antes de concluir a respeito do misticismo, convém
voltar a atenção para os outros conceitos centrais empregados para
definir a mentalidade primitiva.
Ao contrário de místico e de misticismo, “prelogismo” é uma
expressão literalmente criada por Lévy-Bruhl. Já observamos os
problemas semânticos e mesmo sintáticos que o termo comporta.
Entretanto, ele se refere também, é claro, à lógica, palavra que
ironicamente tampouco possui sentido único e preciso. Lalande,
por exemplo, sustenta que “os diferentes sentidos da palavra Lógica
[levanta uma] questão das mais complicadas”, questão que tenta
resolver distinguindo três acepções possíveis do conceito, corres-
pondendo “a três sentidos da palavra verdade”: se esta for entendida
como imanente às próprias coisas, a lógica será compreendida
“como a ciência da verdade objetiva das coisas, ou das condições
a priori de toda existência”; se “verdade” for pensada como um tipo
de conformidade subjetiva à ordem das coisas, a lógica passará a ser
definida como “o conjunto dos meios que devemos empregar para
chegarmos a nos representar as coisas tal qual elas são”; enfim, se
a verdade for encarada como sempre hipotética, como uma
propriedade do próprio pensamento, a lógica deverá ser entendida
como a certeza de que “tal coisa sendo suposta verdadeira (mesmo
que ela seja falsa), uma outra que dela se segue, deve ser tida
também por verdadeira”. Mais recentemente, Ferrater-Mora efetuou
outro recorte, demonstrando que a lógica poderia ser pensada de
um ponto de vista empirista (generalizações de relações empíricas
através da abstração), de um lingüístico e convencional (regras da
linguagem, simplesmente), e de uma perspectiva kantiana (imanen-
te ao sujeito transcendental). Ao lado disso, Lalande lembra a
conhecida dificuldade em separar claramente o caráter “natural” da
lógica — ou seja, o pressuposto de que exprimiria realmente
propriedades independentes de sua própria existência, estejam
essas propriedades do lado do objeto ou do sujeito do conhecimen-
to — de seu aspecto “normativo”, da tendência a impor certas
maneiras de pensar.
214 Razão e Diferença

Em meio a tantas definições e concepções, Lévy-Bruhl parece


compartilhar da indecisão que Lévi-Strauss (1946: 536) apontava em
Durkheim — indecisão entre sua formação filosófica neo-kantiana
(que lhe indicava o caráter a priori e subjetivo da lógica) e sua
inclinação positivista (que tenderia a ver na lógica apenas um meio
para generalizar relações empiricamente existentes e observáveis).
Ora, do segundo ponto de vista — que domina, embora não
inteiramente, As Funções Mentais… — o prelogismo só poderia
aparecer como um equívoco a respeito do qual caberia indagar
apenas como pôde ter sobrevivido durante tanto tempo e em tantas
sociedades humanas. Por outro lado, se a lógica for concebida, à
maneira kantiana, como propriedade do sujeito e se, ao mesmo
tempo, esse sujeito for sociologizado e historicizado, como Lévy-
Bruhl sem dúvida alguma faz, a pesquisa poderia seguir uma via
mais interessante, encaminhando-se para a determinação das con-
dições gerais da experiência em uma dada sociedade ou tipo social,
ou em uma dada mentalidade ou tipo mental. Parece-me — será
preciso voltar a essa questão — que é essa última perspectiva que
se afirmará cada vez com mais força ao longo do desenvolvimento
da obra de Lévy-Bruhl.
O último termo do triângulo conceitual que definiria a
mentalidade primitiva é o de “participação”, encarado, como foi
rapidamente sugerido, ora como lei, ora como fato. A oscilação
entre apriorismo e empirismo é novamente muito nítida. Como lei,
no sentido positivista do termo, a participação é pensada como a
maneira através da qual os primitivos efetuariam suas abstrações e
generalizações, operações que, como vimos, seriam neste caso
inteiramente místicas, denotando a subordinação da “lei de partici-
pação” à “orientação mística”. Já a participação como fato, não
significa, é claro, sua existência empírica como fenômeno real, mas
simplesmente que ela se imporia como um a priori das representa-
ções coletivas primitivas. Deste ponto de vista, não seria possível
levar muito longe uma explicação dessa propriedade. Também em
relação a este ponto, a perspectiva transcendental tenderá a levar a
melhor nos livros subseqüentes. Ocorre, contudo, que “participa-
ção” é igualmente um termo bem complicado. Já observamos o
esforço de Lévy-Bruhl em dissociar o uso que dele faz de todos os
sentidos em que é empregado nos mais variados sistemas filosófi-
cos. Estes sentidos parecem derivar, de uma forma ou de outra, da
filosofia platônica, onde — é quase inútil relembrar — a noção se
destina a esclarecer como estariam ligados o sensível e o inteligível,
as cópias e os modelos, as coisas e as idéias. Por outro lado, é quase
Malentendido sobre a Vida Filosófica 215

consensual entre os comentadores de Platão observar que essa é


talvez a categoria mais problemática de toda a sua filosofia — e isso
justamente na medida em que parece violar o princípio de contra-
dição. Torna-se possível perguntar, portanto, se de fato a participa-
ção primitiva está tão afastada da metaxis platônica quanto supõe
o próprio Lévy-Bruhl. Ou se, ao contrário, o autor não teria mais uma
vez lançado mão de uma ambígua categoria ocidental que, em
virtude dessa ambigüidade, poderia servir como instrumento para
a análise de uma propriedade igualmente ambígua do pensamento
humano, mais visível entre os primitivos que entre nós. Segundo o
Littré, o verbo “participer” exige, em francês, ora a preposição à, ora
a preposição de. No primeiro caso, “participer à” adquire o sentido
de “tomar parte de” (“avoir part à”), seja como atividade objetiva,
seja como sentimento moral; “participer de”, por outro lado,
significaria antes “compartilhar de uma certa natureza” (“tenir de la
nature de”). Ora, o fato é que Lévy-Bruhl utiliza quase indistinta-
mente as duas preposições — além de “avec” e “entre”, quando se
trata do substantivo “participation” — o que sugere que o sentido
do termo se difrata por esses dois campos semânticos: o primitivo
“faria parte de” outros seres e coisas, no duplo sentido de interagir
misticamente com eles e de compartilhar de certa substância,
também mística, com eles.
Talvez seja possível determinar agora o sentido preciso, ou o
mais interessante, do triângulo conceitual básico de Lévy-Bruhl. A
lógica primitiva (o prelogismo) poderia ser encarada como um a
priori que condicionaria a experiência. Este a priori se caracteriza-
ria, contudo, por ser sintético de modo especial, pois tenderia a unir
todos os componentes do universo através de uma rede de
participações místicas: ligações substanciais (participação), que
não se manifestariam no nível da sensibilidade comum, mas sobre
outro plano, invisível e intangível (místico). O trabalho de relati-
vização é dessa forma levado às últimas conseqüências, ou quase,
na medida em que não apenas as categorias do pensamento como
a própria percepção são concebidas como socialmente variáveis e
determinadas. Tudo se passa como se existisse uma espécie de
triagem cultural se exercendo sobre a pletora de sensações que os
homens identicamente recebem, triagem que seria sempre coman-
dada por um a priori específico — a “orientação mística” de sua
mentalidade, no caso dos primitivos. Além disso, as categorias que
deverão articular essas percepções entre si não seriam absolutamen-
te as mesmas de sociedade para sociedade. Isso revela que Lévy-
Bruhl escreveu, consciente ou inconscientemente, uma “crítica da
216 Razão e Diferença

razão primitiva”. Ao sociologizar seu objeto de estudo, o que não


chega a ser novidade, acabou por efetuar uma operação muito mais
fundamental, sociologizando, ou relativizando e problematizando
radicalmente, os próprios instrumentos teóricos de que essa crítica
costuma lançar mão. Se a terminologia não é certamente o único
desses instrumentos, tampouco é o menos importante dentre eles.
Os três conceitos básicos que caracterizariam a mentalidade
primitiva referem-se exclusivamente às representações coletivas
que, neste tipo de mentalidade, seriam dominantes. Vimos que
desde o início do trabalho Lévy-Bruhl alude à possível inadequação
do termo representação para dar conta da realidade a ser estudada,
na medida em que o uso tradicional conferiria a essa noção um
alcance sobretudo cognitivo, aspecto ausente, ou ao menos subor-
dinado ao afetivo, quando se trata da mentalidade primitiva (FM: 28-
9). O problema, como no caso dos termos analisados precedente-
mente, é que não basta falar em “representação” para que os
equívocos sejam evitados. Para a psicologia tradicional, por exem-
plo, segundo Ferrater-Mora, essa noção recobriria igualmente a
“percepção” (quando se refere a um objeto presente), a “memória”
(no caso de percepções passadas), a “imaginação” (acontecimentos
futuros ou virtuais) e a própria “alucinação” (no caso de percepções
absolutamente não atuais). Lalande, por sua vez, ainda aponta uma
ambigüidade intrínseca ao termo, já que em filosofia significaria, por
um lado, a substituição de um objeto tomado como existente em si
mesmo e, por outro, uma presença atual, no sentido de um objeto
mental, a tal ponto que Bergson sugeriu o abandono do prefixo re-
em benefício do termo “présentation”. Em um artigo dedicado à
influência dos trabalhos etnológicos de Lévy-Bruhl sobre o pensa-
mento filosófico contemporâneo, que deverá ser analisado adiante,
Emmanuel Lévinas ofereceu uma definição de “representação” que
pode indicar um caminho mais interessante:
Por representação é preciso entender a atitude teorética,
contemplativa, um saber, ainda que de origem experi-
mental, que repousa sobre sensações (…). O correlato da
representação é um ser postulado, sólido, indiferente ao
espetáculo que oferece, dotado de uma natureza, e por
conseguinte eterno (…). As relações que ligam tais seres
entre si, as configurações desses seres, se dão também à
representação (Lévinas 1957: 558-9).
Isso significa que a noção de representação apontaria neces-
sariamente para um privilégio do puramente cognitivo em detri-
Malentendido sobre a Vida Filosófica 217

mento da ação e da afetividade: “antes de agir, antes de sentir, é


preciso se representar o ser sobre o qual a ação incidirá, ou que
suscita o sentimento” (idem: 559). Ao lado disso, esse conceito
tradicional da filosofia ocidental implicaria também uma insuperá-
vel dicotomia e separação entre o sujeito e o objeto do conhecimen-
to, o sentimento e a ação: “o sujeito se encontra assim diante de uma
exterioridade à qual se entrega, pois ela é absolutamente estranha,
isto é, imprevisível e, por isso, singular” (idem: 565). Esta observa-
ção indica que ao ressaltar a dificuldade de se falar em representação
no caso das sociedades primitivas, não é apenas a questão da
afetividade, enquanto oposta ao cognitivo, que Lévy-Bruhl está
levantando: do ponto de vista do nosso pensamento,
o objeto é dado ao sujeito, em um certo sentido então,
distinto dele, [mas] a mentalidade primitiva faz mais que
se representar seu objeto: ela o possui e é possuída por
ele. Ela se comunica com ele. Participa dele, no sentido
não somente representativo, mas ao mesmo tempo físico
e místico, da palavra. Ela não o pensa somente: ela o vive
(FM: 426).
Tudo leva a crer, portanto, que as representações coletivas
dos primitivos não constituem simples reflexos passivos de uma
realidade supostamente exterior e indiferente a elas. Pelo contrário,
seriam as responsáveis pela objetivação dessa realidade, constituin-
do-a de modo essencialmente místico (FM: 58). Ora, não sendo
objetivas — nem de modo direto, nem como reflexo de uma
objetividade outra — tudo indica que só poderiam ser subjetivas, no
sentido de que se compõem de realidades mentais engendradas
pelo grupo, não de substitutos de objetos exteriores de qualquer
natureza. É preciso ainda acrescentar que desde a abertura de As
Funções Mentais…, a hipótese da existência de “um sujeito coletivo
distinto dos indivíduos que compõem o grupo social” é completa-
mente afastada (FM: 1). Nesse sentido, as representações coletivas
só poderiam ser concebidas como existindo em si mesmas, derivan-
do do grupo de forma mais complexa do que se fossem simples
epifenômenos. No que se refere à possível gênese dessas represen-
tações, a tarefa só poderia consistir, pois, em tentar associá-la aos
aspectos emocionais e afetivos que a noção tradicional de represen-
tação justamente procurava afastar (FM: 28-30).
Conhece-se o papel capital desempenhado pela noção de
representação nas ciências humanas e sociais, em especial na
sociologia e na antropologia francesas. Parece-me, contudo, que a
218 Razão e Diferença

esse respeito uma diferença muito significativa separa Lévy-Bruhl de


Durkheim, que, com efeito, ora considera as representações cole-
tivas do ponto de vista da substituição, ora do da apresentação. No
primeiro caso, o “objeto” que substituiriam seria constituído pela
morfologia social concreta de cada sociedade. Por outro lado,
Durkheim sempre imaginou que com o processo de desenvolvi-
mento social essas representações tenderiam cada vez mais, embora
sem atingir necessariamente um resultado definitivo, a se adequar
aos objetos empíricos da realidade exterior, o que faria com que a
“substituição” — sempre inadequada — cedesse o lugar a uma
quase “apresentação” do real. Apriorista no que diz respeito às
sociedades primitivas, Durkheim parece se converter em um
convicto empirista quando se refere a sua própria sociedade. Lévy-
Bruhl — embora As Funções Mentais… ainda exprimam uma
profissão de fé morfologista — é bem mais cuidadoso e, ao mesmo
tempo, mais ousado. Parecendo limitar-se a uma crítica da adequa-
ção da noção de representação para dar conta da mentalidade
primitiva, termina, como demonstrou Lévinas, questionando o
sentido corrente do termo, abrindo assim a possibilidade de uma
problematização do caráter parcial de nossas próprias concepções
sobre os processos psicológicos em geral e o de conhecimento em
particular. A associação do conceito de representação com o lado
afetivo da existência humana serviria, deste ponto de vista, apenas
para demonstrar a exigüidade de nossos recortes tradicionais e a
existência de outras formas de acesso ao mundo. Nada hoje em dia
obriga a conceber estas últimas como inferiores ou primitivas em
relação às nossas.

A
Pode ser um jogo bem curioso e mesmo bem interessante
criticar a terminologia empregada por Lévy-Bruhl, apontando seus
paradoxos e armadilhas. Não me parece, contudo, que isto seja
muito importante. Na verdade, essas questões e dificuldades, de
aparência meramente terminológica, são de ordem eminentemente
epistemológica, dizendo respeito ao gigantesco problema colocado
pela abordagem da diferença, do “outro” — figuras aqui apenas
representadas pelas sociedades ditas primitivas, ou antes, por um
certo tipo de pensamento mais acessível quando isolado a partir dos
dados extraídos da observação desse tipo de sociedade. Lévy-Bruhl
tem perfeita clareza quanto ao alcance epistemológico de sua
Malentendido sobre a Vida Filosófica 219

problemática, toda sua obsessão com a terminologia sendo na


realidade a resultante de um esforço teórico de relativização,
problematização e criatividade. Assim, a insistência em afirmar que
as categorias da mentalidade primitiva não seriam sequer o “equi-
valente” das nossas (FM: 30; 111; passim) aponta, para além do
aspecto puramente crítico, na direção de uma pesquisa muito
precisa, na medida mesmo em que interdita a análise das “operações
da mentalidade prelógica” a partir de categorias e conceitos pré-
fabricados — ao menos se desejarmos de fato adotar uma pers-
pectiva mais objetiva e não preconceituosa. “Não temos outro
recurso”, escreve Lévy-Bruhl a respeito dessas operações, “senão
descrevê-las e analisá-las diretamente de acordo com as ligações
observadas entre as representações coletivas. A tarefa é das mais
difíceis (…)” (FM: 111). A verdade, não importa o que se tenha dito
a esse respeito, é que Lévy-Bruhl não possui nem nunca pretendeu
estabelecer uma teoria — muito menos uma “doutrina” — do
prelogismo ou da mentalidade primitiva. Como ele mesmo afirma,
trata-se sempre de uma “working hypothesis” (FM: 426) que visa
acima de tudo, e como ponto de partida, opor-se ao postulado então
dominante de uma unidade genérica do espírito humano (BP1: 22-
4). A partir daí, cumpre deixar-se levar pelos fatos sem impor a eles
qualquer tipo de preconceito, meramente cultural ou mesmo
disfarçado de teoria científica. Não há nada de empirismo ingênuo
aqui: trata-se antes de uma tentativa de crítica radical de uma
ousadia intelectual absolutamente admirável. O preceito a ser
seguido, diretamente derivado dessas posições, é na verdade muito
simples: evitar sistematicamente acreditar em demasia em qualquer
semelhança aparente entre nossa sociedade e a dos primitivos —
“relativismo sistemático”, como dizia Poirier (1957: 509-10). As
representações coletivas primitivas não devem ser imediatamente
traduzidas para nossas formas cognitivas e conceituais (FM: 80); a
orientação mística da mentalidade primitiva não deve ser, ao menos
inicialmente, confundida com o misticismo religioso ocidental (FM:
66-7); o prelógico não é o que vem antes da nossa lógica, ou mesmo
o que simplesmente se opõe ou é indiferente a ela (FM: 79); a
participação primitiva não tem, ao menos a priori, nada a ver com
“uma partilha, como se o retrato, por exemplo, subtraísse uma
fração da soma de propriedades ou de vida que o modelo possui”
(idem), imagem com a qual estamos, sem dúvida, muito mais
habituados.
Essa intenção, nem sempre muito explícita, esbarrava, em
1910, em uma séria dificuldade. Ainda por demais positivista, o autor
220 Razão e Diferença

se recusa de modo um pouco excessivo, segundo a expressão de


Comte de que tanto gosta, a “tomar uma pedreira por um edifício”.
Ou seja, recusa-se a reduzir a ciência que pretende estar desenvol-
vendo à mera observação dos fatos, dos fenômenos, sem tentar dar
conta de suas ligações recíprocas, das leis que os comandariam. É
sem dúvida em virtude disso, que de certo ponto de vista — para
o qual Fauconnet (BP1: 45) já chamava a atenção — As Funções
Mentais… se assemelham tanto a uma espécie de tratado a respeito
do “estado teológico”. Lévy-Bruhl parece às vezes sustentar que
existiria uma “lei de participação” que, de uma perspectiva estática,
poderia dar conta das propriedades do pensamento humano nesse
estágio de evolução; do mesmo modo, parece crer na existência de
uma lei dinâmica que explicaria a passagem deste momento
primitivo para os subseqüentes, até que o pensamento conceitual,
o nosso pensamento, viesse a emergir. Ao contrário do que acredita
Gurvitch, não se trata pois em hipótese alguma da aplicação do
chamado método compreensivo para penetrar na mentalidade
primitiva. O que explicitamente se pretende é explicar um conjunto
de fatos através da determinação da lei geral que os regeria,
transformando a “pedreira” em “edifício”. O problema é que a
“pedreira” — os fatos — parece resistir, de tal forma que o construtor
irá progressivamente se dando conta do caráter quase absurdo ou
inútil de suas pretensões.
A imensa maioria dos comentadores e críticos de Lévy-Bruhl
parece ter dedicado especial atenção a essa intenção “construtiva”
de sua obra, deixando significativamente de lado tudo o que tem de
crítico e destruidor em relação a convicções muito arraigadas.
Praticamente todos os que escreveram sobre essa obra apresentam,
alternativa ou simultaneamente, uma versão do que consideram ser
o modelo explicativo nela elaborado, bem como uma proposta para
contornar o que cada um imagina serem as principais dificuldades
e impasses do modelo. É preciso, portanto, dedicar alguma atenção
aos mais importantes destes comentários e críticas, verificando a
adequação das interpretações propostas acerca do modelo explica-
tivo e a utilidade das alternativas sugeridas. Poder-se-á chegar assim
a uma melhor apreensão do tipo de explicação que Lévy-Bruhl
propunha nesta época, dos modelos alternativos e, principalmente,
do fato de que já em As Funções Mentais… uma outra via, em geral
desprezada pelos comentadores, era já entrevista e sugerida.
Em 1965, ao comentar o conjunto da obra de Lévy-Bruhl
(lembremos que se trata de uma retomada do artigo de 1934), Evans-
Pritchard se esforçou sobretudo em determinar pontos comuns à
Malentendido sobre a Vida Filosófica 221

mentalidade primitiva e ao pensamento ocidental. Trata-se clara-


mente de tornar o pensamento do autor mais assimilável pela
antropologia social britânica. Ao suprimir ou simplesmente deixar
de lado alguns pontos de alcance mais “filosófico”, acabou-se,
contudo, por apresentar uma interpretação das características
centrais da mentalidade primitiva que me parece simplista e
incompleta. Do ponto de vista de Evans-Pritchard, é óbvio que toda
sociedade humana, primitiva ou moderna, estaria sempre dominada
por suas representações coletivas; qualquer que seja o caso, uma
espécie de filtro seria acionado, selecionando as impressões exte-
riores captadas pelos sentidos e organizando-as em sistemas de
idéias e valores que, longe de constituírem simples reflexo direto da
realidade objetiva, resultariam de uma espécie de socialização
primeira desta. Até aí o esquema parece estar perfeitamente de
acordo com as concepções psicológicas do próprio Lévy-Bruhl. Os
problemas começam quando Evans-Pritchard pretende explicar (ou
antes, interpretar a explicação que acredita ser a de Lévy-Bruhl)
como, sobre uma base de identidade fundamental, as diferenças
culturais poderiam vir a se estabelecer. Em última análise, considera
que a heterogeneidade entre os sistemas primitivos e o ocidental
poderia ser reduzida ao fato de que, no segundo caso, as represen-
tações coletivas coincidiriam com as características objetivas do
mundo real, o que não aconteceria com as representações dos
primitivos (Evans-Pritchard 1965: 118-20). Ainda que essa “explica-
ção” fosse empiricamente correta, correria o risco de sê-lo mais, e
em um sentido diferente, do que a efetivamente proposta pelo
pensamento que Evans-Pritchard pretende interpretar, uma vez
que, como exposição das teses de Lévy-Bruhl, choca-se manifesta-
mente com pelo menos dois obstáculos. Em primeiro lugar, limita-
se a deslocar a questão do fundamento da diferença: poderíamos
legitimamente indagar a respeito dos fatores que fariam com que
nossas próprias representações coletivas coincidissem com a ordem
do real e as dos primitivos não. Se o próprio Lévy-Bruhl fosse
questionado a respeito desse problema, apontaria certamente na
direção da orientação mística da mentalidade primitiva, mas, neste
caso, do ponto de vista de Evans-Pritchard, ou nos encerraríamos
em um círculo vicioso, ou seríamos forçados a apelar para um
evolucionismo rejeitado de antemão. Por outro lado, As Funções
Mentais… não se referem, ao falar da sociedade ocidental, a
“representações coletivas”: “conceitos”, “idéias”, “mentalidade”, às
vezes; “pensamento”, quase sempre; jamais “representações”. Ora,
a razão desse cuidado terminológico aparentemente supérfluo
222 Razão e Diferença

talvez possa fornecer uma pista para a solução da dificuldade


levantada — a das razões profundas da diferença entre “nós” e “eles”
— além de completar e corrigir a interpretação e a explicação de
Evans-Pritchard.
Este cuidado está relacionado com certas posições de Lévy-
Bruhl isoladas por Lévi-Strauss nas poucas páginas que dedicou ao
pensamento deste autor no artigo de 1946 sobre “a sociologia
francesa”. Já o mencionamos, observando que Lévi-Strauss conside-
ra Lévy-Bruhl, do ponto de vista ideológico, um “individualista”
convicto, na tradição do mais puro iluminismo. É nesse sentido que
a sociedade só poderia funcionar como um empecilho para a
consciência individual que ela turvaria e perturbaria, e que é apenas
libertando-se desses constrangimentos sociais que o conhecimento
efetivo, sempre individual, poderia se objetivar e avançar. Em outros
termos, Lévy-Bruhl suporia que apenas as representações individu-
ais poderiam ser verdadeiras, no sentido de coincidirem com a
ordem objetiva; as coletivas estariam condenadas a não ser mais que
o reflexo de um estado da sociedade, não do mundo. Essa
objetividade do pensamento ocidental poderia ser explicada pelo
caráter eminentemente individualizado que este teria assumido,
ainda que seus resultados sejam generalizáveis a posteriori. Enfim,
esse caráter teria se tornado dominante na medida em que, neste
tipo de sociedade, o indivíduo seria, objetivamente falando, mais
autônomo e independente em relação à totalidade social, o que nos
remete evidentemente a Durkheim. Para Lévi-Strauss, contudo, este
último jamais teria abandonado completamente uma tradição
holista que, partindo dos filósofos da reação, passaria por Comte
para desembocar na sociologia científica. Tal qual Lévy-Bruhl,
Durkheim teria a intenção de romper com o modelo psicologizante,
individualista e excessivamente racionalista que imperava sobre boa
parte do pensamento desde o século XVIII a fim de poder abarcar
o social no campo do pensamento científico. Para isso, contudo, os
dois autores teriam sido obrigados a pagar um preço curioso,
confinando o papel da sociedade aos “começos”, já que o desenvolvi-
mento seria encarado como o processo de crescente individualização
dos sujeitos. Apesar dessa semelhança, Lévi-Strauss faz questão de
frisar que uma diferença irredutível se manifestaria: para Durkheim,
esse processo seria de alguma forma contínuo, levando da predo-
minância do grupo até uma independência apenas relativa do
indivíduo, explicável ela mesma através de considerações acerca de
mudanças que se processariam no nível propriamente sociológico;
para Lévy-Bruhl, ao contrário, existiria uma descontinuidade funda-
Malentendido sobre a Vida Filosófica 223

mental, uma ruptura entre a subordinação do indivíduo à sociedade


e sua liberação, que só poderia ser provocada por uma espécie de
reação contra a tirania do grupo (Lévi-Strauss 1946: 537-40).
Não há dúvida de que, ao menos tal qual exposto por Lévi-
Strauss, o esquema durkheimiano possui para nós um aspecto muito
mais satisfatório, o que se deve talvez ao fato de que no caso de
Lévy-Bruhl temos sempre a impressão de que falta justamente uma
explicação, o que Durkheim nos oferece. Por outro lado, seria
possível perguntar se essa impressão não se deve igualmente a uma
espécie de ilusão, no sentido ótico do termo, de um certo efeito que
o campo intelectual tende a produzir e que nós costumamos assumir
como realidade objetiva e óbvia. De fato, se levarmos o raciocínio
durkheimiano até o fim, nos depararemos inevitavelmente, como
mostrou Duarte (1984: 9), com a bizarra necessidade de postular um
indivíduo “infra-social” e uma espécie de instinto de sociabilidade
originário, noções sem as quais todo o modelo se tornaria logica-
mente insustentável. Em outros termos, como demonstrou entre
outros o próprio Lévi-Strauss, quando o esquema da escola socio-
lógica francesa é levado às últimas conseqüências, depara-se com
a impossibilidade de o social — categoria explicativa por excelência
nesse pensamento — dar conta do que é justamente condição de sua
existência: o simbolismo, ou seja, as representações. A aparente
ausência de uma verdadeira explicação por parte de Lévy-Bruhl
talvez seja mais saudável que os potentes instrumentos teóricos de
Durkheim e dos sociólogos de estrita obediência. Ainda que
aceitemos os termos da interpretação de Lévi-Strauss, a explicação
“individualista” poderia ser encarada apenas como um refúgio, para
usar uma expressão de Leenhardt (“repli” — 1949: XIV), refúgio que
evitaria as discretas armadilhas das explicações aparentemente
integrais. O desenvolvimento da obra e do pensamento de Lévy-
Bruhl revelará a recusa em aceitar essa interpretação, atribuindo o
fato de tê-la adotado durante certo período justamente à influência
da sociologia durkheimiana.
Apresentando deste modo as idéias de Lévy-Bruhl, tanto
Evans-Pritchard quanto Lévi-Strauss preparam o terreno para as
críticas que pretendem dirigir a elas. O primeiro aponta sobretudo,
como já vimos, para o que considera um exagero na oposição entre
as duas formas de mentalidade isoladas, exagero derivado da não
consideração dos contextos em que diferentes tipos de explicação,
racionais ou místicas, seriam acionadas — fato que se levado em
conta eliminaria o aparente caráter contraditório da mentalidade
primitiva (Evans-Pritchard 1965: 123). Além disso, Evans-Pritchard
224 Razão e Diferença

pensa que a falta de experiência de campo e a conseqüente


ignorância dos idiomas das sociedades estudadas, teriam feito com
que Lévy-Bruhl não tivesse sido capaz de perceber certas nuances
lingüísticas — a especificidade do verbo ser em várias línguas ditas
primitivas, por exemplo — e a tomar por identificações místicas
proposições que na verdade não passariam de simples expressões
metafóricas (idem: 124-7). De qualquer forma, apesar de todas as
reticências, Evans-Pritchard é bem mais simpático em relação ao
trabalho de Lévy-Bruhl do que a maior parte dos comentadores de
formação antropológica, incluindo-se aí Lévi-Strauss. Ao final de seu
artigo, não deixará inclusive de reconhecer a real importância dos
problemas levantados por esse trabalho para a antropologia social
e cultural (idem: 128-9).
Lévi-Strauss, de sua parte, será muito mais severo. Além de
endossar, implícita mas evidentemente, a crítica de Evans-Pritchard,
acusará Lévy-Bruhl de praticar uma reificação do social, cometendo
o mesmo erro de Durkheim, sem adotar, contudo, o método que
este último havia elaborado — o que só serviria para piorar as coisas
(Lévi-Strauss 1946: 539). Ao lado disso, e principalmente, Lévi-
Strauss acredita que a obra de Lévy-Bruhl seria uma prova dos
“perigos das teorias gerais”, tendo acabado por “contaminar sub-
repticiamente o pensamento moderno [com] o mistério que cerca o
pensamento primitivo”, verdadeiro perigo para “o pensamento
racional e a liberdade individual” que Lévy-Bruhl paradoxalmente
estava querendo salvar (idem: 543). É curioso que Lévi-Strauss acuse
Lévy-Bruhl justamente daquilo que ele próprio tem sido freqüente-
mente acusado: ter elaborado uma teoria demasiadamente geral.
Creio, contudo, que nos dois casos a acusação é injustificada, que
os dois autores se caracterizam na verdade por um esforço
essencialmente metodológico, não teórico ou doutrinário. Mais
precisamente, na medida em que nenhum dos dois parece ter
elaborado um método propriamente dito, pela tentativa de estabe-
lecer perspectivas e procedimentos que tornassem possível encarar
as sociedades ditas primitivas e a questão da alteridade de forma
inovadora e não reducionista. De qualquer forma, a óbvia distância
que os separa, bem como a não tão óbvia semelhança que os
aproxima, serão analisadas detidamente adiante.
Os trabalhos de Lévy-Bruhl provocaram uma quantidade de
comentários que ultrapassam em muito as poucas linhas que Evans-
Pritchard e Lévi-Strauss dedicaram a eles. Apesar disso, grosso
modo, as posições mais freqüentemente adotadas e expostas não
parecem diferir muito daquelas que esses autores enunciaram com
Malentendido sobre a Vida Filosófica 225

uma clareza difícil de ser encontrada em outros comentadores. Em


grandes linhas, sem pretender efetuar uma exposição exaustiva —
trata-se apenas de apontar as questões levantadas e as interpreta-
ções propostas — essas posições podem ser divididas em dois
grandes grupos, cada um deles composto por duas categorias
distintas de comentários. Por um lado, existem os que adotam
explicitamente uma postura unitarista em relação à natureza huma-
na. Dentre estes, alguns consideram que Lévy-Bruhl, no fundo,
também teria adotado essa posição, elogiando-o em função disto;
outros, interpretam seu pensamento como uma afirmação de um
diferencialismo excessivo que eles próprios não aceitam, criticando
o autor em nome desse conflito. Por outro lado, há comentadores
que preferem adotar uma posição diferencialista. Neste caso, alguns
vêem em Lévy-Bruhl uma referência obrigatória para a defesa desta
postura, enquanto outros acreditam que ele não a teria levado
suficientemente longe. Analisemos, ainda que rapidamente, cada
uma dessas vertentes.
Além de Evans-Pritchard e Lévi-Strauss, Parodi (in BP1, 1923),
Belot (idem), Allier (1927), Bergson (1932), Husserl (1935), Cailliet
(1938), Przyluski (1940) e Gurvitch (1957) se enquadram na
categoria dos que censuram Lévy-Bruhl por seu excessivo diferen-
cialismo. A questão central é colocada claramente por Belot (BP1:
31-4), ao apontar o que considera o “paradoxo epistemológico” de
privar-se dos meios de conhecer o fenômeno mental que se
pretende estudar, ao concebê-lo como substantivamente distinto
dos processos de raciocínio empregados pelo investigador. Parodi
(BP1: 35-6) completa o argumento, ao assinalar que apenas os
conteúdos mentais poderiam variar entre as diferentes sociedades,
as “maneiras de pensar” devendo ser uma constante para que a
própria análise seja possível. Isso é o que afirmam também, em
termos apenas um pouco diferentes, Gurvitch e Przyluski. As críticas
de Allier e Cailliet, embora do mesmo tipo, possuem outro alcance,
na medida em que, como religiosos, ambos parecem muito preocu-
pados com as conseqüências do que chamam “doutrina do
prelogismo” para a compreensão da prática e do pensamento
religiosos no interior de nossa própria sociedade, bem como para
o trabalho missionário de catequese e conversão entre os povos
primitivos. Os dois autores consideram absolutamente necessário
pensar o misticismo como um fundo imutável da natureza humana,
o que poderia explicar a persistência e a necessidade da religião
entre nós, assim como a possibilidade e a necessidade da conversão
dos primitivos. Tudo se passa, como disse em 1923 Albert Serrault,
226 Razão e Diferença

ministro francês das Colônias, como se a condição de possibilidade


da “obra colonizadora” fosse o reconhecimento de que
a secular e sombria herança das épocas bárbaras, de
selvageria, de miséria, sob a qual o indígena permanece
esmagado aprisionou durante muito tempo o diamante
bruto de sua alma humana na espessura de uma ganga
que não pode ser quebrada com um só golpe (in Allier
1927: 305).
Como se vê, o princípio da unidade última da natureza
humana pode servir para muitas coisas diferentes. Allier, ao menos,
reconhece o choque sentido pelos missionários ao entrar em
contato com as crenças dos primitivos, condenando Lévy-Bruhl
apenas por ter tratado a diferença entre essas crenças e as nossas
como verdadeiro dogma, não como simples hipótese de trabalho
(idem: 19-32).
Se abstraírmos o caráter militante das críticas de Cailliet e
Allier, bem como seu evidente etnocentrismo, elas se aproximam
muito — o primeiro o menciona explicitamente — de certas
posições defendidas por Étienne Gilson em uma carta enviada em
1923 à Sociedade Francesa de Filosofia, por ocasião do debate em
torno de A Mentalidade Primitiva. Gilson, já o vimos, é um
admirador confesso do pensamento de Lévy-Bruhl e sua carta é
escrita como elogio. No entanto, ele considera que os “resultados
científicos” a que este pensamento teria chegado estariam talvez
apoiados “por uma preocupação que não o é. Ao explicar o que há
de místico na mentalidade que estuda, o sociólogo não condenaria
o que pode disso subsistir na nossa?” (BP1: 47). Gilson acredita que
a posição mais correta — que o próprio Lévy-Bruhl acabaria por
demonstrar, ainda que contra sua vontade — é que existiria um
substrato místico do pensamento humano, substrato que não
poderia deixar de ser universal (idem: 48). É curioso que essa
interpretação seja exatamente oposta à defendida por Lévi-Strauss,
para quem, como vimos, Lévy-Bruhl acabaria por introjetar o
misticismo em nosso próprio pensamento, ameaçando assim nosso
racionalismo com o fantasma da irracionalidade. Nessa mesma
direção, Gurvitch (1957: 501) menciona uma polêmica envolvendo
Gilson e Bréhier, polêmica em que este último defenderia a idéia de
que “os estudos sociológicos de Lévy-Bruhl confirmam as filosofias
da permanência do místico no conhecimento e na experiência”
contra as posições de Gilson, que considerava o autor racionalista
demais para admitir essa tese, embora seu próprio trabalho acabasse
Malentendido sobre a Vida Filosófica 227

por comprová-la. Como podemos perceber, a discordância é


sobretudo de ordem ideológica, já que os dois filósofos, assim como
Lévi-Strauss, parecem supor que os trabalhos sobre a mentalidade
primitiva atestariam a permanência do místico. A diferença é que
enquanto Gilson vê essa permanência com bons olhos, Bréhier e
Lévi-Strauss a condenam como uma espécie de ameaça à racionali-
dade. O próprio Lévy-Bruhl, segundo Gurvitch, teria permanecido
cuidadosamente à margem do debate.
O rápido comentário de Bergson, no segundo capítulo de As
Duas Fontes da Moral e da Religião, aponta também, de forma
crítica, para o que considera o excessivo diferencialismo de Lévy-
Bruhl. Falando da suposta oposição entre mentalidade primitiva e
pensamento civilizado, afirma que “o espírito funciona igualmente
em ambos os casos, mas não se aplica talvez à mesma matéria”
(Bergson 1932: 86), antecipando assim em muitos anos uma posição
que será a de Lévi-Strauss. Em pelo menos um ponto, contudo,
Bergson levanta uma questão mais interessante que a maior parte
das críticas efetuadas pelos unitaristas: “como crenças ou práticas
tão pouco sensatas puderam e podem ainda ser aceitas por seres
inteligentes”? (idem). Conhece-se a resposta do filósofo para essa
questão, que consiste em desvincular essas crenças e práticas da
“inteligência”, atribuindo-as a uma “função fabuladora” (idem: 90)
oposta ao “poder dissolvente da inteligência” (idem: 101). Não me
parece que Lévy-Bruhl esteja tão afastado dessa tese, já que ao
introduzir a afetividade nas representações coletivas dos primitivos
e ao considerar praticamente impossível separá-las das representa-
ções individuais, acaba respondendo antecipadamente a essas
objeções. A única dentre elas que permaneceria de pé seria, é claro,
a aparente oposição entre o unitarismo deste último e o suposto
dualismo de Lévy-Bruhl, oposição que se manifestaria no cuidado
de Bergson em evitar o termo “primitivo” para falar da “função
fabuladora”, o que nos leva de volta ao centro das críticas tradici-
onalmente dirigidas contra Lévy-Bruhl. Antes de prosseguir com
elas, convém talvez observar que Philipe Soulez (in Husserl 1935:
70-71) sustenta que Husserl defenderia as mesmas posições de
Bergson, embora a carta a respeito de A Mitologia Primitiva que o
primeiro endereçou ao segundo — carta que Soulez comenta — não
seja absolutamente explícita sobre este ponto. De qualquer forma,
Soulez vê aí uma crítica velada ao prelogismo, efetuada em nome
do princípio fenomenológico que defende a existência de uma
“lógica das lógicas” de nível superior e alcance universal, o que
curiosamente também parece antecipar algumas teses de Lévi-
228 Razão e Diferença

Strauss. Ao comentar a correspondência entre Bergson e Lévy-


Bruhl, Soulez (1989: 488-92) retoma a hipótese de uma semelhança
entre as posições do primeiro e as de Husserl, já que ambos
defenderiam a necessidade de reconstituir uma lógica que possibi-
litasse a comunicação com os primitivos, não um simples esforço
para se relacionar com o aspecto “vivido” da mentalidade primitiva
— posição que Soulez supõe ser a de Lévy-Bruhl.
Voltemo-nos para outra modalidade de crítica, advertindo
que, como no primeiro caso, não se trata “respondê-las”, mas de
analisá-las, ou seja, de tentar demonstrar que as implicações de uma
posição unitarista podem não ser menos problemáticas que as que
derivariam de um suposto dualismo, e que apenas um verdadeiro
pluralismo poderia levar a uma posição mais sustentável. Esta
posição poderia ser contestada pelos que consideram Lévy-Bruhl
um unitarista, pretendendo, na medida em que eles próprios
compartilham desta posição, utilizar seu unitarismo como verdadei-
ro modelo. Essa parece ser, em grandes linhas, a postura de Van der
Leeuw (1928), Leenhardt (1949 e 1957), Poirier (1957), Cazeneuve
(1957, 1961 e 1963) e, mais moderadamente, Davy (1931, 1957 e
1973). Van der Leeuw (1928: 21-31) adota resolutamente a posição
de Bréhier na polêmica travada com Gilson. Religioso, como Allier
ou Cailliet, pensa que Lévy-Bruhl, longe de condenar o místico —
e através dele a própria religião — estabeleceria, ao contrário, sua
perenidade, ao demonstrar o caráter “estrutural” do que denomi-
nou, talvez de forma equivocada, mentalidade “primitiva”. Leenhardt
(1949: XV) — um missionário, lembremos — pensa igualmente que
em última instância, as teses de Lévy-Bruhl defenderiam “a unidade
do espírito humano no espaço e no tempo”, admitindo apenas que
sua “orientação” poderia variar. Seu único erro teria sido tipificar em
demasia os primitivos, procedimento que o teria impedido de
perceber a coerência realmente presente no pensamento dos
membros das sociedades não ocidentais (idem: XI-XII) — dificulda-
de agravada por sua verdadeira obsessão com a oposição entre
razão e afetividade (Leenhardt 1957: 415). Cazeneuve leva esse
raciocínio ainda mais longe, ao supor que a noção de mentalidade
primitiva revelaria “uma estrutura permanente do espírito humano”
e que, através dela, Lévy-Bruhl teria mesmo provocado a “reabili-
tação do conceito de natureza humana” (Cazeneuve 1961: 67-8). É
verdade, prossegue, que ele por vezes exagera a oposição entre as
duas formas de pensamento que contrasta. Isso visaria, contudo,
torná-lo capaz de captar certas nuances, que mesmo “o etnógrafo,
quando vai para o campo para observar tal ou qual tribo citada como
Malentendido sobre a Vida Filosófica 229

exemplo nos livros deste mestre, acha conforme a suas próprias


sensações no contato com um povo ao mesmo tempo próximo e
estranho” (Cazeneuve 1957: 538). Tratar-se-ia, em suma, de por as
diferenças em evidência, sem conceder a elas qualquer tipo de
estatuto ontológico e sem as reificar (Cazeneuve 1963: 23). Essa
parece ser também a posição de Poirier, que apenas lamenta a
ausência de pesquisa de campo e de um sociologismo mais rigoroso
no trabalho de Lévy-Bruhl (Poirier 1957: 518-25). Enfim, Davy
procura ser mais moderado, preferindo apontar uma espécie de
oscilação entre unitarismo e dualismo no pensamento de Lévy-
Bruhl — como se a primeira posição permanecesse sempre como
intenção do autor, continuamente minada por um dualismo do qual
jamais teria conseguido se libertar inteiramente (Davy 1931: 156-7;
1957: 482; 1973: passim)18.
O outro bloco de comentadores e críticos é constituído pelos
que adotam uma postura mais ou menos diferencialista, metodoló-
gica e/ou ontologicamente falando. Alguns chegam mesmo a
considerar que Lévy-Bruhl não teria levado às últimas conseqüên-
cias o privilégio da diferença que defendia — crítica estranha
quando dirigida a um autor em geral considerado um diferencialista
exacerbado. É o caso, por exemplo, de Piaget, que acredita que a
timidez de Lévy-Bruhl derivaria do fato de ter desprezado a
hierarquia de operações do pensamento humano, não levando em
conta, conseqüentemente, as relações entre “ação” e “representa-
ção”. Isso teria acabado por levá-lo a atribuir aos primitivos uma
sofisticação técnica contraditória com a própria noção de mentali-
dade primitiva, sofisticação que deveria ser considerada meramente
tradicional, não operatória — o que evitaria todos os problemas que
Lévy-Bruhl teria enfrentado a respeito desta questão. Como se vê,
cada um projeta suas próprias teorias e convicções na análise de
outros pensamentos, primitivos ou não: sabemos que para Piaget,
os membros das sociedades primitivas encontram-se no mesmo
nível lógico que as crianças de dois a cinco anos de idade (Piaget
1965: 88-9; 147-8).
Muito mais interessante é o diferencialismo resolutamente
não evolucionista proposto por Roger Bastide. Em 1964, procurou
opor Lévy-Bruhl e Leenhardt a Durkheim e Lévi-Strauss, mostrando
que os dois últimos se interessariam exclusivamente — dentro da
mais pura tradição cartesiana — pelas “idéias claras e distintas”,
enquanto os dois primeiros teriam aberto as portas do “pensamento
obscuro e confuso”. Isso significa a obrigação de levar muito mais
a sério a questão da diferença, situando-a seja entre as sociedades
230 Razão e Diferença

ou as mentalidades humanas, seja no interior de cada sociedade e


de cada mentalidade, ainda que individual (Bastide 1964: 52-6).
Bastide considera que as duas posições seriam absolutamente
inconciliáveis: “não há, cremos nós, complementaridade possível
entre as duas concepções (…). Elas seguem caminhos opostos. É
preciso escolher entre elas” (idem: 65). O diferencialismo metodo-
lógico privilegiado por Bastide em detrimento do unitarismo de
Durkheim e Lévi-Strauss, conduz a um diferencialismo de ordem
teórica ou epistemológica. É verdade, por outro lado, que o trabalho
de Leenhardt é tido como um avanço em relação ao de Lévy-Bruhl.
O primeiro autor teria se dedicado sobretudo à análise de situações
concretas, a partir de um trabalho de campo monumental, o que o
colocaria em vantagem sobre o estrito teoricismo do segundo (idem:
60-5). O próprio Bastide procurou seguir essa lição, empreendendo
uma análise empírica de certas propriedades fundamentais do
sistema de crenças do “candomblé da Bahia” (Bastide 1953 e 1958).
Ele tenta aí demonstrar que a participação seria sobretudo uma
“categoria da ação”, não tendo nada a ver com o pensamento
propriamente dito, plano no qual Lévy-Bruhl teria insistido em
permanecer, ao tentar situar os traços isolados no estudo da
mentalidade primitiva justamente neste nível. Para Bastide, ao
contrário, a participação derivaria do que denomina dinamismo:
“uma filosofia vitalista ou dinâmica, uma teoria das Forças” (Bastide
1953: 32), ou seja, uma espécie de filosofia primeira que em vez de
operar sobre os seres e suas relações, como fazemos, se dedicaria
sobretudo a codificar e a manipular as “forças” (idem: 38-9). A
participação, quando encarada deste ponto de vista, seria uma
conseqüência desta filosofia, dependendo muito mais de uma
“pragmática” que de uma “lógica”, mesmo afetiva ou simplesmente
“prelógica” (idem: 36-7). Isso significa que o engano central de Lévy-
Bruhl não residiria em seu diferencialismo, mas no fato de ter
simplesmente errado o alvo, ao tentar situar a diferença sobre um
plano que não seria o fundamental. Crítica bem moderada, portanto,
uma vez que a censura diz respeito apenas à pouca elaboração que
Lévy-Bruhl teria dado a seu projeto de pensar a diferença.
Existem, enfim, os autores que procuram defender Lévy-Bruhl
em nome de seu diferencialismo, considerando que esta seria a
posição mais correta e que ele a teria desenvolvido da melhor forma.
É curioso que um missionário possa adotar essa opinião; este é,
contudo, o caso do padre Aupiais, que após longa permanência
entre os primitivos, parece acreditar em uma diferença tão radical
entre a mentalidade primitiva e nosso próprio pensamento que faria
Malentendido sobre a Vida Filosófica 231

com que apenas os próprios nativos, devidamente treinados,


pudessem realmente chegar a compreendê-la e explicá-la (BP2:
117-23). Deixando de lado o paradoxo de “primitivos devidamente
treinados”, vale a pena observar que, da mesma forma que o
unitarismo está bem longe de evitar com segurança a adoção de
posições etnocêntricas, o diferencialismo tampouco parece ser, em
si mesmo, um obstáculo para as pretensões missionárias e “civiliza-
doras”. É curioso também que Piéron acredite que a valorização da
diferença traria justamente um benefício epistemológico, na medida
em que permitiria a aplicação dos métodos explicativos no estudo
das sociedades primitivas, evitando assim o que crê serem os
impasses da “compreensão” (BP1: 43-5). Isso é o que pensa também
Charles Blondel que, em 1926, dedicou um pequeno livro à
apresentação das idéias centrais de Lévy-Bruhl. Para ele, essas idéias
teriam implicações sobre quatro dimensões fundamentais: ética,
uma vez que criticariam radicalmente o etnocentrismo ocidental que
considera os primitivos inferiores a nós, ainda que tenha que supô-
los mais parecidos conosco do que efetivamente o são para poder
fazê-lo (Blondel 1926: 11-3); metodológica, na medida em que as
discussões gerais e os preconceitos teóricos seriam abandonados
em benefício dos fatos tomados em si mesmos (idem: 15- 21);
teórica, pois poderiam justamente “nos fazer compreender as
particularidades da mentalidade primitiva [sem] suprimi-las no
mesmo golpe” (idem: 13); política, enfim, na medida em que
poderiam servir como orientação para o trabalho de colonização e
catequese (idem: 119-22).
Deste ponto de vista, talvez tenha sido Florestan Fernandes
quem tenha colocado com mais justiça os problemas e as soluções
direta ou indiretamente levantados e sugeridas por Lévy-Bruhl.
Trata-se de três questões fundamentais: “em primeiro lugar, surge
o problema mesmo da reconstrução da experiência por meios
endopáticos” (Fernandes 1954: 133). Em segundo, supondo que os
fatos etnológicos possam fornecer a ocasião para essa reconstrução
compreensiva, “como conseguir apreender os fatos em sua ‘exati-
dão’? Podemos realmente descobrir o que venha a ser ‘exato’ em um
contexto tão diferente de pensamento e de ação?” (idem). Enfim, o
mais importante, a necessidade de respeitar a “opacidade” intrínseca
dos fenômenos que se tenta penetrar: “o etnólogo pode enxergar
cada vez melhor ou mais profundamente nessa opacidade, se não
se abandonar à ilusão de tornar ‘claro’ o que é ‘escuro’“ (idem: 134).
É por isso que a posição de Lévy-Bruhl “não se confunde (…) com
a que poderia resultar de uma espécie de relativismo estreito” (idem:
232 Razão e Diferença

128): o diferencialismo não é necessariamente uma forma de


irracionalismo ou de condenar ao silêncio qualquer discurso sobre
as outras sociedades. Pelo contrário, talvez constitua a alternativa
para que esse “discurso sobre” possa se converter em um diálogo
fecundo com essas sociedades, diálogo entre “nós” e “eles” em certo
sentido, mas, sobretudo, diálogo interno a nós mesmos, a nossa
sociedade e a nosso pensamento devidamente instruído pelas lições
da alteridade.

A
Esse é, em grandes linhas, o contexto dos debates provocados
pelos trabalhos de Lévy-Bruhl entre aqueles que lhe são mais ou
menos próximos do ponto de vista cronológico. Deixei intencional-
mente de fora a polêmica entre Lévy-Bruhl e a escola sociológica
francesa, abordando-a apenas de passagem em algumas ocasiões.
Cabe agora analisá-la com mais profundidade, na medida em que
é uma relação complexa e importante do ponto de vista da história
das ciências sociais. No volume do Année Sociologique consagrado
aos anos 1909-1912, Durkheim escreveu a segunda das resenhas
que dedicou a um trabalho de Lévy-Bruhl. A primeira, de 1903,
analisava, como vimos, A Moral e a Ciência dos Costumes de uma
perspectiva extremamente positiva, que considerava as teses do
livro perfeitamente ajustadas aos postulados da escola sociológica
francesa. Já a resenha de 1912 — que analisa em conjunto As
Funções Mentais nas Sociedades Inferiores e As Formas Elementares
da Vida Religiosa — é, pelo contrário, bastante crítica. Ainda assim,
Durkheim reconhece que os dois livros recenseados possuiriam
“princípios fundamentais (…) em comum”: caráter histórico e social
das mentalidades; fundamento religioso da mentalidade primitiva;
origem social das noções lógicas (Durkheim 1912a: 679). As
diferenças, entretanto, seriam muito mais importantes, residindo
sobretudo no fato de Lévy-Bruhl ter estabelecido “uma verdadeira
antítese” entre a mentalidade primitiva e o pensamento lógico,
impedindo-se de perceber que, na verdade, o segundo só poderia
derivar da primeira: “as duas formas da mentalidade humana, por
mais diferentes que sejam, longe de derivarem de fontes diferentes,
nasceram uma da outra e são dois momentos de uma mesma
evolução” (idem). Do ponto de vista de Durkheim, portanto, a
diferença entre as duas formas de pensamento não poderia ser da
ordem da oposição, mas do desenvolvimento contínuo, a única
Malentendido sobre a Vida Filosófica 233

distância verdadeira entre ambas consistindo no fato de que os


primitivos tenderiam a acentuar mais tanto as aproximações quanto
os contrastes entre os seres, coisas e homens. Lévy-Bruhl só teria
retido esta propriedade pela metade, ao insistir em demasia em sua
lei de participação, esquecendo as descontinuidades, igualmente
exageradas, que a mentalidade primitiva também projetaria sobre o
universo (idem: 681). Essa pequena resenha não passa, contudo, da
retomada sintética das críticas elaboradas no sexto parágrafo do
Capítulo VII (Livro II) de As Formas Elementares da Vida Religiosa
(Durkheim 1912b: 336-42). Pretende-se aí descrever o “estado
mental” dos primitivos, o que obriga Durkheim a observar que de
seu ponto de vista, este estado seria “idêntico ao que M. Lévy-Bruhl
chama de lei de participação” (idem: 336, nota 1). Ele faz questão
de acrescentar que a passagem já havia sido escrita quando da
publicação de As Funções Mentais…, e que teria se limitado “a
acrescentar algumas explicações onde marcamos como nos separa-
mos de M. Lévy-Bruhl na apreciação dos fatos” (idem: 336).
As semelhanças entre os dois autores são de fato muito claras:
a mentalidade dos primitivos, para Durkheim, experimentaria um
“estado de indistinção” somente explicável pela crença em uma
“mesma essência” que constituiria todos os seres do universo (idem:
337). Mais do que isso, essas semelhanças são muito mais antigas e,
de alguma forma, avant la lettre. Desde 1903, no célebre artigo
escrito por Durkheim em colaboração com Mauss a respeito das
“formas primitivas de classificação”, são mencionadas entre outras
características do pensamento primitivo: o “estado de indistinção de
onde partiu o gênero humano” (Durkheim e Mauss 1903: 400-1); a
“confusão fundamental de todas as imagens, de todas as idéias”
(idem: 401); o fato de que nas “sociedades menos evoluídas que
conhecemos (…) deparamo-nos com uma confusão ainda mais
absoluta” (idem); o fato de que “tal estado mental não difere muito
sensivelmente daquele que, ainda agora, em cada geração, serve de
ponto de partida para o desenvolvimento individual” (idem: 402);
o fato de que “muitas dessas associações nos desorientam. Não são
fruto de uma lógica idêntica à nossa. Aí existem leis de que não
chegamos sequer a suspeitar” (idem: 412); as “idéias que se ligam
de acordo com uma lógica singularmente diferente da nossa” (idem:
431); o fato de que “é possível classificar outra coisa que conceitos
e de outro modo que o da conformidade com as leis do puro
entendimento. Pois, para que noções possam assim dispor-se
sistematicamente por razões de sentimento, é mister que não sejam
idéias puras, mas que elas mesmas sejam obra de sentimento” (idem:
234 Razão e Diferença

453). Expressões que parecem ter sido escritas por Lévy-Bruhl e que
devem ter certamente influenciado seu trabalho sobre a mentalida-
de primitiva.
No espírito de Durkheim e dos sociólogos de estrita obediên-
cia, esse tipo de observação está, contudo, a serviço de uma
modalidade de explicação muito diferente da de Lévy-Bruhl: “são
então necessidades sociais que fizeram se fundir noções que, à
primeira vista, parecem distintas, e a vida social facilitou essa fusão
pela grande efervescência que determina” (Durkheim 1912b: 339).
Ora, com a introdução da “sociedade” em um debate que poderia
parecer psicológico, acredita-se poder explicar quase tudo, por mais
estranho que o fato possa parecer quando observado em si mesmo.
Como afirma o próprio Durkheim, se nos limitarmos a considerar a
letra das fórmulas, essas crenças e essas práticas religiosas
parecem por vezes desconcertantes e pode-se ser tentado
a atribuir a elas uma espécie de aberração fundamental.
Mas, sob o símbolo, é preciso saber atingir a realidade que
ele figura e que fornece a ele sua significação verdadeira
(idem: 3).
Esta posição poderia, portanto, ser considerada “hermenêu-
tica”, no sentido preciso em que o que se privilegia é o significado
oculto do símbolo, tido como ininteligível em si mesmo. Ela só o é,
contudo, parcial e moderadamente, na medida em que se sabe
desde o início onde encontrar este significado, sempre do lado da
sociedade. Com esta operação tudo parece se tornar bem mais fácil
e o pensamento primitivo, por mais obscuro e ilógico que possa
parecer à primeira vista, pode perfeitamente ser encarado como
estando na origem do nosso próprio modo de pensar. Não no
sentido de que se desenvolveria sobre um plano mental autônomo
e que, através de uma suposta dialética interna, chegasse a evoluir
até o pensamento conceitual — processo que seria absolutamente
incompreensível e inaceitável para Durkheim. Ao contrário, é
apenas fazendo com que o pensamento, as “representações”,
dependam da sociedade que crê resolver o problema. Nascido de
“necessidades sociais”, só pode acompanhar o desenvolvimento e
as modificações da própria sociedade, modificações que em última
instância viriam a desembocar em nossa própria forma de organi-
zação social e, conseqüentemente, de pensamento. A “sociedade”
é o denominador comum que permite pensar a passagem entre
distintas formas de pensar e a doutrina da determinação morfológica
pretende claramente resolver um problema de evolução19. As
Malentendido sobre a Vida Filosófica 235

críticas dirigidas a Lévy-Bruhl têm como fundamento, portanto, o


fato deste ter supostamente exagerado as diferenças entre a
mentalidade primitiva e o pensamento ocidental, privando-se no
mesmo lance dos meios para explicar a transição de uma ao outro
— problema essencial para Durkheim e ao qual, como veremos,
Lévy-Bruhl não era indiferente, ao menos nesta época.
Mauss também dirigiu suas críticas aos trabalhos de Lévy-
Bruhl, enunciadas sobretudo por ocasião de dois debates com o
próprio autor na Sociedade Francesa de Filosofia, em 1923 e 1929.
Em sua essência, essas críticas levantam as mesmas questões e
apontam os mesmos problemas isolados por Durkheim, possuindo,
contudo, uma sistematicidade toda especial, bem como apresentan-
do detalhes e sugestões muito interessantes. Mauss faz basicamente
cinco censuras:
1. Ao limitar às sociedades primitivas o predomínio das “preligações”,
Lévy-Bruhl efetuaria um recorte equivocado, na medida em que
estas seriam características de todo e qualquer sistema social — além
de, como vimos, a própria noção de “primitivo” ser imprecisa
demais (Mauss 1923: 25).
2. Por não ter estendido sua pesquisa até a sociedade contemporâ-
nea, Lévy-Bruhl não teria sido capaz de demonstrar de modo
convincente sua tese acerca da heterogeneidade entre a mentalida-
de primitiva e o pensamento conceitual (idem: 25-6).
3. A pesquisa sobre o caráter geral da mentalidade primitiva
conduziria a resultados bem mais limitados e incertos que a
investigação específica a respeito do desenvolvimento histórico de
cada categoria do pensamento (idem: 27).
4. Por não ter recorrido ao modelo sociológico e de determinação
morfológica, Lévy-Bruhl teria permanecido no nível da pura descri-
ção, sem ter conseguido atingir a explicação do fenômeno que
estuda (idem: 27-8; Mauss 1929: 124-7).
5. A participação, noção central, não seria “somente uma confusão.
Ela supõe um esforço para confundir e um esforço para assemelhar
(…). Há desde a origem um Trieb, uma violência do espírito sobre
si mesmo para ultrapassar-se; há desde a origem a vontade de ligar”.
Desse ponto de vista, os primitivos seriam muito mais semelhantes
a nós do que Lévy-Bruhl gostaria de admitir (Mauss 1923: 28-9).
As respostas a essas críticas de Durkheim e Mauss são, à
primeira vista, bastante evasivas. Merllié (1989b: 506-9) observa que
Lévy-Bruhl teria mesmo se abstido de respondê-las, visando não
comprometer sua amizade com o primeiro, o que não teria
impedido que elas o tivessem abalado e que viessem a marcar
236 Razão e Diferença

profundamente as leituras de sua obra desde então efetuadas.


Vimos, contudo, que após a morte de Durkheim, Lévy-Bruhl
afirmou a Davy não poder aceitar a metafísica e a moral que
considerava implícitas nas teses durkheimianas, dizendo-se empi-
rista e relativista demais para poder concordar com elas (Davy 1957:
471). Além disso, por ocasião do debate direto com Mauss, ele aceita
explicitamente o caráter apenas descritivo de suas pesquisas,
sustentando que elas pretendiam somente “isolar os caracteres mais
gerais da mentalidade primitiva”, entendida como “tipo”, não como
entidade existente aqui ou ali (BP1: 29-30). Seis anos mais tarde, em
outro debate com Mauss, responderia à mesma objeção limitando-
se a citar uma frase de Hume: “minha sonda não é suficientemente
longa para atingir tais profundidades” (BP2: 127). Mas, o que se
ocultaria atrás de tanta modéstia e tanta prudência? É de outra coisa,
creio, que se trata aqui: do saudável questionamento das hipóteses
fortemente sociologizantes e de determinismo morfológico da
escola sociológica francesa — hipóteses de que o próprio Lévy-
Bruhl partiu em As Funções Mentais…, adotando-as, contudo, de
forma moderada. Mesmo assim, estas hipóteses foram sendo
abandonadas, com força e convicção cada vez maiores, ao longo do
desenvolvimento de sua obra. O quase silêncio em relação às
críticas se deve, talvez, à percepção da inutilidade do debate, na
medida em que os sociólogos de estrita obediência jamais poderiam
abandonar o sociologismo do mestre, nem mesmo concordar com
seu questionamento, ainda que formulado de modo apenas implí-
cito. Do ponto de vista de Lévy-Bruhl, esse sociologismo só podia
ser uma espécie de atalho para atingir outras formas de pensamento,
atalho inadequado e perigoso. Do mesmo modo que a escola
antropológica inglesa havia tentado facilitar as coisas ao supor uma
identidade mental a priori da natureza humana, a escola sociológica
francesa teria praticado uma simplificação excessiva, tratando
somente de deslocar seu eixo para o plano sociológico. A mentali-
dade primitiva, supostamente ininteligível em si mesma, poderia
deixar de constituir um problema desde que reconduzida e reduzida
à “sociedade”, onde uma teoria do desenvolvimento e complexifi-
cação dos tipos sociais a aguardava para assegurar uma fácil e falsa
tradução. Lévy-Bruhl é de fato muito mais empirista e relativista. Sua
intenção é enfrentar os fenômenos de ordem “mental” em seu
próprio plano de consistência, sem esvaziar a questão da alteridade
e da diferença, seja ao reduzi-la a um epifenômeno da identidade
da natureza humana, seja ao dissolvê-la na maior objetividade que
o social supostamente possuiria.
Malentendido sobre a Vida Filosófica 237

Assim se explica o aparente paradoxo apontado por Lenoir


(BP2: 127-30), que afirma que enquanto os “sociólogos” insistiriam
sobretudo na unidade do pensamento humano, Lévy-Bruhl, muito
pouco preocupado com a questão da determinação morfológica,
preferiria isolar apenas as diferentes formas que este pensamento
assume nas várias sociedades. O paradoxo é de fato aparente: o
social não é, para a escola sociológica francesa, apesar de tudo o que
já foi dito a esse respeito, apenas o locus da diversidade. Se
abandonarmos essa trivialidade, podemos perceber que o recurso
ao plano sociológico permite justamente pressupor um fundo de
identidade. Este plano não apenas seria comum a todos os homens,
como também, e principalmente, suas diferentes formas se
desenvolveriam umas a partir das outras, guardando necessaria-
mente as marcas de uma origem comum. Ora, ao limitar seu trabalho
a um plano quase psicológico, Lévy-Bruhl afasta esse tipo de
solução, tornando-se capaz de perceber e aceitar a real diversidade
humana que o sociologismo de alguma forma oculta. O mesmo
Lenoir (BP1: 39-42) tem razão ao atribuir a Durkheim uma posição
que considera “hegeliana”, na medida em que apela para a noção
de evolução, que supõe um substrato de identidade sobre o qual se
dariam transformações apenas graduais. Lévy-Bruhl, por outro lado,
operaria com a noção de transformação, extraída da biologia, não
da filosofia. A única objeção a esse raciocínio é que Lenoir
explicitamente compreende a idéia de transformação de um ponto
de vista lamarckiano, sustentável talvez em 1923, mas absolutamen-
te inconcebível hoje em dia. Eu diria antes, se quisermos permane-
cer na metáfora biológica, que ao abordar a questão da diferença e
da passagem entre a mentalidade primitiva e o pensamento
ocidental, Lévy-Bruhl está se referindo a uma evolução, mas no
sentido darwinista ou neo-darwinista do termo: transformações ou
mutações desprovidas de qualquer causa onipotente, capazes às
vezes de se estabilizar e perdurar em virtude de uma enorme
multiplicidade de fatores muito complexos. Com o neo-darwinismo,
como se sabe, o acaso recuperou uma parte de seus direitos e talvez
não seja excessivo afirmar que a recusa de Lévy-Bruhl em “explicar”
os fatos com que trabalha aponte para essa possibilidade de solução
da questão dos dois, ou mais, tipos de pensamento — uma espécie
de neo-darwinismo da razão.
Foi Georges Davy (1931: 206-23) quem tentou estabelecer a
comparação mais abrangente entre o que denominou “o ponto de
238 Razão e Diferença

vista” de Durkheim e de Lévy-Bruhl a respeito das relações entre


“mentalidade primitiva e mentalidade racional”. Os dois autores se
oporiam em quatro pontos básicos:
Durkheim,
1. defenderia uma concepção bastante clássica da explicação
científica, acreditando só poder existir ciência do universal; para isso,
2. era obrigado a reconhecer a realidade social — universal —
subjacente às ilusões do simbolismo, bem como
3. o valor que qualquer explicação da realidade possuiria em si
mesma, independente de ser ou não falsa; enfim,
4. isso só poderia desembocar de forma coerente em uma concep-
ção da história humana como progresso mais ou menos contínuo.
Lévy-Bruhl, ao contrário,
1. recusaria o caráter necessariamente universal da ciência, defen-
dendo a hipótese de que se uma generalização é possível só poderia
ser estabelecida através de abstrações progressivas; o que significa dizer
2. que o estudo da mentalidade primitiva não depende de uma
referência a um universal qualquer, o que lhe permitiria sustentar tanto
3. que os símbolos e as explicações da realidade podem perfeita-
mente dispensar qualquer valor objetivo, quanto
4. que o processo de desenvolvimento pode ser descontínuo
(idem: 220-1).
Essas oposições se manifestariam especialmente nas diferen-
tes formas através das quais esses autores teriam concebido o
dualismo que ambos igualmente estariam postulando. Como já foi
observado, para Durkheim tratar-se-ia de um “dualismo de super-
posição”, ou seja, da tese central para a sociologia durkheimiana que
diz que o homem é sempre duplo (“homo duplex”), uma vez que
nele coexistiriam sempre o individual e o coletivo, ainda que em
dosagens diferentes de acordo com o estágio de evolução. Lévy-
Bruhl, ao contrário, postularia um “dualismo de divergência”, que
separaria quase completamente o “lógico” do “prelógico” (idem:
221-3). O próprio Davy é bastante cuidadoso no momento de avaliar
os méritos respectivos dos dois modelos que acredita ter isolado,
afirmando que “no estado atual da ciência sociológica” seria
absolutamente impossível decidir com certeza qual dos dois seria o
mais adequado e verdadeiro (idem: 211).
O problema é que se de fato parece incontestável que, de um
ponto de vista estritamente sincrônico, Lévy-Bruhl afirme uma
“divergência” entre a mentalidade primitiva e o pensamento ociden-
tal, tudo se complica quando tenta dar conta do que chama
“passagem aos tipos superiores de mentalidade” — tarefa de que se
Malentendido sobre a Vida Filosófica 239

ocupará no final de As Funções Mentais nas Sociedades Inferiores.


Nesse momento, emergirá uma grande dificuldade, pois se a
distinção que todo o livro se esforçou por estabelecer fosse tão
rígida quanto parece, tornar-se-ia realmente impossível entender
como uma mentalidade chamada de “primitiva” poderia se modifi-
car e transformar a ponto de dar lugar ao pensamento conceitual e
lógico. Por mais que Lévy-Bruhl pretenda se afastar do evolucionis-
mo simplista que tanto critica, não será capaz de abandoná-lo por
completo neste momento, contentando-se em negar que o processo
de desenvolvimento possa ser concebido de modo tão simples e
tranqüilo como teriam feito os evolucionistas — haveria retrocessos,
estagnações e períodos de desvio (FM: 447-9), o que é muito pouco
para distingui-lo dos defensores da doutrina da evolução unilinear.
Lévy-Bruhl não nega, portanto a existência do processo evolutivo
em si, limitando-se a acrescentar que para que possa ter lugar seria
preciso que as “sínteses coletivas” primitivas se dissolvessem, que
as “preligações” que dominam a mentalidade primitiva se desfizes-
sem, abrindo o espaço para representações mais ajustadas ao
mundo objetivo e para a emergência do pensamento lógico (FM:
116). Para isso, contudo, é preciso reconhecer que a diferença entre
essa mentalidade e esse pensamento não poderia ser tão profunda
quanto o próprio Lévy-Bruhl por vezes parece ter suposto e que seu
“dualismo de divergência” não poderia ser uma posição absoluta.
A solução encontrada reside em uma espécie de “dualismo de
superposição”, que Davy atribui exclusivamente a Durkheim.
Abandonando o plano do modelo e encarando a mentalidade
empiricamente existente em cada sociedade concreta, tudo se passa
como se o lógico e o prelógico coexistissem sempre, variando
apenas a quantidade respectiva de cada um e, conseqüentemente,
seu caráter dominante ou não (FM: 450-1). Essa coexistência,
sempre contraditória aliás, seria certamente muito mais tranqüila
enquanto a mentalidade prelógica domina, na medida em que uma
de suas características centrais seria a “indiferença à contradição” —
o que teria como conseqüência que o fato de algumas representa-
ções ou explicações serem produzidas a partir de um ponto de vista
heterogêneo ao seu pouco ou nada poderia afetá-la. Ao contrário,
quando o pensamento lógico assume essa função de dominância,
as contradições entre diferentes formas de representar ou explicar
a natureza seriam imediatamente percebidas, o que, não podendo
mais ser tolerado por uma forma de pensar que abomina a
contradição, acabaria levando à eliminação gradual das estruturas
prelógicas (idem). Lévy-Bruhl acredita, contudo — e este ponto é
240 Razão e Diferença

para ele muito importante — que o processo é assintótico, que a


eliminação do prelogismo não pode chegar a ser inteiramente
cumprida, a mentalidade primitiva permanecendo como uma
espécie de resíduo perpétuo (idem). Ainda que ausente no plano
conceitual e cognitivo, subsistiria ao nível do afeto e das emoções.
Não se trata, contudo, de uma subsistência e de uma permanência
tributáveis a uma força de inércia qualquer, ou a uma pura
resistência oposta pela tradição — como é o caso das “sobrevivên-
cias” de que falam os evolucionistas. Essas formas corresponderiam
antes a uma verdadeira necessidade humana, que o intelecto por si
só jamais seria capaz de preencher: a necessidade da “experiência
de uma posse íntima e completa do objeto” (FM: 453).
Ora, é justamente essa perspectiva que responde pelo caráter
ainda sociológico de As Funções Mentais…, no sentido em que o
objetivo aí buscado ainda parece ser esclarecer algumas questões
imanentes a nossa própria sociedade, mesmo que o recurso aos
dados extraídos da observação dos primitivos seja essencial para
que essa finalidade possa ser atingida. A grande questão que se
pretende esclarecer é um duplo problema que interessava a Lévy-
Bruhl desde A Idéia de Responsabilidade: a permanência das
doutrinas ditas “do sentimento” e as resistências ao progresso
material, intelectual e moral. Problema que teria sido em geral mal
colocado, uma vez que os participantes do debate — intelectualistas
e anti-intelectualistas — sempre se teriam mostrado muito pouco
preocupados com a análise objetiva e científica dos diferentes tipos
de mentalidade humana, contentando-se em pressupor uma natu-
reza humana “imutável e idêntica a si mesma”. Postulado que Lévy-
Bruhl pensa ter desmontado através do “estudo comparado da
mentalidade das diversas sociedades humanas”, que teria revelado
que o homem seria, na verdade, um ser cindido contra ele mesmo
e que as funções intelectuais jamais poderiam se conciliar plena-
mente com — ou mesmo dominar completamente — o lado afetivo
da existência. Todos os dilemas, todos os conflitos e resistências,
adviriam desse incontornável dualismo da natureza humana, diante
do qual poderíamos saber ao menos como nos comportar se
tomássemos consciência de sua natureza intrínseca e de seu caráter
inexorável (FM: 454-5). As Funções Mentais nas Sociedades Inferi-
ores pode muito bem, do ponto de vista de seu objeto concreto, ser
um livro de etnologia; seu objetivo, contudo, é claramente sociológi-
co, psicológico e mesmo moral.
É possível discernir, portanto, no interior do pensamento de
Lévy-Bruhl, uma ambigüidade, quase uma contradição, que se
Malentendido sobre a Vida Filosófica 241

tornará cada vez mais importante e angustiante ao longo de sua


obra. Quando assume um ponto de vista puramente analítico e
sincrônico, parece realmente adotar um “dualismo de divergência”;
quando se trata, por outro lado, de tentar dar conta da passagem
entre a mentalidade primitiva e o pensamento conceitual, a ênfase
passa a incidir sobre a coexistência dessas duas formas de pensar
e a “divergência” se converte em “superposição”. O afetivo e o
intelectual assumem os lugares que Durkheim reservava ao coletivo
e ao individual, o que significa que todas as diferenças entre os dois
autores se apagariam, na medida em que, como se sabe, a sociologia
durkheimiana postula uma homologia entre essas duas oposições.
É por isso, talvez, que o modelo proposto por Lévy-Bruhl para dar
conta da passagem concreta entre os dois tipos de pensamento se
pareça tanto com o evolucionismo da escola sociológica francesa,
bem mais que com o da escola antropológica inglesa. Ele próprio
não afirma que para que as “sínteses” e “preligações” primitivas
possam desaparecer, é necessária uma transição de um estágio onde
o coletivo dominaria completamente para outro, em que o indivíduo
romperia seus laços de dependência e se tornaria autônomo,
condição para que conceitos individuais tomem o lugar das
representações coletivas (FM: 430-1)? Eis como tenta descrever, de
forma que reúne todas as noções trabalhadas ao longo do livro,
como se daria concretamente este processo. A mentalidade primi-
tiva conheceria dois tipos essenciais de participação, a dos indiví-
duos com os seres e coisas do mundo e a dos indivíduos com o
grupo social. Dado que esta segunda forma seria dotada de caráter
objetivo (na medida em que, nas sociedades primitivas o indivíduo
seria de fato subsumido pelo grupo), segue-se que seria a única
capaz de determinar todos os demais tipos de participação. Na
medida em que o indivíduo se libera, do ponto de vista da
organização concreta da vida social, dos constrangimentos que a
sociedade lhe impunha, a consciência individual tenderia progres-
sivamente a se afirmar contra as representações coletivas, até que
o pensamento conceitual viesse finalmente a se estabelecer como
dominante. Para Lévy-Bruhl, esse processo conheceria três etapas:
a da “participação vivida”, mais sentida que concebida claramente;
a da “participação representada”, que implicaria já certo destaca-
mento do indivíduo em relação ao sentimento de uma participação
íntima e total com o universo; enfim, o “conceito” (FM: 442-7). Como
A Moral e a Ciência dos Costumes, também o livro de 1910 se encerra
com um esquema em tudo semelhante à lei dos três estados de
Comte.
242 Razão e Diferença

A
As Funções Mentais nas Sociedades Inferiores levantam pra-
ticamente todos os problemas com os quais Lévy-Bruhl irá se
debater pelo resto da vida, problemas que tentará resolver com
insistência bastante incomum. É muito difundida, como vimos, a
versão de que haveria um corte interno a sua obra, com o
progressivo abandono das posições excessivamente dogmáticas do
início da pesquisa em benefício de teses mais moderadas e
relativistas. Isso não é inteiramente falso. Se olharmos, contudo, de
outra perspectiva, tudo parece estar já presente nesse “primeiro”
livro — donde seu caráter ambíguo, seus avanços e recuos, seus
posicionamentos ora afirmados ora negados. Escrito aparentemente
para tentar esclarecer dilemas do próprio autor, parece ter tido, ao
contrário, o efeito de deslocá-los e aprofundá-los. Lévy-Bruhl
desejava saber, em última instância, por que o racionalismo e o
progresso não triunfam tão fácil e tão completamente quanto seria
de se esperar, ao menos para um homem de sua época, formado
numa espécie de culto a esses valores. Ao acreditar ter localizado a
resposta para essa questão no que considera a necessidade humana
de participar do mundo — além de simplesmente compreendê-lo
e transformá-lo — acabou, contudo, levantando para si mesmo
problemas muito mais graves e muito mais difíceis de serem
solucionados. O que viria a ser essa participação encarada em si
mesma? Como a humanidade pôde ter vivido durante tanto tempo
mergulhada no e misturada com o universo? Como algumas
sociedades humanas podem ainda estar vivendo esse tipo de
relação? Como, em nossa própria sociedade e em nosso próprio
pensamento, a participação poderia, ou deveria, ter um lugar? As
respostas oferecidas em 1910 logo parecerão insatisfatórias e este
talvez seja um motivo a mais para dar razão a Durkheim quando não
reconhece seu próprio pensamento em um esquema tão parecido
com o que havia construído. É que ao contrário dele, Lévy-Bruhl
sempre se permitiu a dúvida e a incerteza. Mais do que isso, sempre
permitiu que os fatos e os “primitivos” o conduzissem a questiona-
mentos, problematizações e investigações cujo alcance estava longe
de imaginar quando começou a levar a filosofia a sério.
Malentendido sobre a Vida Filosófica 243

Notas
1. Os termos são de Claude Lévi-Strauss (1946: 543) e serão detalha-
damente discutidos adiante.
2. Vale a pena comparar com a quase-definição de Durkheim: as
representações coletivas seriam “expressamente obrigatórias” e exteriores em
relação às consciências individuais (…) porque não derivam dos indivíduos
considerados isoladamente, mas de sua cooperação, o que é bastante diferente
(…), os sentimentos privados apenas se tornam sociais pela sua combinação”
(Durkheim 1898: 39).
3. “O relativismo cultural seria uma puerilidade se, para reconhecer a
riqueza das civilizações diferentes da nossa, e a impossibilidade de atingir um
critério filosófico ou moral para decidir acerca do valor respectivo das escolhas
que conduziram cada uma delas a reter certas formas de vida e pensamento
renunciando a outras, ele se acreditasse obrigado a tratar com condescendên-
cia, senão com desdém, o saber científico que, quaisquer que sejam os males
que acarretou e aqueles ainda mais graves que se anunciam, não deixa de
constituir um modo de conhecimento do qual não se poderia contestar a
absoluta superioridade” (Lévi-Strauss 1971: 569).
4. Merllié (1989a: 422-3) cita a esse respeito um trecho de uma entrevista
concedida por Lévy-Bruhl a um jornal francês: “no sentimento de superiorida-
de que tantos brancos se atribuem sobre o resto da humanidade, entra
naturalmente a consciência de tudo o que representa o magnífico desenvol-
vimento de nossas ciências e nossa civilização. Mas, entra também uma parte
de presunção, fundada sobre uma incompreensão ingênua e sobre a ignorân-
cia que faz com que se desconheça e despreze o que há de desenvolvido,
delicado e freqüentemente admirável nas línguas, artes e instituições dessas
outras porções da humanidade”.
5. A respeito de todo este ponto, além do já citado artigo de H. Clastres
(s/d), vale a pena ver também Clastres 1978, Stocking 1968: caps. 2 e 3, e Voget
1973: 7-25.
6. Como se sabe, para Kant, a sensação deve obrigatoriamente
atravessar duas mediações para ser articulada de forma coerente: a percepção,
com suas “formas da sensibilidade”, e o entendimento, com suas “categorias”.
7. Note-se que Lévy-Bruhl utiliza o termos “percepção” em um dos
sentidos clássicos da psicologia filosófica, como intermediária entre a “percep-
ção sensível” (ou sensação) e a “percepção nocional ou mental” (cf. Ferrater-
Mora).
8. Como diz Jorion (1989: 515), “Lévy-Bruhl ofereceu à etnologia o
objeto de estudo mais central para seu empreendimento intelectual: a
antropologia dos modos de pensamento”.
9. Trata-se do primeiro artigo de Evans-Pritchard dedicado à análise do
pensamento de Lévy-Bruhl, Lévy-Bruhl’s Theory of Primitive Mentality, publi-
cado no Cairo. Como diz Needham (1972: 161, nota 5), este texto é “dificílimo
de ser obtido” e, de fato, não consegui ter acesso a ele. Não me parece,
contudo, a partir da leitura de alguns trechos citados aqui e ali, que seja muito
diferente de Evans-Pritchard 1965 (111-38) e Evans-Pritchard 1981 (119-31),
textos que, como já foi dito, são praticamente idênticos.
244 Razão e Diferença

10. Mesmo no texto publicado em 1981, Evans-Pritchard, após afirmar


que “não há antropólogo de reputação que aceite hoje essa teoria de dois tipos
distintos de mentalidade”, faz questão de encerrar sua exposição dizendo que

ao contrário do julgamento da maior parte dos antropó-


logos ingleses, considero os escritos de Lévy-Bruhl como
um grande estímulo para a formulação de novos proble-
mas e considero sua influência bastante frutífera, não só
na teoria antropológica mas também ao direcionar a
atenção dos pesquisadores de campo para um novo
conjunto de problemas. Pois mesmo discordando de suas
opiniões, temos que reconhecer que elas não são as fáceis
explicações dos antropólogos sociais que obstruem todo
pensamento devido a sua futilidade e finalismo, e acabam
por não ser mais do que uma reafirmação em outros
termos dos problemas que devem ser solucionados
(Evans-Pritchard 1981: 131).
Evans-Pritchard parece aqui falar por experiência própria, já que, como
lembra Mary Douglas (1980: 18-19), sempre reconheceu a importância de
Lévy-Bruhl para seu próprio trabalho, inclusive no que diz respeito à pesquisa
de campo.
11. Respondendo, alguns anos mais tarde, a uma questão desse tipo
— Rivet objeta durante um debate que a noção de alma que ele consideraria
como “ocidental” não é generalizada — Lévy-Bruhl afirma que “é certo que não
posso penetrar nos pensamentos mais íntimos. De que se compõe precisamen-
te a representação da alma no espírito do francês médio? Eu ficaria bem
embaraçado em dizê-lo com precisão, mesmo supondo que isso seja possível.
Tomei como tipo a idéia espiritualista que é geralmente ensinada. Eu não
sustentaria, contudo, que todo mundo a adota” (BP2: 117).
12. Penso que esse ponto deveria ser levado em consideração em
qualquer leitura séria dos textos de Lévy-Bruhl. Expressões como “nossa
mentalidade”, “nossa sociedade” e até mesmo “mentalidade primitiva”, devem
ser atribuídas somente a dificuldades de vocabulário e a hábitos terminológicos
muito arraigados, não a uma tentativa de considerá-las como generalizadas ou
substantivas. É nesse sentido que devem ser tomadas na obra de Lévy-Bruhl,
bem como neste trabalho.
13. Cf. também, p.152: “Prelógico, nós o vimos, não quer dizer anti-
lógico”. E, já em 1923, referindo-se à mesma noção: “esse termo, empregado
na falta de um melhor, não significa que a mentalidade primitiva constitua uma
espécie de estado anterior, no tempo, à aparição do pensamento lógico. A
mentalidade primitiva não é anti-lógica; ela não é também alógica. Chaman-
do-a prelógica, quis somente fazer entender que ela não se sujeita, como a
nossa, a evitar a contradição, mesmo flagrante” (BP1: 18).
14. É por isso que, contrariando um pouco as regras gramaticais,
mantive em português a forma “prelógico”, sem hífen, como ocorre em francês.
Ao evitar a separação, pretendi que o caráter não-cronológico da expressão
ficasse imediatamente claro, evocando termos como “preconceito” que,
Malentendido sobre a Vida Filosófica 245

embora do ponto de vista etimológico evoquem é claro uma anterioridade


temporal, foram quase convertidos pelo uso a um sentido que dispensa essa
dimensão.
15. Respondendo, em 1929, a uma pergunta de Brunschvicg acerca da
relação da “sua” participação com as filosofias platônica e de Malebranche,
Lévy-Bruhl pede desculpas a “Platão e aos platônicos, se lhes causei alguma
dificuldade ao empregar a palavra ‘participação’ para um uso que não seria
suficientemente nobre. Tomei o termo por minha conta, e em meu pensamento
ele não implica de forma alguma uma interpretação da metaxis platônica. Já
tive muitas dificuldades para fixar o sentido dos documentos etnológicos que
preciso utilizar. Que o céu me proteja de fornecer uma teoria do platonismo”
(BP2: 131-2).
16. Como afirmei acima, essa discussão específica sobre as “funções
mentais” dos primitivos não terá muito futuro na obra de Lévy-Bruhl. Sintetizei-
a bastante, visando apenas fornecer ao leitor uma perspectiva de conjunto em
relação a este momento de seu pensamento. Sobre todo este ponto, ver
especialmente FM: 116-48.
17. Bergson se refere aqui a uma idéia de Lévy-Bruhl que só será
claramente enunciada em A Mentalidade Primitiva, de 1922: a hipótese de que
o pensamento primitivo é ultra-determinista, não conhecendo portanto o acaso
— princípio que será analisado adiante.
18. É preciso observar que embora seja verdade que uma certa
indecisão está sempre presente na obra de Lévy-Bruhl, Davy parece esquecer,
ao situá-la entre o unitarismo e o dualismo, que uma terceira possibilidade é
sempre possível e que a ambigüidade não se limita a essas duas alternativas,
já que uma tentação pelo pluralismo também faz parte do horizonte de Lévy-
Bruhl.
19. Entretanto, como diz Merleau-Ponty (1955: 184), pode ocorrer que
“quando se vai do religioso para o social não se passa do obscuro para o claro,
não se explica nem um nem outro: reencontra-se, sob um outro nome, a mesma
obscuridade ou o mesmo problema”.
246 Razão e Diferença
5
Perigo da Linguagem para a
Liberdade de Expressão
Etnologia e Antropologia

Cada palavra é um preconceito.


Humano Demasiado Humano

Que os interesses intelectuais de Lévy-Bruhl se desloquem


progressivamente da filosofia para a moral e a sociologia, destas
para a etnologia, parece bastante óbvio a partir da análise das obras
escritas entre 1884 e 1910. A Moral e a Ciência dos Costumes procura
demonstrar a esterilidade de uma reflexão puramente metafísica,
indiferente aos dados concretos. O trabalho que conduz até As
Funções Mentais nas Sociedades Inferiores surge como conseqüên-
cia quase natural dessa constatação, o objetivo último deste livro
sendo, como vimos, de ordem sociológica, moral e filosófica, no
sentido amplo do termo. Trata-se de compreender e explicar certos
fenômenos intrínsecos a nossa própria sociedade e pensamento,
fenômenos que parecem se afastar singularmente dos padrões tidos
como normais ou desejáveis pela reflexão científica e filosófica. Para
isso, contudo, Lévy-Bruhl se viu obrigado a recorrer a elementos
fornecidos pela observação das sociedades “inferiores”, que embora
pareçam ocupar o primeiro plano da investigação, funcionam
sobretudo como uma espécie de revelador de certas características
do mundo ocidental. Na verdade, creio que as sociedades primitivas
só virão constituir efetivamente o objeto ou o objetivo principal de
Lévy-Bruhl a partir de 1922, com a publicação de A Mentalidade
Primitiva. Ainda que o interesse pelas questões próprias a sua
sociedade jamais seja abandonado por inteiro, o fato é que as
sociedades primitivas passarão a ocupar o primeiro plano da
investigação, mas para isso será preciso passar a encará-las de modo
mais respeitoso que anteriormente. Em lugar de buscar nos primi-
248 Razão e Diferença

tivos um “negativo” do pensamento conceitual ocidental, Lévy-


Bruhl, como gosta de repetir, se deixará levar pelos fatos, que
começarão a aparecer cada vez mais em sua real complexidade e
estranheza. Nesse sentido, o pensamento primitivo poderá ser
encarado em sua positividade, como diferente do nosso — alguns
diriam hoje em dia, talvez, alternativo a ele. As lições deste
confronto com os fatos serão deixadas a cargo do leitor. Não se trata,
como adiantei, de ruptura ou mesmo evolução, mas, para usar
novamente a linguagem de Deleuze, de uma transformação pro-
vocada por forças que desde o início estavam presentes na obra,
forças que a obrigaram a “mudar de nível”. Lévy-Bruhl teve a
coragem e a sabedoria de deixar fluir estas forças, permitindo que
o transportassem em uma aventura intelectual de cujo alcance ele
próprio talvez não suspeitasse.
O problema é que esse ponto de vista parece se chocar com
a maneira usual pela qual se tenta dar conta do desenvolvimento do
pensamento e da obra de Lévy-Bruhl. Como já foi dito, é costume
enfatizar um corte interno a esse desenvolvimento, tentando
mostrar que o autor teria abandonado — para o bem ou para o mal
— os princípios que inicialmente o teriam norteado. E não deixa de
ser verdade que ele próprio, por vezes, propõe essa interpretação
de seu trabalho. Mesmo um autor tão simpático a seu esforço quanto
Evans-Pritchard, pôde chegar a sustentar que ele parece
ter modificado lentamente sua visão original à luz das
modernas pesquisas de campo; era um homem modesto
e humilde. Ao fim da vida, pode ter modificado sua
posição ou pelo menos ter considerado esta possibilida-
de, se é que podemos julgar a partir dos seus Carnets
póstumos (Evans-Pritchard 1965: 112).
A verdade é que o próprio Lévy-Bruhl parece ter autorizado
este tipo de interpretação. Assim, nos Carnets póstumos, a “renún-
cia” explícita a antigas posições e terminologias é um tema
recorrente (cf., por exemplo, CL: 107-9; 131-5; 163-4; 251-2; para
mencionar apenas os trechos mais claros a esse respeito). Do
mesmo modo, a carta endereçada a Evans-Pritchard em 1934, parece
se penitenciar por alguns excessos iniciais, afirmando que desde há
algum tempo o autor procurava adotar posições mais moderadas.
Apesar de tudo, essa não foi sempre sua opinião a respeito do
desenrolar de seu trabalho. A Mentalidade Primitiva abre com a
constatação de uma absoluta continuidade entre este livro e As
Funções Mentais… — as duas obras tratariam, na verdade, “do
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 249

mesmo assunto, embora de um ponto de vista diferente” (MP: I). O


Avant-Propos de A Alma Primitiva, por sua vez, apresenta seu
objeto como devendo ser estudado “à luz dos resultados obtidos nos
trabalhos precedentes”. O Sobrenatural e a Natureza… pretende
constituir como “objeto próprio” do estudo certos traços da menta-
lidade primitiva que haviam sido apenas evocados “nas obras
precedentes”, não mencionando, contudo, qualquer mudança de
posição (SN: VII). A Mitologia Primitiva declara que irá estudar os
mitos das sociedades primitivas, mas apenas “em sua relação com
a natureza e a orientação constante da mentalidade própria aos
‘primitivos’” (MyP: V). E mesmo A Experiência Mística… — publi-
cado apenas um ano antes da morte de seus autor, época em que
é redigida a maior parte dos “carnets” a que se teve acesso — afirma
que o trabalho aí desenvolvido é uma “continuação natural das
obras precedentes”, não se afastando “do modo de formular as
questões nem do método geral (…) observados até o presente” (ES:
1), marcando de forma explícita sua continuidade com As Funções
Mentais… (ES: 2). Enfim, nos debates travados na Sociedade
Francesa de Filosofia, Lévy-Bruhl também não deixa por um só
instante de sustentar a unidade e a continuidade de sua inspiração
e de seu trabalho (cf. BP1: 17-9; BP2: 105-12).
Além dos depoimentos do autor, pelo menos dois comenta-
dores compreenderam desta forma, como verdadeira continuidade,
a seqüência dos livros que se escalonam entre 1910 e 1938. Davy,
após ter sugerido que uma certa descontinuidade marcaria a obra
(Davy 1931: 248-9), parece ter mudado de opinião, demonstrando,
em 1957, uma série de semelhanças entre idéias defendidas em As
Funções Mentais… e certas posições supostamente auto-críticas dos
Carnets (Davy 1957: 479), permitindo-se concluir que “Lévy-Bruhl
não mudou tão radicalmente (…) e (…) que as sementes de sua
evolução estavam semeadas desde seu primeiro livro” (idem: 487).
Se Davy só faz essa constatação para lamentar a relativa incapaci-
dade de escapar dos dilemas que marcavam esse pensamento
(idem: 492-3), essa não é a posição de Florestan Fernandes, que
supõe igualmente que a continuidade da obra de Lévy-Bruhl é bem
maior do que se costuma imaginar. Acredita, contudo, que o autor
acabou sendo excessivamente benevolente com seus críticos:
“Lévy-Bruhl acabou indo além dos críticos, mutilando às vezes
desnecessariamente a integridade de sua contribuição à etnologia”
(Fernandes 1954: 136). Mesmo reconhecendo que as ressalvas que
teria feito se dirigiram sobretudo a questões de princípio, deixando
intactas as contribuições substantivas, Florestan Fernandes supõe
250 Razão e Diferença

que elas teriam impedido a “síntese” que Lévy-Bruhl poderia e


deveria ter elaborado (idem: 138).
Como já foi dito, a questão da continuidade e descontinuidade
é sempre difícil, seja quando situada entre pensadores ou épocas
distintas, seja quando está em jogo o conjunto de uma obra ou de
um pensamento que se desdobram por longo período de tempo.
Talvez a própria dificuldade excessiva da questão seja um signo de
que se trata de um falso problema. Aquele que “continua” algo, deve
apresentar um mínimo de originalidade que lhe garanta atenção e
repercussão; o que “rompe”, o faz necessariamente contra algo que,
desse modo, permanece como obstáculo ou desafio. No caso
específico de Lévy-Bruhl, é evidente que ele jamais colocou a
seqüência de suas obras sob a marca da ruptura absoluta ou, ao
menos, que jamais teve consciência de que coisa semelhante se
tenha processado. Isso é verdadeiro tanto no que diz respeito a sua
inserção na história intelectual em geral quanto ao desenvolvimento
de seu próprio pensamento. No primeiro caso, procurou explicita-
mente inserir sua contribuição numa tradição que remonta pelo
menos até o iluminismo, à qual teria incorporado outras filosofias
e, é claro, a antropologia social e cultural; no segundo, as passagens
acima citadas falam por si mesmas. Ao mesmo tempo, e paradoxal-
mente, ninguém parece ter sido tão atento à necessidade de
modificações quanto ele: aproveitar e desenvolver os elementos
filosóficos e científicos recolhidos a partir de uma seleção muito
bem direcionada; ao mesmo tempo, retificar estes elementos e,
sobretudo, retificar a si mesmo, num processo quase infinito. Não
se trata de uma posição intermediária entre “continuísmo” e “descon-
tinuísmo”: trata-se de outra maneira de encarar a história das idéias.
Procurarei ser moderadamente fiel a essa inspiração do autor,
tentando da melhor forma possível dar conta da tarefa de que ele
próprio se eximiu, ao deixá-la a “outros, mais desinteressados no
caso”: abordar o conjunto de sua obra sem “cair mais ou menos
ingenuamente nas armadilhas ainda que um pouco grosseiras
montadas pelo amor-próprio” (CL: 163). Analisando cada um dos
livros que constituem, de 1922 a 1938, o trabalho propriamente
etnológico e antropológico de Lévy-Bruhl, tentarei combinar essa
abordagem cronológica com uma perspectiva mais sistemática, que,
privilegiando os Carnets — única oportunidade em que o autor
realmente levanta a hipótese de modificação profunda em seu
pensamento — tratará também de organizar os temas e idéias
contidos nos livros anteriores. Será possível, deste modo, apreender
e avaliar globalmente o conjunto da obra, bem como — o que é
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 251

menos importante — o grau de adequação das interpretações


continuístas ou descontinuístas a seu respeito.

A
Entre As Funções Mentais nas Sociedades Inferiores e A
Mentalidade Primitiva — livro que, provavelmente devido a seu
título, consagrou Lévy-Bruhl como o teórico do pensamento primi-
tivo — existe um intervalo de doze anos, devido aparentemente à
eclosão da Iª Guerra Mundial. Apesar disso, o livro de 1922, além
de afirmar explicitamente sua perfeita continuidade com o de 1910,
esclarece que este
deveria já ter se chamado A Mentalidade Primitiva. Mas,
uma vez que as expressões ‘mentalidade’ e mesmo
‘primitivo’ não haviam ainda entrado, como hoje, na
linguagem corrente, renunciei então a este título. Eu o
retomo para esta obra. Dizer que ela é a continuação da
precedente é excessivo. Todas as duas tratam do mesmo
objeto, ainda que de um ponto de vista bem diferente
(MP: I)1.
Na verdade, as diferenças de “ponto de vista” entre os dois
livros se devem ao fato de que enquanto As Funções Mentais… se
dedicam a uma crítica da aplicabilidade do princípio de identidade
para a compreensão e descrição do pensamento primitivo, A
Mentalidade Primitiva deslocará a questão na direção de uma
análise, igualmente crítica, da possibilidade de se tomar a noção de
causalidade, tal como a entendemos, como categoria constitutiva
desse pensamento e pertinente para seu estudo (idem). Disso deriva
sem dúvida o tema central do livro, o ocasionalismo próprio à
mentalidade primitiva. Conhece-se a origem do termo: Malebranche
o propôs como uma das soluções para o dualismo cartesiano,
sustentando que a alma e o corpo só poderiam se relacionar se a
cada movimento de um dos dois, a potência divina interviesse,
comunicando este movimento ao outro termo do par. Nesse sentido,
tudo o que a linguagem vulgar considera causa, não passa de
ocasião para a manifestação do único princípio realmente ativo,
Deus — de tal modo que as “causas secundárias” não teriam
importância diante desta causa primeira (cf. Ferrater-Mora). É claro
que o ocasionalismo primitivo estaria tão distante do de Malebran-
che quanto a noção de participação mística estava da filosofia
252 Razão e Diferença

platônica. Isso porque, diz Lévy-Bruhl, para nós ocidentais (e isso


é válido mesmo para filósofos tidos como “místicos”, como Platão
ou Malebranche), “a natureza no meio da qual vivemos é, por assim
dizer, intelectualizada antecipadamente. Ela é ordem e razão, como
o espírito que a pensa e que nela se move” (MP: 17). Já para o
primitivo, a “natureza” propriamente dita sequer chega a existir:
todos os objetos e todos os seres estão implicados em uma
rede de participações e exclusões místicas (…). Se ele se
interessa por um fenômeno, se não se limita a percebê-lo,
por assim dizer passivamente e sem reagir, logo imagina-
rá, como que por uma espécie de reflexo mental, uma
potência oculta e invisível da qual este fenômeno é a
manifestação (MP: 17-8)2.
Em outros termos, assim como a idéia platônica de participa-
ção procurava conciliar duas esferas da realidade — divisão que não
existiria para a mentalidade primitiva — o ocasionalismo de
Malebranche pretendia resolver um dualismo que comprometia o
princípio de causalidade — noções igualmente inexistentes no
pensamento dos primitivos. Lévy-Bruhl está portanto seguro de não
ter tomado nada de empréstimo a esses filósofos quando fala de seu
objeto.
Se o universo é concebido pela mentalidade primitiva como
um composto de relações e elementos acima de tudo místicos, isso
só poderia significar que as próprias relações de causa e efeito
devem ser pensadas aí sob a forma de uma “causalidade mística”
(MP: 89). O mundo material e objetivo — aquele que privilegiamos
— só poderá ser encarado, com seus fenômenos e leis, como um
meio que propicia as ocasiões para a manifestação das potências
invisíveis e misteriosas, de tal forma que a “causalidade” não tem
necessidade de ser buscada nos fatos, estando dada de algum modo
antecipadamente no nível das representações coletivas: “se os
primitivos não imaginam buscar as ligações causais (…), isso é a
conseqüência natural do fato, bem estabelecido, de que suas
representações coletivas evocam imediatamente a ação das potên-
cias místicas” (MP: 19). Dessa interpretação derivam uma série de
conseqüências. Em primeiro lugar, a aparente ausência de curiosi-
dade intelectual por parte dos primitivos e a absoluta impossibilidade
da “experiência” demovê-los de suas crenças. Se a causalidade é
“uma espécie de a priori sobre o qual a experiência não tem tomada”
e se o “porquê” de tudo está fornecido de antemão pelas represen-
tações coletivas (MP: 21), é evidente que uma indiferença ao como
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 253

(idem) e uma impermeabilidade à experiência (MP: 40) estarão


imediatamente caracterizadas. Isto não significa, contudo, a absolu-
ta inexistência de um mundo de experiência — o que seria
impossível — nem um desinteresse generalizado pelos aconteci-
mentos deste mundo — o que, seria factualmente incorreto.
Ocorreria apenas, por um lado, que a experiência dos primitivos
seria substantivamente distinta da nossa, mais rica e mais complexa
que esta, na medida em que busca incorporar uma esfera, a mística,
que nós recusamos (MP: 49). Por outro lado, haveria aí, tal qual
ocorre conosco, um interesse em desvendar as redes de ligações
entre os componentes desse mundo da experiência. Como essas
ligações são tidas por místicas, também os processos de investigação
devem compartilhar desta natureza: sonhos, presságios, divinação,
ordálio, etc…, seriam os procedimentos adequados para penetrar
em um universo cujos aspectos invisíveis, não os sensíveis, são tidos
como mais importantes e fundamentais. Essa impermeabilidade à
experiência, por sua vez, seria responsável pelo misoneísmo tão
característico das sociedades primitivas. Na medida em que todas as
coisas do universo são encaradas sobretudo como veículos das
forças místicas invisíveis, é ao mesmo tempo inútil guiar-se pela
experiência sensível e perigoso afastar-se dos procedimentos tradi-
cionais, única garantia de que o comércio dos homens com o mundo
pode ser conduzido a bom termo (MP: 445-76). Além disso, os
acontecimentos mais imprevistos, aparentemente não codificados
de antemão no nível das representações coletivas, jamais poderiam
funcionar como desmentidos dos pressupostos tradicionais. Pelo
contrário, devem ser interpretados a fim de que sua significação
mística fique clara: o insólito gera “mais emoção que surpresa”,
proporcionando acima de tudo a ocasião para que o verdadeiro
universo, o místico, se manifeste aos homens devidamente prepa-
rados para percebê-lo e interpretá-lo. Enfim, se levarmos em conta
essas características da mentalidade primitiva, poderemos compre-
ender um ponto sobre o qual Lévy-Bruhl insiste repetidamente e
sobre o qual já observamos a crítica de Bergson, a ausência de acaso:
Para essa mentalidade, de modo geral, não há acaso, e não
pode haver. Não que esteja persuadida do determinismo
rigoroso dos fenômenos; ao contrário, como não tem a
menor idéia desse determinismo, permanece indiferente
à ligação causal, e a todo acontecimento que a impressi-
one atribui uma origem mística (MP: 28 — cf. também, pp.
36; 85; 92; 127-8; 142-8; 214; entre outras).
254 Razão e Diferença

Ocasionalismo, predomínio do afetivo (a emoção frente ao


insólito), misoneísmo, caráter especial da experiência, impermeabi-
lidade à experiência sensível, ausência da noção de acaso — esses
são os atributos fundamentais do pensamento primitivo estudados
em A Mentalidade Primitiva. Ao lado deles, o livro toca em pelo
menos outros dois pontos essenciais. Em primeiro lugar, uma
questão sempre delicada para uma suposta teoria da mentalidade
primitiva, que serviu como pano de fundo para diversas críticas
dirigidas a seu autor: como um pensamento dominado por uma
preocupação tão marcada com os aspectos místicos da existência,
desprezando os dados da experiência sensível, poderia ser capaz de
produzir efeitos tão positivos do ponto de vista da técnica que, em
muitos casos, chega a ser admiravelmente aperfeiçoada e adequada
ao meio que pretende transformar? A única resposta entrevista neste
momento é afirmar mais uma vez o caráter individual das represen-
tações ligadas às atividades técnicas, o que significaria que lá onde
o espírito do primitivo não está ocupado pelas preligações místicas
estabelecidas pelas representações coletivas, ele pensaria e agiria
exatamente como nós (MP: 516-20). Em segundo lugar, por mais
que isso possa parecer contraditório com as observações sobre a
técnica, tudo indica que em 1922, o “dualismo de divergência” leve
a melhor sobre o de “superposição”: “as duas mentalidades (…) são
tão estranhas uma à outra, seus hábitos tão divergentes, seus meios
de expressão tão diferentes…” (MP: 505). Ou, falando diretamente
da dificuldade em explicar esse tipo de mentalidade, “esforço quase
impossível de sustentar, e na falta do qual, entretanto, corre o risco
de permanecer ininteligível para nós” (MP: 517). Tudo se passa
como se Lévy-Bruhl renunciasse à tentação ainda presente em As
Funções Mentais… de explicar a transição da mentalidade primitiva
para o pensamento conceitual, o que só pode acarretar, com o
abandono da dimensão diacrônica, o predomínio da “divergência”
sobre a “superposição”, fazendo com que as dificuldades de ordem
terminológica e epistemológica ganhem alcance ainda maior do que
o que já possuíam. Por outro lado, a oposição entre a ordem do
individual e a do social aflora aqui com toda a força, servindo como
o operador que explicaria tanto as diferenças essenciais entre
primitivos e civilizados — no que diz respeito às representações e
concepções — quanto as semelhanças que poderiam ser observa-
das entre eles sobre alguns planos, como a técnica em especial: tudo
o que é coletivo os separaria; tudo o que é individual os aproximaria.
Desse modo, acredita-se poder resumir o estado mental caracterís-
tico do pensamento primitivo afirmando que “nem o eu individual,
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 255

nem o grupo social, nem o mundo ambiente, visível e invisível, estão


ainda ‘definidos’ (…) como parecem estar quando nosso pensamen-
to conceitual tenta apreendê-los” (MP: 522).

A
Lévy-Bruhl parece ter-se deixado seduzir por essa hipótese
bem durkheimiana, imaginando que a oposição indivíduo/socieda-
de poderia ser capaz de explicar o que dizia se limitar a descrever.
É quase uma conseqüência dessa posição que, cinco anos após A
Mentalidade Primitiva, tenha dedicado todo um livro ao estudo de
“como os homens que se convencionou chamar primitivos repre-
sentam sua própria individualidade” (AP: Avant-Propos ), tentando
a partir daí esboçar um quadro geral das relações entre o individual
e o coletivo nas sociedades primitivas. Após o questionamento das
categorias de identidade e causalidade, é a noção de individualida-
de que agora se encontra em jogo. A Alma Primitiva pretende muito
mais analisar as “instituições, costumes e representações coletivas”
dos primitivos, a fim de atingir, “com a precisão bastante medíocre
que o tema comporta”, o modo pelo qual a mentalidade primitiva
conceberia o indivíduo humano em si mesmo e em suas relações
com o grupo (AP: 1), que propriamente estabelecer uma teoria
sociológica, no sentido forte do termo, deste tipo de mentalidade.
Apesar disso, esta teoria é, senão realmente elaborada, ao menos
entrevista, sugerida e até questionada ao longo do livro.
Duas hipóteses básicas orientam essa investigação do que
chamaríamos hoje, sem dúvida, “noção de pessoa” nas sociedades
não-ocidentais. Seria preciso inicialmente distinguir de forma radi-
cal o “sentimento interno” que o primitivo inegavelmente teria de
sua própria individualidade da apreensão formal de si mesmo como
“sujeito nitidamente distinto de outrem e com plena consciência de
tal situação” (AP: 2). Mais que isso, seria preciso reconhecer que o
“sentimento da individualidade” teria na verdade uma importância
secundária, na medida em que além de ser característico de todos
os animais superiores, não possuiria, no caso particular das socie-
dades primitivas, qualquer tipo de expressão sociológica
institucionalizada (AP: 2-3). Por outro lado, a inexistência de um
“sujeito” dotado de “consciência de si” e a conseqüente ausência de
expressão sociológica dessa situação, seriam explicáveis — essa é
a segunda hipótese que orienta a pesquisa — pelo fato de que a
256 Razão e Diferença

propriedade central da mentalidade primitiva seria representar, ou


antes, sentir, o universo como um agregado de homens, seres e
coisas essencialmente homogêneos, compartilhando de uma mes-
ma substância mística (mana, wakan, orenda…), cujo sentido
último seria impossível traduzir em nosso vocabulário conceitual e
que, ao circular entre todos os componentes do mundo, faria com
que participassem intimamente uns dos outros (AP: 3; 6).
Nesse sentido, o universo no qual os primitivos sentiriam que
vivem seria tão “fluido” (AP: 50), as fronteiras entre os domínios que
o compõem tão vagas, imprecisas e cambiantes, que se tornaria
quase impossível falar de classificações, com o que este termo supõe
de nitidez, precisão e estabilidade (AP: 6-7). É verdade que a
mentalidade primitiva estabeleceria algumas separações e mesmo
exclusões entre os seres; estas obedeceriam, contudo, apenas a um
duplo princípio, por demais impreciso, quantitativo e qualitativo ao
mesmo tempo. As diferenças na quantidade da substância ou
essência mística contida em cada ser ou conjunto de seres e a
diferença das “disposições”, benéficas ou maléficas, que cada um
deles demonstraria em relação aos homens, constituiriam, respec-
tivamente, os dois pólos deste princípio. Isso só poderia significar
que são essas disposições, não as classificações, que interessariam
fundamentalmente à mentalidade primitiva, fazendo com que a
existência de qualquer divisão rigorosa em “classes” fosse impossí-
vel, na medida em que essa mentalidade não conheceria conceitos,
no sentido preciso do termo, implicando organização e hierarquia.
Assim, por mais que o pensamento primitivo separe e exclua, sua
característica essencial só poderia ser o primado da ligação, da
participação enfim. Primado que ressaltaria claramente na indistin-
ção radical aí presente entre o que nós consideramos como sendo
os “reinos da natureza”, discretos e individualizados. Para esse
pensamento, ao contrário, esses conjuntos se interpenetrariam todo
o tempo devido à ação da essência-força mística que percorreria
igualmente a todos (AP: 15). Ao mesmo tempo, Lévy-Bruhl faz
questão de frisar que essa hipótese de um primado da participação
não poderia, em hipótese alguma, ser confundida com as teorias
animistas da escola antropológica inglesa, já que não se trata de
seres inicialmente percebidos como distintos e que depois seriam
associados ao nível das concepções, devido a uma falha qualquer
de raciocínio (AP: 15-6; 66). Pelo contrário, sua unidade seria sentida
como imediata e antecipadamente dada, tornando singularmente
difícil traduzir essa idéia em nosso vocabulário conceitual e analítico
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 257

sem falseá-la de um modo ou de outro (AP: 31): participação se


opõe frontalmente a associação.
É justamente esse primado absoluto da participação — com
a conseqüente homogeneidade essencial e mística do universo —
que seria responsável por outra característica central da mentalidade
primitiva: a inexistência de distinções claras, no nível das represen-
tações coletivas, entre o “indivíduo” e a “espécie”. Isso porque cada
indivíduo é sentido e concebido como encarnando a própria
essência da espécie, que sendo, por sua vez, sentida e concebida
como homogênea, não poderia tampouco servir para distinguir os
indivíduos e as próprias espécies entre si (AP: 59). Estaríamos aqui
às voltas com um tipo de representação semelhante aos nossos
conhecidos “estereótipos nacionais” — “essência ou tipo geral
demais para ser uma imagem, e emocional demais para ser um
conceito” (idem). Lévy-Bruhl adianta, desse modo, uma idéia que
deverá se tornar central em seu pensamento, a saber, que o
elemento de generalidade próprio às representações primitivas seria
sempre de caráter puramente emocional. As “disposições” benéficas
ou maléficas dos seres forneceriam aos primitivos um meio, bastante
indeterminado e impreciso, de generalizar — o que não significa a
constituição de classes e conceitos propriamente ditos. Essa seqüên-
cia de raciocínios encadeados conduz ao tema central de A Alma
Primitiva: a indistinção global entre indivíduo e espécie forneceria
o modelo através do qual seriam pensadas também as relações entre
o indivíduo humano e o grupo social. Estas relações seriam,
portanto, em tudo análogas às mais gerais, de modo que a unidade
entre a pessoa e o grupo seria tão radical e tão total quanto a que
existiria entre o indivíduo e a espécie. Tratar-se-ia apenas, no
primeiro caso, de uma modalidade particular da participação e da
consubstancialidade universais, uma vez que a “diferença entre
homens, animais, plantas e mesmo objetos inanimados não é de
natureza, mas simplesmente de grau” (AP: 70). Sendo assim, o
homem só poderia considerar sua participação no grupo como a
própria condição de possibilidade de sua existência e sobrevivên-
cia, tanto do ponto de vista objetivo quanto do “místico” (AP: 73).
Como resume Davy (1931: 197-8), humano ou não, o indivíduo só
adquiriria consistência devido a sua “dependência” objetiva e
subjetiva face ao grupo ou espécie a que “pertence”.
Apesar dessa semelhança global, Lévy-Bruhl faz questão de
introduzir uma distinção, menor apenas em aparência, entre a forma
como se dariam as relações indivíduo/espécie, por um lado, e
pessoa/grupo, por outro. No segundo caso, dever-se-ia levar em
258 Razão e Diferença

conta o fato de que a sociedade humana nunca é tão indiferenciada


internamente quanto uma espécie natural, dividindo-se e arti-
culando-se em subgrupos — clãs, famílias, classes de idade, etc….
Ao introduzir esse princípio, Lévy-Bruhl torna novamente possível
a aproximação com o esquema durkheimiano de uma passagem
progressiva entre uma ordem social concebida como indiferenciada
e outra, altamente diferenciada, onde a verdadeira individualidade
— um “sujeito” dotado de “consciência de si” — poderia despontar.
Essa tomada de posição é, contudo, bastante ambígua e incerta: se
A Alma Primitiva deixa algumas vezes entrever que as representa-
ções da individualidade estariam enraizadas na organização social
concreta (AP: 96, por exemplo), está sempre bem longe de sugerir
explicitamente qualquer tipo de determinismo morfológico no
estilo da escola sociológica francesa. Ao contrário, chega a apontar
para a idéia de que seriam representações coletivas sobre o estatuto
do indivíduo, representações dotadas de uma natureza muito
particular, as verdadeiras responsáveis por práticas objetivas para
nós tão desprovidas de sentido quanto o parentesco classificatório,
a vingança coletiva e a ausência de propriedade, entre tantas outras
diretamente relacionadas com um certo tipo de organização social
concreta (AP: 126).
Outro tema investigado em A Alma Primitiva, que deveria, a
julgar pelo título do livro, constituir seu objeto central, são as
concepções acerca da individualidade em si mesma. Trata-se,
contudo, de uma questão difícil de ser trabalhada, na medida em
que nenhuma elaboração mais sofisticada a esse respeito seria
encontrada em um tipo de mentalidade muito pouco preocupada
com problemas de natureza excessivamente intelectual como este
(AP: 127). Ainda assim, acredita-se ser possível estabelecer ao
menos que, dada a indistinção fundamental entre o indivíduo e o
grupo, as representações acerca da natureza do primeiro jamais
poderiam refletir um ser muito bem definido. A individualidade
tenderia, portanto, a incluir uma espécie de “halo” (Davy 1931: 199),
que envolveria o indivíduo biologicamente dado, halo que compre-
enderia sobretudo seus “pertences” (“appartenances”) — cabelos e
unhas quando separados do corpo, pegadas, roupas, restos de
alimentos, etc… (AP: 134). Trata-se aqui do que Lévy-Bruhl deno-
mina inicialmente uma “extensão da personalidade”, verdadeiro
“duplo” do indivíduo propriamente dito (AP: 134). A existência
individual “dependeria” dessa forma de toda uma rede mística de
participações com a sociedade, sub-grupos sociais e pertences; o
indivíduo não poderia ser outra coisa que um “lugar de partici-
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 259

pações” (AP: 251). Nesse momento, Lévy-Bruhl começa a dar um


passo decisivo, perguntado-se se não seria possível ir ainda mais
longe, se a noção de indivíduo como “lugar de participações” não
seria na verdade contraditória com a de “extensão da personalida-
de”. Esta última supõe logicamente uma personalidade previamente
existente, percebida e representada com clareza, que apenas a
posteriori seria projetada para o exterior, abarcando outras realida-
des inicialmente também nitidamente concebidas. Ora, trata-se aqui
mais uma vez de uma projeção de nossos próprios hábitos mentais:
o que teríamos que admitir, para ter uma noção do que efetivamente
se passa e por mais difícil que isso possa ser, é que a participação
é de fato primeira, que o dado real é a totalidade indiferenciada
indivíduo-grupo-pertences…. “Do ponto de vista dos primitivos,
não há então ‘extensão’ da personalidade aos pertences. Seria
melhor dizer que, comparada à sua, nossa individualidade parece
ter sofrido uma ‘redução’, uma espécie de retração” (AP: 184-5). Essa
é a primeira vez que Lévy-Bruhl inverte o modo de confrontar o
pensamento primitivo com o nosso: em vez de definir o primeiro de
forma negativa, como uma espécie de empobrecimento do segun-
do, este último é colocado sob o signo de uma mutação, que teria
suprimido algumas características que o outro possuiria.
Enfim, A Alma Primitiva continua e exacerba um dos dilemas
constantes de Lévy-Bruhl: sendo a mentalidade primitiva “confusa
e contraditória”, como proceder para explicá-la? Bastaria render-se
a essa confusão e simplesmente reproduzir sua falta de clareza?
Alternativa fácil demais, na medida em que, além de não estarmos
acostumados a pensar confusamente (se é que isso é possível), uma
obscuridade dessa natureza só apareceria desta forma para nós, não
para os primitivos, o que significa que “reproduzir” seu pensamento
seria ainda uma maneira de falseá-lo. Deveríamos, então, introduzir
nele uma coerência que lhe é estranha e que satisfaria nossas
necessidades? Alternativa difícil de ser seguida, na medida em que
configuraria a posição etnocêntrica que o autor sempre criticou. A
“solução” proposta, entretanto, manifestamente não chega a resol-
ver o impasse: deveríamos nos colocar “da melhor maneira possível
do ponto de vista dessa mentalidade (…) e na medida do possível
esclarecer o que nos parece confuso e contraditório através do
conjunto de suas representações coletivas e dos princípios gerais
que as regem” (AP: 127-8). Mas, neste caso, como fazer para atingir
os mencionados “princípios gerais”, sem colocar previamente a
questão de sua inteligibilidade? Petição de princípio que parece trair
uma certa esperança, que tenderá a crescer com o tempo, de que
260 Razão e Diferença

os próprios fatos, convenientemente coletados, organizados e


expostos, acabariam falando por si mesmos. De qualquer forma, é
esse paradoxo da explicação lógica da mentalidade prelógica que
agirá como uma das forças que obrigarão o pensamento de Lévy-
Bruhl a buscar novos caminhos.

A
Esses novos caminhos são, como vimos, usualmente localiza-
dos nos três últimos livros de Lévy-Bruhl, bem como, em especial,
nos Carnets póstumos. A versão mais corrente diz que o autor teria
deslocado sua preocupação de um enfoque que privilegiaria
sobretudo as questões de ordem lógica colocadas pelo estudo da
mentalidade primitiva — cujo prelogismo não seria mais que um
atributo permitindo pensá-la ainda sob o signo de processos lógicos,
ainda que negativos — para se dedicar a isolar e descrever de forma
mais clara o caráter fundamentalmente emocional e afetivo
(paralógico, portanto) que impregnaria as representações coletivas
das sociedades primitivas. Na verdade, já observamos que a ênfase
nesse caráter estava presente ao menos desde A Moral e a Ciência
dos Costumes como um dos traços centrais que marcavam a
oposição — a diferença — entre os pensamentos primitivo e
ocidental. O contraste entre uma lógica dos signos, característica do
segundo, e uma mentalidade dominada pela afetividade — ainda
que definida, à maneira de Comte, como uma “lógica das imagens
e sentimentos” — já estava perfeitamente estabelecido desde 1903
(e mesmo antes, com o livro sobre a história da filosofia francesa e
com A Filosofia de Augusto Comte). As Funções Mentais nas
Sociedades Inferiores, A Mentalidade Primitiva e A Alma Primitiva
são livros que não poderiam, portanto, deixar de estar dominados
por essa hipótese de que, no pensamento primitivo, o emocional
predomina de forma quase absoluta sobre o cognitivo.
Não deixa de ser verdadeiro, contudo, que O Sobrenatural e
a Natureza na Mentalidade Primitiva (1931), A Mitologia Primitiva
(1935) e A Experiência Mística e os Símbolos entre os Primitivos
(1938), buscam insistir nesse tema de modo mais acentuado que as
obras precedentes. Por outro lado, prosseguem com a crítica,
iniciada em 1910, da aplicabilidade das categorias ocidentais,
aparentemente mais universais e naturais, para a compreensão e
explicação das representações coletivas típicas da mentalidade
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 261

primitiva. Assim, sob a aparente preocupação de unicamente


analisar a distinção entre o natural e o sobrenatural, de simplesmen-
te discutir as noções de mito, experiência e símbolo, busca-se, de
modo mais fundamental, questionar de forma radical as categorias
de natureza, substância e experiência — categorias que, como se
sabe, estão no cerne do pensamento ocidental, funcionando como
algumas de suas condições de possibilidade. Deste ponto de vista,
é fácil perceber que os livros de 1931 e 1935 estão intimamente
relacionados, seu tema comum sendo a “falta de nitidez” das
representações coletivas primitivas (SN: XXXII), ou a “fluidez” do
universo que seria aí representado (MyP: XI). Características deriva-
das da “tendência pouco conceitual” da mentalidade primitiva (MyP:
XI), ela mesma um corolário da orientação mística dessa mentalida-
de. Pouco preocupada com o valor objetivo dos seres e coisas, mais
interessada em desvendar, atrás de toda manifestação sensível, a
ação oculta das potências invisíveis, ela não poderia se dedicar à
elaboração de conceitos muito definidos, que só serviriam para
perturbar seu trabalho fundamental. Ora, isso parece remeter para
As Funções Mentais…, embora seja preciso reconhecer que Lévy-
Bruhl não deixa aqui de acrescentar alguma coisa. Uma vez que
essas potências invisíveis e místicas não poderiam ser empiricamen-
te dadas, seria preciso que uma espécie de carga emocional
estivesse presente nas representações a seu respeito a fim de que sua
existência pudesse vir a ser aceita, sem qualquer discussão, pelos
indivíduos — e isso até o ponto em que a própria percepção se
alteraria, impedindo a ameaça de qualquer espírito crítico. O que
significaria, contudo, esse pequeno acréscimo, essa maior ênfase
em uma idéia que já estava, de um modo ou de outro, formulada
desde 1910?
Na verdade, nos três primeiros trabalhos etnológicos de Lévy-
Bruhl, a investigação é comandada por duas questões centrais. Em
primeiro lugar, uma tentativa de definição da mentalidade primitiva
em si mesma, elaborada a partir da hipótese de que obedeceria a
princípios gerais distintos dos que regem o pensamento conceitual
— orientação mística, prelogismo, participação. Por outro lado,
observa-se, entre 1910 e 1927, um esforço para buscar e explicitar
uma lei específica que pudesse realmente explicar como as repre-
sentações poderiam estar ligadas no interior de uma mentalidade
dotada de características aparentemente tão paradoxais e estranhas
— a famosa lei de participação. O que parece ocorrer, a partir de
1931, é que, ao deslocar seu trabalho quase inteiramente na direção
da primeira dessas questões, abandonando a pretensão anterior de
262 Razão e Diferença

determinar “leis”, Lévy-Bruhl acabou por provocar uma modificação


importante na própria tentativa de descrever e definir a mentalidade
primitiva em si. Isso porque parece ter-se dado conta progressiva-
mente da inviabilidade de uma caracterização apenas negativa de
seu objeto de estudo, que levava a mentalidade primitiva a ser
concebida como uma espécie de inverso do nosso próprio pensa-
mento. É a noção de “prelógico” que se verá mais ameaçada por essa
tomada de consciência. Entretanto, veremos que a orientação
mística e a participação também correrão o risco de virem a ser
recusadas em virtude do caráter apenas negativo — etnocêntrico,
diríamos hoje — que essas noções possuiriam. A partir da renúncia
à hipótese da existência de uma lei de participação, tudo começa a
se passar como se fosse preciso encontrar um substituto, senão para
essa lei propriamente dita, ao menos para sua inexistência. Toda a
ênfase tenderá a recair sobre a antiga noção de “orientação mística”
da mentalidade primitiva, o que não significa que a participação
enquanto tal seja abandonada. Pelo contrário, na medida em que
uma lei de participação deixa de ser suposta como existente, a
participação como fato deverá passar a ser encarada como uma
espécie de a priori absoluto desse tipo de mentalidade. Enquanto
o pensamento ocidental teria como condição de possibilidade de
seu exercício, a noção de um mundo concebido como totalidade
ordenada de acordo com leis naturais que seria preciso desvendar
e frente às quais é necessário curvar-se (noção que é fruto de séculos
de trabalho filosófico e científico acumulado — SN: XVI), a
mentalidade primitiva teria como ponto de partida um princípio
muito diferente: o pressuposto de uma desorganização e indistinção
de um universo onde tudo estaria ligado a tudo, de forma tão
profunda quanto misteriosa:
um ‘mundo’, para nós — natural ou sobrenatural, pouco
importa — é um cosmos. Ele implica a idéia de uma
ordem, uma hierarquia, uma disposição racional dos
elementos de que é composto (…). Ora (para não dizer
nada aqui do mundo da natureza), o mundo sobrenatural
desses Papuas e desses Australianos não é construído
segundo esse modelo (MyP: 1).
Isso significa que ainda que o primitivo real leve em conta de
fato, em sua atividade prática mais cotidiana, a existência de uma
ordem natural, o que realmente importa para a investigação é que
tal ordem não existiria de direito no plano das representações
coletivas. O que aí predominaria seria um interesse exclusivo em
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 263

desvendar as “disposições” maléficas ou benéficas das potências


invisíveis, ocultas nos fenômenos sensíveis e verdadeiras responsá-
veis por sua existência e funcionamento. É apenas através desse
desvendamento que se tornaria possível saber como se comportar
adequadamente diante dessas potências, como manipulá-las de
forma correta e com os efeitos desejados (SN: XXXI). Sendo assim,
é preciso que o analista saiba escolher corretamente a boa oportu-
nidade para detectar essa orientação fundamental da mentalidade
primitiva. Se no curso normal dos acontecimentos, o primitivo tende
a comportar-se como nós próprios o faríamos diante de circunstân-
cias semelhantes, o mesmo não poderia ocorrer quando alguma
coisa se afasta desse curso normal. É precisamente quando algo
“insólito” se produz que as diferenças de orientação entre os
pensamentos primitivo e ocidental se tornariam realmente nítidas.
Conseqüentemente, seria essa a ocasião privilegiada para aquele
que pretende investigar essas diferenças, não o que pode haver de
semelhante entre essas formas de pensar (MyP: XXVI). Os dados a
que deveríamos prestar atenção são os que revelam com clareza que
enquanto tendemos sempre a buscar a causa natural de qualquer
acontecimento, por mais estranho e aparentemente irracional que
possa parecer (e mesmo não a encontrando, continuamos supondo
que exista, embora ainda indeterminada), os primitivos preferem se
inclinar, diante do insólito por exemplo, para a pressuposição de
que estão às voltas com um signo privilegiado das potências
invisíveis, assumindo frente a ele não a atitude cognitiva — ao
menos potencialmente — com a qual estamos habituados, mas um
comportamento que seria especialmente marcado pela emoção: “na
representação, sempre emocional, que os primitivos se fazem das
potências invisíveis, o que predomina não são os traços que as
definem, mas, antes, o medo que inspiram, a necessidade de se
proteger delas” (SN: XXVII).
Nessas circunstâncias, parece normal que o mundo sobrena-
tural e o universo mítico estejam revestidos de importância
transcendente. Eles não constituem simples princípios de inteligibi-
lidade exteriores para os acontecimentos insólitos do mundo natural
e ordinário — argumento evolucionista e associacionista, que
pressupõe uma inexistente separação prévia entre essas duas
esferas, com uma aproximação apenas posterior. Parecem consti-
tuir, antes, uma forma de codificação generalizada e imanente para
a interpretação do mundo sensível, bem como para o comporta-
mento que se deve observar diante dele. Absolutamente
interpenetrados com esse universo sensível, tão “confusos” e
264 Razão e Diferença

“desordenados” quanto ele — “não há, para agrupar ou unir essas


representações, nem arquitetura, nem sistema, nem hierarquia de
qualquer tipo” (SN: XXVIII) — o mito e a sobrenatureza seriam, não
obstante, objetos de uma experiência contínua, experiência tornada
possível pelas crenças tradicionais e pela carga emotiva que envolve
as representações coletivas que, nas sociedades primitivas, domina-
riam as consciências individuais. Estas, conseqüentemente, seriam
incapazes de distinguir com clareza o mundo natural do mítico ou
sobrenatural. Ou antes: essa possibilidade jamais chegará a ocorrer
a elas (SN: XXXIX).
Neste momento, Lévy-Bruhl adota a hipótese de que o mito
e a sobrenatureza exerceriam na mentalidade primitiva o mesmo
papel que supõe ser desempenhado pela noção de cosmos no
pensamento ocidental: condição de possibilidade para a represen-
tação e os juízos. Isso não impede que uma diferença fundamental
continue existindo, uma vez que não se trata, no primeiro caso, de
um a priori de ordem lógica ou cognitiva, mas de um princípio
puramente emocional e afetivo, que Lévy-Bruhl denominará “cate-
goria afetiva do sobrenatural” (SN: XXXIV). Por mais desorganizadas
e confusas que as representações coletivas primitivas possam ser —
embora só apareçam dessa forma quando encaradas do nosso ponto
de vista — todas parecem compartilhar de um elemento de
generalidade que as faz escapar ao que seria um caráter tão concreto
que impediria que servissem para qualquer atividade mental. O
problema é localizar com precisão em que plano esse elemento de
generalidade da mentalidade primitiva poderia ser encontrado:
Para uma mentalidade orientada diferentemente, que não
é regida, como a nossa, por um ideal aristotélico, isto é,
conceitual, e cujas representações são freqüentemente de
uma natureza essencialmente emocional, a generalidade
não residiria em outro lugar que nas idéias? Ela não seria
então propriamente ‘conhecida’, mas, antes, ‘sentida’. O
elemento geral não consistiria em um caráter constante,
objeto de percepção intelectual, mas, antes, em uma
coloração, ou, se quiser, em uma tonalidade comum a
algumas representações que o sujeito logo apreenderia
como pertencente a todas (SN: XXXIV).
Categoria geral que não poderia, portanto, ser entendida
“nem no sentido aristotélico nem no sentido kantiano”. Trata-se
certamente de um princípio de unidade imanente ao espírito, mas
que, em vez de operar de acordo com uma adequação à realidade
exterior, ou de uma imposição de formas a ela, seria apenas um meio
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 265

de unificar “representações que, mesmo diferindo entre si quanto a


seu conteúdo, em parte ou totalmente”, teriam a capacidade de
“afetar” o espírito de modo semelhante (idem).
O abandono cada vez mais enfático do que passará a
considerar como suas tendências logicizantes e cognitivistas ante-
riores, levará Lévy-Bruhl a modificar o triângulo conceitual
estabelecido em As Funções Mentais… — e que, de uma forma ou
de outra, havia permanecido mais ou menos inalterado até A Alma
Primitiva. Esse triângulo (misticismo — prelogismo — lei de parti-
cipação) terá dois de seus vértices substituídos: o prelogismo deverá
ceder lugar à categoria afetiva do sobrenatural; a lei de participação
deverá ser abandonada em benefício da participação cada vez mais
encarada como fato. Se acrescentarmos a isso que o misticismo
passará a ser concebido, com uma clareza ainda maior, como
simples orientação, não como doutrina de qualquer espécie, o novo
triângulo deverá assumir a forma orientação mística — categoria
afetiva do sobrenatural — participação. Além desse deslocamento
propriamente conceitual, tanto O Sobrenatural e a Natureza na
Mentalidade Primitiva quanto A Mitologia Primitiva efetuarão uma
mudança de ordem teórico-metodológica. Dentre as muitas críticas
que sempre recebeu, Lévy-Bruhl parece ter sido especialmente
sensível às objeções, levantadas especialmente pelos autores liga-
dos à escola sociológica francesa, que sustentam que ele jamais teria
demonstrado de forma concreta — embora o admitisse do ponto de
vista teórico — a derivação das características da mentalidade
primitiva da base sociológica sobre a qual funcionaria. Já vimos que
este problema é complexo. Logo em seu início, o livro de 1931 faz
questão de chamar a atenção para o fato de que, embora reconhe-
cendo a especificidade de cada sociedade primitiva concreta, com
as conseqüentes diferenças de morfologia social e representações
coletivas que essas particularidades necessariamente implicam,
seria absolutamente impossível negar a existência de traços comuns
a essas sociedades e às mentalidades a elas ligadas. Tratar-se-ia,
pois, de trabalhar à maneira da lingüística geral, recolhendo os
dados a serem comparados justamente lá onde parecem mais
“probantes”, sem se preocupar, ao menos de início, com recortes
muito nítidos ou previamente estabelecidos (SN: XI-XII). De qual-
quer forma, de um ponto de vista estritamente metodológico,
Lévy-Bruhl — aparentemente visando satisfazer um pouco seus
críticos — reduz, nesses penúltimos livros, o espaço geográfico
onde seleciona seu material, limitando-o à Austrália e à Nova Guiné
e utilizando documentos provenientes de outras regiões etnográfi-
266 Razão e Diferença

cas apenas como dados suplementares para suas demonstrações.


Em 1935, irá ainda mais longe, restringindo rigorosamente sua
investigação a essas duas áreas — A Mitologia Primitiva chega
mesmo a ter como sub-título “o mundo mítico dos Australianos e dos
Papuas”. Apesar disso, é justamente na abertura desse livro sobre
mitologia que se fará questão de enfatizar que embora limitada a um
pequeno número de sociedades, a pesquisa não diz respeito nem
à “história das religiões nem à sociologia stricto sensu, mas apenas
à relação [da mitologia primitiva] com a natureza e a orientação
constantes da mentalidade própria aos ‘primitivos’” (MyP: V). Isso
poderia sugerir que, ao contrário do que ocorria em As Funções
Mentais… (que, como vimos, pretendiam esclarecer certos pontos
da história das religiões e da filosofia), Lévy-Bruhl esteja, em A
Mitologia Primitiva, exclusivamente interessado nos problemas
colocados pelo estudo das sociedades primitivas em si mesmas. Isso
é, contudo, apenas parcialmente verdadeiro.
Em primeiro lugar, sob a capa de uma concessão feita em
especial aos sociólogos de estrita obediência, Lévy-Bruhl acaba por
restringir ainda mais o sociologismo que anteriormente o havia
tentado. Neste momento, mais do que antes, o que procura
apreender é o que chama “natureza e orientação constantes da
mentalidade primitiva”, independente de qualquer forma concreta
de organização ou morfologia sociais. Isso é particularmente
explícito em A Mitologia Primitiva:
A representação do mundo mítico, tal qual a constatamos
entre certas tribos do centro e noroeste da Austrália, e da
Nova Guiné holandesa, não lhes pertence com exclusivi-
dade. Ela não parece ser estreitamente solidária de suas
instituições. Nós a reencontramos, senão totalmente, ao
menos em seus elementos essenciais, nas crenças e
práticas de sociedades muito diferentes destas, e tampou-
co semelhantes entre si. Ela apresentaria assim, malgrado
a diversidade de todas essas sociedades, um caráter de
generalidade — poder-se-ia quase dizer de universalida-
de (MyP: 225).
É justamente esta restrição radical ao sociologismo que
conduzirá a duas conclusões aparentemente antagônicas: a afirma-
ção, por um lado, de uma verdadeira unidade do espírito humano,
e a constatação, por outro, de uma quase impossibilidade de
chegarmos realmente a entender e explicar a mentalidade das
sociedades primitivas. Estas conclusões demonstram claramente
que as ambições teóricas de A Mitologia Primitiva ultrapassam em
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 267

muito a modéstia com que o livro é apresentado. O outro ponto que


demonstra com nitidez que esse trabalho não se limita a uma
investigação exclusiva da mentalidade primitiva, é mais fácil de ser
compreendido, na medida em que foi abordado anteriormente.
Vimos, com efeito, que o sociologismo consiste também (no
pensamento de Durkheim, mas isso é certamente verdadeiro para
qualquer tentativa de explicação sociologizante dos fenômenos
representacionais) em um modo de fazer com que formas de
pensamento aparentemente impenetráveis umas às outras se comu-
niquem. Ora, Lévy-Bruhl, que excluía desde o início de sua obra
etnológica a possibilidade de recorrer a supostas meta-categorias
lógicas para garantir essa comunicação, acabou por fechar a outra
via de acesso teoricamente disponível para a compreensão da
mentalidade primitiva, ao restringir e praticamente abandonar o
sociologismo. O paradoxo da explicação lógica, agora também
sociológica, do pensamento “prelógico” começa a ganhar terreno.
O Sobrenatural e a Natureza… levanta essa dificuldade em diversas
ocasiões (SN: X; XV; XXXVII; 82-3; 139-45; 427-32; entre outras
passagens), ainda que o faça sob a forma de simples dúvida a
respeito da possibilidade de reconstruir integralmente o sentido
último do pensamento primitivo — posição que parece não passar
de uma tentativa de relativização de nosso poder de compreensão
de outras formas de pensar. É somente com A Mitologia Primitiva
que a questão será levada até as últimas conseqüências — ou quase,
já que estas só serão realmente atingidas nos Carnets póstumos.
Ao analisar, por exemplo, algumas noções australianas,
constatando a aparente impossibilidade de dar conta delas em seus
próprios termos, Lévy-Bruhl se pergunta se será preciso “renunciar
a compreendê-las”. Crê que a resposta é “sim, se ‘compreendê-las’
consiste em fazê-las entrar à força em quadros lógicos que as
mutilam”, acrescentando logo, contudo, que “talvez não seja
impossível torná-las inteligíveis até certo ponto”. É justamente aí que
começa a dificuldade, já que para isso, um esforço prévio, tão
“indispensável” quanto difícil de ser sustentado, se faz estritamente
necessário:
tentar desposar a atitude constante dos primitivos frente
à presença das realidades sobrenaturais e míticas, apreen-
der esses complexos enquanto tal sem se obstinar a
analisá-los, e ‘sentir’ como eles se relacionam com a
categoria afetiva do sobrenatural (MyP: XL — o grifo é
meu).
268 Razão e Diferença

Em outros termos, tudo se passa como se devêssemos


renunciar a uma impossível explicação lógica, substituindo-a por
um esforço de identificação afetiva (cf. também, MyP: 2). Aqui se
descortinam as alternativas mencionadas: reconhecer uma impossi-
bilidade radical de compreensão e mesmo de comunicação ou
retornar, ainda que em outras bases, à idéia de unidade do espírito
humano. É para a segunda que o autor parece tender, na medida em
que se vê obrigado a justificar de alguma forma a viabilidade da
empatia emocional justamente lá onde a comunicação lógica
parecia impossível. Para isso, Lévy-Bruhl terá que se curvar quase
que definitivamente ao “dualismo de superposição”, adotando uma
posição muito parecida com a de Durkheim e abandonando seu
antigo “dualismo de divergência” que, se jamais fora exclusivo, ao
menos convivera sempre com a primeira forma.
Assim, em 1931, depois de definir a “categoria afetiva do
sobrenatural”, Lévy-Bruhl se pergunta se esta consistiria de fato em
uma característica exclusiva da mentalidade primitiva ou, pelo
contrário, não corresponderia “antes a uma atitude constante do
homem em presença do sobrenatural”, mais fácil talvez de ser
observada nas sociedades primitivas, na medida em que aí os
desenvolvimentos intelectuais e cognitivos que nós próprios expe-
rimentamos há séculos não a encobririam como ocorreria no caso
de nossa sociedade (SN: XXXV-VI). A Mitologia Primitiva, por sua
vez, se encerra precisamente com uma interrogação acerca das
razões do fascínio que as fábulas, lendas e contos folclóricos são
ainda capazes de exercer sobre nós ocidentais, ainda que estejamos
aparentemente tão afastados do tipo de mentalidade que teria
engendrado tão estranhas narrativas. A resposta encontrada é que
a mentalidade primitiva, longe de constituir patrimônio exclusivo de
uma parcela da humanidade, corresponderia a uma tendência
originalmente dominante, que teve que ser “recalcada” para que o
pensamento lógico pudesse vir a se desenvolver. Mentalidade
“primitiva”, portanto, no sentido de originária, que, por isso
mesmo, jamais poderia ser completamente eliminada por esse
esforço cognitivista de recalque, permanecendo sempre como uma
espécie de fundo imutável da natureza humana. O prazer que
inegavelmente obtemos com as estórias e o folclore só poderia
provir de um tipo de “relaxamento” do espírito, momentaneamente
entregue a “atitudes ancestrais”, livre da disciplina lógica a que
cotidianamente estaríamos submetidos (MyP: 316-8): “por mais
afastados que nos creiamos da mentalidade que produziu [os mitos],
esse espetáculo nos cativa e nos retém” (MyP: 319)3.
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 269

No contexto dessas observações, creio que os “avanços”


apontados por diversos comentadores poderiam ser encarados de
outro ponto de vista. Tratar-se-ia, de fato, da passagem de um
dualismo etnocêntrico inicial a um monismo relativista definitivo?
Ou, como sugeriu Davy (1957), haveria aí uma simples substituição
do dualismo inicial entre o lógico e o prelógico por outro, opondo
desta vez o cognitivo ao afetivo? Na realidade, as duas interpretações
parecem ter parcialmente razão: ao situar o dualismo no interior de
cada sociedade, e mesmo de cada indivíduo, Lévy-Bruhl propõe
uma espécie de “unidade dualista”, se é possível falar dessa maneira.
Originalmente voltado sobretudo para a afetividade, o espírito
humano teria acabado por desenvolver, especialmente nas socieda-
des ocidentais, um lado cognitivo que teria superado e reprimido o
outro, mesmo sem ser capaz de suprimi-lo completamente. Como
nas sociedades primitivas contemporâneas é o lado afetivo que
ainda parece prevalecer e na medida em que esse lado seria
justamente o que haveria de universal no homem, é apenas por meio
de uma identificação emocional, não de uma comunicação lógica,
que o acesso a essas sociedades poderia ser garantido. O Lévy-Bruhl
diferencialista parece ter sido vencido por um tipo de monismo
afetivo; o dualismo inicial parece realmente só ter sido postulado
para ser superado na direção desse monismo, não na do verdadeiro
pluralismo que alguns desejariam.

A
Essas interpretações são de fato as únicas possíveis? Essa
posição é realmente nova no pensamento de Lévy-Bruhl? Lembre-
mos apenas, por ora, que já em As Funções Mentais… (e mesmo no
livro sobre a moral) a unidade humana era explicitamente afirmada.
Quanto a saber com precisão se essa postura já monista é constante,
ou se ela se torna definitiva a partir de 1931, é uma questão que
apenas a seqüência da obra, por mais curta que tenha sido, poderá
esclarecer — em especial os Carnets póstumos, tidos usualmente
como a defesa mais explícita do unitarismo que Lévy-Bruhl teria
pronunciado. Entretanto, antes de abordar esses últimos escritos,
convém percorrer rapidamente A Experiência Mística e os Símbolos
entre os Primitivos.
Publicado apenas um ano antes da morte de seu autor, esse
livro enuncia, a partir de seu título mesmo, o conjunto de questões
270 Razão e Diferença

que pretende tratar: será legítimo aplicar, sem crítica prévia, as


noções ocidentais de experiência e símbolo para a compreensão e
descrição da mentalidade primitiva? A orientação mística própria a
essa mentalidade “é bem uma ‘experiência’ no sentido estrito da
palavra?” (ES: 7). Enfim, a participação, característica central dessa
forma de pensamento, poderia de fato ser traduzida como “a idéia
de uma relação apreendida pelo espírito entre o símbolo e o que
representa ou sugere?” (ES: 174). Percebe-se imediatamente que a
obra se situa na continuação das precedentes, tratando apenas de
explorar melhor o que nelas teria sido apenas evocado. Não é pois
de estranhar que A Experiência Mística… inicie justamente citando
a definição de “místico” proposta em As Funções Mentais nas
Sociedades Inferiores (ES: 3). De qualquer forma, Lévy-Bruhl propõe
aqui dar um passo além dos resultados já obtidos, aprofundando sua
tentativa de escapar das conceituações ainda negativas sobre a
mentalidade primitiva, conceituações que continuaria de algum
modo a adotar e que exprimiriam sobretudo “a impressão produzida
sobre espíritos orientados como os nossos” pelas operações tão
diferentes que caracterizariam essa mentalidade (ES: 77). Assim,
noções como as de “impermeabilidade à experiência” (A Mentali-
dade Primitiva), “falta de nitidez” das representações coletivas
primitivas (A Alma Primitiva), caráter “assistemático” das concep-
ções sobre a natureza e o sobrenatural (O Sobrenatural e a Natureza
na Mentalidade Primitiva), “fluidez” do universo mítico ou “tendên-
cia pouco conceitual” (A Mitologia Primitiva), deveriam encontrar
no conceito de “experiência mística” a positividade que de fato
possuiriam e que, até aqui, teria permanecido oculta por um
vocabulário ainda inadequado. Não que seja fácil definir com
precisão essa última categoria: “será que podemos, por maior que
seja o esforço efetuado, nos representar essas participações como
o faz o Australiano? Representar-nos aliás não bastaria ainda. Seria
preciso também, e sobretudo, fazer viver em nós sua experiência,
seu calor” (ES: 108). Ao mesmo tempo, seria realmente necessário,
e mesmo desejável, atingir definições claras, explicar em suma? Na
medida em que essas experiências se fundam em “participações”,
não podem jamais ser completamente ‘explicáveis’. Nossa
necessidade de compreender se esgotaria em esforços
cujo sucesso não poderia ser completo, uma vez que se
aplicam a um problema mal colocado. Querer tornar uma
participação inteligível como uma relação apreendida
pelo entendimento, é inevitavelmente enganar-se (…).
Sem dúvida é inútil pesquisar como se realiza uma
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 271

participação (…), isto é, querer torná-la transparente,


quando por sua natureza ela é necessariamente opaca
para nosso pensamento (ES: 291-2).
O paradoxo da explicação lógica da mentalidade prelógica
parece levado assim até seu limite, mas é exatamente neste
momento que a “solução” proposta três anos antes é chamada a
intervir. Seria possível penetrar na experiência mística dos primiti-
vos desde que tentássemos “senti-la e pensá-la como eles, desposar
realmente sua atitude, e através de um esforço de simpatia, alcançar
a experiência de sua experiência mística” (ES: 9 — o grifo é meu).
Isso significa que deveríamos encarar o fato de que o primitivo
aceita essa experiência mística do mesmo modo que aceitamos a
ordinária, relativa ao mundo sensível — ainda que a primeira
signifique sobretudo um sentimento, não uma percepção intelectu-
al, de um contato imediato com as potências invisíveis, não com os
fenômenos e leis do universo objetivo. Posição metodológica, que
explica a insistência na tese da unidade última do espírito humano,
ainda que essa unidade continue sendo concebida como cindida
nela mesma. A experiência mística será definida, em oposição à
ordinária, sobretudo por seu caráter emocional, que se manifestaria
com força singular quando um ser humano (ou mesmo animal —
ES: 88-90) se defronta com o “insólito”. Comum a toda a humanida-
de, essa experiência mística seria apenas mais claramente visível —
uma vez que dominante e culturalmente elaborada — nas socieda-
des primitivas. Além de universal, a experiência mística
desempenharia igualmente uma função fundamental “no desenvol-
vimento da vida mental das sociedades humanas” (ES: 95): forneceria
ao homem, em última instância, a “intuição cega”4 de que é
realmente possível não se contentar com o mundo dado e transcen-
der o universo sensível (ES: 97). Esse princípio não deve, contudo,
ser levado excessivamente longe. Lévy-Bruhl observa que se a
“categoria afetiva do sobrenatural” permite, enquanto categoria,
essa ultrapassagem do sensível — e conseqüentemente o “desen-
volvimento da vida mental” — tampouco pode deixar de funcionar,
enquanto afetiva, como obstáculo a esse desenvolvimento (ES: 96).
A passagem do “sentimento” de existência de uma realidade outra
para a “concepção” de um mundo inteligível distinto do sensível
implicaria uma ruptura que nenhum esquema linear ou evolutivo
seria capaz de explicar. “Desse modo, a experiência dos primitivos
assumiu um duplo aspecto”, o de uma “experiência ordinária” e o
de uma “experiência mística” (ES: 94) — o que não significa que
272 Razão e Diferença

efetuem conceitualmente tal distinção, para nós tão óbvia. Tudo se


passa como se os primitivos adotassem uma espécie de “duplo
realismo”, à maneira de Jacobi:
A natureza e a sobrenatureza aparecem a eles como
entremeadas. Ainda que sentidas como distintas, são
dadas em conjunto em uma experiência única e global,
onde entram ao mesmo tempo a experiência positiva ou
ordinária (realidade sensível, natureza), e a experiência
mística (potências invisíveis, sobrenatureza) (ES: 169-70).
Na verdade, o mundo invisível funcionaria como um a priori
absoluto, destinado a ser simplesmente confirmado em todas as
ocasiões pela experiência sensível, não a ser induzido a partir dela
(ES: 10): “nada é rejeitado antecipadamente como impossível ou
contraditório” (ES: 248). Característica que só pode provocar uma
séria diferença entre nós e os primitivos, ao nível das condições de
possibilidade da experiência: “a nossos olhos o que não é possível
não poderia ser real. Aos seus, aquilo que sua experiência lhe
apresenta como real é aceito como tal, incondicionalmente. Se
refletissem acerca disto, diriam sem dúvida que é preciso que isso
seja possível, uma vez que isso é” (ES: 101).
Mas, o que poderia tornar possível a própria experiência
mística dos primitivos? Se ela parece tão estranha e difícil de
compreender, como pode ser aceita sem maiores problemas ou
questionamentos? Para responder a estas questões, Lévy-Bruhl
introduz outra noção fundamental em A Experiência Mística…: um
conjunto de crenças tradicionais garantiria em última instância a
realidade desse tipo de experiência, crenças dadas no plano das
representações coletivas com tal força que os indivíduos só pode-
riam a elas se submeter. Este princípio, que aparece diversas vezes
ao longo da obra de Lévy-Bruhl, é, entretanto, concebido agora
como insatisfatório, na medida em que só resolveria o problema às
custas da introdução de uma nova ilusão: a própria distinção entre
experiência e crença não existiria do ponto de vista da mentalidade
primitiva, sendo apenas para nós que elas podem se opor claramen-
te, como o certo ao incerto (ES: 122). Essa oposição foi historicamente
construída a partir da consideração exclusiva da experiência sensí-
vel, sem levar em conta (pelo contrário, excluindo deliberadamente)
a idéia de uma modalidade mística da experiência, justamente a que
importa neste caso. Ora, se renunciarmos definitivamente a projetar
distinções dessa natureza sobre um pensamento que não as
conhece nem imagina que possam existir, talvez possamos chegar
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 273

a admitir que os primitivos aceitem como “experiência” o que


recusamos enquanto tal (ES: 125):
Nós dizemos que eles ‘crêem’ que o mundo mítico foi real,
e que o é sempre, que o urso compreendeu o que o
indígena lhe dizia, etc…. É ainda admitir implicitamente,
é postular que sua orientação e seus hábitos mentais não
diferem dos nossos, e que não devem se afastar deles. De
fato, em todos os casos desse gênero, eles não têm consci-
ência de ‘crer’, mas de sentir, de experimentar a realidade
do objeto, não menos do que quando se trata dos seres e
acontecimentos do mundo que os rodeia (ES: 127-8).
É preciso, portanto, tomar cuidados muito especiais com a
linguagem. Talvez seja possível continuar falando em “crença” e em
“experiência” ao nos referimos às sociedades primitivas. É preciso
ter sempre em mente, todavia, que neste caso, esses termos não
passam de sinônimos que dizem igualmente respeito a uma
realidade invisível e mística, não menos real, contudo, em função
dessas características. Caso contrário, essas palavras se converterão
imediatamente, como costuma ocorrer, em preconceitos que defor-
mam a descrição e análise dessas realidades outras.
Essas considerações acerca da experiência mística preparam
o terreno para o segundo tema abordado nesse último livro, a
questão do simbolismo próprio às sociedades primitivas. A função
dos símbolos consistiria aí em transportar uma experiência intangí-
vel, embora sentida como real, para o domínio da sensibilidade (ES:
170). Estes símbolos não poderiam, portanto, desempenhar o papel
de simples representantes convencionais de uma realidade que lhes
seria exterior; seriam, antes, uma verdadeira dimensão constitutiva
dessa realidade enquanto mística, diferindo desta apenas na medida
em que se oferecem à sensibilidade. Assim, se por um lado, o
conceito de símbolo, tal qual o entendemos, é inaplicável às
participações primitivas, por outro é inegável que os que vivem
mergulhados e penetrados por essas participações “se movem
‘através de uma floresta de símbolos’, segundo a célebre expressão
de Baudelaire” (ES: 175-6). Para que isso seja admitido, é estritamen-
te necessário compreender que os símbolos aí presentes não podem
consistir em “obras do entendimento, como os nossos”, existindo,
de algum modo, “antes de serem apreendidos, nas participações
que se objetivam através deles” (ES: 176). É portanto inútil indagar
se diante de um símbolo, o primitivo pensa estar apenas na presença
de um representante, ou se, ao contrário, sente também, e principal-
274 Razão e Diferença

mente, que o próprio ser invisível que o símbolo “representaria”


estaria diante dele. Do ponto de vista da mentalidade primitiva, o
que de fato ocorreria é que essas duas entidades, representante e
representado, não fazem mais que uma (ES: 206).
Isso significa que o simbolismo primitivo só poderia ser
entendido adequadamente se concebido como um “simbolismo de
participação”, que implica a idéia de que agir sobre o símbolo é já
agir sobre o ser, donde derivariam todas as crenças e práticas
relacionadas com a questão da eficácia simbólica — tema recorrente
no pensamento de Lévy-Bruhl. Já em A Mentalidade Primitiva, ele
se esforçara por demonstrar que os presságios, por exemplo,
agiriam simultaneamente como “signos” e como “causas” do que
supostamente estariam apenas anunciando, permitindo desse modo
toda uma gama de intervenções corretivas capazes de modificar as
previsões (MP: 142-8. Cf. também, MP: 127; 175; 219; 403; entre
outras passagens). A Alma Primitiva, por sua vez, procurava
distinguir o sentido meramente metafórico em que falamos dos
“membros de uma família” da acepção absolutamente literal que
expressões desse tipo possuiriam entre os primitivos, implicando aí
uma indissociabilidade e uma interdependência dos componentes
do grupo familiar, sentidas como tão profundas quanto aquelas que
uniriam, de fato, os “membros” de um corpo físico (AP: 80). Ao
mesmo tempo, Lévy-Bruhl se esforçava por demonstrar que a arte
primitiva seria, ao contrário das aparências, completamente realista,
uma vez que os seres “invisíveis” que toma como modelo, estariam
aí mais “presentificados” que “representados” (AP: 53-4). Da mesma
forma, O Sobrenatural e a Natureza… fala de um “simbolismo
realista” (SN: 30), que encarnaria “uma participação real, uma
identidade de essência, uma consubstancialidade” (SN: 189). Enfim,
A Mitologia Primitiva trata da “participação-imitação”, operação
que se processaria tanto no nível dos mitos (enquanto atualização
rememorativa de um passado tido como de fato existente) quanto
no dos ritos (enquanto dramatização dos próprios mitos e, conse-
qüentemente, atualização dos acontecimentos passados dotada de
eficácia própria (MyP: 119; 166).
Essa discussão aparentemente apenas terminológica, oculta
uma questão de grande importância epistemológica e do maior
interesse. Atrás do cuidado com os termos, é a noção geral de
representação que está em causa, uma vez que só “representa”
aquele que deixou de “sentir” (ES: 172-3). Observamos como As
Funções Mentais…, que adotavam como objeto central justamente
as “representações coletivas”, já mencionavam a inadequação deste
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 275

conceito no que se refere à compreensão e à descrição dos


fenômenos próprios à mentalidade primitiva. Tudo se passa,
entretanto, como se os primitivos levassem a representação mais a
sério que nós mesmos: para nós, o termo é apenas “metafórico; para
eles, é literal”. Isto quer dizer que, através do símbolo, o ser “se acha
realmente ‘presente’” (ES: 270) e que “‘representar’ deve ser
entendido aqui no sentido etimológico literal em que os primitivos
tomariam esta palavra se a empregassem: tornar de novo presente,
fazer reaparecer aquilo que desapareceu” (SN: 124). O simbolismo
primitivo seria, deste ponto de vista, simultaneamente realista e
eficaz, assentado em participações, não em representações, voltado
muito mais para interpretar e intervir no universo que para
simplesmente conhecê-lo e torná-lo inteligível.

A
Esses são temas candentes e contemporâneos, apenas formu-
lados em linguagem distinta. Experiência e crença, simbolismo e
representação, são questões que de uma forma ou de outra se
encontram ainda no coração da pesquisa e da teoria antropológicas.
É curioso assim, que com uma ou outra exceção, tudo o que Lévy-
Bruhl tenha dito sobre esses problemas não chegue sequer a ser
mencionado pelos comentadores e críticos contemporâneos — para
não falar dos pesquisadores que trabalham com esses objetos e com
questões a eles aparentadas. Tratar-se-ia simplesmente de enve-
lhecimento efetivo das idéias e teses do autor, simples preconceito
ou, mais seriamente, de uma espécie de defesa, mais ou menos
inconsciente, contra certos desenvolvimentos que poderiam amea-
çar nosso sono dogmático? Um dos objetivos deste trabalho é, senão
responder diretamente a essas dúvidas, ao menos encaminhar um
debate a seu respeito. Para fazê-lo com consistência, é preciso
organizar um pouco o que foi dito até aqui acerca do pensamento
de Lévy-Bruhl de modo deliberadamente não dogmático ou exces-
sivamente sistemático. Para isso, o melhor caminho é dirigir-se aos
Carnets póstumos, que tanta controvérsia causaram. Sobre eles já se
falou: anotações do final da vida, as únicas que sobreviveram à
guerra; reflexões sobre o trabalho já efetuado e planejamento de
uma obra futura que jamais viria a ser escrita; notas estritamente
pessoais que devem ser assim encaradas e analisadas; esforço
derradeiro de levar às últimas conseqüências “essa constante
276 Razão e Diferença

desconfiança em relação a si mesmo” (ES: 1), sob o signo da qual


Lévy-Bruhl sempre colocou seu pensamento; curtíssimas observa-
ções que conseguiram a proeza de obter simpatia entre os críticos
mais radicais. Quase todos os temas e idéias desenvolvidos ao longo
de mais de trinta anos de trabalho se encontram aí resumidos,
atualizados e, muitas vezes, criticados e ultrapassados, de tal forma
que a partir desses “cadernos” talvez seja possível tornar mais nítida
uma certa imagem do pensamento de Lévy-Bruhl.
Se os Carnets foram, ao menos durante certo período, tão
famosos, isso se deve ao fato de terem sido tomados sobretudo
como esforço destinado a superar antigas posições, como auto-
crítica especialmente admirável em um pensador já no final da vida.
É curioso observar, entretanto, que as derradeiras anotações — de
13 de fevereiro de 1939, exatamente um mês antes da morte do autor
— se voltam mais para o futuro que para o passado. “Dificuldades
não resolvidas” é seu título, e elas se encerram refletindo a intenção
de escrever uma nova obra (“retomar então sucessivamente cada
um dos aspectos, mostrando a solidariedade de uns com os outros”
— CL: 252), jamais escrita, mas da qual, a partir dessas poucas
anotações, não é completamente impossível tentar adivinhar as
pretensões e os caminhos buscados. Quais são as noções mencio-
nadas ao final desse último “carnet” que viriam a constituir as
“dificuldades” que ainda estariam esperando para serem “resolvi-
das”? “O que precede deve me conduzir a alguma coisa de preciso
no que diz respeito à participação” (CL: 251). É exatamente essa
noção — a participação enquanto fato, não enquanto lei — que se
acha no cerne de todas essas observações do final da vida. Há mais,
entretanto: as noções de “experiência mística”, “categoria afetiva do
sobrenatural” e “condições de lugar, tempo e nexo causal”, deveri-
am também ser aprofundadas para que uma apreensão mais justa
da própria participação se tornasse possível (CL: 251-2). Em suma,
poder-se-ia afirmar que ao final da obra, Lévy-Bruhl havia isolado
a experiência mística e suas condições de possibilidade — condi-
ções de que a participação mesma faria parte, ao lado das categorias
de tempo, espaço e causalidade — como os verdadeiros problemas
a serem analisados em uma investigação global do pensamento
primitivo. Isso explica que uma série de temas anteriormente
privilegiados seja deixada de lado, sendo que alguns chegam
mesmo a ser explicitamente recusados.
O problema central, a “dificuldade não resolvida” mais
importante, continua a ser o fato de que “nossa terminologia
filosófica e psicológica é cruelmente inadequada, e corre continua-
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 277

mente o risco de falsear a descrição” (CL: 252). Para evitar esse risco,
na obra que planejava escrever, Lévy-Bruhl pretendia repassar cada
uma das “afirmações e fórmulas” que havia proposto nos trabalhos
anteriores, tratando de atualizá-las de acordo com as novas tendên-
cias das ciências sociais e, especialmente, seguindo o que considera
a evolução de seu próprio pensamento (CL: 163-4). Tratar-se-ia,
creio, de atenuar e matizar tudo o que teria sido proposto de forma
taxativa, como se fosse definitivo, o que tantos mal-entendidos
provocou. O autor parece igualmente decidido a abandonar todas
as noções e conceitos que criariam a ilusão de uma falsa simplici-
dade do objeto estudado, a fim de ser capaz de fornecer um retrato
da “mentalidade primitiva” que efetivamente respeitasse sua com-
plexidade e opacidade intrínsecas.
Nesse sentido, é natural que o conceito mais visado por essa
auto-crítica seja o de “prelogismo”. Isso se deve, contudo, muito
mais às discussões e incompreensões que teria suscitado que a uma
pretensa inconsistência interna da noção. Como tentei demonstrar,
o caráter prelógico da mentalidade primitiva poderia perfeitamente
ser compreendido como o simples fato de que essa forma de
pensamento aceitaria as preligações entre seres e coisas sem
qualquer crítica prévia, fazendo com que o que só pode parecer, do
ponto de vista de nossa própria forma de pensar, inconsistente ou
mesmo contraditório, lhe seja absolutamente indiferente. Os críti-
cos, entretanto, preferiram insistir na suposta anterioridade do
prelógico em relação ao lógico (atribuindo ao autor um evolucio-
nismo que sempre combateu) ou na pretensa existência de uma
lógica outra, que acabaria por tornar os primitivos espantosamente
impenetráveis a nossa capacidade de compreensão5. Quando Lévy-
Bruhl proclama o “abandono definitivo do caráter prelógico” (CL:
60), não é exatamente sobre nenhum desses dois pontos que parece
insistir. Após constatar que a esse respeito, “já coloquei muita água
em meu vinho desde há vinte e cinco anos”, lamenta apenas ter-se
deixado seduzir por uma “necessidade de simetria”, dedicando-se
a tentar encontrar aquilo que na mentalidade primitiva correspon-
deria, ainda que de forma negativa, aos princípios que comandam
nosso próprio pensamento (idem). Tratava-se de uma
espécie de prolongamento da hipótese muito mais radical
da qual eu havia partido quando me perguntava se
sociedades de estrutura diferente não possuiriam tam-
bém, ipso facto, lógicas especificamente diferentes (…).
Renunciei rapidamente a essa hipótese ao mesmo tempo
simplista e um pouco crua (CL: 60-1).
278 Razão e Diferença

O prelogismo teria permanecido, portanto, como forma


atenuada desse sociologismo inicial e insustentável. Agora teria
chegado o momento de abandonar igualmente “um paralelismo
arbitrário e artificial” com nossas próprias categorias e princípios
intelectuais e cognitivos (CL: 61): o prelogismo passa a ser conside-
rado etnocêntrico. Não porque suporia uma inferioridade do
pensamento primitivo em relação ao nosso — coisa jamais imagi-
nada com o conceito — mas porque, ao contrário, essa noção estaria
ainda marcada pelo fato de querer impor uma semelhança, ainda
que invertida, onde apenas a diferença deveria ser posta em destaque.
Lévy-Bruhl acredita ter analisado até então a mentalidade
primitiva de um ponto de vista “negativo”, sendo necessário
doravante “aprofundar a parte positiva” (CL: 82). Para isso, inclina-
se na direção de uma posição aparentemente muito empirista, que
em lugar de “fazer falar os fatos”, deveria ter a “prudência científica
de deixá-los falar, e de não pressupor nada que possa nos impedir
de vê-los tal qual são” (CL: 61-2). Nossa única esperança residiria em
nossa capacidade de apreender os “fatos antes de exprimi-los e
formulá-los”, capacidade extremamente difícil de ser desenvolvida
na medida em que nossos hábitos mentais e, em especial, nosso
vocabulário tradicional funcionam como barreiras impedindo uma
apreensão mais livre e direta (CL: 83). A alternativa é fazer o possível
para “sentir e compreender a atividade mental de que tratamos,
antes de fazê-la entrar nos quadros que a nossa tornou tão familiares
que parecem necessários” (idem). Para atingir esse objetivo (apre-
ender positivamente a mentalidade primitiva), Lévy-Bruhl dispõe,
no arsenal conceitual elaborado ao longo de trinta anos, de duas
alternativas que encara sucessivamente. A primeira é o reconheci-
mento de que o que pôde em certo momento ter aparecido como
“prelógico”, seria na verdade apenas a manifestação mais visível
para nós de uma tendência a aceitar determinadas incompatibilidades
de caráter físico, tendência que só poderíamos recusar: “incompa-
tível não é contraditório. A incompatibilidade das proposições
constitui uma impossibilidade física, não uma impossibilidade
lógica” (CL: 9). O bororo pode acreditar, ou saber, que também é
uma arara; isso nada revelaria de especificamente lógico a respeito
de seu pensamento; revelaria apenas que ele é capaz de aceitar uma
“dualidade” física que nós, há muito tempo, não podemos mais
admitir. Escapar das falsas questões de ordem lógica, limitando-se
ao terreno dos fatos, é um dos meios para evitar os paralelismos
enganadores, a cuja tentação Lévy-Bruhl teria sucumbido em
algumas ocasiões. A noção de “aceitação de incompatibilidades
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 279

físicas” pretenderia apenas constatar um fato, não desvendar um


suposto princípio de pensamento, como a ênfase no “prelógico”
pôde ter sugerido.
Por outro lado, desde As Funções Mentais…, o caráter
prelógico da mentalidade primitiva sempre esteve ao lado de sua
“orientação mística”, formando com ela dois dos três traços defini-
dores do pensamento primitivo — e, desde 1910, não é difícil
perceber uma preponderância progressiva da segunda característi-
ca. Lévy-Bruhl acredita agora ter cometido o erro de colocá-las em
pé de igualdade, tornando-se necessário, na medida em que
pretende abandonar definitivamente o caráter prelógico, realçar
ainda mais o que significa de fato o misticismo primitivo:
ressalta agora que há apenas um único caráter fundamen-
tal, a saber, o místico; o outro que acreditei dever
acrescentar como não menos essencial, o prelógico,
aparece doravante como um outro aspecto — ou antes
como uma conseqüência natural do primeiro (CL: 48).
Ora, a chamada orientação mística da mentalidade primitiva
sempre significou acima de tudo que esta se interessaria por um tipo
de experiência que nós tendemos a desprezar e a recusar enquanto
tal, que os primitivos preferem se concentrar nas forças e seres
invisíveis mais que naquilo que consistiria apenas em suas manifes-
tações sensíveis. Desse modo, o que é, ou parece ser, “impossível”
ou “incompatível” do segundo ponto de vista, poderia não sê-lo em
absoluto quando encarado do primeiro. Isso nada tem a ver com
lógica, mas com uma espécie de escolha feita a priori pelo
pensamento primitivo: o que aparecia anteriormente como prelógi-
co, e que agora surge como aceitação de incompatibilidades físicas,
só poderia ser uma “conseqüência natural” dessa orientação mística
(CL: 16). Tudo dependeria assim desse tipo de orientação própria
à mentalidade primitiva, e mesmo a “categoria afetiva do sobrena-
tural” (conceito proposto apenas em 1931) deveria ser abandonada
em benefício exclusivo do misticismo, na medida em que mesmo
adjetivada (“afetiva”), corre o risco de fazer crer em uma caracteri-
zação especificamente lógica do pensamento primitivo. Afinal de
contas, por maiores que sejam as ressalvas efetuadas, categoria não
pode deixar de derivar de um vocabulário conceitual excessivamen-
te filosófico. Em última instância, prelogismo, categoria afetiva do
sobrenatural e aceitação de incompatibilidades físicas, são noções
que poderiam e deveriam ser assimiladas ao princípio básico de
uma “orientação mística de um certo tipo de mentalidade”, ocorren-
280 Razão e Diferença

do apenas que a última formulação (aceitação…) não esbarra nas


mesmas dificuldades que levaram ao abandono definitivo das duas
primeiras (CL: 137-8).
Como a “aceitação de incompatibilidades físicas” está estrei-
tamente ligada às noções de “tendência pouco conceitual” da
mentalidade primitiva e “fluidez” do mundo sobrenatural, é natural
que essas hipóteses também passem pela auto-crítica, sendo
igualmente rebatidas sobre o princípio geral da orientação mística
do pensamento primitivo. Se, por exemplo, a identidade bororo/
arara pode ser aceita, isso só poderia ser atribuído a uma certa
indistinção nas fronteiras desses dois “conceitos”, que viria a
explicar também a falta de sistematicidade das concepções primiti-
vas acerca do universo, seu caráter não cosmológico, com sua
conseqüente fluidez. A própria falta de nitidez conceitual só pode
ser entendida se levarmos em conta a profunda consubstancialidade
que os primitivos sentiriam entre todos os elementos do universo,
traço que, consistindo na circulação de essências e forças invisíveis
entre os seres e coisas, é apenas mais um aspecto do misticismo
primitivo:
Não existe então, como acreditei e como disse durante
muito tempo, um caráter específico da mentalidade
primitiva que constitui uma diferença entre ela e a nossa
do ponto de vista lógico: uma certa tolerância à contradi-
ção, exigências lógicas menores, etc…. Há aí sim, mais
simplesmente, uma conseqüência imediata do caráter
místico dessa mentalidade, que se traduz constantemente
em sua orientação (CL: 182).
Finalmente, outra característica tida como central desde 1922,
o “ocasionalismo” da mentalidade primitiva, não poderia deixar de
ser encarada como simples manifestação da orientação mística do
pensamento que a produziria e adotaria. Como não se trata mais de
supor exigências lógicas outras, ou menores, que desprezariam as
causas objetivas em benefício das invisíveis, esse ocasionalismo
primitivo precisaria ser reinterpretado ou ter seus termos reformu-
lados. A mentalidade primitiva simplesmente não veria “interesse”
em levar em consideração essas causas que imaginamos objetivas
(CL: 32): orientada misticamente, só poderia se interessar pelos
aspectos intangíveis do mundo e da experiência, sendo, portanto,
perfeitamente coerente consigo mesma. Isso explica, por sua vez,
que categorias como tempo, espaço, classe e causalidade — tal qual
as entendemos — não servem para definir esse tipo de pensamento,
uma vez que foram elaboradas por uma longa tradição filosófica e
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 281

científica que se caracteriza justamente por se concentrar na busca


da inteligibilidade do universo sensível, privilegiando a atividade
cognitiva do espírito. A mentalidade primitiva, ao contrário, preten-
de acima de tudo interpretar as forças ocultas, de modo a satisfazer
antes de tudo a afetividade.
Tudo se passa como se a bateria conceitual que Lévy-Bruhl
procurou criar ao longo de trinta anos pudesse ser reduzida a uma
das primeiras noções que propôs, a de misticismo ou orientação
mística. É preciso lembrar, contudo, que o triângulo conceitual
estabelecido em As Funções Mentais… apresentava, ao lado dessa
orientação e do prelogismo, a lei de participação como traço
característico da mentalidade primitiva. Se o segundo vértice foi
inteiramente abandonado em benefício do primeiro, não é exata-
mente isso o que ocorrerá com o terceiro. Lévy-Bruhl continua, em
1938-39, considerando perfeitamente “legítimo falar de participa-
ção”, fazendo questão, contudo, de introduzir neste momento uma
importante ressalva, ao observar que o que talvez não seja legítimo é
falar de uma lei de participação, lei da qual confesso logo
ser incapaz de fornecer um enunciado exato, ou mesmo
mais ou menos satisfatório. O que subsiste é o fato (não
a lei) de que o ‘primitivo’ tem muito freqüentemente o
sentimento de participações entre ele mesmo e tais ou
quais seres ou objetos ambientes, da natureza ou da
sobrenatureza (CL: 77).
A participação pode deixar de ser encarada de um ponto de
vista lógico, como propriedade do que havia sido denominado
“ligações entre as representações”, para passar a ser entendida como
verdadeiro “pressuposto” da mentalidade primitiva, que se caracte-
rizaria justamente pela recusa radical de representar os seres em
separado para reuni-los a posteriori (CL: 78). O triângulo conceitual
inicial parece dar lugar a um par de noções fundamentais. Do
mesmo modo que a predominância da orientação mística sobre o
prelogismo aponta para o abandono da infrutífera pesquisa acerca
de uma pseudo-lógica primitiva, a idéia de que a participação
funciona mais como fato que como lei, conduz na mesma direção.
Cumpre, aqui também, não dar conta dessa participação situando-
a do lado do entendimento, assumindo definitivamente o princípio
de que ela é acima de tudo de ordem afetiva e emocional (CL: 117-
20): “o passo, espero, decisivo, que acabo de dar, consiste, em duas
palavras, em abandonar um problema mal colocado, que acarretava
dificuldades inextrincáveis, e em limitar-me a uma questão cujos
282 Razão e Diferença

termos são sugeridos unicamente pelos fatos” (CL: 129). Trata-se,


portanto, do abandono de todas as formulações supostamente
lógicas, inclusive da que consistia apenas em um meio de aprofun-
dar essas formulações, segundo a qual a participação seria “alguma
coisa de essencial para a mentalidade primitiva, e, provavelmente,
para o espírito humano, que compensa, e talvez serve de contrapeso
aos princípios reguladores do pensamento lógico” (idem).
O problema é que o abandono das noções de prelógico e de
lei colocará uma questão extremamente delicada. Apesar de tudo,
eram elas que davam ao menos a impressão de que seria possível
penetrar e explicar a mentalidade primitiva. Se os primitivos se
orientam misticamente, se suas representações obedecem à lei de
participação, se a experiência sensível é completamente impotente
para demovê-los de suas crenças tradicionais, tudo isso poderia ser
atribuído sem muito custo à existência em seu pensamento de um
tipo muito especial de lógica, que funcionaria como verdadeira
condição de possibilidade dessa estranha psicologia e que estaria,
por sua vez, assentada em um tipo muito particular de estrutura
social. O unitarismo lógico — ao lado do dualismo, que não deixa
de ser uma modalidade desse unitarismo — e o sociologismo
apresentam sempre essa virtude, e esse defeito, de nos satisfazerem
depressa demais. Ora, sem o prelógico — e sem o sociologismo,
abandonado anteriormente — como explicar tanto a orientação
mística quanto a participação-fato? Parece-me que aqui Lévy-Bruhl
realmente dá um passo “decisivo”: renunciar a qualquer tipo de
abordagem logicizante significa dar-se conta de que a inteligibilida-
de que essa perspectiva oferece repousa apenas no fato de estar de
acordo com nossas maneiras mais tradicionais de pensar. Satisfeitos
com a demonstração da existência de uma rede de ligações
qualquer, tendemos a evitar o aprofundamento de determinadas
questões. A verdade é que não basta constatar que em suas
representações e comportamentos aparentemente mais estranhos
os primitivos estariam, no fundo, obedecendo a princípios lógicos
(se idênticos ou não aos nossos pouco importa). Se realmente
quisermos atingir o núcleo da questão da alteridade, seria necessário
indagar como — e talvez por que — princípios tão semelhantes,
ainda que supostamente invertidos, são capazes de engendrar
fenômenos sociais e psicológicos concretos que dificilmente dei-
xam de nos surpreender e espantar.
A “solução” apresentada para essa dificuldade de compreen-
são e explicação é quase kantiana. Tanto o misticismo quanto a
participação seriam “fundamentais” (CL: 107), ou seja, funcionariam
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 283

como uma espécie de a priori cuja natureza intrínseca é inútil


investigar: investiga-se a partir deles, mas eles mesmos não pode-
riam constituir objeto de investigação. Assim, o fato de jamais ter
desenvolvido uma “teoria da participação”, é encarado por Lévy-
Bruhl como verdadeira vantagem, uma vez que a participação
enquanto fato só poderia ser concebida, ou ao menos admitida,
como sendo, por sua natureza mesma, “‘refratária à análise’ (…), não
podendo ser tornada inteligível: condenação a priori de toda teoria
explicativa, uma vez que se ela conseguir tornar a participação
inteligível, será então falsa e destruirá seu objeto” (CL: 89). Em suma,
a participação
não é ‘explicada’ — ela não pode, não deve ser, não tem
necessidade de legitimação (CL: 234 — o grifo é meu).
Este ponto é de crucial importância e poderia, sem dúvida, ser
estendido para a orientação mística. Existe, é claro, uma diferença
para com os a priori kantianos: Lévy-Bruhl, como Durkheim,
sociologiza os “fundamentos”. Ou antes, e ao contrário de Durkheim,
ele os relativiza, pois jamais é explícito acerca de uma possível
origem sociológica desses fundamentos. Na verdade, trata-se de um
esforço para reconhecer plenamente a existência de distintos modos
de pensamento, cada um dotado de suas condições de possibilidade
específicas. Que uma ou outra dessas formas de pensar domine em
tal ou qual sociedade é um problema secundário diante do fato, da
positividade, da diferença e da heterogeneidade de suas condições
de possibilidade.
Ainda que isso seja apenas provisório, é possível isolar pelo
menos dois modos de pensamento que se distinguem pelas formas
de apreensão do real. Nós, ocidentais, estamos há muito tempo
acostumados com um pensamento conceitual e analítico que tende,
cartesianamente, a dividir a dificuldade para resolvê-la, ou seja, a
analisar o todo para se concentrar em cada uma das partes
constitutivas, deixando o trabalho de síntese para mais tarde,
subordinando-o à primeira operação — modo de pensamento que
se mostrou muito eficaz para a compreensão e para o domínio da
natureza. Entretanto, ele parece deixar sempre um resíduo de
insatisfação à medida em que se processa, como se a síntese obtida
depois da análise nunca chegasse a ser inteiramente satisfatória para
o espírito. A mentalidade “primitiva” age exatamente no sentido
contrário: “o que é dado primeiramente é a participação” (CL: 3).
Nós só podemos falsear essa propriedade, pois somos evidentemen-
te obrigados a exprimi-la, devido a nosso vocabulário e a nossos
hábitos mentais, como associação a posteriori entre seres que seriam
284 Razão e Diferença

inicialmente representados como “claros e distintos”. Do ponto de


vista dos “primitivos”, os inúmeros casos de “dualidade-unidade” ou
“multiplicidade-unidade” — o bororo que é homem e arara; o morto
que é fantasma e cadáver; etc… — indicam que as coisas se
passariam de outra maneira, que a unidade é, neste caso, sentida
como efetivamente primeira. A “dualidade” primitiva não poderia
ser confundida com o “dualismo” ocidental, constituindo uma forma
muito complexa de apreensão do todo antes das partes (CL: 4-5).
Essa constatação tem uma importante conseqüência para um
dos temas que sempre chamaram a atenção de Lévy-Bruhl: “a
representação de um indivíduo separado, que nos parece tão
simples e tão natural, não é entretanto primitiva” (CL: 18-9). Não que
o indivíduo ou a pessoa simplesmente não existam do ponto de vista
dos primitivos. Ocorre apenas que essas entidades, para nós simples
e indivisíveis, só chegariam a ser representadas enquanto “perten-
cem” a um grupo, ou antes, a uma totalidade — única realidade
apreendida de início — cujas partes poderiam vir a ser progressi-
vamente isoladas através de uma série de etapas intermediárias (CL:
18). A representação do indivíduo só poderia, portanto, ser “dada
secundariamente e nunca de forma isolada” (CL: 19). Essa conclusão
ficaria especialmente clara se analisássemos com mais cuidado uma
das fórmulas mais repetidas pela escola antropológica inglesa, que,
devido a seu viés francamente associacionista, teria levado às
últimas conseqüências a tendência a projetar nosso próprio dualis-
mo sobre as “dualidades-unidades” primitivas. De fato, os
evolucionistas sempre consideraram que o juízo — para eles
defeituoso — pars pro toto seria um dos procedimentos mais típicos
e recorrentes do pensamento primitivo. Para Lévy-Bruhl, ao contrá-
rio, mesmo sem negar que esse tipo de juízo possa ser empiricamente
observado nas sociedades primitivas, ele jamais poderia significar
um isolamento primeiro da “parte”, que, apenas em seguida, seria
tida como valendo pelo “todo”. De seu ponto de vista, a fórmula
implicaria antes de tudo uma participação, estando ligada ao fato
de que, para a mentalidade primitiva, por mais estranho que isso nos
possa parecer, “a parte é o todo” (CL: 110). Isso porque a óbvia
diferença de quantidade (“a parte é menor que o todo” — CL: 109)
é muito menos importante que a identidade qualitativa, o todo e
cada uma de suas partes sendo sentidos como “consubstanciais”,
compartilhando da mesma essência mística (CL: 110). Em suma, é
a própria utilização dos termos “parte” e “todo” que “acarreta aqui
quase infalivelmente um erro” (idem).
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 285

Lévy-Bruhl parece, portanto, supor a existência de uma


oposição entre um pensamento analítico, cartesiano, e outro,
eminentemente sintético. De fato, a operação efetuada por Descar-
tes é emblemática de nossa necessidade de dividir e isolar. O cogito
implica, como se sabe, o destacamento do indivíduo pensante em
relação a um cosmos sintético, que a dúvida metódica havia a
princípio cuidadosamente destruído, a fim de que o pensamento
racional, isolado de tudo, pudesse fundar de direito a existência,
reconstruindo assim o universo (Koyré 1963). Tudo se passa como
se o pensamento primitivo procedesse de maneira radicalmente
distinta: o que assegura a existência não poderia ser o corte de todos
os laços com a realidade global, mas, ao contrário, o estabelecimen-
to de toda uma rede de participações, única forma de fundar o ser:
“Para a mentalidade primitiva, ser é participar” (CL: 22).
Isso significa que é exatamente esse cogito primitivo — que
parece afirmar participo, logo existo — que se encontra no cerne
desse pensamento sintético, que não pode nos aparecer senão
como radicalmente estranho, sendo quase inevitavelmente falseado
quando o traduzimos para nosso cartesianismo renitente. Como
bem lembra Jean-Pierre Cavaillé (1989: 467), desde 1899 Lévy-Bruhl
já situava o ponto de partida de nossa modernidade justamente no
cogito cartesiano, ou seja, no momento em que nosso pensamento
sofreu uma inflexão fundamental, abandonando o privilégio do
todo e da síntese em benefício das partes e da análise (HP: 20-1).
Descartes teria mesmo razões de sobra para se espantar com a
América e, sobretudo, com os “americanos” e seus modos de pensar.
A questão decisiva é saber se a participação, além de
intrinsecamente inexplicável, seria também absolutamente impene-
trável para nós, modo de pensamento outro que estaríamos
condenados a observar de fora, nada podendo afirmar a seu
respeito. É evidente que Lévy-Bruhl não adota esta posição, pois, se
assim fosse, tanto trabalho e tanta dúvida teriam sido apenas inúteis.
Pode ser, acredita, que “sentir participações entre os seres e os
fenômenos, seja encontrar-se na atitude familiar ao espírito humano
quando este se sente em contato com o mundo mítico — realidade
fluida, forças ao mesmo tempo transcendentes e imanentes” (CL:
156). Isso significa que o “mundo mítico” — expressão utilizada aqui
como equivalente de toda representação fluida do universo — seria
ele próprio o tão buscado a priori da participação: “no lugar de uma
natureza ordenada e inteligível como pano de fundo, sobrenatureza
e fluidez” (CL: 233). Lévy-Bruhl parece aqui retornar às “represen-
tações coletivas”, já que uma vez dado o mundo mítico, ao nível das
286 Razão e Diferença

crenças tradicionais, seguir-se-iam automaticamente as participa-


ções. Mais interessante, contudo, é que essa questão pode ser
resolvida de outra forma, evitando uma noção que Lévy-Bruhl havia
progressivamente deixado de lado. Bastaria supor que a própria
participação depende da orientação mística da mentalidade primi-
tiva. Ao não privilegiar o sensível, o pensamento só poderia se dirigir
para a participação, o que significa que enquanto a orientação
mística delimita globalmente o universo no qual o primitivo sentiria
estar vivendo e com o qual deve se relacionar, a participação se
constitui na própria modalidade de existência desse universo, bem
como na forma pela qual se processariam essas relações. É por isso
que Lévy-Bruhl pode sustentar que ainda que a participação não
possa jamais ser propriamente explicada ou esclarecida, “ela se
torna menos incrível, menos desconcertante, menos estrangeira por
assim dizer a nosso espírito. Não nos parece mais inconcebível que
tantos ‘primitivos’ se debatam nesta crença, tão conforme a seus
hábitos mentais” (CL: 217).
Tudo se desloca, pois, quando as questões são assim coloca-
das. Ao renunciar ao prelogismo e à lei de participação — ou seja,
ao abandonar a pretensão de descobrir uma diferença espe-
cificamente lógica entre a mentalidade primitiva e o pensamento
conceitual — Lévy-Bruhl se dá conta de que a pergunta que
formulara no início de suas investigações e que o orientara durante
tanto tempo deveria ser transformada, invertida mesmo. Não seria
mais possível indagar por que e como os “primitivos” pensariam de
modo diferente do nosso; e já que a hipótese evolucionista, que
supõe que pensem exatamente como nós (deixando, contudo,
sempre aberta a questão das diferenças no resultado do ato de
pensar), havia sido afastada desde o início, o único caminho que
resta é investigar “como indivíduos nitidamente definidos e, em
certos casos, pessoas se destacam dessas participações?” (CL: 23).
Assim como A Mitologia Primitiva acabava por levar à questão de
como pudemos deixar de “crer” nos mitos, caberia agora ampliar
essa questão, perguntando como pudemos deixar de “sentir”, de
forma geral, as participações (CL: 126). A resposta entrevista, apenas
provisória, apóia-se na idéia do “progresso de um pensamento cada
vez mais conceitual”, que viria substituir “pouco a pouco a abstração
afetiva pela lógica” (CL: 23). O problema é que isso explica muito
pouco, ou nada, pois esse pensamento conceitual e essa abstração
de ordem lógica teriam que ser também explicados. Não seria
possível, entretanto, sustentar — dado que todas as “explicações”
que Lévy-Bruhl sucessivamente propõe para essas questões são,
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 287

uma a uma, abandonadas — que com a nossa lógica e com os nossos


conceitos aconteceria a mesma coisa que com a participação e a
orientação mística dos primitivos? Que eles também, ao menos no
que diz respeito a sua gênese, não são explicáveis, “não podem, não
devem ser, não têm necessidade de legitimação”? A oposição que
Lévy-Bruhl tentou durante tanto tempo estabelecer, o processo de
passagem que imaginou poder um dia determinar com precisão,
assumiriam, assim, a forma da diferença e da mutação, não a do
dualismo ou do progresso.
“A participação nada tem a ver com as condições lógicas ou
físicas de possibilidade” (CL: 6); ela não é “nem percebida, nem
concebida” (CL: 111). Trata-se antes de um “sentimento de realida-
de”, aceito imediatamente como verdadeiro, independente “das
condições gerais, universais, de objetividade, das condições sob as
quais o real é necessariamente dado, isto é, na falta das quais o que
é sentido ou percebido não poderia ser real” (CL: 112). Nem
“kantianos” nem “cartesianos”, os primitivos seriam (no que diz
respeito a suas participações) absolutamente indiferentes “às
determinações do tempo e do espaço” (CL: 147), como o seriam
também em relação às de substância e causalidade. Se para nós,
ocidentais, existe uma espécie de generalidade do impossível, que
implica que o que não está de acordo com as “condições gerais da
experiência”, o “que é evidentemente absurdo”, só pode ser
“impossível, não pode ser real” (CL: 66), tudo se passa diferentemen-
te entre os primitivos. Aí, na medida mesmo em que essas condições
gerais não são tidas como existentes — ou pelo menos são de outra
natureza — a questão do real e do absurdo, do possível e do
impossível, da verdade em suma, não pode estar colocada da
mesma forma que entre nós. Ao abandonar a antiga tentação pelas
falsas questões de ordem lógica e ao deslocar seu problema para a
investigação das diferentes formas de conceber as condições de
existência, Lévy-Bruhl só pode estar propondo, ainda que implici-
tamente, uma investigação empírica dessas formas, deixando
completamente de lado a idéia de uma “teoria geral” da participação
e da mentalidade primitiva, teoria inevitavelmente condenada de
antemão ao fracasso.
Isso significa que o par conceitual orientação mística—
participação deverá receber mais um termo, reconstituindo-se, do
ponto de vista formal e sobre outras bases, o triângulo conceitual de
1910. Se o “místico” permanece enquanto orientação, e a lei é
eliminada em benefício da “participação” enquanto fato, o prelogismo,
inteiramente abolido, será substituído pela noção de “experiência”.
288 Razão e Diferença

Experiência, contudo, no sentido preciso estabelecido em 1938,


“experiência mística”, distinta da que nós próprios definiríamos
como a única existente. Não que os primitivos não conheçam uma
“experiência ordinária”; ocorre apenas que lidariam com ela “como
M. Jourdain faz prosa” (CL: 66), ou seja, aceitando-a e conformando-
se a ela quando necessário, sem refletir a seu respeito ou acerca
dessa necessidade, de forma que quando se trata de pensamento ou
representação, a experiência mística é a única que realmente
interessa à mentalidade primitiva. Para ser mais preciso, é a própria
distinção entre o “ordinário” e o “místico” que carece de qualquer
fundamento: “não há entretanto para eles mais que uma única
experiência, onde as duas experiências que nós separamos estão
sempre emaranhadas” (CL: 183). Inútil opor, no caso dos primitivos,
uma experiência ordinária e supostamente inteligível a outra,
mística e tida como ininteligível; de seu ponto de vista, sensível e
inteligível formam um composto indissociável, mantido como
totalidade pela orientação mística de seu pensamento e pelas
participações que sentem existir entre todos os elementos do
universo (CL: 183-4).
Antes de analisar melhor a noção de “experiência”, é preciso
dizer algo a respeito da questão da inteligibilidade/ininteligibilidade
do mundo, pois aqui poderia se ocultar uma perigosa armadilha
evolucionista e etnocêntrica. Mesmo se concedermos que a menta-
lidade primitiva difira do pensamento conceitual por possuir outros
interesses e acionar outros mecanismos mentais, é muito difícil
deixar de constatar que o segundo é muito mais bem sucedido que
a primeira, ao menos no que diz respeito à capacidade efetiva de
compreender, explicar e transformar o universo. Ainda que Lévy-
Bruhl não aborde essa questão de forma direta, o “carnet” de
número III contém uma passagem, escrita em 18 de julho de 1938,
que parece intuí-la, ao fazer apelo a uma “reflexão de Einstein”.
Reflexão que afirma que a “inteligibilidade do mundo sensível
ordenado e regulado pela ciência é, ela própria, para sempre
ininteligível” — o que significaria que essa inteligibilidade que tanto
prezamos, não poderia ser “um absoluto, alguma coisa de dado, ou
colocado a priori, um pressuposto indispensável” (CL: 72). Conse-
qüentemente, se é possível exprimi-lo assim, a radical
ininteligibilidade do mundo mítico dos primitivos acaba se tornando
um pouco mais inteligível para nós. Nós fizemos uma aposta, já há
muito tempo, na possibilidade de compreender o mundo sensível;
tudo parece indicar que ganhamos, exceto por um detalhe: não
somos capazes, segundo Einstein, de entender por que e como
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 289

ganhamos. A mentalidade primitiva parece ter preferido seguir


outro caminho, pouco preocupado com a questão da inteligibilida-
de do universo. Ela simplesmente postula a existência de um mundo
“mítico” (místico, sobrenatural — trata-se da mesma coisa) e o aceita
como real, sem se preocupar com a questão de se é ou não
inteligível, ou mesmo de se é ou não possível: “não haveria aí uma
diferença de grau simplesmente? Uma transferência [transfert] da
ininteligibilidade do detalhe para a do mundo dado em seu
conjunto?” (CL: 72). A única observação a acrescentar é que esse
“detalhe”, ininteligível para nós, diz respeito exatamente ao conjun-
to do processo de compreensão, o que poderia servir para tornar a
diferença mais sutil: para nós basta que o mundo (objetivo) seja
inteligível; para os primitivos basta que o mundo (místico) seja,
simplesmente.
Voltemos à questão da experiência. O termo já era empregado
desde 1922, mas na forma negativa da “impermeabilidade à
experiência” típica da mentalidade primitiva; em 1931 surge com
sentido positivo; em 1938, todo um livro será dedicado a explorar
essa noção. Os Carnets, contudo, procurarão ir mais longe e a
consolidação dessa categoria como terceiro vértice do novo triân-
gulo conceitual de Lévy-Bruhl só se dará efetivamente no momento
em que o prelogismo e a lei de participação forem definitivamente
abandonados. Porque encarar a participação como fato, não como
lei, significa deixar de supor que seja “um elemento constitutivo do
espírito humano cuja função seria a de ligar de um certa maneira,
em condições determinadas, os objetos que se percebe e pensa”
(CL: 159). Donde se segue necessariamente a questão de saber em
que plano seria possível localizar a participação-fato. A “hipótese”,
por estranha que pareça, é que essa participação “faz parte (…) dos
dados da experiência” (idem). Essa hipótese, contudo, só parece
estranha se nos limitarmos a nossa própria concepção da experiên-
cia, concepção que tende a privilegiar o conhecimento do mundo
sensível, o que impede que encontremos a participação enquanto
dado, uma vez que ela nem é de ordem cognitiva, nem está ligada
à sensibilidade. Por outro lado, como mostra Ferrater-Mora, existem,
na própria filosofia ocidental, pelo menos dois modos bem diferen-
tes de se conceber a experiência: um que procura defini-la como
“confirmação, ou possibilidade de confirmação empírica (e freqüente-
mente sensível) dos dados”; outro que, ao contrário, compreende
o termo como “o fato de viver alguma coisa dada anteriormente a
toda reflexão ou predicação”. A participação estaria ligada apenas
a essa última concepção, que não seria, contudo, característica da
290 Razão e Diferença

filosofia ocidental; Lévy-Bruhl a imagina antes, enquanto “experiên-


cia mística”, típica do pensamento primitivo, a ponto de tendermos
a denominá-la simplesmente crença (CL: 161). O único problema é
que essa distinção, como vimos, não faria o menor sentido para os
próprios primitivos, uma vez que implica uma “definição da
experiência incontestada entre nós após um longo trabalho secular
de crítica que desqualificou e excluiu da experiência válida as
experiências místicas” (CL: 161-2). Entre os primitivos, assim como
existe uma “extensão da personalidade” para os pertences, o grupo,
etc…, tudo se passaria como se houvesse também, e principalmen-
te, uma espécie de “extensão da experiência”, que abarcaria o que
nós excluímos e que só poderia ser denominado “crença” do nosso
próprio ponto de vista (CL: 162).
Se a participação faz parte de uma experiência, isso só poderia
ocorrer, portanto, no caso desta última ser subjetiva (crença), o que
implica que a participação continua tendo “seu lugar necessário no
espírito humano” (CL: 234) — o que não se confunde com a posição
que Lévy-Bruhl desejava explicitamente deixar de lado, que imagi-
nava ser essa categoria um “elemento constitutivo” desse espírito.
O novo triângulo conceitual (orientação mística — participação-
fato — experiência mística) pode aparecer plenamente como o
verdadeiro fundamento do pensamento primitivo, pensamento que
dispensaria nossa “confiança em uma ordem inteligível, que cons-
titui uma ‘natureza’ extremamente complicada sem dúvida, mas
cujas leis os progressos da experiência (e mais tarde da ciência) nos
permitem pouco a pouco descobrir” (CL: 235). É nesse sentido que
esse pensamento poderia ser caracterizado como “não conceitual”
(CL: 234), desde que a própria noção de “pensamento”, não apenas
a de “conceitos”, seja relativizada. O pensamento não se reduz a
uma organização “comum a todos os espíritos humanos”, que
necessariamente deve submetê-lo (CL: 237); caracteriza-se sempre,
além disso, por determinados procedimentos, por uma orientação,
que pode variar de forma quase infinita (CL: 237-8). Essas conside-
rações permitem a Lévy-Bruhl dar mais um “passo decisivo”, ao
sustentar que quando, em As Funções Mentais…, falava de “repre-
sentações coletivas”, esse termo já designava, “mas apenas de forma
grosseira, o domínio do que eu chamaria mais tarde experiência
mística” (CL: 84). Isso porque essa expressão apresenta o duplo
inconveniente de exigir uma explicação ao mesmo tempo lógica —
enquanto “representação”, ou seja, fenômeno mental — e socioló-
gica — enquanto “coletiva”, ou seja, atributo exclusivo do grupo.
Além disso, implica igualmente uma separação entre a ordem do
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 291

indivíduo e a da sociedade, que poderia fazer crer que elas


coincidiriam com as da experiência ordinária e mística, respectiva-
mente. Enfim, o termo coloca necessariamente a questão da
emergência do pensamento conceitual, dando-lhe simultaneamen-
te a forma de uma evolução do coletivo para o individual. Ora,
Lévy-Bruhl pretende justamente escapar de todos esses dilemas e,
ao abandonar definitivamente uma terminologia ainda durkheimiana
encaminhar-se para um plano em que indivíduo e sociedade,
pensamento e afeto, experiência ordinária e mística, não mais
poderiam ser artificialmente separados. Ele parece ter-se dado conta
de que todas essas distinções são fruto de um trabalho de purifica-
ção, mas também de exclusão, típico da sociedade ocidental, e que,
por isso mesmo, não poderiam ser tranqüilamente aceitos e
aplicados sem uma séria crítica preliminar.
Isso poderia parecer uma deformação do pensamento de
Lévy-Bruhl. A verdade, contudo, é que esta posição fica muito nítida
quando o autor aborda diretamente a tradicional noção de “crença”,
espécie de termo-abrigo onde costumamos alocar os modos de
pensamento que não compreendemos muito bem. Crença, como se
sabe, é um termo extremamente ambíguo, significando tanto a
certeza mais absoluta quanto a dúvida. A filosofia ocidental parece
ter privilegiado o segundo sentido da palavra, opondo-a às noções
de certeza e saber, embora sempre tenham existido aqueles que,
como Jacobi ou Hume — em um sentido bem diferente, é verdade
— preservaram a primeira acepção do termo (cf. Ferrater-Mora;
Lalande). De qualquer forma, o fato é que Lévy-Bruhl trabalha
sobre, não com, o sentido filosófico mais tradicional, que opõe a
crença à certeza advinda da experiência. Todavia, se o faz, é
justamente para poder melhor criticar o que considera ser a
exigüidade dessa concepção. A experiência mística não deve ser
tratada como
um processo essencialmente cognitivo (o que se admite
implicitamente ao se colocar a questão em termos de
experiência ou de crença, termos que pertencem desde
Platão ao domínio da teoria do conhecimento), mas como
um processo de apreensão da realidade essencialmente
afetivo (CL: 199).
A discussão dessa oposição entre o cognitivo e o afetivo,
aparentemente tão central, fica para mais tarde. O que interessa
agora é essa crítica nominalista da noção de crença, com a
conseqüente tentativa de recuperação dos fatos para além da
depuração que sofrem quando introduzidos em nossas categorias
292 Razão e Diferença

supostamente mais naturais. Considerar, por exemplo, o mito como


simples “crença” seria empobrecê-lo significativamente: “o mito é
uma revelação (e um contato) como o sonho (…). Aqui, nem
‘crença’ nem ‘experiência’ são expressões adequadas: revelação e
contato valem mais” (CL: 201). É aí que se enganaram as teorias
animistas, que ao tentar explicar, por exemplo, a religião através do
sonho, tendiam a considerar que apenas o segundo — enquanto
experiência psicológica real — poderia ter dado origem à primeira,
já que esta não passaria de uma crença. Para Lévy-Bruhl, ao
contrário, tudo se passa como se fosse realmente o sonho que
devesse ser privilegiado, não no sentido banal de que o primitivo
o confundiria com a realidade, mas porque seria percebido antes de
tudo como uma experiência mística fundamental. Seu estudo
poderia servir, portanto, ao lado do das concepções que as
sociedades primitivas têm a seu respeito, como via de acesso para
a compreensão da natureza, embora não da origem, do mito, da
divinação, da religião enfim. Não é o sonho que é projetado sobre
a realidade; o que de fato existiria entre os primitivos é a noção de
uma realidade essencialmente mística que abarcaria o sonho, a
experiência ordinária e tudo aquilo que nós próprios, de forma bem
mais restritiva sem dúvida, denominamos realidade.
Não basta, pois, dizer que o primitivo “crê” em participações.
Trata-se de uma “experiência mística da participação” (CL: 114-5),
expressão que talvez resuma o pensamento do último Lévy-Bruhl.
Ela resume ao menos, e certamente, o novo triângulo conceitual
com o qual procurava trabalhar neste momento; por outro lado,
resume também, e principalmente, um gigantesco esforço, no caso
de um homem de sua idade e de sua formação intelectual, para
simplesmente aceitar a possibilidade de existência de outras formas
de relação com o universo. Entre tais formas, Lévy-Bruhl acreditava
ter isolado ao menos uma, a que sempre denominou “mentalidade
primitiva”, que, em vez de privilegiar o sensível, se interessa
sobretudo pelo invisível, pelo místico; que, em vez de analisar
primeiro para poder sintetizar com legitimidade depois, busca
apreender de um só golpe as relações mais íntimas que os seres
manteriam entre si, sua participação; e que, enfim, se recusa a
diminuir o valor desse modo de apreensão, considerando-o como
tão verdadeiro quanto a relação analítica com o mundo sensível —
e é justamente de experiência que se trata nesse último caso.
Em outros termos, talvez fosse melhor dizer com Paul Veyne
(1983: 9), que “em vez de falarmos em crenças, deveríamos falar de
verdades”. Esse é, em última instância, o verdadeiro tema de Lévy-
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 293

Bruhl, ainda que não o tenha explicitado com tanta clareza: “os
primitivos tomam seriamente seus mitos por histórias verdadeiras?”
(CL: 184). É muito difícil — que o termo me seja permitido —
acreditar nisso. No entanto, é evidente que os mitos são levados a
sério. Para “acreditar nisso”, basta interrogar com atenção, procu-
rando esquecer a familiaridade que temos com essas noções, o que
“verdade” e “verdadeiro” realmente significam. O próprio Lévy-
Bruhl já afirmava que, do ponto de vista dos primitivos, a verdade
do mito só poderia ser um a priori, absolutamente imune a qualquer
crítica, embora não à discussão:
Nós nos surpreenderíamos menos com a atitude da
mentalidade primitiva em presença das inverossimilhan-
ças do mundo mítico, se não lhe emprestássemos, sem
nos dar conta disso, nossa própria atitude mental em
presença do mundo realmente dado (CL: 186).
Trata-se de admitir outra maneira de conceber a relação entre
o possível e o impossível, outro modo de imaginar um mundo —
natural ou sobrenatural — muito mais fluido e indefinido que o que
concebemos como único. Mundo onde, conseqüentemente, pode-
riam ocorrer fenômenos e relações que não somos sequer capazes
de prever, sendo que “os fatos contados nos mitos não são mais
incríveis, uma vez que acontecem também na realidade atual” (CL:
185). Se a experiência e a verdade dependem, como Kant demons-
trou, de determinadas condições de possibilidade, basta que se
admita — coisa que certamente o próprio Kant “jamais pensou” em
fazer — que essas condições possam variar (histórica, social,
individualmente…) para que essa experiência e essa verdade
aparentemente tão monolíticas sejam aceitas como o que de fato
são, entidades históricas e sociais, não absolutos transcendentais.
Desse ponto de vista, apesar das aparências, a mentalidade primitiva
é mais relativista que nosso pensamento, já que por admitir
implicitamente dois tipos de experiência (ordinária e mística),
obedecendo diferentes condições de possibilidade, não lhe é tão
difícil admitir igualmente uma certa dualidade da verdade:
os mitos são histórias que aconteceram verdadeiramente,
mas que aconteceram em um tempo, em um espaço, em
um mundo, que não se confundem como o tempo, o
espaço, o mundo de hoje, e que por serem distintos dele,
senão separados, não são menos ‘reais’ (CL: 81).
294 Razão e Diferença

Muitos mundos, muitas experiências, diferentes condições de


possibilidade, muitas verdades: talvez essa seja uma importante
lição a ser extraída do contato de nosso pensamento com essa
mentalidade, dita primitiva apenas por economia e adesão a um uso
generalizado.

A
Em quase tudo o que Lévy-Bruhl afirma a respeito da
mentalidade primitiva, percebe-se uma série de ecos dos filósofos
que anteriormente havia estudado: às vezes é Jacobi que parece
falar, às vezes Hume, Comte, Pascal…. Cada um deles pode estar
presente seja nas posições atribuídas aos primitivos, seja nas do
próprio analista, de forma que tudo isso acaba por produzir uma
síntese original. Assim, uma das melhores maneiras, ou talvez a
menos imprecisa, para exprimir o que realmente ocorreria com as
representações primitivas, é encará-las como se estivéssemos às
voltas com uma espécie de “duplo realismo”, quase no sentido que
Jacobi atribuía ao termo:
Parece-me que somos obrigados a admitir que existem,
no espírito do primitivo, duas representações da realidade
ambiente que não coincidem, que não são mesmo
nitidamente diferentes, se bem que ele não tenha consci-
ência disso. A primeira está estreitamente ligada à ação e
se impõe por assim dizer devido às necessidades imperi-
osas da vida (CL: 20-1).
A esse tipo de representação “bio-psicológica — que o
homem compartilharia com os animais superiores, o que significa
que, para o etnólogo, é a menos importante — é necessário
acrescentar outra, uma ‘representação” propriamente mística da
realidade (CL: 21-2). Essa posição só é válida, contudo, se tivermos
sempre em mente que esse realismo é “duplo” apenas quando
considerado do ponto de vista da “dualidade-unidade” que carac-
terizaria a mentalidade primitiva. Esta mentalidade, como vimos,
considera que tudo possui uma existência invisível tanto quanto
uma visível; a distinção que mesmo os crentes e fiéis ocidentais mais
devotos estabelecem entre a natureza e o sobrenatural, é sentida aí
de modo muito especial como “dualidade-unidade” justamente (CL:
216). Como o bororo e a arara, a experiência ordinária e a experiência
mística podem ser ditas tanto diferentes quanto iguais; a única coisa certa
é que ambas são sentidas como igualmente reais (CL: 80-2).
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 295

Ao final da vida, Lévy-Bruhl parece se enredar cada vez mais


no material que havia reunido durante trinta anos e, principalmente,
na teia conceitual e na auto-crítica que teceu. Algumas ilusões do
começo do trabalho — definir a mentalidade primitiva com absoluta
precisão, determinar as leis que comandariam seu funcionamento,
etc… — foram sendo abandonadas, seja, como reconhece o autor,
devido à pressão dos dados acumulados, seja em virtude de uma
modéstia intelectual que ele obviamente não podia explicitar. Para
a obra que os Carnets planejavam, apenas duas vias são encaradas
como plausíveis: ou “analisar o mais profundamente possível o
elemento afetivo que é essencial à participação” (CL: 219)6; ou
explorar ainda melhor a idéia de que “entre os primitivos o
pensamento não é conceitual” (CL: 221). A primeira alternativa
levanta sérios problemas que serão analisados adiante; a segunda
precisa ser explicada um pouco melhor. Deve-se inicialmente
constatar que é evidente que os primitivos se utilizam de conceitos,
o que serve para matizar a própria fórmula enunciada taxativamente
demais. No entanto, será que “fazem o mesmo uso que nós de seu
poder de formar conceitos”? (CL: 222). Tudo indica que não, o que
sugere a existência de pelo menos duas “funções” diferentes que os
conceitos poderiam desempenhar, uma de ordem estritamente
prática, outra de natureza lógica. Se os primitivos não podem deixar
de pensar conceitualmente do ponto de vista prático (nesse caso sua
própria sobrevivência estaria ameaçada), quando se trata de “lógi-
ca”, o que ocorre é a recusa em destacar da realidade global na qual
se movem um mundo de conceitos mais ou menos autônomo,
regido por exigências que lhe seriam específicas (CL: 224-7). Tratar-
se-ia, portanto, de um uso “emocional” (ou seja, não-reflexivo) de
uma capacidade humana universal de produzir conceitos, uso
correlato de uma concepção do universo como totalidade movente,
não como natureza ordenada (CL: 170-1). Os conceitos empregados
pela mentalidade primitiva seriam “conceitos sem perspectiva”,
ligados apenas ao mundo empírico e à atividade prática, não
apresentando a possibilidade de afastar-se do real para abarcá-lo de
fora, propriedade característica dos “conceitos com perspectiva”
típicos do nosso pensamento (CL: 41-3).
Toda a ênfase inicial no prelogismo e na lei de participação
levava necessariamente à compreensão da mentalidade primitiva
como indiferente às contradições e como não-conceitual. Ao
deslocar suas preocupações para a orientação mística, para a
participação enquanto fato e para a experiência mística, Lévy-Bruhl
se verá obrigado a buscar as conseqüências desses novos traços de
296 Razão e Diferença

definição. A afetividade deverá aparecer com força ainda maior que


a que já possuía no começo das pesquisas, e o simplesmente “não-
conceitual” se converterá em um “pensamento pouco conceitual”,
expressão na qual tanto a noção de conceito quanto a de pensamen-
to terão que ser relativizadas, visando evitar as caracterizações
puramente negativas. Ou ao menos — na medida em que no nível
do vocabulário é quase inviável fazê-lo — explicitando da melhor
forma possível os termos empregados a fim de neutralizar as ilusões
que a linguagem sempre provoca. Lévy-Bruhl parece se dirigir,
portanto, para um nominalismo quase radical — a maior parte de
seus problemas e dúvidas derivando, como veremos, justamente do
fato de não ter conseguido levar essa tendência às últimas conse-
qüências. Além disso, antes de explorarmos a “segunda via”
vislumbrada, é preciso observar que a ênfase na tendência pouco
conceitual do pensamento primitivo — no sentido matizado defini-
do acima — realça mais uma vez o caráter altamente insatisfatório
do prelogismo. Essa tendência indica que o fundamental é a extrema
capacidade da mentalidade primitiva aceitar “incompatibilidades”
que nós só poderíamos rejeitar, tendo em vista nosso arraigado
hábito de não aceitar qualquer proposição em que relações desse
tipo, físicas ou lógicas, pouco importa, estejam presentes. O
problema é que falar em “aceitação de incompatibilidades” parece
significar que o pensamento primitivo perceberia inicialmente
alguns fatos como incompatíveis, para aceitá-los apenas em um
segundo momento, aparentemente movido pela força das crenças
tradicionais que o obrigariam a admitir o que a própria percepção
estaria recusando. Isso é, contudo, manifestamente contrário ao que
se diz nos Carnets. O que ocorreria de fato é que os primitivos não
chegariam sequer a se dar conta do que para nós não poderia deixar
de ser uma incompatibilidade manifesta (CL: 53-4) — propriedade
que só se tornaria possível porque “sua experiência nesse caso não
é homogênea e não está localizada sobre um único plano, como nós
a imaginamos” (CL: 55). A orientação mística leva vantagem mais
uma vez sobre o prelogismo. Para haver realmente incompatibilida-
de, é preciso que os fatos “incompatíveis” sejam homogêneos e
obedeçam às mesmas condições de possibilidade, enquanto que,
do ponto de vista do pensamento primitivo, haveria, ao contrário,
“uma correspondência, uma figuração pelo fenômeno natural da
ação e da causa sobrenaturais” (CL: 56). Em outros termos, como a
realidade é dupla, ou “dual”, não poderia haver incompatibilidade
entre acontecimentos situados em planos distintos.
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 297

Lévy-Bruhl pode, então, concluir o mapa dessa “via” de


acesso à mentalidade primitiva. Trata-se de:
1. Abandonar a idéia da existência de dois tipos de mentalidade
discerníveis de um ponto de vista lógico. Ou antes, reforçar esse
abandono, afirmando que o dualismo seria apenas o fruto de uma
mal-entendido que seria preciso desfazer (CL: 164-5).
2. Abandonar definitivamente o “prelogismo”, mantendo apenas a
“orientação mística” da mentalidade primitiva (CL: 165).
3. “Retificar”, a partir desses dois pontos, algumas “fórmulas de que
fiz uso”: a) substituir a “aceitação de incompatibilidades lógicas”
pela ausência de percepção daquilo que para nós não poderia
deixar de ser visto como absurdo físico (CL: 165-6); b) abandonar
a idéia de uma mentalidade primitiva pouco exigente do ponto de
vista lógico, substituindo-a pela afirmação da diferença de “hábitos
mentais” e pela admissão da existência de uma dupla experiência
(CL: 166).
4. Explorar melhor a fórmula “a mentalidade primitiva não é
conceitual”, acrescentando a expressão “como a nossa”. Ou seja,
mostrar que os conceitos por ela inegavelmente empregados são de
outro tipo e utilizados de outra forma (CL: 166-7).
5. Recolocar, enfim, a questão da “transição” entre a mentalidade
primitiva e o pensamento conceitual; ou antes, indagar como foi
possível chegar a substituir a participação pelos conceitos (CL: 79-80).
Essa posição supostamente “nova” poderia ser resumida
dizendo-se que a orientação mística implica uma heterogeneidade
de experiências que torna possível a aceitação do que nós próprios
consideraríamos incompatibilidades intransponíveis e inaceitáveis.
Além disso, que o contato sentido com essas forças invisíveis e
místicas despertaria um mecanismo afetivo que implica um sen-
timento profundo de participação. Enfim, que tudo isso só poderia
estar apoiado sobre um pensamento diferentemente conceitual,
pensamento que não está ligado a uma ordenação rígida do
universo, apoiando-se antes em crenças tradicionais que possuem,
contudo, o valor de verdadeiras experiências. Não é difícil perceber,
portanto, que a “via” que pretende explorar a tendência pouco
conceitual da mentalidade primitiva conduz à dificílima questão da
afetividade, segunda “via” entrevista para o acesso ao pensamento
primitivo. Porque a verdadeira questão não seria mais saber
em que consiste o sentimento de uma participação [mas]
como sentimento de contato com o sobrenatural (expe-
riência mística), emoção sui generis que é dele insepará-
298 Razão e Diferença

vel (categoria afetiva do sobrenatural) e participação


estão mais que intimamente ligados por dentro (CL: 221).
Já observamos em diversas ocasiões que a questão da
afetividade é antiga no pensamento de Lévy-Bruhl. Remonta a A
Idéia de Responsabilidade, tendo mesmo servido, de acordo com o
testemunho de Leenhardt, como uma espécie de impulso pessoal
que teria conduzido sua carreira intelectual, na medida em que
sentia que uma posição satisfatória — ao menos para ele próprio —
jamais havia sido alcançada. Todavia, nos livros sobre Jacobi, a
história da filosofia francesa moderna, Comte, a ciência dos costu-
mes, o afetivo é encarado de uma perspectiva essencialmente
negativa, como verdadeiro obstáculo ao desenvolvimento da razão
e da moral, até mesmo à melhor convivência entre os homens. Ecos
desta posição são ainda muito nítidos em As Funções Mentais…. Se
a partir de 1922 os juízos de valor começam a ficar cada vez mais
raros, tudo se passa como se essa negatividade ética fosse inteira-
mente transportada para o plano do conhecimento: a afetividade
ganha cada vez mais espaço, sendo, contudo, concebida sempre,
por oposição ou preterição, como alguma coisa de estranho e de
perturbador para a atividade cognitiva do espírito. Entre 1931 a
1938, o afetivo é ainda abordado como obstáculo — obstáculo,
agora, a nosso poder de compreensão da mentalidade primitiva,
uma vez que não se dobraria facilmente a nossos “hábitos mentais”
cognitivos e representacionais (CL: 1).
Os Carnets tomam consciência definitiva desse tratamento
puramente negativo a que as emoções teriam sido submetidas, e o
primeiro esforço real na direção de uma concepção positiva é apelar
para um “dualismo de superposição”, para usar novamente a
expressão de Davy — posição que, como vimos, dominava o final
de A Mitologia Primitiva. O afetivo estaria ligado à experiência
mística, da mesma forma que o cognitivo estaria associado à
experiência ordinária, sendo que essa dualidade seria característica
de toda a humanidade, não apenas das sociedades primitivas. A
única diferença entre essas sociedades e o pensamento ocidental é
que nós, devido a uma longa tradição crítica, teríamos passado a
privilegiar a experiência sensível e a cognição em detrimento do
místico e do emocional. Apenas mais facilmente captável entre os
primitivos, o afetivo coexistiria sempre com o cognitivo no interior
de cada sociedade e de cada ser humano (CL: 67-9). O problema é
que essa posição é muito difícil de ser sustentada, na medida em que
a observação empírica — os “fatos”, como gosta de dizer Lévy-Bruhl
— jamais oferece o espetáculo de pensamentos e comportamentos
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 299

orientados para a cognição, nitidamente distintos e separados de


sentimentos e ações conduzidas pela afetividade. A realidade, ao
contrário, apresentaria um complexo no qual emoção, cognição e
representação estão inextrincavelmente articulados, não simples-
mente depositados uns sobre os outros, tornando inviável e ilusória
toda tentativa de separação analítica (CL: 5-6).
Nesse sentido, o conceito de “categoria afetiva do sobrenatu-
ral”, proposto em 1931, reflete bem as dificuldades com as quais se
envolve o pesquisador interessado em dar conta de maneira clara
da mentalidade primitiva. A noção indica que existiria um “elemento
de generalidade na participação”, afirmando ao mesmo tempo que
este só poderia ser de ordem “afetiva” (CL: 117). Entretanto, o que
poderia vir a ser uma “categoria afetiva”, nem completamente
conceitual nem puramente imaginária? Sabe-se como, muitos anos
depois, Lévi-Strauss tentou resolver o problema, ao se situar, como
diz, no âmbito do signo, “a meio caminho entre os perceptos e os
conceitos” (cf. Lévi-Strauss 1962: 28 e 1964: 22). Voltaremos a essa
solução no âmbito de um confronto mais geral entre este autor e
Lévy-Bruhl. Por ora, basta constatar o fato de que não é recorrendo
ao “simbólico” que o segundo tentará resolver a dificuldade que se
colocou: é ao puramente afetivo que se dirige para tentar compre-
ender como é possível “que tantas participações sejam sentidas
como reais pela mentalidade primitiva, não o sendo pela nossa” (CL:
119). Isso só poderia derivar do fato do primitivo não apreender o
que denominamos experiência ordinária e experiência mística
como duas ordens de realidade nitidamente distintas e separadas,
mas justamente como complexo único entrecortado por relações e
correspondências. Os símbolos, entretanto, têm um lugar nesse
modelo, sendo preciso apenas compreendê-los no sentido especí-
fico que possuem para a mentalidade primitiva, equivalentes
sensíveis das realidades místicas, não representantes convencionais
de entidades conceptuais. A alternativa seria prosseguir no caminho
aberto em A Experiência Mística e os Símbolos entre os Primitivos,
tratando de
pesquisar se não existiria alguma coisa de fundamental,
de essencial ao espírito humano que tem o privilégio (…)
de representar, ou ao menos de sentir, o poder ser
diferente, e para quem as coisas, os seres, têm uma dupla
realidade, uma visível e uma invisível (CL: 125).
Hipótese que é sem dúvida muito semelhante à formulada por
Durkheim (1912b: 339), com a exceção de uma diferença funda-
mental. Este último supõe uma seqüência diacrônica na qual a
300 Razão e Diferença

capacidade de transcender o sensível, inicialmente manifesta nos


mitos e crenças primitivas, evoluiria progressivamente na direção da
filosofia e da ciência; Lévy-Bruhl prefere sustentar que, dada uma
certa capacidade do espírito humano (universal, sem dúvida), a
direção por ela seguida e as diferentes utilizações que pode ter
dependeriam de fatores que não são inerentes ao espírito. Isso
significa que a orientação mística e o pensamento conceitual
constituiriam, não dois momentos sucessivos e necessários da
marcha do espírito humano, mas duas vertentes possíveis que esse
espírito poderia seguir. Aqui a “divergência” parece levar a melhor
sobre a “superposição”.
Lévy-Bruhl parece admitir a necessidade de fundir as duas
“vias” que havia inicialmente traçado como alternativas para a
compreensão da mentalidade primitiva. Se a capacidade de produ-
zir conceitos é constitutiva do espírito humano — universal,
portanto — ainda assim é inegável que o pensamento ocidental se
orientou na direção de manter esses conceitos separados de tudo o
que poderia haver de intensamente afetivo e emocional na relação
dos homens com o mundo e entre si. O resultado dessa operação,
contingente e histórica, é uma concepção da “natureza” enquanto
cosmos, totalidade fixamente ordenada e governada por leis igual-
mente estáveis. Por outro lado, o que se denomina — sem dúvida,
“por falta de termo melhor” — mentalidade primitiva, agiria de
forma completamente distinta: os conceitos estão como que embe-
bidos de afetividade; o mundo não pode ser concebido como
separado de suas relações com os homens; a “natureza”, o “cosmos”,
simplesmente não existem; a realidade é tida como fluida e em
contínuo movimento; as fronteiras entre coisas, seres, homens,
classes, grupos, só podem ser frouxas e indefinidas. O que é
inteiramente impossível de ser aceito pela primeira modalidade de
pensamento, o é pela segunda (CL: 170-1), o que de imediato coloca
a verdadeira questão:
Uma vez que parece que a participação implica alguma
coisa de fundamentalmente rebelde à inteligibilidade, como
compreender que o espírito humano seja ao mesmo tempo
princípio do racional e princípio do irracional? (CL: 130).
Para responder a essa questão, Lévy-Bruhl será obrigado a
abandonar definitivamente o tema das “duas mentalidades” em
oposição, reconhecendo que o que existe é “uma mentalidade
mística mais marcada e mais facilmente observável entre os ‘primi-
tivos’ que em nossas sociedades, mas presente em qualquer espírito
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 301

humano” (CL: 131). Não há, portanto, ao contrário do que supõe


Davy, qualquer contradição entre “divergência” e “superposição”: o
segundo modelo pode servir para dar conta das virtualidades
universais do espírito humano encarado como estrutura; o primeiro,
entretanto, é o único capaz de mostrar os caminhos muito diferentes
que esse espírito, enquanto funcionamento, pode seguir. Isso
prova, creio, que o “dualismo” adjetivado por essas duas expressões
é de fato meramente provisório e que a hipótese de Lévy-Bruhl
incita a buscar a pluralidade de vias que o espírito humano pôde e
pode seguir — sem pressupor qualquer esquema determinista ou
repertório fechado. Principalmente, sem projetar os modelos segui-
dos por uma das orientações possíveis sobre as demais, sob o
pretexto de que afinal de contas estaríamos lidando com a univer-
salidade da natureza humana. Para isso, entretanto, estrutura e
funcionamento do espírito devem estar sempre bem separados.
Alguns anos após ter isolado o que considera a oscilação de
Lévy-Bruhl entre “dualismo de divergência” e “dualismo de super-
posição”, Davy, ao analisar justamente esses Carnets póstumos,
procurou apontar a incapacidade do autor ultrapassar os dualismos
em geral, sustentando que a suposta evolução intelectual do final da
vida, não passaria da substituição da oposição inicial com a qual
trabalhara (“lógico/prelógico”) por outra — mais profunda — que
distinguiria radicalmente as funções cognitivas do espírito humano
das ligadas à afetividade (Davy 1957: 482-5). “A emocionante
angústia” (idem: 492) do “carnet” de 7 de setembro de 1938 (CL: 141-
6), aponta, creio, uma direção diferente da seguida por Davy.
Leenhardt, no prefácio que escreveu para esses mesmos Carnets, já
considerava que “místico permanecia e permanece ainda o termo
refúgio onde se encerra tudo o que, no comportamento humano,
escapa à análise clara”, ou seja, tudo o que derivaria da afetividade
(Leenhardt 1949: XIV). Esse raciocínio poderia ser levado mais
longe. Penso que podemos considerar que é o próprio “afetivo” que
constitui esse “termo refúgio” onde se encerrariam, não simples-
mente os fatos que escapam à “análise clara”, mas sobretudo as
formas de pensamento que não se deixam enquadrar nos modelos
ocidentais. Formulando-o inevitavelmente em vocabulário de sua
época, Lévy-Bruhl enuncia assim o princípio de uma diferença
imanente aos modos de pensamento — diferença que deveríamos
saber levar a sério.
É por isso que a questão da transição da mentalidade primitiva
para as modernas formas de pensamento conceitual se complica
enormemente. Lévy-Bruhl jamais chegou a concebê-la de acordo
302 Razão e Diferença

com o esquema vagamente lamarckiano onde o “menos evoluído”


vai cedendo seu lugar ao “mais evoluído” sob a pressão transforma-
dora das circunstâncias. Tampouco chegou a aceitar plenamente o
modelo iluminista e positivista dos “germes de pensamento”,
desdobrando-se de acordo com uma dialética interna até atingir suas
formas superiores. A alternativa de que dispunha — esquema que
parece tê-lo atraído entre 1910 e 1922 — é o de uma evolução
propriamente sociológica, que produziria um progresso intelectual
através de um mecanismo de determinação mais ou menos comple-
xo segundo os autores. É do sociologismo durkheimiano que se
trata aqui, sociologismo com o qual Lévy-Bruhl finalmente irá
acertar as contas. Já observamos que em As Funções Mentais nas
Sociedades Inferiores e em A Mentalidade Primitiva esse modelo era
aceito quase sem discussão, embora mesmo aí fosse mais designado
que demonstrado e incorporado. A partir de A Alma Primitiva,
escrito para analisar de forma direta essa questão, as dúvidas
começam a ser cada vez maiores, até A Mitologia Primitiva, onde o
sociologismo é explicitamente criticado e abandonado. Acontece,
contudo, que ainda aí as razões para as críticas e o abandono
permanecem elementares demais. Tratava-se somente de constatar
que estruturas sociais muito diferentes são acompanhadas por um
tipo mais ou menos homogêneo de mentalidade, o que significaria
apenas que a hipótese não resistia à prova dos fatos. O problema
é que sempre é muito difícil derrubar esquemas teóricos proclaman-
do uma suposta realidade das coisas a que somente o crítico, nunca
se sabe bem como, teria acesso. Os Carnets deverão analisar mais
a fundo o problema, tratando de fornecer razões teóricas para a
recusa do determinismo sociológico, retendo desta hipótese o que
poderia haver de defensável e útil. Lévy-Bruhl admite que nas
sociedades primitivas, “a solidariedade de cada indivíduo com seu
grupo (…) não é sentida nem representada como nas nossas” (CL:
97), pois aí “a verdadeira pessoa, o verdadeiro indivíduo é o grupo
(…). O que chamamos de indivíduos são seus membros, no sentido
biológico do termo” — o que tem como conseqüência o fato de que
nessas sociedades o indivíduo “se sente e (…) se representa a si
mesmo como um elemento do todo social e orgânico ao qual
pertence, do qual participa” (CL: 98). Nesse momento, chega-se a
supor que essa participação “objetiva” do indivíduo no grupo
poderia constituir a base a partir da qual todas as outras formas de
participação seriam moldadas: “a solidariedade dos indivíduos com
seu grupo, e dos pertences com os seres” é encarada como
compondo, “talvez”, “os princípios desse pensamento mítico” (CL:
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 303

15). Hipótese sedutora, que parece oferecer a possibilidade de


“explicar”, enfim, as participações místicas, explicação que supõe
uma espécie de efeito psicológico, produzido no indivíduo em
virtude de sua situação objetiva no interior do grupo social: “no curso
de sua própria existência, cada um tem continuamente a experiência
de uma participação com seres dos quais está separado no espaço.
Ele não achará então nada de estranho na bi-presença” (CL: 99).
Entretanto, a hipótese sociologizante só é levantada para ser
criticada e abandonada:
o que precede não é inexato, mas muito insuficiente para
ajudar a dar conta daquilo que é a participação, na medida
em que é por demais esquemático, incompleto e super-
ficial (idem).
O sociologismo passará a ser encarado como o limiar derra-
deiro de uma tendência cognitivista que Lévy-Bruhl condena,
localizando-a inclusive em sua própria obra anterior. Não há dúvida,
entretanto, de que além de visar a si mesmo, é sobretudo em
Durkheim que pensa neste momento, uma vez que a explicação de
ordem sociológica estaria ainda excessivamente ligada a uma “teoria
do conhecimento” (CL: 99-100) — e é quase inútil recordar que um
dos traços mais característicos da escola sociológica francesa é
justamente sua tentativa de estabelecer uma “teoria sociológica do
conhecimento”. É nesse sentido que Lévy-Bruhl pode sustentar que
sua própria hipótese inicial acerca do caráter prelógico da menta-
lidade primitiva não passava de “uma espécie de prolongamento”
do sociologismo do qual havia partido em As Funções Mentais…
(CL: 60-1). Assim, se o abandono dessa “hipótese ao mesmo tempo
simplista e um pouco crua” (CL: 61) teve que ser acrescentado ao
abandono do prelogismo, é natural que os resíduos desse sociolo-
gismo — que permanece ainda na forma dessa hipótese acerca de
uma possível origem sociológica do sentimento de participação —
devam ser agora também deixados definitivamente de lado:
É evidente que não se trata aí somente de um reflexo da
organização social, mas de alguma coisa de muito mais
sutil, que dropped out of the European mind. O que tende
a provar (…) que a solução literalmente sociológica, se não
é falsa, permanece em todo caso insuficiente (CL: 124).
Do ponto de vista do último Lévy-Bruhl — essa é a idéia
central de todos os Carnets — a participação não teria absolutamen-
te nada a ver com o conhecimento: nem de forma direta, como
modalidade de atividade cognitiva, nem indiretamente, ao se
304 Razão e Diferença

relacionar com essa atividade por meio da estrutura social — “a


participação só tem realidade enquanto sentida por um indivíduo”
(CL: 76). Entre os primitivos, o que existiria é um sentimento de
solidariedade com todas as coisas do universo, que viria a produzir
o efeito, para nós tão estranho, de um mundo concebido sob forma
fluida e instável, não como cosmos fixo e ordenado (CL: 76-7). É por
isso que a insistência nas “solidariedades sociais de qualquer
espécie entre os indivíduos, no sentimento e na idéia que dela têm”
(CL: 104-5) só poderia ser “insuficiente”, pois o que os “sociólogos”
implicitamente fazem ao imaginar essa situação é dar-se “as
consciências individuais primeiramente, antes de mostrar seus laços
e a influência que exercem umas sobre as outras” (CL: 105). Projeção
ainda, portanto, dos caracteres das “sociedades de que fazem parte”,
esquema equivocado quando se pretende compreender “socieda-
des elementares, por conseguinte, consciências diferentes”,
sociedades e consciências onde a pertinência a priori tem absoluta
prioridade sobre a solidariedade a posteriori (idem). Se é certamen-
te preciso estudar “a participação entre o indivíduo e um grupo
social” (CL: 210), esse estudo só poderia ser feito de forma adequada
se abandonássemos o pressuposto de que este tipo de participação
possui um poder de determinação qualquer sobre as demais formas
que essa relação pode assumir. Mesmo porque essa participação de
ordem mais sociológica não chega a se manifestar de modo isolado,
envolvendo não apenas o grupo social concretamente dado, como
também, e às vezes principalmente, os antepassados míticos, os
lugares e seres invisíveis. Seríamos vítimas de uma ilusão etnocên-
trica quando supomos que a participação indivíduo/grupo social é
mais “simples” que as demais porque supostamente mais objetiva.
Na medida em que são arbitrariamente isolados o indivíduo de um
lado, o grupo de outro, este tipo de participação se torna apenas
mais semelhante a processos que parecem também ocorrer no
interior de nossa própria sociedade — não afirmamos “pertencer a”
ou “participar de” grupos, como “religião, partido, profissão, etc…”
(idem)? Se incluírmos, no entanto, tudo o que do ponto de vista do
primitivo compõe efetivamente o “grupo”, ver-nos-emos obrigados
a admitir que esse tipo de participação sociológica “permanece em
seu fundo misteriosa para nós, como as outras formas citadas” (CL:
211). É preciso, pois, analisá-la em conjunto com as demais formas,
sem pressupor que viria a ser seu “molde”: “difícil, mas necessário”
(CL: 212). É nesse sentido que a “extensão da personalidade” só
poderá doravante ser concebida como caso particular da “extensão
da experiência”, que caracterizaria a mentalidade primitiva, ao
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 305

menos quando a confrontamos com nosso próprio pensamento (CL:


161-2).
Sem dúvida, Lévy-Bruhl supõe ser necessário reter das
hipóteses sociológicas a constatação da existência de uma “senti-
mento de ‘pertencer’ a um todo do qual o indivíduo se sente uma
parte, um elemento” (CL: 100-1), acrescentando, contudo, que esse
“todo” pode ser não apenas o grupo social concreto, como o
conjunto dos ancestrais, o território, o universo enfim. Fazer da
participação no grupo real o modelo de todas as outras formas
possíveis de participação é simplesmente voltar a cair — essa crítica
é fundamental — em uma espécie de
antropomorfismo: o homem sente a si mesmo, como
pessoa, participando de seu grupo; projeta para fora de si
esta participação que se torna assim uma espécie de es-
quema para suas representações e de ponto de aplicação
para que aja sobre os seres e objetos ambientes (CL: 101).
É claro que muitos críticos denunciaram o jogo durkheimiano
de só consentir em substituir o indivíduo pela sociedade sob a
condição desta passar a ser pensada como uma espécie de super-
indivíduo. Lévy-Bruhl vai bem mais longe e embora o nome de
Durkheim não seja explicitamente mencionado, é evidente que seu
trabalho está em causa nessa questionamento radical do sociologis-
mo. Questionamento que sugere que a crítica durkheimiana ao
esquema animista — apoiado sobre uma experiência puramente
individual projetada para fora a posteriori — poderia ser estendida
a suas próprias concepções, onde é a sociedade, pensada certamen-
te como uma espécie de indivíduo, que se projeta como modelo. A
diferença em relação a Tylor ou Spencer seria apenas de grau e o
sociomorfismo de Durkheim mereceria ser considerado uma nova
modalidade de antropomorfismo. Trata-se, aqui ainda, da
“psychologist’s fallacy”, que procura fazer do primitivo um “filósofo
selvagem” (CL: 101). O problema é como escapar desta falácia,
mantendo, ao mesmo tempo, o que a hipótese sociológica tem de
positivo. A alternativa de Lévy-Bruhl é sugerir um desvio pela
psicologia geral.
Haveria, deste ponto de vista, dois “sentimentos” universais e
imanentes ao ser humano: um, compartilhado com os animais
superiores, derivado em última instância da pura necessidade de
sobrevivência, do imperativo biológico de “perseverar em seu ser”,
determinando um “sentimento da individualidade” (idem). Outro
que, no caso específico do homem, derivaria do primeiro, assumin-
306 Razão e Diferença

do a forma de “uma consciência mais ou menos distinta, mais ou


menos consciente, poder-se-ia dizer, dessa individualidade” (CL:
101-2). O ser humano apresentaria ainda outra singularidade:
vivendo, e só podendo viver, em sociedade, o sentimento e a
consciência da individualidade seriam necessariamente acompa-
nhados de uma sensação de participar no grupo, cuja sobrevivência
é essencial para a do próprio indivíduo (CL: 102-3). Ora, no caso dos
primitivos, esse último tipo de vínculo é ainda mais forte, de forma que
o sentimento que têm de sua própria existência está
fundado no sentimento de seu pertencimento ao grupo:
seu esforço para perseverar em seu ser é então ao mesmo
tempo um esforço para perseverar no ser do grupo (CL: 103).
Tudo se passa como se a possibilidade do sentimento (ou da
consciência) de individualidade ou de participação virem a predo-
minar de forma alternativa determinasse diferentes tipos de orientação
mental. Entre os primitivos, onde a dependência em relação ao
grupo seria objetivamente maior (é o que se pode reter da hipótese
sociológica), a tendência virtual para o desenvolvimento de uma
clara consciência da individualidade estaria de algum modo bloque-
ada, possibilitando o predomínio de um sentimento global de
participação. Entre nós, ao contrário, na medida em que a depen-
dência em relação ao grupo seria menor, a consciência da
individualidade teria todas as condições para se desenvolver,
passando a obscurecer a da participação. Esse modelo, porém, por
mais sutil que seja, parece formulado num tom ainda excessivamen-
te sociologizante, de modo que Lévy-Bruhl se vê obrigado mais uma
vez a tentar se corrigir. “Esforço difícil, mas necessário”, na medida
em que as sociedades primitivas parecem fornecer à nossa obser-
vação um tipo de fenômeno jamais percebido pelos “filósofos” e
pelos “psicólogos”, uma vez que estes “não possuíam a experiência
de indivíduos se sentindo, enquanto indivíduos, os membros, os
elementos de um corpo social que é sentido e representado como
o verdadeiro indivíduo” (CL: 104). É preciso, portanto, admitir “esse
sentimento original de pertencimento” (idem) para poder afirmar
que o
sentimento que o indivíduo tem de sua própria existência
(…) engloba ao mesmo tempo sua existência individual
e a do grupo ao qual pertence, isto é, a dos outros
membros que realmente compõem o grupo, a dos ances-
trais que passaram para o outro mundo e a dos ancestrais
míticos e totêmicos (CL: 105).
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 307

Este sentimento implicaria e englobaria igualmente “o de uma


simbiose com os outros membros do grupo” (CL: 106), permitindo
que todo esse desenvolvimento teórico possa ser resumido na
fórmula segundo a qual “a participação do indivíduo no corpo social
é um dado imediato contido no sentimento que tem de sua própria
existência” (CL: 107).
A participação, portanto, só pode ser considerada “fundamen-
tal”, o que significa dizer que o sociologismo é insustentável
justamente porque a imbricação indivíduo/sociedade, longe de
poder explicar, exige a participação para poder se efetivar. A
participação indivíduo/sociedade constituiria apenas um caso par-
ticular de uma imensa rede que envolve todos os seres e todos os
grupos que compõem o universo. Não se trata de simples inversão
psicologizante do sociologismo, onde o sentimento de participação
que no segundo caso é fundado, passaria a ser considerado como
elemento fundador da sociedade. Se a participação é “fundamental”,
isso deve ser entendido no sentido de que não pode ser explicada
em si mesma, devendo ao contrário servir de ponto de partida para
qualquer explicação, psicológica ou sociológica — antropológica,
eu diria — não apenas das sociedades primitivas (simples locus
privilegiado para sua observação e delimitação), mas também, e
principalmente, de determinadas propriedades essenciais do espí-
rito humano apreendido em seu funcionamento concreto. Deveríamos
saber, portanto, evitar a falsa simplicidade das explicações pura-
mente sociologizantes, que, longe de se oporem às hipóteses
introspeccionistas da escola antropológica inglesa, constituem um
prolongamento mais ou menos disfarçado delas.

A
O abandono de toda forma de evolucionismo torna-se
definitivo com a crítica do sociologismo, uma vez que as noções de
evolução material ou psicológica já haviam sido deixadas de lado.
Este abandono, contudo, aliado à recusa preliminar das hipótese
unitaristas, coloca um grave perigo, o de simplesmente passar a
opor os dois tipos de mentalidade isolados, sem conseguir dar conta
das razões mais profundas dessa diferença. A concepção da
pluralidade de modos de pensamento, por si só, não resolve o
problema na medida em que essa pluralização poderia conduzir a
um simples inventário onde os contrastes seriam apenas prolifera-
308 Razão e Diferença

dos. “Podemos ir mais longe do que a constatação deste contraste


(que não tem fundamento lógico como inicialmente pensei), e
pesquisar onde estão as razões para ele?” (CL: 80). Questão que se
torna crucial após o abandono das posições logicizantes e
sociologizantes — que, de uma forma ou de outra, acompanhavam
e prolongavam as primeiras. Como recolocar nesse contexto, em
termos ainda dualistas, o problema da transição entre os dois tipos
de mentalidade? Ou, se quisermos privilegiar o pluralismo, como
compreender que os modos de pensamento possam ser tão
diferentes sem serem completamente impenetráveis uns aos outros?
É para enfrentar essas questões que Lévy-Bruhl, paradoxalmente,
acredita ser necessário admitir a unidade profunda da natureza
humana com mais força que antes. É preciso reconhecer antes de
tudo, “que a participação não pertence exclusivamente à mentali-
dade primitiva, mas possui também um lugar na nossa, ou, se quiser,
que a mentalidade primitiva é na realidade um aspecto, um estado
(…) da mentalidade humana em geral” (CL: 135-6). A participação
seria desse modo tão intrínseca ao pensamento humano quanto as
representações e quanto a atividade cognitiva. O fato verdadeira-
mente surpreendente a seu respeito é que
após terem sido durante séculos quase que exclusivamen-
te sentidas, e de não terem levantado nenhuma dificulda-
de, são cada vez mais conscientemente representadas,
despertando uma espécie de necessidade, inicialmente
tímida, de serem legitimadas do ponto de vista lógico, o
que levanta dificuldades insuperáveis (CL: 136).
Trata-se, aparentemente, de tentar ainda “analisar a passagem
da participação sentida para a participação representada” (CL: 137),
tema já presente, como vimos, desde o último capítulo de As
Funções Mentais…, onde surgia como uma espécie de versão
pessoal da lei dos três estados de Comte: “participação sentida —
participação representada — pensamento conceitual”. Nos Carnets,
contudo, Lévy-Bruhl se dá conta de que em 1910 ainda estava
excessivamente influenciado por pressupostos de natureza lógica
que desejava agora abandonar em definitivo (CL: 138). O esquema
positivista implica que o conhecimento humano seja encarado
como “germe”, dado desde o início e em evolução constante,
posição que doravante Lévy-Bruhl não pode mais aceitar. Os
Carnets parecem supor que o predomínio do aspecto cognitivo no
pensamento humano só poderia se estabelecer contra o sentimento
de participação — o que revelaria o caráter absolutamente não
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 309

necessário da cognição. Se quiséssemos estabelecer uma quase


impossível datação, tudo indica que o momento decisivo da história
do espírito humano seria a teoria platônica da participação, o que
quer que Lévy-Bruhl tenha dito a esse respeito, ao pretender se
afastar desse referencial quase obrigatório: é exatamente nessa
teoria que se daria a passagem da participação enquanto evidência
a ser simplesmente aceita para a participação enquanto problema
a ser resolvido. Passagem que produz entre outros efeitos — no
momento em que o pensamento conceitual tenta dar conta das
formas originárias de participação — a perigosa tendência de
analisar esse fenômeno como função lógica, ou como lei governan-
do certas modalidades de representação.
Já vimos que o próprio Lévy-Bruhl se considera vítima dessa
armadilha, procurando agora desvencilhar-se dela. Para determinar
com alguma precisão “o limite entre esses dois aspectos de uma
mesma mentalidade” (CL: 50) — ou seja, para poder esclarecer a
diferença entre essas modalidades de funcionamento do espírito
humano — seria absolutamente necessário abandonar todo pres-
suposto logicizante, alojando assim a participação (no sentido acima
estabelecido, de um modo de pensamento que não obedece aos
princípios que consideramos naturais) do lado do afetivo. A famosa
“unidade do espírito humano” — afirmada desde As Funções
Mentais… (CL: 51) — não sofre qualquer abalo com isso, uma vez
que essa posição apenas reforça e esclarece a necessidade desse
princípio não comprometer a investigação das diferentes orienta-
ções que esse espírito “único” assume, dos diferentes e imprevisíveis
interesses que demonstra. Desse modo,
dois pontos parecem adquiridos e que me permitem estar
um pouco mais próximo da verdade do que há vinte anos
atrás. 1º — A estrutura lógica do espírito humano é a
mesma em todas as sociedades humanas conhecidas (…);
2º — Reter entretanto os fatos numerosos e inegáveis de
onde ressalta que a mentalidade primitiva aceita sem a
mínima hesitação incompatibilidades (…) que nos saltam
aos olhos e que nós não compreendemos que um espírito
são possa admitir por um instante sequer (CL: 62-3).
Florestan Fernandes (1954: 134-5) tem razão, portanto, ao
afirmar que a unidade da condição humana, longe de solucionar
antigas questões, constitui fonte de novas dificuldades. Uma vez
admitida essa unidade, não se segue absolutamente o sentimento de
naturalidade frente a idéias e comportamentos que tanto nos
310 Razão e Diferença

espantam. Pelo contrário, tudo indica que esse espanto cresça


quando seres humanos “idênticos” a nós são capazes de fazer coisas,
e de crer em coisas, que pensamos absolutamente impossíveis ou
incríveis. Talvez esteja justamente aí o encanto da antropologia
social e cultural, disciplina que ao combater a idéia da heterogenei-
dade substantiva entre os homens, fez aumentar a perplexidade, o
espanto e o interesse por uma humanidade tão parecida conosco e,
ao mesmo tempo, tão diferente. De fato, “tranqüilizar tem sido a
tarefa de outros; a nossa tem sido a de inquietar” (Geertz 1984: 17).
A unidade do espírito é irmã da diversidade de orientações e de
interesses; a grande questão de Lévy-Bruhl é observar “como o
espírito humano tomou pouco a pouco uma outra atitude, outros
hábitos”, única forma de dar seu verdadeiro sentido ao esforço de
esboçar “os grandes traços da transição da mentalidade primitiva
para a nossa” (CL: 63).
Há ainda uma última tentação unitarista a ser exorcizada: a de
situar a diferença inteiramente do lado da experiência mística,
pressupondo que em tudo o que diz respeito à experiência ordinária
os primitivos pensariam e se comportariam exatamente como nós.
Se Lévy-Bruhl às vezes insiste nesse ponto, é apenas porque, no
primeiro caso, a diferença pode ser apreendida com mais nitidez.
Disso deriva, como vimos, o privilégio concedido ao místico num
trabalho que pretende investigar sobretudo a questão da diferença.
Entretanto, separar as duas experiências não pode deixar de ser
ainda uma forma de projeção etnocêntrica de nossas próprias
tendências intelectuais. Essa separação só faz sentido para um
pensamento que passou a problematizar a participação e que se
utiliza da distinção ordinário/místico como recurso destinado a
evitar as enormes dificuldades que esta lhe coloca: crítica e exclusão
progressivas da participação. Do ponto de vista de um pensamento
que concebe a experiência como única, embora envolvendo
diferentes níveis, o que denominamos experiência mística não
poderia deixar de produzir efeitos permanentes e contínuos sobre
o universo ordinário. Disso resulta que, nesse caso, toda e qualquer
separação resultaria artificial: “até aonde se estende a diferença que
provém da orientação mística da mentalidade primitiva? Que
conseqüências acarreta sua fé na experiência mística?” (CL: 70) —
questões às quais é quase impossível responder. Impossibilidade
que demonstra igualmente que a famosa crítica de Evans-Pritchard
— não levar em consideração os diferentes contextos em que são
acionadas distintas formas de explicação, o que poderia demonstrar
que o pensamento primitivo não é absolutamente contraditório —
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 311

esbarra, por mais acurada que seja, em uma séria dificuldade: deixar
de lado, implicitamente, o fato de que esses contextos se inter-
penetram, desfazendo assim a totalidade do fato social ou, ao
menos, supondo que essa totalidade não teria incidência sobre a
experiência vivida dos indivíduos e dos grupos.
Toda a questão da transição — da diferença e da mutação, eu
diria — deve ser colocada em outros termos. Deixando de tomar
nosso próprio modo de pensamento como natural, ou como
superior, deveríamos ser capazes de encarar o dos “primitivos”, não
sem espanto, o que é impossível, mas sem permitir que essa
inevitável distância nos leve a negar os fatos e a diminuir seu alcance
e estranheza. Para isso, é preciso que estranhemos a nós mesmos;
é preciso reconhecer
que primitivamente o homem sentiu e em seguida repre-
sentou seres que, no mesmo momento, eram simultane-
amente humanos e animais, vegetais ou rochedos, etc…
(…). Perguntar-se-á: como a realidade invisível, como a
experiência mística, sem desaparecer, tomaram formas
muito diferentes das primitivas? Como o espírito perdeu
o hábito de ver e de sentir em toda parte participações
entre os seres dados na experiência positiva e esses
mesmos seres dados na experiência mística, seja atual,
seja sempre possível? (CL: 126).
Nessa direção, talvez fosse possível mostrar “por que a
mentalidade primitiva acha absolutamente natural o que nos parece
tão estranho” (idem). Verdadeira inversão do problema da “transi-
ção”: não se trata mais de reconstituir uma pretensa passagem do
absurdo para o normal; trata-se apenas de indagar como uma
normalização do pensamento pôde vir a substituir outra. Quando se
fala de participações,
é irrelevante perguntar como se estabelecem e se fundam.
É preciso buscar ao contrário como elas, pouco a pouco,
se apagaram e desfizeram. Não se colocar, pois, sobre o
plano lógico ou da teoria do conhecimento. Trata-se de
evolução, história, psicologia sociológica (CL: 127).
Colocado ao lado da afirmação da unidade profunda do
espírito humano, concebida de forma muito particular, o processo
de transição entre as mentalidades será objeto de nova compreen-
são. Não que Lévy-Bruhl chegue a duvidar da realidade da evolução
social e mental — “não há dúvida de que as sociedades humanas
evoluem (…). É tarefa da história estabelecer os fatos na medida em
312 Razão e Diferença

que os documentos o permitam, e da sociologia estudar se esses


fatos obedecem a leis que possamos determinar” (CL: 187). A idéia
positivista de uma lei única que a priori governaria a evolução
humana é descartada, atribuindo-se a um trabalho estritamente
empírico a tarefa de determinar se uma lei desse tipo chegaria a
existir. O erro capital dos evolucionistas teria sido justamente
desprezar os fatos, acreditando que “deveriam” obedecer a leis que
o antropólogo supunha conhecer de antemão (CL: 209-10). Fruto
dos “preconceitos” que se costuma ter quando se compara as
sociedades primitivas à nossa e da “tendência a considerar como
absurdo ou grotesco, ou em todo caso como inferior, aquilo que
choca nossos hábitos” (CL: 209), o evolucionismo unilinear não
passa de uma “visão do espírito, que pode agradar e seduzir a
imaginação, mas que não parece estar fundada sobre os fatos, nem
poder entrar em um acordo com eles” (CL: 187). Supondo a
existência de uma passagem universal e contínua do “simples” ao
“complexo”, esse tipo de hipótese se priva imediatamente dos meios
de compreender, e mesmo de descrever, uma realidade que em
muitos aspectos — especialmente no que diz respeito às formas de
pensamento — é bem mais complicada que aquela com a qual
estamos habituados (CL: 209).
Para ultrapassar essa visão simplista e narcisista, é preciso, em
primeiro lugar, reconhecer que ao longo da evolução humana, “há
alguma coisa que ‘persiste’, que constitui uma espécie de elemento
fixo através das mudanças e da sucessão de instituições (…), alguma
coisa de fundamental e indestrutível na natureza do homem” (CL:
187). Isso significa que, mesmo reconhecendo a realidade da
evolução, Lévy-Bruhl procura articulá-la com a idéia de unidade
humana, concebendo-as de maneira radicalmente distinta da que foi
popularizada pelo evolucionismo social e que continua bem viva até
hoje. Em vez de supor uma natureza humana imutável, que
progrediria de forma ascendente através do acúmulo de experiên-
cias, esta é apreendida como totalidade complexa e em perpétuo
conflito consigo mesma. Ainda que seja fundamentalmente a
mesma em todas as partes, isso jamais significa que funcione sempre
do mesmo modo, já que, cindida entre o místico e o sensível, entre
a participação e a representação, entre o afetivo e o cognitivo, seus
próprios conflitos podem ser resolvidos ou conciliados de diferentes
maneiras7. O verdadeiro problema é saber articular os “elementos
sociais” com essas estruturas de base, já que os primeiros também
afetam os segundos na medida em que se transformam (CL: 188-9):
indagar, não como o primitivo pôde crer em tantos absurdos
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 313

(questão evolucionista), mas “como a experiência mística se mani-


festa em nossas civilizações e em que difere da experiência mística
nas civilizações primitivas?” (CL: 188). Ainda que por diversas razões
não a tenha levado a cabo, ninguém mais sensível que Lévy-Bruhl
à necessidade de uma investigação de nossos próprias modos de
pensamento. Em especial, de uma análise das formas de relaciona-
mento entre tipos de conhecimento que, entre nós, vieram a assumir
caráter inteiramente conceitual e discursivo e processos que,
também existentes entre nós, parecem estar ligados à orientação
mística e à participação.
O que Lévy-Bruhl não pode em hipótese alguma aceitar no
evolucionismo é seu finalismo: a idéia de que uma “finalidade
interna dirige o desenvolvimento mental nas sociedades humanas”
é absolutamente insustentável (CL: 125), o que não significa que, de
seu ponto de vista, a história dessas sociedades seja pura desordem
e arbitrariedade. Lévi-Strauss demonstrou os impasses a que Durkheim
foi conduzido por não ter sido capaz de resolver a antinomia, para
ele insuperável, entre “o caráter cego da história e o finalismo da
consciência” (Lévi-Strauss 1946: 527) — e nós sabemos como em sua
própria obra acreditou ter resolvido a questão, ao apelar para a
atividade inconsciente do espírito. Ora, Lévy-Bruhl recusa, como
vimos, da mesma forma que Durkheim, o finalismo da evolução,
não chegando, contudo, a cair nas dificuldades deste último — o
que não quer dizer evidentemente que tenha adotado, avant la
lettre, a solução estruturalista. De seu ponto de vista, a alternativa
poderia ser encontrada no “princípio das condições de existência de
Hume e Comte” (CL: 125), que considerava há muito tempo como
uma solução positiva para os impasses do finalismo filosófico.
Quem fala em “princípios das condições de existência”, não pode
deixar de afirmar, implícita ou explicitamente, a necessidade de um
estudo sempre particularizado das condições históricas e sociais de
processos que, ainda que formalmente universais, não deixam por
isso de se alterar radicalmente ao entrarem em relação com a
totalidade dos fenômenos em jogo. Trata-se, portanto, de abando-
nar metodologicamente os universais de todos os tipos —
evolucionistas, sociológicos ou mesmo os que virão mais tarde a ser
chamados estruturais — para investigar empiricamente como o
espírito pôde deixar de sentir as participações, em que condições
isso foi possível e quais os efeitos globais que uma mutação tão
fundamental pôde produzir. Ao sustentar, aparentemente repetindo
Durkheim, que “a religião e a ciência” derivariam certamente da
participação — da capacidade do espírito humano “se representar
314 Razão e Diferença

(…) o poder ser diferente” (idem) — mas somente pagando o preço


“de erros, tateamentos, absurdos!” (idem), o que Lévy-Bruhl afirma
não é que essa participação seria plena de escândalos, mas, de forma
mais simples, que nada nesse modo de pensamento determinava
necessariamente o caminho que foi seguido pelo espírito humano,
ou ao menos o que nós próprios seguimos. A emergência do
pensamento conceitual pode muito bem não passar de mero
acidente, o que não significa que seja ininteligível em virtude disso.
Em suma, como já foi adiantado, é somente a partir dessa espécie
de cogito primitivo — ser é participar — que se torna possível
recolocar a questão da “transição”, ou antes, da transformação,
indagando em que condições essa evidência pôde deixar de ser
sentida como tal, vindo a ser rompida e substituída por “um
pensamento cada vez mais conceitual”, que é ainda o modo de
pensar que constrange nossa própria mentalidade (CL: 23).
Creio que é possível compreender com mais clareza a partir
dessas observações, por que um autor freqüentemente acusado de
adotar uma posição excessivamente filosófica e que prestaria por
isso pouca atenção à realidade empírica, pôde colocar tanta ênfase,
ao final da vida, na importância dos fatos. É preciso sempre “ater-
se” a eles, repete Lévy-Bruhl sem cessar ao longo de todos os
Carnets (CL: 8; 10; 55; 82; 97; 103; 129; 131; 201; 203; entre inúmeras
outras passagens). Simples manifestação de um empirismo ingênuo
que serviria para contrabalançar, de forma talvez inconsciente, uma
tendência para especulações excessivamente abstratas? É difícil de
acreditar, na medida em que, desde 1890, Lévy-Bruhl parece estar
certo de que não há nada de “mais dócil e mais manipulável que os
fatos, depois dos números” (AL: 468). Nesse apelo ao empírico há
algo mais: trata-se de uma conseqüência direta do abandono dos
pressupostos logicizantes, o que exige que os “fatos” sejam realmen-
te analisados em si mesmos. O que Lévy-Bruhl lamenta em suas
posições anteriores é ter-se deixado levar de modo fácil demais por
um esquema que na verdade só servia para afastá-lo de seu
verdadeiro objetivo, que nunca deixou de ser o mesmo: encarar de
frente a mentalidade primitiva, não recuar diante de sua terrível
alteridade, nem “edulcorá-la” com nossas categorias a fim de torná-
la menos estranha a nossos hábitos de pensamento (CL: 131).
O grande problema que persiste é que para dar conta de fatos
tão estranhos, somos constrangidos a empregar justamente hábitos
mentais inadequados e a utilizar os termos de um vocabulário que
só pode refletir essas mesmas tendências — o que torna extrema-
mente difícil apreender tais fatos em sua positividade, sem
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 315

emprestar-lhes o caráter negativo que possuem apenas quando


encarados de nosso próprio ponto de vista. “A sabedoria”, diz Lévy-
Bruhl, “parece ser evitar antes de tudo os neologismos, e, tanto
quanto possível, o emprego de palavras usuais em um sentido não
habitual” (CL: 83). Estranha declaração vinda de um conhecido
criador de neologismos e promotor do uso de palavras fora de seu
sentido comum. O que está em jogo aqui é certamente uma forma
de empirismo. Não no sentido banal em que o termo costuma ser
entendido, como aversão pelo pensamento conceitual e como
fixação em uma realidade quase desprovida de significação, mas no
sentido que Deleuze dá ao termo: verdadeira “paixão pelo concei-
to”, uma vez que cada coisa e cada fato exigem um tratamento
conceitual que não deve empobrecê-los ao recorrer a esquemas pré-
fabricados e modelos teóricos consagrados. A admiração que
Lévy-Bruhl sempre nutriu por Hume não é casual, mas talvez tenha
sido apenas no final da vida que mais se aproximou deste filósofo,
deixando Kant e Comte de lado. Tudo indica que seu trabalho, se
tivesse prosseguido, poderia vir a assumir a forma de uma análise
nominalista das categorias do pensamento primitivo, análise que
não pretenderia ser sistematizada como “filosofia”, seja “crítica”, seja
“da história”. A pesquisa (“crítica”) das condições sociais (“históri-
cas”) de possibilidade não é uma simples fusão do criticismo e do
positivismo, mas um desvio empirista, no sentido preciso que Hume
e Deleuze dão ao termo. Não é por acaso, portanto, que nesse
momento Lévy-Bruhl invoque justamente o “princípio das condi-
ções de existência” e a noção de “hábito” mental para resolver seus
problemas, idéias que, desde 1909, colocava no centro da “orienta-
ção do pensamento filosófico de David Hume”.
Nesse sentido, é possível compreender ainda melhor o
abandono do prelogismo e da lei de participação: ambos apresen-
tavam o mesmo inconveniente de “ultrapassar (…) o que os fatos
permitem afirmar” (CL: 9); faziam crer, ainda que implicitamente, na
necessidade de determinar, seja as condições lógicas da mentalida-
de primitiva, seja o processo pelo qual esta teria se desenvolvido até
se transformar no pensamento conceitual. O apriorismo e a lei dos
três estados devem ser abandonados em nome dos fatos. A
substituição do prelógico pela “aceitação de incompatibilidades” é
uma das modificações que cumpre exatamente esse papel: “se,
então, eu não quiser ultrapassar o que os fatos permitem afirmar,
direi simplesmente: a mentalidade primitiva admite, sem se chocar
com isso, incompatibilidades que a nossa rejeita como que instin-
tivamente”. (CL: 10). É isso que dá seu verdadeiro sentido ao
316 Razão e Diferença

trabalho, jamais escrito, que os Carnets deveriam preparar. Trabalho


que não seria um
novo livro que se propõe um objeto diferente dos
precedentes, ainda que conexo; será um ajuste de um
certo número de idéias ou fórmulas que se encontram de
uma ponta à outra dos seis volumes, mas a respeito das
quais evoluí (…) de 1910 a 1938, ao mesmo tempo devido
a minhas próprias reflexões e a uma espécie de auto-
crítica, na medida em que os fatos me eram melhor
conhecidos e que compreendia melhor seu alcance — e
também sob a influência das objeções que me foram
feitas, e nas quais reconheci o que me parecia bem
fundado (CL: 163).
Esse “novo trabalho” deveria empreender, sobretudo, uma
análise detalhada dos “diversos tipos de participação”: entre um ser
e seus pertences, entre o indivíduo e o grupo social, entre o grupo
e o território que habita, entre o indivíduo, o grupo e os ancestrais
reais e míticos, etc… (CL: 201). Lévy-Bruhl não pretendia com isso
estabelecer uma classificação ou tipologia, que considerava pura-
mente artificiais, conduzindo de forma quase inevitável à procura de
alguma espécie de lei, ainda mais artificial. Tratar-se-ia apenas,
“conforme meu método habitual, [de] me manter o mais próximo
possível dos fatos e de me deixar guiar por eles” (idem). Não tentar
descobrir o que poderia ser, em si mesma, essa “consubstancialidade”
sempre implicada no sentimento de participação; nem mesmo “em
que sentido os ‘primitivos’ tomam aí a palavra ser”, sempre
implicada quando se afirma uma participação qualquer, como
ocorre quando um bororo diz que é uma arara (CL: 202). Trata-se
de admitir, de uma vez por todas, que afirmações desse tipo, que
o próprio verbo ser, não são pronunciados em “um sentido
inteligível” e que a participação é antes de tudo sentida. Estas seriam
as condições para assumir um ponto de vista a partir do qual os
problemas colocados pelas sociedades primitivas poderiam ser
compreendidos — não “solucionados”, uma vez que “solução”
implica a atitude cognitiva da qual justamente é imperativo afastar-
se (CL: 202-3).

A
É exatamente aí, contudo, que reside a grande dificuldade:
será realmente possível, quando tratamos dos primitivos, “colocarmo-
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 317

nos em sua atitude mental, em vez de lhes emprestar a nossa”? (CL:


55). Que garantias podemos ter de que isso é possível, para não falar
de uma suposta segurança de que poderíamos ser bem sucedidos?
A verdade é que Lévy-Bruhl não responde diretamente a essas
questões, limitando-se a invocar as conhecidas dificuldades que o
“afetivo” colocaria para nossas tendências cognitivas habituais (CL:
1), com a conseqüente incerteza acerca da viabilidade de atingir
uma perspectiva verdadeiramente positiva (CL: 82-3). Trata-se da
velha questão da “compreensão”: vimos como Lévy-Bruhl repudi-
ava de modo absoluto o chamado método compreensivo em nome
de uma ciência explicativa da realidade social, em 1903. Em 1938-
39, iria ainda mais longe, ao abandonar igualmente essa pretensão
explicativa — o que chegou a significar para alguns (Gurvitch) um
recuo e a adoção da compreensão como método. Creio, contudo,
que não é exatamente isso que ocorreu: se a participação realmente
não é “explicável”, ela não é tampouco, a fortiori, compreensível.
Colocar-se na “atitude mental do primitivo”, significa simplesmente
que é preciso respeitar os fatos, não defender uma misteriosa
capacidade humana de empatia, que poderia nos levar a penetrar
emocionalmente onde a observação intelectual seria impotente para
nos conduzir. Como demonstrou Paul Veyne, “a compreensão
psicológica é o disfarce de uma invocação ao senso comum ou ao
homem eterno que, já há um bom século de história e etnografia,
só conheceu desmentidos” (Veyne 1978: 120-1); se o esforço
compreensivo pode ter, como parece, um certo valor heurístico, isso
não significa que seja capaz de demonstração (idem: 121). A atração
que costuma exercer periodicamente sobre certos espíritos deriva
apenas de seu “antropocentrismo” e, principalmente, do “caráter
contraditório de nossa experiência do homem: este nos surpreende
sem cessar, mas nos parece ao mesmo tempo absolutamente
natural” (idem: 120).
Ora, se há algo de que é difícil duvidar, é que Lévy-Bruhl
sempre se interessou mais pela surpresa que pela naturalidade. Se
a compreensão pôde tê-lo atraído enquanto recurso heurístico,
certamente não era capaz de convencê-lo de seu valor de verdade
substantiva. Teria seu pensamento acabado por se enredar num
complexo de paradoxos? Abandonando sucessivamente o unitaris-
mo, o logicismo, o sociologismo, a intenção explicativa, não
aceitando, no final, sequer a possibilidade de compreensão, o que
poderia restar a Lévy-Bruhl? Em outros termos, seria perfeitamente
possível indagar por que e como um etnólogo deveria se dedicar ao
estudo da mentalidade primitiva. Por que, na medida em que uma
318 Razão e Diferença

vez abandonado o sociologismo, esse estudo não revelaria nada


acerca das sociedades onde esse tipo de mentalidade estaria
presente; e, também, na medida em que abandonado o unitarismo
lógico, não se atingiriam os processos mentais possivelmente
universais à espécie humana: nem a etnologia nem a antropologia
poderiam esperar algo da pesquisa da mentalidade primitiva. E
como, já que na ausência de todo princípio de tradução — lógico
ou sociológico — como poderíamos penetrar em um pensamento
tão diferente? Trata-se, em suma, do que denominei acima “parado-
xo da explicação lógica da mentalidade prelógica”, expressão que
poderia ser traduzida agora — se abandonarmos com o próprio
Lévy-Bruhl a nomenclatura logicizante — como a impossibilidade
de “explicar” ou “compreender” um fenômeno, a participação, que
por definição seria inexplicável e incompreensível.
Esses são, contudo, paradoxos e dúvidas bastante antigos,
que Lévy-Bruhl tentou resolver de dois modos distintos e sucessi-
vos. A primeira tentativa de solução, que domina As Funções
Mentais…, assumia o partido da lógica e da explicação, pretenden-
do isolar as propriedades fundamentais da mentalidade primitiva —
noções como as de prelogismo, lei de participação, etc…, são a
conseqüência desse procedimento. A partir de 1922, começa a
renúncia a essa pretensão, substituída progressivamente pela hipó-
tese da possibilidade de uma identificação puramente emocional
com a “atitude mental dos primitivos”, idéia que só viria a ser
formulada com toda a clareza em 1935, em A Mitologia Primitiva.
No livro sobre a experiência mística, contemporâneo aos Carnets
que nos restaram, mesmo essa possibilidade será questionada. Creio
que o novo livro que Lévy-Bruhl planejava escrever deveria, apesar
do que ele próprio diz, trazer algumas novidades, ou pelo menos
aprofundar essa questão — há indicações disso em diversas
passagens dos Carnets. Aí, mais do que antes, os perigos da
linguagem são detectados em toda a sua complexidade e ambigüi-
dade, de modo que, um a um, termos e conceitos são lembrados,
propostos, criticados e, quase sempre, abandonados como ainda
insatisfatórios. Lévy-Bruhl chega a admitir que falar em “hábitos
mentais entre os primitivos”, noção aparentemente tão neutra,
“implica um paralelismo que eu não havia expressamente consta-
tado, e que, assim admitido, por assim dizer a priori, corre o risco
de se tornar perturbador” (CL: 38). Ao mesmo tempo, sugere, como
vimos, que a “tendência pouco conceitual” da mentalidade primitiva
deveria ser entendida apenas como outro modo de utilizar a
capacidade universal de criar conceitos (CL: 177-82). Além disso,
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 319

prelogismo e lei de participação têm que ser abandonados, crença


e experiência não são termos adequados, etc…. Os exemplos
poderiam ser quase infinitamente citados, revelando a busca de uma
espécie de refúgio, ora no caráter afetivo da mentalidade primitiva,
ora nos “fatos” em si mesmos — mais geralmente em ambos, como
se a afetividade pudesse ser descrita, embora não compreendida ou
explicada, sem ser desnaturada.
Os Carnets contêm uma passagem em especial, escrita a 28
de dezembro de 1938, em que essa vertigem é levada às últimas
conseqüências. Constatando mais uma vez a inadequação de nosso
vocabulário conceitual e de nossas tendências cognitivas para dar
conta da mentalidade primitiva, Lévy-Bruhl sustenta, como sempre,
que a raiz dessas inadequações residiria no caráter eminentemente
afetivo da participação que, por isso mesmo, escaparia sempre a
nossos esforços de compreensão ou explicação (CL: 206-8). Até aí,
nada de novo. Entretanto, ele faz questão de acrescentar — e essa
é a única ocasião em toda a obra em que as coisas são colocadas
nestes termos — que
se, para descrever e analisar a participação por pertences,
é preciso se abster dos termos que implicam uma opera-
ção intelectual (tais como pensar, representar, etc…), não
é tampouco inteiramente satisfatório empregar, como fiz,
estes: apreender através de um sentimento; a participação
não é representada, mas sentida; processo, complexo,
essencialmente afetivo ou emocional. De fato, a palavra
sentir, no uso que dela faço aqui, só tem seu sentido bem
definido em oposição a ‘perceber, representar’; afetivo
em oposição a cognitivo. Podemos fazer o que quisermos,
não podemos explicitar o que esses termos conotam para
nós excluindo inteiramente essa oposição (…). Ora, nada
prova que a mentalidade primitiva conheça essa oposi-
ção, e parece mais que provável que jamais tenha tomado
consciência dela. Conseqüentemente, quando dizemos
que sente, e não que representa, a participação por
pertences, utilizamos uma distinção fora de propósito
(CL: 208-9).
Trata-se de um momento capital no pensamento de Lévy-
Bruhl, embora lamentavelmente tardio e breve. “Sentir”, “afetivo”…,
afinal de contas, podem ser tão inadequados quanto “representar”,
“cognitivo”…: projeções, também, de um modo de pensamento que
só pode se constituir como “conceitual” na medida em que objetiva,
critica e exclui o que dele escapa, o que Lévy-Bruhl denomina
320 Razão e Diferença

“emocional” ou “afetivo”. Se ruptura há em sua obra, creio que só


poderia ser localizada nesse momento, embora esse caminho não
tenha tido, ao menos com seu autor, qualquer futuro — o que não
impede, é claro, que tal via possa ser explorada. Que o próprio Lévy-
Bruhl tenha tido consciência disso não me parece duvidoso: “eu me
pergunto se já há algum tempo não me encontro em um impasse e
se a tarefa de aprofundar o que disse até agora a respeito da
participação não é impossível — ou ao menos se não está acima de
minhas forças” (CL: 218). O fato de que é “pior que um paradoxo”
tentar “tornar clara essa realidade mental obscura, fazer de sua
opacidade uma transparência” (CL: 218-9), não impede que se possa
“ir um pouco mais longe” (CL: 219). Para isso seria preciso, contudo,
modificar “os termos nos quais a questão foi colocada” (CL: 218),
evitando “um ataque de frente, evidentemente condenado por
antecipação ao fracasso; isto é, examinar se, por outra via, não seria
possível contornar o obstáculo que parece insuperável” (CL: 219).
Se Lévy-Bruhl não teve tempo de dizer quase nada a respeito
dessa alternativa, quase vinte anos após sua morte, Emmanuel
Lévinas prosseguiu no caminho por ele aberto. Interrogando-se
acerca da influência, em geral sequer considerada, que seus
trabalhos propriamente etnológicos poderiam ter exercido sobre a
filosofia contemporânea, acredita que em pelo menos quatro
pontos esses trabalhos teriam provocado, ou poderiam vir a
provocar, uma revisão de temas e postulados muito antigos na
filosofia ocidental. Trata-se de quatro críticas possíveis: à noção de
representação (Lévinas 1957: 558-61), à categoria de substância
(idem: 562-4), ao princípio da essência (idem: 564-7) e ao “privilégio
do pensamento teorético” (idem: 567-9). Não cabe aqui, é claro,
aprofundar cada uma dessas questões. O belo texto de Lévinas deixa
pelo menos uma dúvida: quem teria sido, de fato, o autor dessas
críticas que parecem atingir o coração da filosofia ocidental? Lévy-
Bruhl, na verdade, jamais se manifestou a respeito desses pontos,
que seu “empirismo intelectualista” (idem: 556) certamente só podia
considerar abstratos demais e fora de seu alcance. A “participação”
entre o sujeito e o objeto (que critica a representação), a “fluidez”
do universo (que dispensa a substância), o predomínio da existência
(contra a essência) e a própria idéia de “mentalidade” (que subverte
o pensamento teorético), são idéias propostas por Lévy-Bruhl ou
por “seus primitivos”? Talvez sejam estes os verdadeiros responsá-
veis por essas críticas radicais e o mérito de Lévy-Bruhl tenha sido
ter sabido escutá-los, sem obrigá-los a dizer o que de antemão já
sabíamos. Lévinas tem razão ao afirmar que embora Lévy-Bruhl não
Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expressão 321

chegue a “demonstrar que o pensamento ocidental resulta de um


concurso de circunstâncias que teria podido produzir um pensa-
mento outro” (idem: 567), ao menos descobre, ou afirma, o caráter
relativo do nosso próprio pensamento. Creio, contudo, que há ainda
mais nessa descoberta: a “mentalidade primitiva”, quando devida-
mente ouvida, não serve apenas, num jogo que seria o de um
relativismo estéril, para revelar a não-necessidade de nossa própria
forma de pensar; ela aponta também, e principalmente, para outras
vias, o que, é claro, não significa que seja modelo ou cópia, mas a
oportunidade de uma abertura para qualquer pensamento outro.
E a antropologia social e cultural em tudo isso? Estaríamos
condenados a “deixar tão tranqüilamente aos filósofos o cuidado de
exprimir” essas questões, como pergunta Lucien Febvre (1942: 17)
aos historiadores, justamente em relação ao trabalho de Lévy-Bruhl?
Não poderíamos, ao contrário, aproveitar seus problemas, parado-
xos, idéias e, quem sabe, alguns de seus conceitos, para ajudar-nos
a repensar o que fazemos?
322 Razão e Diferença

Notas
1. O fato de o livro sobre As Funções Mentais… não ter sido intitulado
A Mentalidade Primitiva provavelmente deve algo às objeções de Durkheim.
Em 1922, com este último já morto e com a diferença entre suas posições e as
de Lévy-Bruhl bem estabelecidas, este deve ter se sentido mais à vontade para
empregar o título que planejara adotar doze anos antes.
2. A menção às exclusões místicas ao lado das participações visa,
evidentemente, enfrentar a objeção de Durkheim, diversas vezes retomada por
Mauss, que sustenta que Lévy-Bruhl teria desprezado equivocadamente esta
propriedade do pensamento primitivo que consistiria em separar de maneira
tão radical quanto reúne. Não é difícil perceber que a crítica, bem como a
resposta a ela, alteram pouco a argumentação de Lévy-Bruhl (ver também
MP: 516).
3. Lévy-Bruhl pode assim concluir seu livro, citando La Fontaine
(MyP: 319):
et moi-même
Si Peau-d’Âne m’était conté,
J’y prendrais un plaisir extrême.
4. A expressão é de Kant. Lévy-Bruhl faz questão de frisar, como
sempre, que a estaria utilizando em um “sentido no qual ele certamente jamais
pensou” (ES: 97).
5. Mesmo um autor contemporâneo, especificamente interessado em
questões de lógica (Engel 1989: 557-58), pode dar razão a Lévy-Bruhl por ter
procurado se afastar do plano puramente lógico, ao tentar dar conta do que
Engel chama, como Sperber, “crenças aparentemente irracionais”. Por outro
lado, Cooper (1975: 247-8), em um trabalho também dedicado à “lógica
primitiva”, prefere insistir na crítica tradicional, afirmando que Lévy-Bruhl teria
se enganado ao considerar a mentalidade primitiva como contraditória, que
novas modalidades de lógica seriam capazes de dar conta desse tipo de
pensamento. O curioso é que ao final do artigo, Cooper se vê obrigado a
admitir que “muitos lógicos sustentam que L3 (e talvez qualquer lógica
alternativa) não é um sistema inteligível e coerente. Teríamos então tirado os
primitivos da frigideira para o fogo” (Cooper 1975: 254). É claro que o autor
não concorda com essa posição; ela indica de qualquer forma que superestimar
os poderes da lógica enquanto disciplina nunca foi um dos defeitos de Lévy-
Bruhl.
6. Lévy-Bruhl acrescenta, com plena consciência, saber que “no
passado a exploração do que é afetivo jamais conduziu muito longe; ela
sempre se deteve logo devido a uma obscuridade sobre a qual a luz do
entendimento não pode grande coisa. Entretanto, isso não é uma razão
decisiva para não tentar essa via: o pior que pode acontecer é que eu descubra
que ela é tão pouco fecunda quanto as precedentes” (CL: 220).
7. “A unidade lógica do sujeito pensante, que é tida por certa pela maior
parte dos filósofos, é um desideratum, não um fato” (FM: 454).
6
As Duas Direções

Se procuramos contemplar o espelho em si mesmo, não


descobrimos afinal nada além das coisas que aí se
refletem. Se queremos apreender as coisas, não atingi-
mos finalmente nada além do espelho. Essa é a história
universal do conhecimento.
Aurora

Seria possível arriscar uma visão global da complexa trajetória


que conduziu o neo-kantiano de A Idéia de Responsabilidade às
dúvidas angustiantes dos Carnets? Em um sentido bem diferente do
que ele próprio empresta a essa constatação (BP1: 20-1), nada de
fato parece ter “preparado” Lévy-Bruhl para seguir esse caminho. Se
eu quisesse sintetizar esses cinqüenta e cinco anos de trabalho
intelectual, diria que ele sempre hesitou entre a “força” e a
“fraqueza” de sua época, entre um racionalismo aparentemente
triunfante e as lacunas, os fracassos, igualmente claros, dessa
orientação mental, social e política tão exclusivista. A Alemanha
desde Leibniz é também uma reflexão sobre o conflito franco-
prussiano e não me parece casual que tenha sido a Iª Guerra Mundial
que separa as posições muito mais ambíguas e relativistas de A
Mentalidade Primitiva das teses cientificistas de As Funções Mentais
nas Sociedades Inferiores. Se é verdade, como afirmam alguns
comentadores, que ao morrer, Lévy-Bruhl tinha perfeita consciência
da catástrofe que se aproximava, não me parece tampouco desca-
bido imaginar o efeito que as agitações dos anos 30 puderam ter
sobre o desenvolvimento de seu pensamento1. À questão colocada
desde 1894 (AL: XXXIV-VII) acerca da relação entre sentimento,
racionalidade, liberdade e opressão, Lévy-Bruhl parece ter respon-
dido inicialmente com uma defesa intransigente dos ideais raciona-
listas e progressistas herdados das Luzes. Já nesse momento,
contudo, alguma coisa o inquietava: as investigações sobre Jacobi,
os românticos, Hume e sobre certos aspectos não muito claros de
324 Razão e Diferença

pensamentos em geral tidos por completamente racionalistas, não


deixam de manifestar os efeitos dessa inquietação.
É exatamente neste contexto que “seus primitivos” inicial-
mente aparecem: como uma espécie de laboratório privilegiado
para investigar os obstáculos colocados ao avanço da razão e da
liberdade. É nesse ponto, contudo, que as coisas se complicam e a
progressiva constatação do caráter inadequado de nossas categorias
e hábitos mentais para dar conta dessas sociedades e dos modos de
pensamento de seus habitantes acabou por levar a um questiona-
mento de nossa própria linguagem, de nossas próprias formas de
pensar. As fronteiras começam a se embaralhar, as oposições
inicialmente tão nítidas começam a perder seus contornos. As únicas
que parece persistir até o fim são justamente as mais antigas, as que
opõem razão e emoção, conhecimento e afeto. Mesmo essas,
contudo, ameaçam desmoronar nos Carnets, com a constatação de
que essas divisões não passam de efeitos de nossos próprios hábitos
mentais e de nossas práticas sociais. Lalande propôs uma etimologia
para o termo razão que o liga historicamente a crença. Por mais
incerta que seja, tudo indica que é nessa direção que Lévy-Bruhl
parecia caminhar no final da vida. Após abandonar sucessivamente
o sociologismo fácil e os tentadores dualismos do lógico e do
prelógico, da identidade e da lei de participação, do ordinário e do
místico, ele quase dá um passo derradeiro e definitivo, ao sugerir
também a rejeição do dualismo que opunha globalmente o afeto ao
conhecimento.
Desse modo, a mentalidade primitiva poderia aparecer, enfim,
com todos os seus direitos, como um “pensamento outro”, como diz
Clastres, pensamento que desafia e subverte o nosso, em relação ao
qual deveríamos tentar mais um diálogo que uma explicação, mais
aprender que ensinar. Não seria esse, afinal de contas, o grande
valor das pesquisas e reflexões antropológicas? Revelar, não sim-
plesmente a existência de outras formas de pensar e fazer, mas,
escapando das armadilhas do relativismo, entender e demonstrar
suas condições e modos de funcionamento, contrastá-los com os
nossos, encaminhando-nos para um “pensamento outro”, pensa-
mento que é outro tanto em relação ao dos “primitivos” quanto em
relação ao nosso? Já se disse que a antropologia é uma “ciência em
devir”. Se não se quiser tomar a expressão no sentido evolucionista
de um saber que caminha na direção da certeza (concepção que a
própria antropologia ensinou a recusar), será preciso admitir que
esse “devir” é infinito, que só pode servir para nos lançar, com nosso
pensamento e nossas práticas, na direção do novo.
As Duas Direções 325

Certamente seria possível dizer que nada disso está presente


na obra de Lévy-Bruhl — o que poderia ser em parte verdadeiro,
embora a questão do que está ou não presente em um pensamento
seja sempre complicada. De qualquer forma, nada nos impede de
tentar fazer com esta obra o que Lévinas demonstrou que seu autor
teria feito com a mentalidade primitiva: escutá-la e apresentá-la de
maneira tal que os desafios que nos lança fiquem um pouco mais
nítidos e, conseqüentemente, mais úteis. Esse é o objetivo último
deste trabalho, onde as idéias de Lévy-Bruhl não foram expostas
nem imparcialmente (tarefa impossível), nem utilitariamente (o que
seria hipócrita), mas tentando obedecer a uma vontade de eqüidade
e utilidade. Utilidade sobretudo para o pensamento antropológico,
dos marcos do qual este trabalho não pretendeu se afastar. Seria
preciso, portanto, depois de passar pela filosofia, pela moral, pela
sociologia e pela etnologia de Lévy-Bruhl, mostrar como sua
antropologia, apenas esboçada, poderia produzir efeitos sobre essa
disciplina como um todo. Mostrar o que poderíamos aprender com
alguém que se esforçou tanto em aprender com “seus primitivos”.
Comentando uma coletânea (Hollis e Lukes 1982) a respeito
do debate entre “racionalidade e relativismo” na antropologia
britânica, Bob Scholte (1984: 961) sustentou que esse tema, trazido
à tona pela “interpretação de Evans-Pritchard da magia Azande”,
teria produzido, independente de qualquer avaliação positiva ou
negativa, “um sopro de ar fresco nos abafados salões acadêmicos do
establishment estrutural-funcionalista”. Ora, sabemos, de acordo
com o próprio Evans-Pritchard, que seu interesse por essa questão
derivou basicamente de uma influência dos trabalhos da escola
sociológica francesa e, nesse caso específico, da exercida pelo
pensamento de Lévy-Bruhl, que teria tido a virtude de despertá-lo
para um problema em geral deixado de lado pelo sociologismo
estrito da antropologia inglesa da época. A questão — ou antes, a
hipótese — que gostaria de levantar é que os trabalhos de Lévy-
Bruhl ainda são capazes, hoje, de desempenhar papel semelhante,
de trazer uma vez mais o “sopro de ar fresco” de que aparentemente
estamos necessitando. Em outros termos, trata-se de indagar se esses
trabalhos fazem parte apenas do passado morto da disciplina,
podendo servir no máximo como objeto para estudos de caráter
histórico, ou se, ao contrário, poderiam servir ainda para a reformu-
lação de alguns problemas muito atuais que, afinal de contas, não
parecem tão diferentes dos que perturbaram autores como Tylor,
Durkheim ou o próprio Lévy-Bruhl. Será que este último ainda teria
algo a dizer sobre esses problemas, que “na antropologia cultural
326 Razão e Diferença

são fundamentais e perenes”? (Scholte 1984: 960). Há, contudo, um


passo preliminar a ser dado para que se possa abordar essa questão
de forma mais justa. É preciso deixar de lado um preconceito mortal
que os antropólogos deveriam ser os primeiros a recusar: as idéias,
assim como as sociedades e as culturas, não nascem, se desenvol-
vem e morrem, como organismos em uma concepção biológica aliás
ultrapassada. Se as várias formas de vida social e pensamento
puderam ser encaradas como “respostas” diferenciadas para certas
questões básicas que a existência humana coloca, não seria possível
supor que algo semelhante ocorreria também com as idéias? Que
elas constituiriam uma espécie de repertório, sempre aberto, onde
podemos buscar, senão uma solução, ao menos uma inspiração
para resolver problemas que nos atormentam?
É verdade que a relação de Lévy-Bruhl com a “comunidade
antropológica” nunca foi das mais tranqüilas. Mesmo no auge de sua
popularidade, os antropólogos profissionais costumavam encará-lo
com uma desconfiança onde se mesclava uma suspeita decorrente
de sua formação filosófica, um descrédito face aos dados de
segunda ou terceira mão que utilizava, e uma recusa do esque-
matismo com que aparentemente apresentava suas teorias e expli-
cações. É claro que com o passar do tempo e a progressiva
sofisticação da pesquisa e teoria antropológicas essa situação só
podia se agravar, a ponto da simples menção das idéias, ou mesmo
do nome, de Lévy-Bruhl por um antropólogo, costumar ser acom-
panhada da imediata demarcação de distância, a fim de que as
posições do profissional não possam ser, nem de longe, confundi-
das com o “etnocentrismo” do “teórico da mentalidade primitiva”.
Não que se pretenda aqui a denúncia da “desnaturação, esqueci-
mento, recalque” do pensamento de Lévy-Bruhl por parte da
antropologia social e cultural. Como já foi dito, Merllié (1989a: 419-
31) se encarregou dessa tarefa e os termos da acusação são dele.
Talvez seja preciso reconhecer, contudo, que “defender” Lévy-Bruhl
contra as “falsas” interpretações e as críticas “injustas” não leva muito
longe, na medida em que essa posição acaba usualmente por sugerir
uma espécie de “retorno” às “verdadeiras” idéias do autor, retorno
em geral problemático e quase sempre ocioso. Creio que seria mais
interessante partir de algumas questões atuais colocadas pela e para
a antropologia, tentando observar de que modo um pensamento,
que geralmente é excluído de forma artificial desse campo do saber,
poderia aí ser enxertado, a fim de que alguma coisa de novo e útil
pudesse brotar. Por isso, eu substituiria os termos empregados por
Merllié por apenas um: exclusão. E, em vez de lamentar as supostas
As Duas Direções 327

deformações e esquecimentos, tentaria (re)incluir o pensamento de


Lévy-Bruhl na reflexão antropológica, apontando para as inovações
que poderiam derivar dessa operação.

A
Há mais de trinta anos, Poirier (1957: 518-25) já procurava
isolar os três tipos fundamentais de crítica que a antropologia
dirigiria a Lévy-Bruhl, tratando, ao mesmo tempo, de defendê-lo
delas. De seu ponto de vista, haveria: uma crítica de ordem
terminológica, que insistiria na inadequação de noções como
“prelógico” ou “lei de participação”; uma crítica metodológica,
apontando a ausência da pesquisa de campo (do ponto de vista das
técnicas de investigação) e o comparatismo descontrolado acompa-
nhado da falta de uma verdadeira explicação sociológica (do ponto
de vista do método propriamente dito); enfim, uma crítica teórica,
não isenta contudo de elementos éticos, que denunciaria o exces-
sivo dualismo do autor, cuja inevitável conseqüência teria sido o
privilégio do pensamento ocidental em detrimento da mentalidade
primitiva e mesmo uma certa legitimação do empreendimento
colonialista. De todas essas restrições, o próprio Poirier considera
que apenas a falta do trabalho de campo e de explicação sociológica
seriam críticas parcialmente justificadas.
Bem mais recentemente, Merllié (1989a: 420-22) buscou
também determinar as razões dessa recusa quase global por parte
dos antropólogos profissionais, acreditando tê-las localizado nas
“problemáticas que (…) devem alguma coisa a um pensamento que
elas talvez só tenham ultrapassado na medida em que prolongaram
o movimento que o animava” (Merllié 1989a: 419, nota 3)2. Além
disso, dever-se-ia levar em conta a própria “clareza” da escrita de
Lévy-Bruhl (em geral confundida com uma inexistente superficiali-
dade ou facilidade), que teria feito, de modo paradoxal, com que
leitores mais apressados se contentassem com as interpretações em
geral equivocadas de alguns apresentadores e críticos: “todo mundo
tendo ‘lido’ Lévy-Bruhl, ninguém tinha necessidade de lê-lo, e a
vulgata deformada mantinha-se a si mesma” (idem: 427). Enfim, o
pensamento dominante na antropologia francesa do pós-guerra, o
de Claude Lévi-Strauss, teria operado uma série de eliminações para
ser bem sucedido, entre elas o “esquecimento” das principais
questões levantadas por Lévy-Bruhl (idem: 429-31). Merllié talvez
328 Razão e Diferença

tenha razão ao apontar esses motivos como determinantes do


afastamento da antropologia em relação às idéias de Lévy-Bruhl;
creio, contudo, que as motivações alinhadas são demasiadamente
pessoais, refletindo mais um certo ressentimento do defensor que
as verdadeiras razões dos críticos.
Jorion é bem mais contundente, acertando melhor o alvo. De
seu ponto de vista, haveria sobretudo três razões para a recusa das
idéias de Lévy-Bruhl. Uma de ordem ético-política, pois a descon-
tinuidade postulada entre os modos de pensamento parece favore-
cer o colonialismo (Jorion 1989: 515-6); outra, de base teórico-
profissional, uma vez que essa tese da descontinuidade parecia
ameaçar os fundamentos do trabalho antropológico — a pesquisa
de campo — ao sugerir uma verdadeira impossibilidade de comu-
nicação entre o pesquisador e o grupo estudado (idem: 516); enfim,
uma terceira, mais “circunstancial”, o deslocamento do foco das
pesquisas etnográficas na direção da África, o que teria feito
esquecer que as teses de Lévy-Bruhl diziam respeito sobretudo às
populações australianas (idem). Das razões alinhadas, a segunda
seria a fundamental: a antropologia teria cometido o erro capital de
tomar o postulado da “unidade do espírito humano” como condição
de possibilidade de seu exercício, quando a diversidade dos modos
de pensamento não impede, em hipótese alguma, a prática da
disciplina (idem: 516-9). Pouco antes desse texto de homenagem,
Jorion (1986: 337) já sustentava que Lévy-Bruhl teria sido o
verdadeiro pioneiro de uma antropologia mais radical e mais
interessante, capaz de aprender com os “Selvagens” e de “nos
ensinar (…) como pensamos”.
Talvez seja possível aprofundar a questão das relações entre
Lévy-Bruhl e a antropologia social e cultural. Já observamos ao
longo deste trabalho algumas dessas relações, em especial as que
se estabeleceram com as principais correntes que constituíram a
disciplina a partir da segunda metade do século XIX. Vimos que
desde As Funções Mentais…, o evolucionismo social vitoriano foi
um dos alvos preferidos de Lévy-Bruhl, tendo sido em grande parte
contra essa forma de conceber a diversidade cultural que construiu
seu pensamento etnológico. Sabemos que o que não podia aceitar
na “escola antropológica inglesa” era justamente o postulado
simplista da unidade humana meramente disfarçada pela desigual-
dade de desenvolvimento, nem que a diversidade profunda dos
modos de pensamento se reduzisse à simples aplicação errônea de
princípios universais do espírito humano. Não deixa de ser impor-
tante observar que o unitarismo evolucionista é muito mais compa-
As Duas Direções 329

tível com o empreendimento colonial que o diferencialismo de


Lévy-Bruhl, que não autoriza afirmar a superioridade do nosso
pensamento sobre o dos “primitivos”, nem reivindicar o direito de
intervir em suas sociedades para que sejam “queimadas” as etapas
de desenvolvimento que fatalmente viriam a atravessar.
Vimos igualmente como Davy opunha o “dualismo de super-
posição” de Durkheim (na verdade um monismo disfarçado) ao
“dualismo de divergência” de Lévy-Bruhl (apenas uma etapa
preparatória para um verdadeiro pluralismo); como o próprio
Durkheim (e Mauss) tentou exorcizar o que considerava ser o
psicologismo e o diferencialismo deste último. O problema é que o
monismo de base sociológica da “escola” sempre serviu para a
reintrodução sub-reptícia de um certo tipo de evolucionismo. Não
certamente no sentido de que os modos de pensamento seriam tidos
como sendo sempre os mesmos, variando apenas em grau sua
correta aplicação. Ao supor, contudo, que nossas próprias formas
de pensar derivam das representações primitivas, Durkheim e os
sociólogos de estrita obediência acabaram por substituir o que era
uma simples evolução de conteúdos por um verdadeiro progresso
das formas, sem alterar de maneira radical o cerne da questão e,
sobretudo, sem encarar diretamente os problemas colocados pela
diferença pura, jamais redutível a processos lineares ou simples
gradações. O sociologismo — vale a pena repetir — parece
funcionar como substituto para a unidade psicológica postulada
pelo evolucionismo social. É verdade que no caso de Durkheim e
seus seguidores, o “progresso” tem que enfrentar um caminho mais
difícil, uma vez que, supostamente, deve passar pela organização
social concreta. Essa diferença, contudo, altera pouca coisa nos
esquemas de pensamento implementados pela escola sociológica
francesa quando comparados aos do evolucionismo.
Observamos, enfim, como Lévy-Bruhl enfrentou, já no final
da vida, as críticas de inspiração estrutural-funcionalista que Evans-
Pritchard lhe dirigiu de modo elegante e, certamente, traduzindo a
inclinação de toda a antropologia social britânica. Mesmo admiran-
do bastante essa corrente de pensamento antropológico, com sua
tradição de pesquisa de campo intensiva, Lévy-Bruhl não pôde
deixar de assinalar a distância existente entre esse modelo cientifi-
cista e seus próprios interesses. É por isso que se, na carta-resposta
que enviou ao mesmo Evans-Pritchard, faz questão de se afirmar
“filósofo”, o que explicaria as divergências com os antropólogos
profissionais, isso talvez se deva igualmente a uma certa cortesia
para com seu crítico. Dizer que sua verdadeira “ambição” teria
330 Razão e Diferença

sempre sido “acrescentar alguma coisa ao conhecimento científico


da natureza humana utilizando os dados da etnologia” (LE: 413) não
deixa de ser, afinal de contas, uma afirmativa perfeitamente
endossável por Radcliffe-Brown ou Malinowski. A verdadeira
questão reside em outro lugar: na recusa em admitir que a opacidade
dos modos de pensamento diferentes do nosso possa ser facilmente
substituída pela aparente clareza de formas de organização social
que são também muito distintas daquelas com que estamos acostu-
mados. Para Lévy-Bruhl, atingir princípios gerais ou universais
através do estudo da “sociedade” é tarefa tão difícil quanto fazê-lo
através do estudo do “pensamento”. Ou antes, “sociedade” e
“pensamento” não são realidades distintas e facilmente separáveis.
Como diz Jorion (1989: 516), “a questão da diversidade ou não dos
modos de pensamento constitui de direito um prolegômeno a toda
etnologia teórica”.
Finalmente, apenas para completar esse quadro meio impres-
sionista, talvez seja interessante mencionar a intervenção de Boas no
debate travado em 1929 na Sociedade Francesa de Filosofia a
respeito de A Alma Primitiva (BP2: 112-5). Suas objeções são muito
semelhantes às de Evans-Pritchard, insistindo acima de tudo, como
seria de se esperar, na necessidade de levar em consideração a
diversidade dos casos concretos, evitando toda generalização
teórica apressada. A lacônica resposta de Lévy-Bruhl a essas críticas
— “confesso que não me convenceram” (BP2: 115) — apenas
disfarça educadamente o mesmo tipo de divergência com o
estrutural-funcionalismo britânico. As dificuldades de ordem prática
e teórica colocadas pela observação etnográfica e pela análise
etnológica não poderiam servir como defesas destinadas a evitar
uma investigação mais profunda e mais geral, antropológica eu
diria, da natureza humana com sua identidades de estrutura e
diversidade de orientação.
É preciso reconhecer, contudo, que esse tipo de recorte de
toda uma tradição teórica muito complexa em termos de “escolas”
de pensamento ou “nacionais” é um pouco artificial. Sempre é
possível, em quase todos os casos, citar com razão este ou aquele
autor, esta ou aquela obra, este ou aquele aspecto de um pensamen-
to, que dificilmente poderia ser enquadrado no modelo. De
qualquer forma, creio que se não o levarmos excessivamente a sério,
esse recorte pode ser um procedimento cômodo que facilita certos
confrontos e permite certas conclusões que, para serem úteis, não
devem ultrapassar os quadros limitados de que se partiu. Deste
ponto de vista, constatamos facilmente que o pensamento de Lévy-
As Duas Direções 331

Bruhl se conforma muito pouco aos paradigmas teóricos vigentes ou


dominantes, se nos limitarmos às principais teorias antropológicas
existentes até a metade deste século.
Deixando de lado toda intenção crítica, bem como toda
pretensão de defesa, limitar-me-ei a algumas observações, destina-
das a problematizar um pouco esses ataques (e mesmo algumas
defesas). Ataques e defesas cujo caráter aparentemente tão óbvio
costuma nos fazer esquecer que cada um deles toca em pontos
muito delicados da antropologia social e cultural, que estão muito
longe de ser objeto de um consenso tranqüilo no interior da
disciplina. Creio que é possível isolar pelo menos seis críticas
fundamentais dirigidas, explícita ou implicitamente, pela antropo-
logia tradicional a Lévy-Bruhl:
1. O etnocentrismo. Parece-me que nada em sua obra pode ser
diretamente citado como prova cabal de desprezo pela mentalidade
primitiva, ou de valorização incondicional do pensamento ociden-
tal. O vocabulário empregado? É preciso reconhecer com franqueza
que afinal de contas tudo o que temos feito há quase cem anos é
substituir termos mal vistos, como “primitivo” ou “inferiores”, por
outros como “selvagem” ou “tradicionais”, sem que o núcleo do
problema terminológico tenha sido realmente resolvido. É claro que
nossos termos são empregados sempre com inúmeras restrições,
entre aspas como se diz. No entanto, ocorre o mesmo com Lévy-
Bruhl, bastando uma rápida passagem por qualquer um de seus
textos para nos certificarmos disso. Como disse Florestan Fernandes
(1954: 121-2), a ciência, é claro, é apenas ocidental; todo trabalho
que tenha pretensões científicas e que esteja voltado para a
compreensão ou para a explicação do “outro” está, por definição,
“sujeito à influência de atitudes etnocêntricas”, ainda que residuais.
Tudo isso é por demais conhecido, mas é preciso admitir que Lévy-
Bruhl, como bom kantiano, sempre separou radicalmente os juízos
de valor dos de realidade, o que o levou, como vimos, a ser anti-
etnocêntrico como ninguém do ponto de vista cognitivo, não
obstante quase nada afirme a respeito da ética. Mesmo seu
mencionado e relativo apoio ao “colonialismo”, parece derivar
muito mais de uma avaliação — certa ou errada, é outra questão —
de uma situação de fato, não sendo, deste modo, considerações de
ordem teórica que o teriam levado a manifestar esse apoio, como
ocorreu com os evolucionistas sociais.
2. O filosofismo. Esse “defeito”, ao contrário do anterior, Lévy-
Bruhl o assumia como qualidade. Na carta endereçada em 1934 a
Evans-Pritchard, reafirma, como vimos, sua vocação de filósofo,
332 Razão e Diferença

procurando se distanciar da antropologia profissional. A etnologia,


as sociedades primitivas, teriam representado, em suma, apenas o
apoio concreto de que necessitava — lembremos sua admiração
pelo positivismo — para não filosofar no vazio. Seria isso de fato um
“defeito”, ou, como diz novamente Florestan Fernandes (1954: 121),
trata-se de um esforço típico dos “verdadeiros sábios” para “colocar
a investigação científica a serviço completo da razão”? Um esforço
para romper as barreiras artificiais entre as disciplinas, “liberando”
a reflexão sobre o fenômeno humano, como sugeriu Leenhardt
(1949: XIX)?
3. A falta de experiência de campo. Trata-se de uma verdade
de fato, que não pode servir, contudo, para julgar a priori as
hipóteses e conclusões do autor. Estamos acostumados demais a
pensar o que na verdade é apenas uma técnica de pesquisa — por
mais fundamental que seja — como uma espécie de panacéia contra
todos os males. Isso não quer dizer, o que seria absurdo, que o
trabalho de campo não seja crucial para a antropologia; mas não
deve fazer esquecer nem das extravagâncias teóricas de um
Malinowski, por exemplo, nem do fato de que grande parte das
idéias mais brilhantes que a antropologia produziu é fruto da
reflexão de pensadores que não tiveram nenhuma — Durkheim ou
Mauss, por exemplo — ou pouquíssima — Lévi-Strauss — experi-
ência de campo. Por outro lado, Leenhardt — e o mesmo poderia
ser dito, com um pouco mais de cuidado talvez, a respeito de outro
brilhante pesquisador de campo, Evans-Pritchard — dedicou quase
a vida inteira a esse tipo de trabalho e suas objeções às idéias de
Lévy-Bruhl são sem dúvida muito menores e muito mais simpáticas
que as proferidas pela maior parte dos antropólogos profissionais,
cujo trabalho de campo em geral não costuma ultrapassar um ou
dois anos.
4. O comparatismo. Essa é, como foi dito, a crítica a que Lévy-
Bruhl parece ter sido sempre mais sensível. Ao longo de sua obra,
o campo etnográfico de onde os casos a serem analisados e os
exemplos a serem fornecidos eram extraídos foi sendo progressiva-
mente restringido, até se limitar à Austrália e à Nova Guiné —
regiões que, como se sabe, eram consideradas no início do século
como tipicamente habitadas pelas populações mais “primitivas” de
que se tinha conhecimento. De qualquer forma, essa modificação
nunca chegou a ser muito importante, na medida em que aquilo que
em geral se acentua nesse tipo de crítica é o caráter
descontextualizador das comparações efetuadas, o fato de que se
aproxima e compara casos isolados, não totalidades sócio-culturais.
As Duas Direções 333

O próprio Florestan Fernandes (1954: 130), tão simpático ao autor,


fez eco a essa restrição, observando apenas, como vimos, que talvez
não valesse a pena insistir nela já que enfatizaria justamente “o
ângulo menos original da obra”, o que compartilharia ainda com o
século XIX. O fato é que o próprio Lévy-Bruhl compreendeu muito
bem que seu procedimento era adequado, desde que se levasse em
conta os verdadeiros objetivos da análise que estava propondo:
“para o gênero de pesquisas a que me propunha (relativas aos
caracteres essenciais e gerais da mentalidade primitiva)” esse
método seria perfeitamente “legítimo” (LE: 409). Observemos
também que esse procedimento é recorrente em autores cujos
objetivos são mais antropológicos que etnológicos ou sociológicos,
como é o caso de Lévi-Strauss — ao menos em O Pensamento
Selvagem e a despeito de tudo o que ele próprio possa afirmar a esse
respeito.
5. O psicologismo. Sob essa rubrica podem ser alocadas
inúmeras críticas: desprezo pelas explicações de ordem sociológica;
atenção exclusiva em mecanismos psíquicos apenas hipotéticos;
ênfase excessiva nas emoções, etc…. Será, contudo, que o sociolo-
gismo é mais que uma simples hipótese que em alguns casos é
certamente capaz de conduzir a boas conclusões, mas que em
outros tantos pode levar a verdadeiros absurdos? Mesmo a defesa,
por parte de Mauss, por exemplo, da necessidade de estabelecer
uma antropologia total que incluísse realmente todas as dimensões
da existência humana, parece um pouco parcial, na medida em que
o poder de sobredeterminação do social é tido como uma espécie
de evidência a priori e na medida em que o psicológico acaba
sempre remetido para outra disciplina, quando não é tratado como
mero epifenômeno. Parece-me que, deste ponto de vista, o esforço
de Lévy-Bruhl é mais interessante, ao insistir na necessidade de
descrever fatos simultaneamente psíquicos e sociais, sem pressupor
nenhum tipo de determinismo. Já observei que nesse ponto ele se
aproxima bastante de Lévi-Strauss, ainda que seja evidente que o
que não pode deixar de separar os dois autores é o cognitivismo
rigoroso do segundo, que relega o “afetivo” — tudo o que parece
depender de um “pensamento obscuro e confuso”, como diz
Bastide — a um plano inferior. Se aceitarmos, como também sugeri,
que esse “afetivo” é apenas um “termo-refúgio”, onde tudo o que
escapa ao racionalismo ocidental é alocado, podemos aceitar que
esse é um procedimento que possibilita a apreensão e a descrição
de fenômenos muito complexos de um modo que evita todo
reducionismo e todo etnocentrismo.
334 Razão e Diferença

6. O diferencialismo. Esta é, na verdade, a questão central que


pode inclusive explicar em última instância as razões de todas as
demais críticas. Evans-Pritchard já havia observado que, mais que
ninguém, Lévy-Bruhl teria aprofundado a diferença entre “primiti-
vos” e “civilizados”, a tal ponto que os antropólogos não consegui-
am mais descobrir qual seria seu papel nesse impossível diálogo.
Não me parece, contudo, que seja exatamente disso que se trata.
“Primitivos” e “civilizados” não são mais que “tipos” ou “casos” —
concretos ou ideais, pouco importa nesse momento — que tornam
possível a apreensão de uma diferença entre modos de pensamento
e entre sistemas de valores situada em nível bem mais profundo, a
ponto de nada obrigar a concebê-la de forma exclusivamente
sociológica ou dualista. Ao afirmar a “unidade profunda do espírito
humano” e, ao mesmo tempo, sua cisão ou suas diferentes
orientações possíveis, Lévy-Bruhl não estava simplesmente lançan-
do um paradoxo, mas apontando para o horizonte de um pluralismo
possível. Ou, se preferirmos ser mais fiéis a seu vocabulário
conceitual, talvez pudéssemos dizer que se trata de uma “dualida-
de”, no sentido em que o próprio autor empregava o termo:
totalidade não decomponível onde identidade e diferença estariam
inextricavelmente mescladas — conceito que, como vimos, era
oposto aos “dualismos” ocidentais de todos os tipos. Não que Lévy-
Bruhl questionasse a legitimidade de uma pesquisa a respeito da
invariância formal da natureza humana. Tudo o que está sendo dito
é que essa investigação não deveria impedir outra, paralela à
primeira: o estudo sistemático da proliferação de diferenças que
mesmo essa invariância é impotente para deter. A antropologia
social e cultural, disciplina sempre dilacerada entre essas duas
exigências aparentemente opostas — a “unidade” do homem e sua
“diversidade” sócio-cultural — abre espaço obrigatoriamente para
um jogo que pode ir em uma ou outra direção. A aposta de Lévy-
Bruhl é muito clara e talvez ainda seja possível aprender com ela:
afirmar que há algo de “primitivo” entre os “civilizados”, e vice-
versa, é também, em linguagem que hoje só pode nos parecer
ultrapassada, sugerir a pluralidade de orientações possíveis do
pensamento humano e dos valores sociais, pluralidade que, em
certo sentido, cada cultura “domestica” a seu modo, sem jamais
chegar a eliminar por completo as virtualidades que se recusa a
atualizar — ou antes, que um complexo conjunto de fatores faz com
que não sejam aí atualizadas. Ora, investigar essas orientações
diferentes é descortinar certas possibilidades de nosso próprio
sistema, em geral mascaradas pelas orientações dominantes que
As Duas Direções 335

privilegia e valoriza, excluindo as demais. Mais do que aprender


com Lévy-Bruhl, trata-se, como sugeriu Lévinas, de escutar as lições
de uma mentalidade outra, mentalidade que só um hábito de
linguagem historicamente muito datado — e que, certamente, não
temos a menor necessidade de continuar observando — poderia
denominar “primitiva”.
Essa recusa de Lévy-Bruhl por parte da antropologia teria se
modificado com os desenvolvimentos mais recentes da disciplina?
É muito difícil responder afirmativamente, na medida em que este
autor continua excluído dos principais debates contemporâneos.
Sua (re)inclusão poderia ajudar a esclarecer algumas questões que
têm nos atormentado? É o que gostaria de discutir agora. Para fazê-
lo, partirei de alguns dos temas “fundamentais e perenes” da
antropologia alinhados por Bob Scholte (1984: 960), que cita, entre
outros, os debates relativos à “natureza e ao alcance da razão, sua
universalidade e relatividade”. Não há dúvida de que racionalida-
de, relativismo e universais são questões bem vivas no interior da
antropologia. Na medida em que estão igualmente presentes na
obra de Lévy-Bruhl — ainda que na maior parte das vezes de forma
implícita — pareceu-me conveniente discutir esses problemas
através de uma possível articulação que o pensamento deste autor
poderia manter com eles. Além disso, não deixa de ser curioso
observar que cada um desses debates parece predominar em cada
uma das principais tradições nacionais da antropologia. De modo
bastante aproximativo e num intuito meramente heurístico, pode-
se sustentar que o tema da “racionalidade” desempenha papel
fundamental no interior da tradição funcionalista britânica; que a
questão dos “universais” continua a ser importante no estruturalis-
mo francês e nos teóricos de alguma forma ligados a essa corrente;
que, enfim, o “relativismo” permeia de ponta a ponta a antropologia
norte-americana, seja em sua vertente culturalista, seja nos modelos
interpretativos mais recentes. Baseado nesse recorte, que espero
apenas parcialmente artificial, é possível analisar essas questões a
partir de seus centros de repercussão, tentando articulá-las com o
pensamento de Lévy-Bruhl, análise que, é evidente, nem de longe
aspira à exaustividade. Trata-se apenas de mapear um conjunto de
questões a fim de avaliar até que ponto Lévy-Bruhl poderia ainda
dizer alguma coisa a seu respeito.

A
336 Razão e Diferença

Descrevendo o desenvolvimento da antropologia cultural


norte-americana nas décadas de 20 e 30, Marcus e Fischer (1986: 19-
25) observam o predomínio do “relativismo cultural”. O mais
importante, que escapa do truísmo, é sublinharem que este princí-
pio, inicialmente concebido apenas como “um conjunto de orien-
tações metodológicas”, acabou sendo convertido em uma “doutrina,
ou posição”. Não parece haver dúvida de que é justamente com esse
caráter que a questão do relativismo virá a ocupar posição central
em boa parte dos debates antropológicos contemporâneos, debate
no qual um grande número de filósofos e cientistas sociais oriundos
de outras tradições teóricas acabará participando. É claro que essa
questão está presente em todo o campo antropológico, embora seja
no contexto da antropologia norte-americana que encontre seu
desenvolvimento mais típico. O famoso livro de Sahlins (1976) sobre
o debate entre “cultura e razão prática” testemunha bem esse
processo, ao recortar toda a história do pensamento antropológico
de forma dualista, opondo os defensores do relativismo (a “razão
cultural”) aos que recusam este princípio (a “razão prática”). Se
recordarmos ainda que os dois paradigmas que melhor representa-
riam essas duas posições são localizados nas obras de Boas e
Morgan, respectivamente, compreendemos facilmente o alcance
que esse confronto tem no cenário norte-americano, onde as formas
mais elaboradas do relativismo (Boas, seus alunos e, hoje em dia,
a chamada antropologia hermenêutica), bem como as oposições
mais duras a esse princípio (Morgan, a ecologia cultural, a sociobio-
logia), podem ser encontradas simultaneamente como dois modos
extremos de colocar a questão.
O desenvolvimento do relativismo-método ao relativismo-
princípio apontado por Marcus e Fischer, pode esclarecer a verda-
deira natureza do problema melhor que a crua oposição proposta
por Sahlins. É óbvio que para Boas e seus primeiros alunos, o
relativismo era sobretudo um princípio metodológico, permitindo o
acesso a outras culturas. Eles acreditavam que o fato de nos
abstermos de qualquer julgamento de valor a respeito de sociedades
muito diferentes da nossa era a própria condição de possibilidade
da análise objetiva dessas realidades e, ao menos no caso de Boas,
de toda tentativa de generalização no caminho de uma teoria
universal do homem. Isso significa que os problemas epistemoló-
gicos que o relativismo certamente coloca — e que hoje parecem
constituir o ponto em torno do qual gira o debate — não são
encarados como fundamentais nesse momento. Na verdade, quem
parece ter convertido um simples princípio metodológico em
As Duas Direções 337

doutrina foram justamente os críticos da postura relativista, que


insistiram em apontar o que consideravam os paradoxos e impasses
intrínsecos a ela — além, é claro, do papel crucial desempenhado
por um certo contexto histórico e político muito particular, onde
uma forma liberal de pensamento se defrontava com o con-
servadorismo e o racismo tradicionais da sociedade norte-america-
na (cf. Marcus e Fischer 1986: 20). Não deixa de ser verdade,
contudo, como observa um intransigente defensor do relativismo
(Geertz 1983: 149), que é muito difícil conciliar a afirmativa da
impenetrabilidade recíproca entre indivíduos situados em culturas
diferentes com o fato de que essa mesma proposição — para não
falar dos trabalhos de pesquisa em geral — deriva dos estudos
daqueles que justamente “penetraram” nesses outros mundos3. O
mesmo Geertz (1984: 18) escreveu um manifesto em defesa do
relativismo, tendo contudo o cuidado de montar toda a sua
argumentação em cima dos “fatos”, sem procurar qualquer tipo de
sustentação teórica. Quando, em outra ocasião, tenta fazê-lo, o
caminho escolhido é rebatizar o relativismo de “enigmas da
tradução”, que só poderiam ser resolvidos por meio de trabalhos
concretos, não de especulações de ordem teórica (Geertz 1983: 151).
Se na vertente mais estritamente culturalista da antropologia
americana, o relativismo ocupa essa posição de destaque —
enquanto solução, não como problema — o desenvolvimento das
chamadas técnicas de interpretação, ou hermenêutica, aprofundará
de forma considerável o debate. Aquilo que até a década de 60
parecia óbvio, ao menos para a maior parte dos antropólogos,
começará a ser questionado também de dentro da antropologia, não
mais apenas pelos críticos absolutistas. Como se sabe, é a obra de
Geertz que surge como ponto de passagem e articulação entre o
culturalismo propriamente dito e a antropologia hermenêutica. É
bastante significativo, desse ponto de vista, que sua “interpretação
da cultura” defenda o relativismo como o princípio central de
qualquer antropologia, não deixando, contudo, de levantar uma
série de dificuldades ligadas à implementação desse princípio, ainda
que jamais tenha sido seu objetivo principal tentar explorá-las e
resolvê-las. A solução hermenêutica também é conhecida: a defasa-
gem entre as culturas seria na verdade bem mais ampla do que se
costuma reconhecer; as dificuldades de comunicação e tradução
seriam muito reais e difíceis de serem superadas; a única forma de
contornar essas dificuldades seria aprofundar e repensar a prática
etnográfica, tanto no que se refere à pesquisa de campo propria-
mente dita quanto às técnicas de descrição e apresentação que os
338 Razão e Diferença

antropólogos utilizam. O próprio pesquisador deveria conseqüen-


temente ser incluído no processo a ser analisado, fazendo com que
a antropologia deixasse de ser um “monólogo” sobre as outras
sociedades para se converter em um verdadeiro “diálogo” com elas
(cf., por exemplo, Boon 1980; Clifford 1983; Clifford e Marcus 1986;
entre outros). A antropologia hermenêutica, apesar de todos os seus
problemas, lançaria, como diz Jorion (1989: 516-7), uma “acusação
mortífera (…): que os registros de campo sempre se confundiram
com a ficção romanesca, que a etnologia se constituiu lá onde estava
o explorador”. Isso significa que relativismo e anti-relativismo
parecem se defrontar num cenário fechado onde cada parte tenta
encerrar a outra em uma contradição supostamente insuperável. Se
o relativismo for verdadeiro, dizem os defensores da segunda
posição, ele nos impede de afirmar o que quer que seja acerca das
outras culturas — e nesse caso o próprio relativismo extraído da
observação dessas outras sociedades seria insustentável. Se for
falso, respondem seus adeptos, isso só poderia nos levar a uma
situação na qual não poderíamos mais saber se ao falar do “outro”
estaríamos na verdade simplesmente falando de uma projeção mais
ou menos deturpada de nós mesmos — a hipótese de uma unidade
humana jamais tendo conseguido deixar de ser uma forma de
petição de princípio. O fato é que se o relativismo nunca foi uma
garantia de bons resultados (seja do ponto de vista teórico, seja do
ponto de vista político), isso não significa que o anti-relativismo
tenha realmente conduzido à constituição da tão prometida teoria
geral da natureza humana, além de ter, é claro, servido como
justificativa para toda uma série de abusos conceituais e políticos.
O manifesto anti-relativista de Todorov serve ao menos para
colocar em destaque esse ponto, embora a solução “universalista”
e “humanista” que pretende apresentar não possa ser considerada
tão precisa. Imaginar que “o etnocentrismo e o cientificismo
constituem duas figuras — perversas — do universalismo” ( Todorov
1989: 51 — o grifo é meu) nada resolve, pois seria preciso mostrar
concretamente como princípios tão “perversos” puderam se originar
de posição tão “salutar”. Além disso, não seria difícil sustentar que
os problemas do relativismo isolados por Todorov não passam, eles
também, de “perversões” de uma postura em si mesma correta. Mais
curiosa é a posição de Wilson (1970: XII-XIV), que já nos convidara
a “exorcizar o fantasma de Lévy-Bruhl”. Ele procura resolver a
questão do relativismo, afirmando que o Ocidente seria de fato
superior às demais culturas justamente por estar aberto a elas e por
ser capaz de criticar a si mesmo, em suma, por ser relativista. O
As Duas Direções 339

homem ocidental “afinal de contas, tenta compreender as outras


sociedades. Os outros não. Sua ampla tolerância, sua curiosidade
intelectual, e sua disposição para criticar seus próprios procedimen-
tos são suas vantagens iniciais sobre o homem de outras culturas”.
Isso foi escrito em 1970 e parece uma espécie de golpe de mestre:
o relativismo cultural seria uma prova a mais da superioridade
ocidental (idem: XII). Jorion (1980: 458-9) parece, portanto, ter
razão ao denunciar o “falso liberalismo” imanente às posições
meramente relativistas: “colocar por princípio todos os sistemas
culturais como iguais conduz a uma glorificação de fato apenas do
nosso, pois no tribunal dos Valores Humanistas nós somos ao
mesmo tempo juiz e parte interessada”.
Todos esses impasses e acusações mútuas podem indicar que
o debate relativismo/anti-relativismo talvez seja ilusório. Não,
certamente, no sentido de que não exista ou seja completamente
falso; mas porque pretende nos obrigar, queiramos ou não, a
assumir uma de duas posições dentro de um campo pré-determina-
do, campo do qual faz crer não haver saída possível. Rabinow (1983:
52) tocou no cerne da questão, ao demonstrar que relativismo e anti-
relativismo se encontram em seus esforços para reduzir o “outro” ao
“mesmo”. Sem dúvida, no segundo caso essa redução costuma ser
bem mais brutal, assumindo geralmente a forma de uma hierarquia
na qual o ocidente ocupa a posição superior. É preciso reconhecer,
contudo, que o anti-relativismo também se apresenta sob formas
mais sofisticadas e aparentemente mais dóceis, que costumam
prometer a determinação de uma natureza humana universal que
igualaria todos os homens, impedindo assim todo juízo de valor. Por
outro lado, a posição relativista se limita, em grande número de
casos, a descrever algumas variações em torno de realidades ou
princípios tidos como universais e, conseqüentemente, inquestio-
náveis (idem: 59). Além disso, como diz Rabinow, ao menos em suas
formas mais extremadas essa posição pode levar à abstenção de
todo julgamento, justificando assim, ainda que por omissão, qual-
quer forma cultural, inclusive “a experiência nazista” (idem: 58).
Estaríamos às voltas aqui com um tipo bem particular de “niilismo”,
no sentido preciso que Nietzsche empresta ao termo, uma tentativa
de abolir a possibilidade de qualquer juízo de valor (idem: 52). Para
ser mais preciso, o niilismo consiste em afirmar que se o juízo não
pode estar fundado de direito em alguma espécie de transcendên-
cia, simplesmente não deveria ser proferido, o que conduz a um
universo meio cinzento em que todas as coisas são tidas ao mesmo
tempo como válidas e como não valendo nada. A sugestão de
340 Razão e Diferença

Rabinow é substituir a questão do relativismo — ou fazer com que


sempre seja acompanhada — por uma discussão do contexto
político dentro do qual os antropólogos inevitavelmente desenvol-
vem seus trabalhos (idem: 68-9). Como ele próprio sustentou em
outra ocasião, “a conversa, entre indivíduos ou culturas, só é
possível dentro de contextos modelados e constrangidos por
relações históricas, culturais e políticas, e pelas práticas sociais
discursivas — meramente parciais — que as constituem” (Rabinow
1986: 239). Isso significa que o relativismo, ou seu contrário, não
dizem respeito apenas à questão da unidade e da diversidade da
natureza humana, ou a nossa abstrata capacidade de nos comuni-
carmos com os outros, embora essas questões não deixem de ser
cruciais. Trata-se também de um problema social e político bastante
preciso, que para ser devidamente pensado, deveria incorporar em
seu debate essas variáveis geralmente deixadas de lado.
Pelo menos mais dois autores captaram de forma especial-
mente aguda essas implicações do debate entre relativistas e anti-
relativistas. Bob Scholte procura mostrar, como Rabinow, que o
problema do que denomina o “relativismo sofisticado” de Geertz,
residiria justamente em sua incapacidade de aliar a sua crítica
“weberiana”, que se contenta com o “produto” da prática etnográ-
fica, uma perspectiva mais “marxista”, que desse conta também das
condições de produção e do lugar do produtor desses discursos
(Scholte 1986: 9-10). Isso significa simplesmente — se não levarmos
muito a sério o vocabulário “neo-marxista” do autor — a necessida-
de de introduzir a questão das relações de poder no contexto da
interação descritivo-teórica com as outras culturas: “a verdadeira
questão, então, não é o fato de que você situa as culturas em suas
descrições e análises. Todos nós fazemos isso. A verdadeira questão,
antes, é a de como você o faz ou não, e com que finalidade” (idem:
9). Isso conduz ao outro autor mencionado, Talal Asad, que,
também nos quadros de uma crítica das posições de Geertz, se
aproxima bastante de Scholte e Rabinow. De seu ponto de vista, a
análise da religião efetuada por Geertz, por mais acurada que possa
ser, evita cuidadosamente formular as “questões relativas ao poder
e à religião” (Asad 1983: 237). Ou antes, deixa as relações entre
poder e religião fora do campo analisado, tratando essa questão
como se fosse puramente representacional, não conseguindo assim
livrar-se do debate estreito entre universalismo e relativismo (idem:
250-2). Compreende-se dessa forma que o ataque feito pelo mesmo
Asad a um texto de Gellner (in Wilson 1970), que defende uma
forma particularmente atroz de anti-relativismo, não signifique a
As Duas Direções 341

pura defesa do princípio oposto. Ao demonstrar como Gellner


“esquece” a questão fundamental — que seria a da “desigualdade
das linguagens” (Asad 1986: 149) — Asad determina o alcance
preciso dessa discussão. Debater o relativismo é certamente atingir
o coração da antropologia; não apenas em termos de suas condições
formais de possibilidade — unidade do homem, possibilidade de
comunicação meta-cultural, etc… — mas também na medida em
que esse debate revela a necessidade de que sejam efetivamente
levados em conta os contextos históricos e políticos nos quais tanto
o contato com as outras culturas quanto a própria reflexão antropo-
lógica se desenvolveram4.
Quanto a Lévy-Bruhl, ele está bem longe, como disse Florestan
Fernandes (1954: 128), de qualquer tipo de “relativismo estreito” —
mesma opinião de Engel (1989: 544-6), embora este acrescente que
suas posições teóricas teriam aberto um espaço considerável para
desenvolvimentos propriamente relativistas. Para Needham (1972:
203), ele poderia ser um exemplo de uma posição bem equilibrada
entre os exageros do relativismo e do anti-relativismo. Já Beattie (in
Wilson 1970: 256-9) o considera um precursor, ao menos, das
posições simbolistas. Tambiah (1990: 85), por sua vez, retoma uma
posição tradicional, procurando mostrar como Lévy-Bruhl teria
avançado ao longo da vida na direção de um relativismo salutar,
saindo de seu “positivismo cético” inicial para atingir “uma sociolo-
gia do conhecimento e uma interpretação fenomenológica da
experiência primitiva”. E assim por diante, cada comentador procu-
rando classificá-lo de modo diferente de acordo com suas próprias
posições teóricas e com sua maior ou menor simpatia pelo autor.
Talvez fosse mais indicado proceder como Lukes (in Wilson 1970:
200-3), que, ao classificar os tipos de resposta historicamente dados
para a questão das crenças “à primeira vista irracionais”, abre uma
rubrica especial para Lévy-Bruhl, confessando não ser capaz de
alocar seu pensamento seja no simbolismo, seja no intelectualismo,
seja no relativismo…. Na verdade, apesar do que diz Tambiah,
parece-me que a evolução do pensamento de Lévy-Bruhl é bem
mais complexa. Lembremos que o relativismo é uma das pedras de
toque do positivismo ao qual aderiu entre 1899 e 1910. Por mais
“cético” que possa ter sido, bem como por mais antiquado que o
positivismo possa parecer hoje, sua posição relativista pode muito
bem mostrar o que é o relativismo em geral: uma descrição das
variações que se produziriam em torno de certos temas, fatos ou
princípios tidos como universais. Nesse caso, pouco importa afirmar
que esses universais jamais viriam a ser plenamente atingidos por
342 Razão e Diferença

nossa capacidade de conhecer, uma vez que basta pressupor sua


existência para que o relativismo passe a funcionar como limitação
da diferença. O que Deleuze e Guattari (1972: 220) afirmam a
respeito do debate entre culturalistas e psicanalistas acerca do
caráter universal ou não do complexo de Édipo — que seu ponto
em comum, a despeito de todas as aparentes divergências, é a
“manutenção obstinada de uma perspectiva familialista” — é válido,
portanto, para todo o debate entre relativistas e absolutistas.
Como afirma Paul Veyne (1978: 170; 176), ao refletir sobre a
obra de Foucault, o problema do relativismo é que acredita demais
no objeto, reduzindo a diversidade a um conjunto de opiniões acerca
de alguma coisa que seria única. Isso não significa, é claro, uma
defesa da posição oposta, o absolutismo, que implica igualmente
uma metafísica, ao crer da mesma forma na realidade do objeto —
supondo ainda que as diferentes opiniões, que o relativismo pelo
menos respeita, nada valeriam. Criticar o relativismo e o absolutismo
não significa, tampouco, adotar uma espécie de ceticismo paralisan-
te que se contentaria em afirmar uma abstrata impossibilidade de
comunicação e compreensão. Pelo contrário, duvidar do objeto, da
“coisa-em-si”, é abrir o caminho para a análise do que Veyne
denomina “objetivações”, processos através dos quais os objetos
aparentemente mais naturais foram histórica e socialmente engen-
drados. No nosso caso, isso quer dizer que é preciso levar em conta
todas as variáveis, todos os contextos e todas as práticas envolvidas
no contexto das relações inter-culturais. Algumas dessas variáveis
são, certamente, de ordem biológica, o que não deve servir de
pretexto para posições equivocadas ou parciais. Em primeiro lugar,
é preciso que essas variáveis biológicas não sejam utilizadas
simplesmente como uma espécie de refúgio metafísico para a velha
crença na “unidade do espírito humano”. Em segundo, sua inegável
realidade não deve fazer esquecer das variáveis de ordem histórica
e política que é necessário levar em consideração se quisermos
compreender como os “outros” foram objetivados e como as formas
pelas quais nos comunicamos, ou deixamos de nos comunicar, com
eles, foram determinadas. Portanto, a antropologia norte-americana
mais contemporânea tem razão ao enfatizar esses contextos, seu
principal problema sendo a adoção de uma perspectiva um pouco
romântica a respeito da interação entre o pesquisador e o grupo.
Excluindo desse confronto tanto as dimensões psico-biológicas
quanto as políticas, reduzindo essa interação a uma espécie de
relação dual e atemporal, a hermenêutica acaba por levar em conta
As Duas Direções 343

apenas a pesquisa de campo propriamente dita, deixando de lado


a análise, formal ou histórica, de suas condições de possibilidade.
É verdade que Lévy-Bruhl parece jamais ter-se referido
especificamente a essas questões. Sua “fenomenologia da experiên-
cia primitiva” apresenta, contudo, a virtude de não pressupor
qualquer referente fixo que pudesse, a priori, limitar o campo de
variação da diferença e de sua investigação. De seu ponto de vista,
em certo sentido, tudo é possível, o que não significa nem
relativismo, nem agnosticismo, nem ceticismo: trata-se, mais sim-
plesmente, da recusa sistemática em lançar mão de certas constantes
isoladas pela reflexão científica como forma de ocultar a diversida-
de. Lévy-Bruhl fez da etnologia e da antropologia um campo para
a reflexão histórica, no sentido que Veyne dá a essa expressão:
pesquisa que não está ligada nem ao “período” nem ao “lugar”
(Veyne 1978: 145), mas ao “específico” (idem: 39); trabalho que
pretende apenas “explicitar” as tramas do homem, explicitação que
seria a única forma de explicação a que podemos aspirar (idem: 52-
4). Em certo sentido, Lévy-Bruhl jamais chegou a abandonar o
positivismo; pelo contrário, ele o radicalizou, ao deixar de lado os
objetos em benefício das objetivações. Seu trabalho, ao se alojar no
nível microscópico dos processos de objetivação, poderia ser lido
como tentativa para descrever como uma enorme parcela da
humanidade objetivou e objetiva uma realidade que, para nós,
prisioneiros de outros tipos de objetivação, só pode parecer
absurda. Isso não quer dizer, em hipótese alguma, que não sejamos
capazes de penetrar nesses “mundos dos outros”; significa apenas
que para fazê-lo é preciso ser muito cuidadoso e, acima de tudo, que
é preciso respeitar o espanto que esses outros mundos jamais
deixarão de produzir em nós (idem: 33-4).

A
Paul Jorion demonstrou que a antropologia britânica sempre
tendeu a desenvolver em outro sentido a questão que no caso
americano veio a assumir a forma do debate em torno do relativismo
cultural. Trata-se do que os ingleses costumam denominar o
problema da “tradução de uma cultura”. Nesse contexto, o autor
aponta o “interesse praticamente constante dos antropólogos britâ-
nicos pelas questões colocadas por Lévy-Bruhl sobre o pensamento
primitivo”, concluindo, ao mesmo tempo, que “a resposta clássica
344 Razão e Diferença

da antropologia britânica” para essas questões é em geral “aquela


dada, antes mesmo de Lévy-Bruhl, por Tylor e depois por Frazer, e
qualificada de ‘intelectualista’ por Evans-Pritchard” (Jorion 1980:
455). Foi, aliás, o próprio Evans-Pritchard, por mais que afirmasse
suas simpatias pelo pensamento de Lévy-Bruhl, quem acabou
fixando o tom das críticas britânicas mais contemporâneas. Ele teria
entrado inicialmente nesse debate, como nos diz Mary Douglas
(1980: 18), “como um inglês simples, de senso comum, treinado em
história, voltado para o empirismo, e com suspeitas acerca dos
grandes esquemas teóricos”. Lévy-Bruhl, por sua vez, só poderia
aparecer dessa perspectiva como exemplo especialmente claro de
um teoricismo exacerbado, que pretenderia, acima de tudo, opor os
“primitivos” a “nós” — com a agravante de que em sua obra nossa
própria mentalidade jamais teria sido efetivamente levada em conta.
Skorupski (1976: 214-5) aponta na mesma direção, ao censu-
rar Lévy-Bruhl por ter efetuado a comparação “nós”/“eles” tomando
o conhecimento científico como representando nossa própria
mentalidade, quando algumas de nossas crenças religiosas é que
deveriam ter servido de elemento para o contraste. Crítica que
esquece que o objetivo explícito de Lévy-Bruhl jamais foi construir
uma teoria de um tipo de mentalidade que existiria em estado puro
aqui ou ali. A utilização da ciência e da filosofia ocidentais em
contraste com a mentalidade primitiva tem, como vimos, a função
estrita de permitir a delimitação de certos modos de pensamento
universalmente difundidos, cuja apreensão em suas formas mais
típicas poderia facilitar os desdobramentos teóricos que deveriam se
seguir a sua determinação — bem como o isolamento de seus
princípios mais fundamentais. Desse modo, ao sugerir que o dogma
da trindade poderia ser um exemplo de “unidade na diversidade”,
ou que a hóstia seria um caso de “participação mística” ou
multipresença, Skorupski (1976: 217) não está acrescentando nem
subtraindo nada em relação ao que Lévy-Bruhl sempre afirmou,
uma vez que para este a mentalidade “primitiva” continua bem viva
entre nós. Skorupski tem, não obstante, o mérito de reconhecer
explicitamente que “o caráter ‘lévy-bruhliano’ do pensamento
religioso permanece inexplicado pelo intelectualismo: os temas
clássicos de interpretação e explicação que coloca permanecem
bem abertos” (idem: 221). Uma das provas desta dificuldade é
justamente o caráter problemático que o tema dos sacramentos
católicos apresenta — especialmente, parece, para os antropólogos
de países protestantes. No belo metálogo intitulado “por que um
cisne”, Bateson (1971: 53-5) explora essa questão: afirmando
As Duas Direções 345

inicialmente que a transubstanciação seria uma “metáfora”, logo dá-


se conta da dificuldade, ao lembrar que a fogueira já foi o destino
de muitos que confundiram um “sacramento” com uma “metáfora”;
limita-se, então, a sustentar que a diferença real entre essas duas
figuras seria “uma espécie de segredo”. A ausência de conclusão
desse pequeno texto aponta, contudo, para os perigos da falsa
comodidade — que se tornou uma espécie de vício na antropologia
— que consiste na aplicação de modelos retóricos e lingüísticos.
Tratar um “sacramento” como “metáfora” é ignorar singularmente
tudo aquilo que os próprios crentes e praticantes dizem e pensam
a respeito do que estão fazendo. Na verdade, a noção de metáfora
implica, queiramos ou não, um pressuposto bastante perigoso, a
saber, que ao afirmar algo, os “nativos” (quaisquer que sejam eles)
estariam dizendo outra coisa. Tudo se passa então como se a noção
de metáfora fosse uma nova versão do que Asad (1986: 149-51)
considera uma velha pretensão da antropologia e das ciências
humanas em geral, a de detectar o implícito das outras culturas e dos
outros homens.
É claro que não seria difícil sustentar que apesar da existência
de autores comprometidos com o intelectualismo, como Skorupski
ou Horton, a tendência dominante na antropologia social britânica
contemporânea seria mais “simbolista” que “intelectualista” —
posição contra a qual se levantaram, há muito tempo, Malinowski,
Radcliffe-Brown e seus discípulos. Contra o “literalismo” de Tylor ou
Frazer (que insistiam em tomar as crenças primitivas quase ao pé da
letra, considerando-as como muito pouco razoáveis, embora racio-
nais), a perspectiva simbolista procura tratar as crenças como
expressão de outra realidade, o que significa que mesmo quando
parecem ser completamente “irracionais”, essas crenças não deixa-
riam de ser “razoáveis” — desde que devidamente reconduzidas a
seu verdadeiro referente. O problema é que como esse referente é,
dentro da melhor tradição durkheimiana, de ordem sociológica,
acontece com freqüência, como diz Skorupski (1976: 15-7), de o
“simbolista” ser, ao menos em parte, um “literalista”, já que o plano
sociológico nunca deixa de ser tomado de forma “literal”. O
“literalismo”, com efeito, procura apreender as crenças em si
mesmas. Se adotar o pressuposto de que tais crenças são racionais,
o literalista será ao mesmo tempo um intelectualista; ele pode,
contudo, supor que são desprovidas de sentido e, neste caso, o
literalismo seria acompanhado— embora isso seja bem mais inco-
mum — pela noção de que as crenças primitivas não fariam
qualquer sentido. O simbolismo pretende superar essa dificuldade
346 Razão e Diferença

pressupondo que a crença sempre remete para “outra coisa”, esta


dotada de sentido. A crítica de Skorupski à posição simbolista
revela, contudo, que essa “outra coisa” é tomada inevitavelmente
em sentido “literal”: tudo seria “simbólico”, exceto a própria
sociedade. Longe de resolvida, a questão é apenas deslocada,
fazendo do simbolismo uma versão do intelectualismo. Se as
crenças não fazem sentido em si mesmas, é preciso remetê-las para
um plano no qual este sentido estaria sempre presente. A fronteira
entre simbolismo e literalismo torna-se confusa, dando razão a
Jorion, ao resumir ao intelectualismo (literalista ou simbolista) a
resposta tradicional da antropologia britânica às questões colocadas
por Lévy-Bruhl. Não deixa de ser significativo, neste contexto, que
muitos antropólogos ingleses o considerem um caso exemplar dos
impasses a que conduziria o literalismo: tomando as crenças
primitivas “ao pé da letra”, Lévy-Bruhl não teria sido capaz de
desvendar seu verdadeiro sentido, condenando-se a considerá-las
“irracionais” (Skorupski 1976: 184). Isso revela que o problema
central do simbolismo é da mesma natureza que o que espreita as
leituras “semiológicas”, que fazem da metáfora seu instrumento
predileto. As duas posições poderiam ser igualmente consideradas
como leituras das visões de mundo “tradicionais” feitas em termos
excessivamente “contemporâneos”, ou seja, etnocêntricos (idem:
51-2). Na verdade, como mostrou Engel (1989: 544-6), termos como
literalismo, intelectualismo, simbolismo, relativismo…, são de em-
prego muito difícil quando encaramos a obra de Lévy-Bruhl, que
parece ao mesmo tempo adotar todas e nenhuma dessas posições.
Isso talvez sirva como indicação de que os debates entre elas podem
não passar de falsas questões, desprovidas de sentido efetivo (idem:
558).
É Bob Scholte quem toca no problema central, reconduzindo-
nos à discussão entre relativismo e anti-relativismo. Como neste
caso, também o debate em torno da racionalidade deve ser
“radicalizado”, no sentido etimológico do termo — “o problema da
racionalidade (…) é uma obsessão ocidental” — e se a antropologia
serviu certamente para desfazer uma série de ilusões acerca da
pretensa superioridade ocidental, parece ter-se esquecido de pelo
menos uma, que não deixa de ser tão perigosa e fundamental
quanto as demais: “somos nós que definimos o que o outro é ou
não” (Scholte 1984: 961-3). Todos os esforços para definir “cientifi-
camente” as bases que demonstrariam a unidade última do homem
sempre prometeram muito e realizaram pouco, de forma que
poderíamos legitimamente suspeitar que todas as “constantes” que
As Duas Direções 347

já foram propostas como pretensamente naturais não passam de


elementos cultural e ideologicamente engendrados: “o racionalismo
acarreta o evolucionismo” (idem: 964). Por mais estranho que isso
possa parecer à primeira vista, Paul Veyne (1978: 165) demonstrou
igualmente que o relativismo costuma andar de mãos dadas com o
evolucionismo, uma vez que em geral supõe uma integração
progressiva das diferentes visões de mundo, integração que Veyne
denomina “geometral” (idem: 23) e que alguns sustentam só ter sido
atingida por nossa própria civilização. É necessário, como Foucault
afirmou em algum lugar, deixar de jogar o aborrecido jogo do
racionalismo versus irracionalismo ou, o que é a mesma coisa, do
relativismo versus anti-relativismo. Porque denunciar, como faz
Scholte, a “obsessão racionalista”, não é de forma alguma resignar-
se a uma hipotética falta generalizada de sentido, do mesmo modo
que deixar de lado o absolutismo ou o relativismo não é contentar-
se com um silêncio fácil. A solução é reconhecer que “em certo
sentido, a antropologia não é de modo algum a respeito do ‘outro’;
ela é mais exatamente sobre nós” (Scholte 1984: 963). Isso não
significa apenas que quando estudamos as outras sociedades
projetamos de forma quase inevitável nossos próprios valores sobre
elas. Para superar essa trivialidade, eu diria antes que a antropologia
diz respeito mais precisamente a nossa relação com o outro, esteja
ele onde estiver — inclusive dentro de nós mesmos — e que essa
relação só pode ser apreendida de forma mais completa se as
dimensões históricas e políticas que a constituem forem necessari-
amente levadas em consideração.

A
No caso da antropologia britânica e do debate em torno da
racionalidade, dispomos de um importante trabalho. Escrito parci-
almente sob a influência de Lévy-Bruhl, Crença, Linguagem e
Experiência de Rodney Needham dedica um espaço considerável à
análise de suas posições. O próprio título do livro deriva da
discussão que já acompanhamos acerca das relações entre crença
e experiência na mentalidade primitiva (EM: 125-30, em especial).
É verdade, contudo, que o caminho seguido é aparentemente
distinto do que atraiu a maior parte dos antropólogos ingleses que
chegaram a dedicar alguma atenção a Lévy-Bruhl. O que está em
jogo não é tanto a noção de racionalidade, mas uma discussão,
348 Razão e Diferença

inspirada pela filosofia de Wittgenstein, a respeito do caráter


objetivo e do grau de realidade da noção de crença. Nesse sentido,
a conclusão será sobretudo negativa: “o fenômeno da crença não
consiste em nada além do costume de fazer afirmativas sobre a
crença” (idem: 131). Tratar-se-ia conseqüentemente de uma simples
“palavra”, não de um verdadeiro “fenômeno”, hipótese a que o autor
chega através de uma análise nominalista, que provaria que essa
noção não apresenta “nenhum critério distintivo, e (…) que é difícil
conceber que a palavra realmente denote uma classe homogênea de
objetos fenomenais, sejam eles proposições, estados interiores ou
signos externos” (idem: 109). Em suma, Needham supõe que não
existiria, ao contrário do que imagina a maior parte dos antropólo-
gos, nenhuma “capacidade distintiva ou estado interior” que de fato
determinasse alguma coisa como a crença (idem: 146). Às questões
colocadas na abertura do livro — “a crença é uma experiência?”
(Wittgenstein), ou “a capacidade de crer constitui uma semelhança
natural entre os homens?” (idem: XIII) — ele crê portanto poder
responder de forma inteiramente negativa.
Este resultado — que o autor supõe de acordo com as idéias
de Lévy-Bruhl (idem: 171-3) — parece-me, contudo, muito diferente
das posições expressas em A Experiência Mística…., que não
pretendem eliminar os termos crença e experiência. Ao demonstrar
que não podem ser tranqüilamente aplicados ou imputados à
mentalidade primitiva, ou antes, ao mostrar que essa distinção tão
óbvia para nós não apresenta essa característica para grande parte
do material etnográfico, o que está de fato sendo dito é que ainda
que partamos necessariamente de nosso próprio vocabulário, não
devemos jamais esquecer que este deve sofrer questionamentos e
modificações profundas ao entrar em contato com realidades que
não foram feitas a priori para ele. Em outros termos, há algo nas
noções de crença e experiência que realmente nos permite penetrar
no mundo dos outros, sob a estrita condição, contudo, de que
sejamos capazes de determinar, ao mesmo tempo, o alcance desse
“algo”. Projetar integralmente essas categorias, ou simplesmente
rejeitá-las por completo e em bloco, são alternativas igualmente
falsas, erros simétricos que não podem levar muito longe. É
exatamente essa diferença entre Lévy-Bruhl e Needham que acaba
por conduzir o segundo a uma posição que o primeiro jamais
sonhou em adotar, um ceticismo alcançado no final do livro, ao
parafrasear o artigo de Einstein que Lévy-Bruhl havia analisado nos
Carnets: “o único fato compreensível sobre a experiência humana
é que ela é incompreensível” (Needham 1972: 246). Esse é, como
As Duas Direções 349

já disse Foucault, o impasse em que costuma desembocar toda


forma de ceticismo que não leva a faculdade de duvidar até as
últimas conseqüências: limita-se a duvidar de certas noções ou de
certos princípios, para adquirir certeza maior a respeito de outros.
Assim, Needham se esforça em demonstrar a existência efetiva de
certas “semelhanças” universais entre os homens, como a capacida-
de de “intenção”, por exemplo. A crítica da noção de crença não
serve, portanto, para levar a uma problematização mais profunda da
questão dos universais em geral; serve antes para reforçar a posição
que afirma sua realidade. Ao supor que a “crença” não é universal,
Needham simplesmente prepara o terreno para aumentar sua
certeza acerca de outros fenômenos que realmente o seriam. Parece-
me que isso é não levar suficientemente longe algumas lições de
Lévy-Bruhl que o próprio Needham detectou com precisão: “de fato,
como Lévy-Bruhl demonstrou, os próprios critérios [de investiga-
ção] podem vir a se tornar necessariamente os objetos mesmos da
investigação” (idem: 187). Isso não quer dizer, ao contrário do que
supõe o autor, que o trabalho mais indicado para atingir esse
objetivo seja uma análise pura e uma simples depuração da
linguagem, que executariam uma triagem entre o que pode e o que
não pode ser empregado em uma pesquisa. O programa para o qual
aponta Lévy-Bruhl é ao mesmo tempo mais e menos radical que a
interpretação de Needham. Menos radical, porque não se trata de
simplesmente abandonar determinados conceitos — exercício que
poderia conduzir, se levado às últimas conseqüências, a uma
espécie de afasia comprometedora; mais radical, porque o trabalho
deve sempre proceder por aproximações sucessivas e contínuas, de
tal modo que a crítica de uma categoria nunca se encerra realmente
e jamais serve como garantia da aplicabilidade de outra.
Além disso, não me parece que o livro se afaste tanto dos
temas mais tradicionais da antropologia social britânica e das
questões que esta costuma privilegiar quando está em jogo o
pensamento de Lévy-Bruhl. Para Needham, a importância deste
autor residiria sobretudo no “fato de que efetivamente inaugurou
uma epistemologia comparativa” (idem: 176), ao indicar “uma visão
mais crítica da dialética da tradução” (idem: 171). Como sabemos,
“epistemologia” (racionalidade) e “tradução” constituem os princi-
pais focos de atenção das respostas inglesas aos desafios colocados
por Lévy-Bruhl. É por isso que Needham se contenta em buscar o
que considera uma posição intermediária entre um “idealismo”
relativista, que faria explodir todos os pretensos universais, e um
“realismo” absolutista, que validaria a todos sem qualquer crítica
350 Razão e Diferença

mais cuidadosa. A antropologia é concebida como investigação de


ordem empírica que pode levar tanto ao abandono de algumas
“semelhanças” humanas tidas como certas, quanto à descoberta de
outras até então insuspeitadas (idem: 203). Parece-me, ao contrário,
que a obra de Lévy-Bruhl poderia indicar outra direção, que aliás o
próprio Needham entreviu: as “outras civilizações”, de fato, “nos
apresentam categorias e modos de pensamento alternativos” (idem:
183). Reduzir essa diferença a simples “modos distintos de raciona-
lidade” (idem: 182) significa, contudo, afastar-se singularmente do
programa mais radical esboçado por Lévy-Bruhl. Se a noção de
relatividade tem sua utilidade, não é porque constitua um simples
“preceito metodológico de que devemos iniciar nossas pesquisas
como se tudo fosse relativo” (idem: 210 — o grifo é meu), mas
porque é capaz de chamar a atenção para o fato de que a
antropologia pode ser acima de tudo um esforço para demarcar,
descrever e pensar a diferença em si mesma, ou seja, como ponto
de apoio para impulsionar o pensamento, não como objeto a ser
“explicado” — explicação que logo detém o pensamento. Em vez
de colocar o relativismo a serviço do universalismo racionalista, é
preciso subordinar a semelhança à diversidade.
O tema da crença tem muitas implicações e nunca deixou de
fascinar tanto os antropólogos quanto os filósofos. Tudo indica,
inclusive, que é destes que herdamos a tradicional oposição entre
crença e certeza (cf. Lalande). Isso explica em parte que praticamen-
te todos os trabalhos antropológicos sobre essa noção insistam nas
dificuldades de conciliar o que Sperber denomina “crenças aparen-
temente irracionais” com o ar de certeza e tranqüilidade com que os
“primitivos” costumam adotá-las e proferi-las. Assim, Pouillon
mostrou como é radicalmente impossível traduzir em uma única
palavra dangaleat o campo semântico recoberto pelo verbo croire.
Simultaneamente afirmação de existência (croire à), confiança
(croire en) e representação ou dúvida (croire que), cada sentido
poderia ser perfeitamente traduzido por um termo dangaleat
específico, mas sua reunião sob um significante único continuaria
impraticável (Pouillon 1979: 43-4; 47-50)5. O autor é levado, dessa
forma, a questionar o “valor universal” da noção de crença tal qual
a compreendemos, preferindo atribuí-la a determinadas caracterís-
ticas e necessidades históricas e culturais do cristianismo (idem: 51).
Seria o encontro com a alteridade — com o conseqüente fato de que
entre nós mesmo o crente conhece a descrença (idem: 48-50) — que
teria levado à cristalização desse campo semântico. É “o descrente
que crê que o crente crê na existência de Deus” (idem: 44), enquanto
As Duas Direções 351

que do ponto de vista desse último tudo se passa como se estivesse


às voltas com um “saber” (idem: 48), com uma “experiência” (idem:
50). Com a noção de crença, ocorre portanto o mesmo que vimos
acontecer com a de metáfora, ou com as hipóteses simbolistas a
respeito do caráter expressivo dos fenômenos representacionais.
Todas essas categorias são em geral aplicadas de forma discretamen-
te pejorativa sobre o saber e a experiência dos outros:
O que quer dizer imaginário? O imaginário é a realidade
dos outros, da mesma forma que, conforme uma expres-
são de Raymond Aron, as ideologias são as idéias dos
outros (…), um julgamento dogmático sobre certas cren-
ças de outrem (Veyne 1983: 103-4).
Sabemos, contudo, que Lévy-Bruhl diz a Evans-Pritchard ser
um herdeiro de Hume, um dos filósofos para quem, ao lado de
Pascal ou Jacobi, a noção de crença, longe de se opor à de certeza,
funciona como seu fundamento. Como mostrou Mannoni (1973:
13), a psicanálise tem uma vantagem sobre a psicologia, bem como
sobre a maior parte das ciências humanas que tendem a reificar as
certezas tidas como racionais em detrimento da aparente irraciona-
lidade das crenças. Em vez de se concentrar no “eu sei”, dedica uma
atenção bem mais apreciável ao “mas assim mesmo…”, que quase
sempre acompanha a primeira proposição. Da mesma forma, o
antropólogo, mais preocupado com o funcionamento efetivo das
coisas que com racionalizações simplistas e enganadoras, poderia
caminhar nessa direção. Como a realidade social é, por definição,
o domínio “do que poderia ser de outro modo”, toda afirmativa, por
mais “certa” que pareça, guarda as marcas de outras tantas virtua-
lidades não atualizadas, virtualidades que poderiam tê-lo sido,
contudo, ou que ainda poderão vir a ser. Superestimar a “creduli-
dade” dos primitivos foi, talvez, um dos principais erros de Lévy-
Bruhl; mas, convidar-nos a abandonar o simplismo da noção de
crença enquanto oposta à de experiência não foi, sem dúvida, uma
contribuição menor para o pensamento antropológico.
Como subverter definitivamente a oposição crença/experiên-
cia? Muito simples, diz Pascal Boyer: basta abandonar a precária
noção de crença tal qual a entendemos, ou as “teorias da crença” que
costumamos adotar, contentando-se com a noção de verdade
(Boyer 1986: 350-1) — ou com a idéia um pouco mais complexa de
variabilidade dos “critérios de verdade” empregados pelos diferen-
tes modos de pensamento em distintas sociedades e em diferentes
contextos históricos (idem: 366-7). Concentrar-se nos “jogos do
352 Razão e Diferença

verdadeiro e do falso”, como diria Foucault; ou, como afirma Veyne,


convencendo a nós mesmos que “em vez de falarmos de crenças,
deveríamos simplesmente falar de verdades. E que as próprias
verdades são imaginações” (Veyne 1983: 9). Isso não significa, no
estilo de Needham, um simples abandono da noção de crença em
benefício de outras que seriam mais seguras. Através dessa noção
e de sua crítica, é possível desenvolver um trabalho mais interessan-
te, “historicizar a idéia filosófica de verdade” (idem: 39), proposição
que um antropólogo poderia traduzir — se o termo não estivesse tão
comprometido — por “sociologizar a idéia filosófica de verdade”.
O trabalho de Paul Veyne é de fato exemplar quando
encarado dessa perspectiva, e cabe lamentar o pouco interesse que
os antropólogos têm demonstrado a seu respeito. Assim, o tema
central de Acreditavam os Gregos em seus Mitos é o aparente
absurdo, não apenas das crenças gregas tomadas em si mesmas, mas
principalmente do fato de os gregos parecerem, ao mesmo tempo,
acreditar e não acreditar em suas próprias estórias. O problema é
que “acreditar quer dizer tantas coisas…” (idem: 11) e que crer em
coisas contraditórias não tem, afinal de contas, nada de espantoso,
sendo antes “a nossa maneira mais habitual de ser” (idem: 101),
coisa que nós mesmos “freqüentemente fazemos em política ou a
respeito da psicanálise” (idem: 12). Para Veyne, contudo, se formos
capazes de abandonar a noção de crença em benefício da de
verdade, poderíamos compreender que dada a multiplicidade de
“programas de verdade” existentes tanto na humanidade em geral
quanto em cada sociedade em particular, não é muito difícil que os
homens oscilem constantemente entre eles, dando a falsa impressão
de hesitação ou contradição (idem: 101). Encarada como “aparen-
temente irracional”, a crença evoca inevitavelmente a questão de
saber como, afinal de contas, é possível que um homem, em geral
muito sensato, possa acreditar em tais absurdos. Se estivermos
realmente muito seguros de nossa racionalidade e da quase
estupidez dos outros, podemos dizer que eles “crêem” por este ou
aquele motivo; se formos, ao contrário, “caridosos”, tenderemos a
mostrar que na verdade eles não crêem, ou que só crêem mais ou
menos, ou que sua crença é apenas um modo de dizer outra coisa,
essa sim verdadeira. Veyne revelou, desse modo, que em relação
aos gregos esse era um problema delicado, uma vez que era muito
difícil aceitar que os fundadores da nossa razão pudessem acreditar
em tantas e tão loucas estórias. Todas as soluções acima menciona-
das foram acionadas sem muito sucesso para tentar conter esse
As Duas Direções 353

escândalo. Na verdade, à questão “acreditavam os gregos em seus


mitos?”,
qualquer um com a menor cultura histórica teria respon-
dido antecipadamente: ‘Mas é claro que eles acreditavam
em seus mitos!’. Nós simplesmente quisemos fazer com
que aquilo que era evidente para ‘eles’ o fosse também
para nós e extrair as implicações dessa verdade primeira
(Veyne 1983: 138).
Isso significa que “mito” — tanto quanto “crença” — não passa
de um nome que funciona de maneiras diferentes e que é preciso
analisar empírica e cuidadosamente. Ultra-relativismo que impedi-
ria qualquer acesso ao e qualquer compreensão do mundo dos
outros? Não é disso que se trata. Trata-se, mais simplesmente, do que
Veyne denomina “analogia dos sistemas de verdade” (idem: 34) —
analogia devendo ser entendida em sentido aristotélico, distinta
tanto do “unívoco” quanto do “equívoco”. É sempre possível ter
acesso a esses outros mundos, embora eles jamais deixem de nos
confundir; podemos realmente entendê-los, o que não significa
unidade a priori do espírito humano, uma vez que essa compreen-
são exige uma análise que não leve em conta somente “nós” e “eles”,
mas que tematize igualmente as relações históricas e políticas que
nos ligam e nos separam dos que adotam outros sistemas de
verdade. É por isso que é preciso reconhecer a multiplicidade dos
“programas de verdade” que coexistem em todos os lugares e em
todas as cabeças. “Pluralidade das verdades” que pode ser “chocan-
te para a lógica” (idem: 100), não apresentando, contudo, nada de
escandaloso, na medida em que seria apenas a “conseqüência
normal da pluralidade das forças” (idem: 101): “a idéia de que a
verdade não existe não é mais paradoxal ou paralisante do que a de
uma verdade científica que é perpetuamente provisória e que será
declarada falsa amanhã” (idem: 125).
Admitir esse caráter plural e histórico da verdade é a condição
para que se abra um enorme espaço de trabalho, entendido, ainda
com Veyne, como
aquilo que é suscetível de introduzir uma diferença
significativa no campo do saber, ao preço de um certo
esforço para o autor e o leitor, e com a eventual recompen-
sa de um certo prazer, isto é, de um acesso a uma outra
figura da verdade (Veyne 1983: 9 — o grifo é meu).
É por isso que à questão colocada, em suas “últimas horas”,
por Lévy-Bruhl a Maxime Leroy — “será que trabalhei tanto quanto
354 Razão e Diferença

devia? (…). Sim! Será que trabalhei o bastante?” (Leroy 1957: 431) —
eu responderia de modo afirmativo. Sua obra, de fato, nos dá
“acesso a uma outra figura da verdade”, servindo para nos despertar
de um sono um pouco dogmático que nos faz crer tranqüilamente
demais na constância e na estabilidade últimas da natureza humana
e/ou da ordem social. Esses sistemas de verdade que Lévy-Bruhl
batizou de “mentalidade primitiva” ou, o que é melhor, de “expe-
riência mística”, são acessíveis a nós, embora este acesso só seja
possível na medida em que, também em nós, esses programas de
verdade continuam existindo de forma subordinada e excluída. Os
“primitivos” permitem que tenhamos acesso a nós mesmos e é esse
seu grande valor, não o fato de serem objetos privilegiados para
nossa vontade de conhecimento. Quanto a saber se além de
descortinar essa outra figura da verdade, Lévy-Bruhl estava “certo”
a seu respeito, essa é outra questão: dizer a verdade, obrigação de
todo pensador sério, não significa encontrar a verdade, tarefa
sempre duvidosa para aquele que não adota qualquer metafísica
(Veyne 1986: 935).
Nesse sentido, pode-se dizer que o próprio Veyne tem e, ao
mesmo tempo, não tem razão em sua rápida crítica das noções de
mentalidade primitiva e lei de participação (Veyne 1974: 79-80). Sem
dúvida, é verdadeiro que Lévy-Bruhl não distinguiu com suficiente
clareza — embora faça a distinção — entre “forma de pensamento”
e “maneira de raciocinar”; talvez também tenha confundido a
“evolução da mentalidade individual” com a “mudança nos coleti-
vos”. De qualquer forma, creio que tenha sido um dos primeiros a
demonstrar que “as mentalidades não são mentais” (Veyne 1978:
144), que os valores só podem ser encontrados no que efetivamente
se faz (idem), que as constantes, os invariantes, os universais, são
apenas o que “permite reconhecer a diversidade dos fenômenos”
(Veyne 1976: 13) e que as invariâncias devem ser sempre alojadas
do lado do ponto de vista, não do objeto (idem: 16). Assim, mesmo
as noções diretamente criticadas por Veyne, poderiam ser interpre-
tadas de acordo com seus próprios termos, assumindo o caráter de
verdadeiros “operadores de individualização” (idem: 24), não o de
conceitos mais ou menos inadequados em relação à realidade
efetiva. Também para Lévy-Bruhl, trata-se de “individualizar” certas
características da prática e do pensamento humanos, geralmente
tidas por universais e imutáveis; trata-se, para ele também, de utilizar
as possíveis constantes no sentido de abolir todas as nossas
racionalizações (Veyne 1978: 232-5). Nesse sentido, como adiantei,
o trabalho de Lévy-Bruhl pode contribuir de forma decisiva para o
As Duas Direções 355

reconhecimento do caráter “histórico” da antropologia social e


cultural, caráter que o próprio Veyne não se cansa de defender
como o único capaz de arrancar essa disciplina de sua pretensão
cientificista que só a conduziu até o estatuto de uma “pseudo-
ciência” (idem: 181-2). A antropologia poderia assim reencontrar a
história propriamente dita, convertendo-se definitivamente no que
Veyne denomina um “inventário explicativo, não dos homens nem
das sociedades, mas do que há de social no homem, ou mais
precisamente, das diferenças que este aspecto social apresenta”
(Veyne 1976: 35).
Talvez a principal lacuna de Lévy-Bruhl esteja, paradoxal-
mente, em sua timidez. Ao comparar os modos de pensamento que
denominou primitivo e ocidental, conseguiu isolar programas de
verdade bem diferentes, não conseguindo, entretanto, evitar a falsa
impressão — embora essa não fosse talvez sua intenção — de que
no interior de cada conjunto cultural e mental esses programas
fossem praticamente únicos. Ou melhor: mesmo reconhecendo a
persistência do programa “primitivo” no ocidente, bem como do
“ocidental” entre os primitivos, não levou essa pluralização suficiente-
mente longe, o que produziu uma estranha assimetria. Os primitivos
seriam diferentes porque se acomodavam muito bem a “contradi-
ções”, mas quando nós mesmos o fazemos isso significaria uma
mudança de programa de verdade — da ciência para a filosofia,
desta para os contos folclóricos, destes de volta para a ciência, e
assim por diante. Como diz Detienne (1981: 200-9; 1988: 44-7), Lévy-
Bruhl não foi capaz de radicalizar sua crítica das noções de crença
e mito, mostrando como a mentalidade primitiva que estuda é
sempre ameaçadora para nossas racionalizações, como essas no-
ções, entre tantas outras, não passam de uma espécie de mecanismo
de defesa contra essa ameaça. Reduzindo a relação que ainda hoje
mantemos com os mitos a simples “prazer inofensivo”, Lévy-Bruhl
teria, além disso, limitado o potencial explosivo contido em suas
próprias posições. O que seria realmente necessário sustentar é que
os programas de verdade são múltiplos sempre e em toda a parte,
que sua coexistência nunca é muito pacífica. Superar o plano
puramente abstrato sobre o qual Lévy-Bruhl quis voluntariamente
se colocar — o que não deixa de ser legítimo para um “pioneiro”,
como diz Florestan Fernandes — significa antes de tudo tentar
determinar em cada caso concreto os programas de verdade
existentes, bem como as complexas relações que mantêm entre si.
Existem certamente programas “primitivos” entre nós e “civilizados”
entre eles; o mais importante, contudo, é ultrapassar a dualidade,
356 Razão e Diferença

reconhecendo a existência de uma pluralidade sempre aberta


desses programas, pluralidade cuja descoberta progressiva o dualis-
mo apenas provisório de Lévy-Bruhl deveria preparar. Enfim, talvez
não seja excessivo repetir que sua obra e seu pensamento continu-
am disponíveis, não para serem salvos ou recuperados, mas para
que esse potencial explosivo possa ser utilizado como instrumento
para uma retomada das posições mais radicais da reflexão antropo-
lógica.

A
A antropologia na França sempre esteve profundamente
marcada por uma tradição filosófica que a influenciou seja através
de questões colocadas por diferentes pensadores, seja no plano da
própria formação dos pesquisadores. Este fato revela, contudo, um
dado bastante curioso. Do mesmo modo que é nos Estados Unidos
que se observam as reações mais virulentas contra o relativismo
cultural tão típico da antropologia norte-americana; e do mesmo
modo que é sobretudo na Inglaterra que parece ter-se desenvolvido
uma crítica muito radical dos temas tipicamente britânicos da
“racionalidade” e da “tradução”, é no campo intelectual francês que
podemos detectar algumas das mais violentas reações contra a
tendência excessivamente filosófica de seus mestres. Essas reações
podem se dirigir tanto no sentido de uma espécie de empirismo “de
campo”, quanto no da tendência a se apoiar sobre certos desenvol-
vimentos das ciências exatas e naturais em vez de empregar as
tradicionais referências filosóficas. Os insistentes diálogos com a
biologia, a psicologia cognitiva, os esforços de formalização, são
apenas alguns exemplos de como essa tendência cientificizante
parece funcionar no interior da antropologia francesa. Além disso,
a obra de Lévy-Bruhl — cuja formação filosófica dificilmente deixa
de ser lembrada — parece ter servido, especialmente na França,
como exemplo dos absurdos a que um etnocentrismo desenfreado
poderia conduzir. Vernant (1981: 220), como vimos, resume essa
posição, ao sustentar que com ela, “o pensamento selvagem é
finalmente relegado (…) a uma espécie de gueto, encerrado no
estado do ‘prelógico’, como é internado em seu asilo o esquizofrê-
nico cujo delírio em muitos aspectos é parente da mentalidade
primitiva”. Afirmativa que seria, sem dúvida, subscrita por um
grande número de antropólogos, que tampouco deixariam de
aceitar a tese de Vernant segundo a qual o pensamento de Lévy-
As Duas Direções 357

Bruhl não passa do aprofundamento do “fosso” que o evolucionis-


mo social havia cavado entre o nosso pensamento e o dos
primitivos. Não deixa de ser curioso, contudo, que mesmo aqueles
que na França gostam de reagir ao que consideram simples
elucubrações filosóficas, pareçam presos a uma posição — da qual
Lévy-Bruhl seria o inimigo principal — cuja origem filosófica é
evidente: a “unidade do gênero humano”. Alguns, como Lévi-
Strauss ou Sperber, chegam a instituí-la como o verdadeiro e último
objeto da investigação antropológica; outros preferem se limitar a
tomá-la como verdade inquestionável, conduzindo seus trabalhos
empíricos a partir dela. Para todos, contudo, Lévy-Bruhl não deixa
de ser o fantasma a exorcizar.
Tomemos o caso de Dan Sperber como exemplo. As menções
explícitas ao pensamento de Lévy-Bruhl são muito esporádicas em
sua obra. Todas, é claro, completamente negativas. Assim, em 1974,
suas concepções são consideradas “racionalistas”, embora Sperber
considere que ele qualificaria o pensamento primitivo de irracional
(Sperber 1974a: 13-4); em 1979, Sperber parece pensar que Lévy-
Bruhl é o representante mais típico de uma “hipótese filogenética
ou histórica segundo a qual o pensamento racional seria um
desenvolvimento tardio na história da espécie humana, após um
primeiro estágio onde todo pensamento teria sido simbólico”
(Sperber 1979: 18-9); enfim, em 1982, Lévy-Bruhl, mesmo não sendo
explicitamente citado, é sem dúvida o autor no qual Sperber está
pensando ao mencionar “uma concepção hoje ultrapassada” segun-
do a qual as crenças dos primitivos “seriam irracionais não somente
em sua aparência, mas de fato, procedendo de um pensamento pré-
racional primitivo” (Sperber 1982: 52). Essas críticas esparsas servem
também para revelar a posição do próprio Sperber que, de algum
modo, procura reunir hierarquicamente as três questões aqui
isoladas como recorrentes no pensamento antropológico. Ele
pretende, de fato, descobrir os “universais da natureza humana”
através de uma crítica radical do relativismo, que implica a adoção
de uma postura resolutamente racionalista.
O relativismo cultural se converte, pois, no inimigo principal
de Sperber: “se a Antropologia é o estudo da especificidade genérica
do homem, é preciso admitir que os antropólogos são pessoas
estranhas. Com efeito, eles levaram metade de um século (…)
tentando provar que sua disciplina não tinha objeto”, ou seja,
afirmando o relativismo (Sperber 1974b: 17). Relativismo que chega
a ser encarado de forma compreensiva, como uma das alternativa
abertas pelo fracasso do evolucionismo social, uma vez que,
358 Razão e Diferença

sabendo que “não há duas humanidades”, os antropólogos po-


deriam “afirmar que há muito mais do que duas delas, ou então que
há apenas uma” (Sperber 1968: 107). Se os relativistas fizeram a
primeira escolha, Sperber prefere a segunda, acreditando que a
doutrina do relativismo cultural teria simplesmente substituído o
dualismo evolucionista por um “apartheid cognitivo”, traindo a
mesma inspiração etnocêntrica, pois “se não podemos ser superio-
res em um mesmo universo, que cada povo viva em seu próprio
universo” (Sperber 1982: 83). A própria prática antropológica
serviria para desmentir empiricamente o relativismo, ao demonstrar
por seu exercício mesmo a possibilidade de compreensão e
comunicação com os outros. Se essa prática também tem servido
para nutrir as teses relativistas, isso se deveria apenas ao fato dos
antropólogos serem por demais condescendentes para com seus
leitores — “os filósofos em particular” — preferindo oferecer a eles
“o discurso que esperam escutar” em vez de revelar as verdades que
suas pesquisas atingem (idem).
É claro que em sua crítica ao relativismo, Sperber pretende se
apoiar em argumentos mais sólidos que o simples “fato” de os
antropólogos serem capazes de penetrar em outras culturas e modos
de pensar. Na verdade, o que ocorreria é que muito poucas das
“variações imagináveis” que a realidade humana poderia apresentar
são empiricamente constatáveis (Sperber 1974b: 17); que as descri-
ções etnográficas fictícias são sempre facilmente apreendidas como
falsas e impossíveis (idem: 18); que a psicologia do desenvolvimen-
to teria desmentindo experimentalmente o relativismo (Sperber
1982: 60-2); que a própria antropologia, enfim, teria chegado a
determinar de modo razoavelmente preciso alguns dos universais
da natureza humana (idem: 62-8; Sperber 1974b: 25-7). A verdadeira
revolução nessa disciplina teria ocorrido com a obra de Lévi-Strauss,
o primeiro a ter optado resolutamente pela tese de “uma só
humanidade” (Sperber 1968: 107), a ter compreendido que as
“variantes acumuladas pela Etnografia constituiam tão somente o
material da Antropologia” (Sperber 1974b: 20), a ter demonstrado
que “natureza humana e variedade cultural”, longe de se oporem,
apóiam-se uma sobre a outra, “como uma estrutura abstrata e
homogênea governando manifestações concretas e variadas” (Sperber
1982: 89). Apesar disso, o próprio Lévi-Strauss ainda seria tímido
demais, pois os universais que pretende determinar seriam exces-
sivamente formais e o método empregado excessivamente intuitivo
— defeitos que o impediriam de estabelecer uma teoria antropo-
lógica propriamente dita (idem: 125-7; Sperber 1974b: 20-3). Sperber
As Duas Direções 359

chega a afirmar que o estruturalismo acabaria se aproximando da


posição relativista que rejeita: em ambos os casos, embora de modo
distinto, “trata-se sempre de uma natureza humana reduzida ao
mínimo” (Sperber 1974b: 24). O projeto de Sperber é justamente
determinar um conteúdo para essa natureza humana que os
relativistas desprezam e que Lévi-Strauss apresenta como sendo
apenas formal. Para isso, tratará de desenvolver, na esteira do
estruturalismo, o que chama uma “concepção racionalista” (Sperber
1982: 69), que evitaria tanto o formalismo desta corrente, quanto a
“armadilha semiológica” na qual Lévi-Strauss teria caído (Sperber
1974a: 58-9). Essa concepção deveria enfrentar o problema coloca-
do pelo que Sperber denomina “crenças aparentemente irracionais”
(Sperber 1982: 49; passim — o grifo é meu). Se for possível
demonstrar a racionalidade profunda aí oculta, o caminho estaria
aberto para a reafirmação mais rigorosa e científica da unidade do
espírito humano — postulado que passaria a estar assentado em
novas bases, na determinação empírica dos modos universais de
funcionamento intelectual desse espírito. Como diz Veyne (1983:
74), “para um racionalista, nada melhor que outro racionalista”.
Por outro lado, a crítica da concepção semiológica elaborada
por Sperber não deixa de ser interessante. Ela seria ainda mais
decisiva, contudo, se fosse estendida às próprias posições “raciona-
listas” que defende. De seu ponto de vista, o problema central de
toda teoria da significação é ser obrigada a pressupor algo “implí-
cito”, ou “inconsciente”, subjacente às proposições analisadas. As
crenças primitivas, por exemplo, significariam sempre mais que
aquilo que os agentes empíricos são capazes de exprimir, cabendo
ao antropólogo desvendar esse suplemento de sentido6 (Sperber
1974a: cap. II). Para Sperber, essas crenças não “significariam”
rigorosamente nada, fazendo parte, antes, de um “dispositivo
simbólico” inerente ao espírito humano, nele ocupando um lugar
necessariamente subordinado ao “dispositivo racional” (idem: cap.
V): o primeiro entraria em ação todas as vezes que o segundo se
achar “sobrecarregado” (Sperber 1979: 34). Ao contrário do que a
antropologia teria feito até hoje, não se trata de determinar uma
sistematicidade própria do simbolismo; trata-se — uma vez admiti-
do que este é secundário em relação à racionalidade — de mostrar
que funciona apenas como uma espécie de mecanismo de defesa
do dispositivo racional (Sperber 1982: 69-73). Talvez seja correto
considerar a significação uma preocupação específica de nossa
própria cultura, que os antropólogos teriam simplesmente levado
consigo ao investigar sociedades diferentes. No entanto, como dizia
360 Razão e Diferença

Bob Scholte, não ocorreria o mesmo com a racionalidade? Conten-


tar-se com a fácil oposição racionalismo/irracionalismo — equiva-
lente àquelas entre anti-relativismo e relativismo ou entre identidade
e diversidade — não trairia uma certa falta de imaginação, uma
incapacidade de admitir outros sistemas, outros modos de pensar,
que funcionariam sobre bases muito diferentes? É significativo,
deste ponto de vista, que Sperber invista apenas contra o “relativis-
mo cognitivo”, deixando cuidadosamente de lado o caso do
“relativismo moral”, modalidades que faz questão de distinguir com
muita clareza (idem: 10). Isso revela, na verdade, o quanto é difícil
para nós, ocidentais, livrarmo-nos da obsessão com a razão (cf.
Veyne 1983: 136) — embora no caso da moral (e da significação)
a questão já possa ser outra.
A oposição (hierárquica) “racional/simbólico” corresponde
também a uma concepção do trabalho antropológico que, segundo
Sperber, deveria separar de modo cuidadoso a prática etnográfica
— “interpretativa”, ou seja, atenta aos caminhos do simbolismo —
da teoria antropológica — “explicativa”, ou seja, destinada a isolar
e determinar os universais do dispositivo racional (Sperber 1982: 15-
7). O problema é que esse tipo de distinção corre sempre o risco de
não levar muito longe. Em um artigo incluído na Revue Philosophique
que homenageia o cinqüentenário da morte de Lévy-Bruhl —
claramente próximo das concepções de Sperber — Engel supõe que
a famosa questão do desrespeito ao princípio de contradição
poderia ser resolvida se postulássemos a existência de duas
“ordens” de crenças, “uma que implica literalmente uma contradi-
ção, outra que valida de algum modo essa contradição” (Engel 1989:
556-7). Isso indica que o preço a ser pago por essa posição ultra-
racionalista é, paradoxalmente, a divisão do espírito (racional/
simbólico, duas ordens de crenças…). Se, para Sperber, essa
posição mostra os absurdos de Lévy-Bruhl, para Engel, ao contrário,
prova a necessidade de se postular, ao lado da lógica, uma atividade
não-lógica do espírito humano, operação que teria sido efetuada
pelo mesmo Lévy-Bruhl, que assumiria assim a posição de pioneiro
da concepção racionalista. De minha parte, creio que a lição deste
último aponta em outra direção: criticar incessantemente todos os
conceitos e pressupostos de nossa própria cultura e de nosso
próprio pensamento, postulando, ao mesmo tempo, que a obriga-
ção de qualquer trabalho antropológico é fazer com que a inevitável
aplicação dessas categorias sobre as outras sociedades tenha como
efeito não simplesmente a sua compreensão, mas também, e
principalmente, um questionamento dos instrumentos usados na
As Duas Direções 361

investigação, que são, no fundo, os parâmetros do nosso próprio


pensamento. Só assim, “a menos acadêmica das pesquisas” poderia
realmente deixar de produzir “a mais acadêmica das literaturas”
(Sperber 1982: 8).

A
O trabalho de Sperber pode muito bem ser uma tentativa de
ultrapassar o estruturalismo francês clássico, apoiando-se sobre
algumas conquistas de Lévi-Strauss e, ao mesmo tempo, tratando de
explorá-las num sentido e com uma profundidade que este jamais
teria ousado. Isso não elimina o fato de coincidir em inúmeros
pontos com a corrente estruturalista que se originou no, e pretende
permanecer fiel ao, pensamento de Lévi-Strauss. Escrevendo em
1964, Lucien Sebag, por exemplo, já condenava a “teoria” da
mentalidade primitiva em nome de um racionalismo de tipo
estrutural. O erro capital de Lévy-Bruhl teria sido não perceber que
o “simbólico” é constitutivo de todo pensamento humano, inclusive
do pensamento selvagem, tendo por isso insistido sobre falsas
contradições e sobre paradoxos apenas aparentes (Sebag 1964:
112). Em segundo lugar, Lévy-Bruhl teria se enganado ao privilegiar
o “afeto”, não se dando conta de que este só poderia ser um efeito
do “racional”, entendido no sentido lévistraussiano de um incons-
ciente estrutural e simbólico (idem: 113). Posições que, em termos
apenas um pouco diferentes, são também as de autores como Pierre
Smith (1974: 240-2; 1980: 64-7), Pouillon (1981: 87-95) ou Vernant
(1980: 21-5; 1981: 220). Em todos esses casos, o que ressalta são os
pontos isolados por Izard e Smith (1979: 9-15) no rápido e preciso
diagnóstico que fizeram do estruturalismo antropológico em sua
vertente francesa. Lévi-Strauss, dizem eles, teria na verdade aprovei-
tado a orientação eminentemente intelectualista dos antropólogos
vitorianos clássicos, com a diferença, é claro, que seu intelectualis-
mo é sobretudo o da atividade inconsciente do espírito, não o dos
juízos, como no caso do evolucionismo, ou das grandes construções
cosmológicas nativas, como com Griaule. Isso não quer dizer que
tenha adotado o reducionismo sociologizante típico das escolas
funcionalistas, de modo que “intelectualismo”, “simbolismo” e “anti-
reducionismo” seriam os alicerces do edifício estruturalista — todos,
é claro, devidamente apoiados sobre o solo do inconsciente
estrutural, único operador capaz de manter reunidos esses três
princípios de base. Para Izard e Smith, essa seria a originalidade da
362 Razão e Diferença

contribuição de Lévi-Strauss à antropologia, e não é difícil perceber


— embora os autores não façam menção a isso — que em cada um
desses pontos poderia ser estabelecida uma série de oposições
diretas ao pensamento de Lévy-Bruhl. Lévi-Strauss poderia mesmo
ser considerado — e ele de fato o é, implicitamente — uma espécie
de “anti-Lévy-Bruhl” por excelência. Contudo, se observarmos as
coisas um pouco mais de perto, poderemos talvez perceber que a
relação não é tão clara e simples quanto aparenta.
A primeira constatação, como seria de esperar, é que Lévy-
Bruhl é poucas vezes mencionado de forma direta na monumental
obra de Lévi-Strauss. Em uma entrevista concedida a Paolo Caruso
(1969: 38-9), ele considera, ainda que prestando homenagem a
Lévy-Bruhl por ter afirmado a inadequação de nossos quadros
lógicos tradicionais, que suas explicações seriam excessivamente
ambiciosas, globalizantes demais, ressaltando ao mesmo tempo a
pouca influência dos trabalhos deste autor sobre seu próprio
pensamento. Vimos, contudo, que desde 1946 Lévi-Strauss aborda
intermitentemente a “teoria” da mentalidade primitiva. As censuras
contidas nesse texto sobre “a sociologia francesa” deverão ser
repetidas ao longo de sua obra sem muitas modificações: reificação
da sociedade; fosso absurdo entre nosso pensamento e o dos
primitivos; privilégio equivocado da afetividade, ameaçando os
direitos da própria razão; inviabilização da prática e da teoria
antropológicas. Essas mesmas posições seriam expressas novamen-
te em 1960 (in Lévi-Strauss 1973: 36) e em 1962 (Lévi-Strauss 1962a:
120; e 1962b: 332; passim). Além disso, e salvo engano, Lévi-Strauss
somente cita diretamente algumas idéias de Lévy-Bruhl em:
1. 1949: a) pp.12-3: crítica da idéia de Lévy-Bruhl de que entre os
primitivos a noção de proibição do incesto não seria aplicável;
b) p.54: exemplos extraídos de A Mitologia Primitiva acerca da
negação da humanidade dos estrangeiros por parte dos primitivos;
c) p.103: associação da noção de “pensamento infantil” de Piaget
com a de “mentalidade primitiva” de Lévy-Bruhl, ambas criticadas
como fruto da “ilusão arcaica”.
2. 1954 (in Lévi-Strauss 1958: 408): sobre as limitações dos teóricos
de gabinete em antropologia.
3. 1956 (in Lévi-Strauss 1958: 25-7): menção de Lévy-Bruhl entre os
autores que veriam uma pura redundância entre mito e rito.
4. Ao lado das menções explícitas, há uma série de referências
implícitas, sendo bastante claro, por exemplo, que o último capítulo
de O Pensamento Selvagem, que polemiza com Sartre, não deixa de
As Duas Direções 363

ser um questionamento radical das posições atribuídas a Lévy-


Bruhl.
Apesar da escassez de referências explícitas, não deixa de ser
curioso observar que os temas abordados pelos dois autores se
recobrem em grande número de casos: proibição do incesto,
totemismo, classificações primitivas, mitologia, natureza do pensa-
mento primitivo ou selvagem…. O próprio Pensamento Selvagem
como um todo, se prestarmos atenção aos diversos problemas
etnográficos que são aí sucessivamente abordados, pode perfeita-
mente aparecer como uma espécie de resposta, escrita a meio século
de distância, a As Funções Mentais nas Sociedades Inferiores. Além
dos temas já citados, questões como os princípios dos sistemas de
classificação e numeração, natureza da linguagem, costumes como
a couvade e o luto, o lugar da história em relação à antropologia,
estão presentes com destaque nos dois livros. Já observamos
também como Lévi-Strauss reconhecia, em 1960 (in Lévi-Strauss
1973: 36), a proximidade de Lévy-Bruhl em relação ao projeto
traçado por Durkheim, que previa o desenvolvimento de uma
psicologia de caráter inteiramente formal que pudesse atingir os
princípios fundamentais do pensamento humano, sem separar o
domínio do social daquele do individual. Sabemos que esta também
é a proposta mais geral do trabalho do próprio Lévi-Strauss, o que
revela uma certa semelhança entre os dois autores, ao menos no
nível das intenções teóricas, por mais diferentes que os meios
empregados e os resultados obtidos possam ser. Afinal de contas,
Lévi-Strauss não foi diversas vezes acusado de um teoricismo
exacerbado, de dedicar atenção quase exclusiva aos processos
mentais, com total descaso pela realidade sociológica, de não
praticar o tipo de trabalho de campo que a boa antropologia
recomenda? Se quiséssemos recorrer a uma bem conhecida imagem
estruturalista, poderíamos talvez dizer que Lévy-Bruhl e Lévi-Strauss
são “simétricos e inversos”; se optássemos, ao contrário, pelo
vocabulário de aspecto sem dúvida mais antiquado do primeiro
desses autores, diríamos antes que a verdadeira questão está no
lugar atribuído à identidade e à diferença por cada um deles.
Não que o confronto possa assumir a forma simplista de um
debate entre o unitarista e o diferencialista. Já vimos que as posições
de Lévy-Bruhl são mais complicadas, pois, desde o início, admite a
unidade, postulando apenas que esta não pode deixar de ser um
simples limite para o qual a investigação da diferença pode ou não
tender e que, ao mesmo tempo, não deve servir para invalidar a
realidade das diferentes orientações que o espírito humano assume.
364 Razão e Diferença

Lévi-Strauss, por seu lado, está muito longe de ser o reducionista que
alguns ainda enxergam nele. A famosa proposição que prega a
“redução da diversidade à unidade” é apenas uma formulação
didática que não pode ser levada muito a sério, devendo ser
entendida de modo mais complexo, já que a grande questão do
estruturalismo não parece ser a da unidade, mas a da invariância.
Isso significa que Lévi-Strauss nunca pretendeu reduzir o outro ao
mesmo: trata-se de captar e desvendar uma certa lógica da diferença,
que só poderia ser compreendida como conjunto de relações
invariantes presidindo a organização de elementos sempre distintos
em conjuntos igualmente variáveis. Como mostrou Benoist (in Lévi-
Strauss 1977: 324-5), o estruturalismo é crítico tanto em relação a
uma lógica que seria puramente especulativa (“lógica do mesmo”)
quanto a uma lógica dialética, que só é capaz de incorporar a
diferença convertendo-a em simples contradição. Benoist acrescen-
ta, contudo, que a lógica estrutural seria ainda, apesar de tudo, uma
tentativa de “captura das diferenças por um logos” (idem: 322), não
permitindo desse modo que se pense “a diferença como tal e não
sempre já recuperada numa lógica da diferença” (idem: 325). O
problema principal não é, portanto, que Lévi-Strauss desconheça a
diferença; é que em seu pensamento ela só pode surgir já articulada
por um aparato de ordem lógica que seria, este sim, universal. Não
deixa de ser significativo, nesse sentido, que o próprio Lévi-Strauss
responda a essas críticas considerando a posição defendida por
Benoist uma espécie de “ultra ‘lévy-bruhlismo’” (idem: 330).
É aí, creio, que o confronto deva ser localizado. A idéia
lévistraussiana de uma “lógica da diferença” implica uma posição
“ultra-racionalista” que, como se sabe, sustenta que as emoções e o
afeto só podem ser pensados como derivando da atividade propri-
amente intelectual do espírito humano. Ocorre, porém, que mesmo
em relação a esse ponto, a postura de Lévi-Strauss é ambígua: ora
sugere — como no “Finale” de O Homem Nu — que a afetividade
surgiria sempre como conseqüência do bom ou mau funcionamento
do dispositivo intelectual, ora — como em O Totemismo Hoje — que
as emoções deveriam ser epistemologicamente deixadas fora da
investigação científica, uma vez que as operações intelectuais da
ciência só poderiam ter acesso a processos que possuíssem a mesma
natureza que elas. De qualquer forma, como efeito ou resíduo, o
lado afetivo da existência humana escaparia necessariamente da
investigação direta ou de toda forma de investigação. Como diz
Bastide (1964), “o pensamento obscuro e confuso” não parece
encontrar um lugar na obra voluntariamente “clara e distinta” de
As Duas Direções 365

Claude Lévi-Strauss. A solução que este apresenta para o que


considera os impasses de Lévy-Bruhl, é procurar se situar no plano
de um simbolismo racional de ordem inconsciente, o que faria com
que as dificuldades enfrentadas pela “teoria” da mentalidade
primitiva desaparecessem. Isso porque — segundo a versão corren-
te — Lévy-Bruhl teria oposto nosso pensamento conceitual a essa
mentalidade, definindo-a como puramente concreta e prisioneira
das imagens. Já vimos que sua posição é mais elaborada, que o
pensamento primitivo se desprende do concreto, ainda que o faça
através de uma forma de generalização que seria puramente afetiva
(a “categoria afetiva do sobrenatural”). Para Lévi-Strauss, o ponto
central é que o pensamento selvagem seria essencialmente simbó-
lico, ou seja, situado exatamente entre o sensível e o inteligível:
“declaramos ter procurado transcender a oposição do sensível e do
inteligível colocando-nos inteiramente no nível dos signos” (Lévi-
Strauss 1964: 22), uma vez que estes podem ser sempre definidos
“do modo inaugurado por Saussure a propósito dessa categoria
particular que constituem os signos lingüísticos, como um laço entre
uma imagem e um conceito, que, na união assim realizada,
desempenham respectivamente os papéis de significante e signifi-
cado” (Lévi-Strauss 1962b: 28). Solução que não deixa de ser
verdadeiramente genial, implicando em que nada — ou muito
pouca coisa — deva ser tomado ao pé da letra, uma vez que um
costume, crença, mito, dizem respeito mais aos outros elementos do
sistema de que fazem parte que a um suposto referente empírico
que alguém poderia qualificar de falso, ou mesmo de inexistente.
Desse modo, é apenas o conjunto dos elementos e sistemas
analisados que pode apresentar um sentido e um valor globais que
jamais se confundem com os significados e as valorações parciais e
particulares que podem a ele ser atribuídos seja pelos agentes
empíricos, seja pelo antropólogo não consciente da necessidade de
totalização.
A tese apresenta, contudo, um problema já levantado: as
análises efetuadas a partir dessa perspectiva costumam se chocar
com o que os informantes explicitamente afirmam a respeito de seus
comportamentos, crenças e instituições. É por isso que o simbolis-
mo advogado por Lévi-Strauss só pode ser inconsciente, não, claro,
no sentido banal de que há algo oculto a que os signos remeteriam,
mas na acepção propriamente estruturalista que supõe um conjunto
de operações lógicas que organizariam de dentro o fenômeno
investigado e que caberia ao antropólogo desvendar. Isso implica,
no entanto, a eliminação do campo da antropologia de uma série de
366 Razão e Diferença

questões que Lévi-Strauss imagina ser impossível tratar de forma


positiva, eliminação que pratica de modo quase consciente e
explícito. De forma um pouco simplista, poderíamos talvez dizer
que tudo o que parece depender das ordens do afeto e da
consciência está de antemão condenado como objeto de análise
antropológica. As conquistas do estruturalismo, em especial as de
Lévi-Strauss, são inegáveis. Querer contestá-las inteiramente só
pode ser fruto de incompreensão ou má vontade. A verdadeira
questão é outra. Diz respeito a essa espécie de interdição lançada
contra o “pensamento obscuro e confuso”: estaríamos de fato
condenados a deixar tudo o que dele depende fora de qualquer
reflexão? Ou, no máximo, a tratar esses fatos como simples
epifenômenos mais ou menos não estruturados da atividade intelec-
tual? Não poderíamos, ao contrário, tentar seguir outra via, que
descortinasse outros horizontes e possibilitasse a apreensão positiva
de outros níveis da realidade? O pensamento de Lévi-Strauss, talvez
devido a sua própria grandeza, apresenta uma certa tendência
absolutista e excludente que já é hora, quem sabe, de abandonar.
A promessa de conduzir as ciências humanas e sociais às certezas
das ciências exatas e naturais, reintegrando “a cultura na natureza,
e finalmente, a vida no conjunto de suas condições físico-químicas”
(Lévi-Strauss 1962b: 326-7) parece cada dia mais distante de se
realizar. Ainda que fosse efetivamente cumprida, por que devería-
mos crer que essa que seria, sem dúvida, uma enorme conquista,
deveria conduzir ao esquecimento de questões — talvez mais
incertas, não podendo ser “cientificamente” tratadas — que podem
e devem ser pensadas com todo o rigor. Lévi-Strauss (1949: 17) tinha
certamente razão ao escrever que “é nos conceitos biológicos que
residem os últimos vestígios de transcendência de que dispõe o
pensamento moderno”. Hoje talvez devêssemos acrescentar ainda
a lógica ou a físico-química como outros tantos refúgios, repetindo
com Lyotard (1973: 91) que se “os selvagens têm, em Lévi-Strauss,
seu Bach, ou seu Helmholtz, ou seu César, eles querem também seu
Brutus, seu Proust, seu Cage”.

A
É inútil, assim, invocar, como faz Merllié (1989a: 429-31),
possíveis semelhanças profundas entre Lévi-Strauss e Lévy-Bruhl.
Mesmo a aproximação entre a concepção final que o segundo faria
As Duas Direções 367

da mentalidade primitiva — componente de toda cultura e todo


indivíduo — e o pensamento selvagem só pode ser efetuada se
sacrificarmos o essencial de sua diferença. Jorion (1986: 338-9) está
correto ao sustentar que os dois autores falam na verdade de coisas
completamente distintas. Tudo se passa como se a noção de
pensamento selvagem de Lévi-Strauss procurasse vencer o precon-
ceito etnocêntrico mostrando que, afinal, as operações mentais
empregadas pelos primitivos são as mesmas que reconhecemos
como lógicas, a única diferença residindo no fato de que seriam
aplicadas no plano da sensibilidade, enquanto nossa sociedade
prefere destiná-las para o nível do inteligível. A estratégia de Lévy-
Bruhl é bem outra. Se insiste em que a mentalidade primitiva jamais
deixa de coexistir com o pensamento conceitual, é para mostrar que
os modos de pensamento “primitivos” que tendemos a excluir do
nosso estão bem vivos dentro de nós, de forma que o etnocentrismo
é criticado não condescendendo-se em reconhecer os primitivos
como um outro nós, mas afirmando que em nós existem muitos
outros, inclusive primitivos.
Uma das grandes questões da reflexão contemporânea que,
de alguma forma, se apóia na antropologia social e cultural é, creio,
saber o que fazer com o legado do estruturalismo. Lévi-Strauss
parece ter preenchido definitivamente o campo de reflexão teórica
da disciplina e o chamado “pós-estruturalismo” não deveria se
contentar com o simples esquecimento de tudo o que efetuou, sob
pena do prefixo se converter em mero índice cronológico. É claro
que os trabalhos sobre parentesco, sistemas de classificação e mitos
estão muito longe de uma conclusão, e é perfeitamente legítimo
tentar prossegui-los, aprofundando-os e/ou criticando-os. Outro
caminho seria, no entanto, tentar se aproximar de tudo o que sua
obra, como toda obra, teve que eliminar para se constituir e
desenvolver. As reflexões de Clastres no domínio do político não
deixam de ser um exemplo de tal possibilidade, que não significa
simplesmente acrescentar uma esfera ainda inexplorada ao conjun-
to formado pelo que já havia sido analisado. Como nas peças de
Carmelo Bene (cf. Deleuze e Bene 1979), a eliminação das perso-
nagens que dominam a trama tradicional faz com que elementos
“menores” experimentem um desenvolvimento inesperado, que
projeta nova luz mesmo sobre aqueles que foram eliminados. Assim,
o que Clastres diz das “sociedades contra o Estado” deveria conduzir
inevitavelmente — se sua obra não tivesse sido interrompida tão
cedo — a novas perspectivas sobre outros domínios da vida social,
entre eles, o parentesco, a classificação e os mitos. Como diz
368 Razão e Diferença

Deleuze, “Platão não é superável e não há nenhum interesse em


recomeçar o que ele fez para sempre” (1990: 203). A verdadeira
questão é saber o que fazer diante de tal situação: “ou história da
filosofia, ou enxertos de Platão para problemas que não são mais
platônicos” (idem). Acontece, porém, que assim como a história da
filosofia, bem como a da antropologia, não significa uma narrativa
neutra ou simplesmente partidária do que já teria passado — mas
reativação de seus elementos no e para o presente — tampouco o
“enxerto” quer dizer que devamos apenas converter um problema
“não platônico” numa questão do platonismo. Ao contrário, como
se sabe, todo enxerto modifica a natureza do que foi enxertado, de
forma que o resultado a ser atingido será sempre uma novidade.
No caso específico do que se denominou estruturalismo,
Veyne demonstrou que o termo reúne duas idéias que
são interessantes e parecem verdadeiras, basta apenas
separá-las. Por um lado, qualquer realidade social está
objetivamente limitada; por outro, qualquer realidade
social é confusa na nossa representação, competindo-
nos, pois, conceptualizá-la e vê-la com clareza (Veyne
1976: 21).
O problema é que ao reunir as duas idéias, a primeira — a
limitação da realidade social — parece absolutamente estranha ao
fato de que o que limita essa realidade não é simplesmente o acaso
ou uma propriedade qualquer do espírito humano, mas um
conjunto de práticas que também pode e deve ser conceptualizado
e esclarecido. É esse conjunto que faz com que as virtualidades não
atualizadas continuem atuando na realidade sentida como única.
Conseqüentemente, a tarefa do analista pode não ser apenas
descobrir leis universais de funcionamento do espírito, mas expli-
citar os limites e as práticas de limitação que estão também presentes
de forma objetiva, ainda que confusa, na consciência e nas ações dos
próprios agentes. “Conceptualizar” ou “ver com clareza” não
significa, portanto, desvelar o que, por natureza, permaneceria
sempre oculto; trata-se, mais simplesmente, de explicitar com toda
a nitidez o que já se achava à flor da pele, muito embora não
evidenciado. Se com o estruturalismo, como escrevem Deleuze e
Guattari (1980: 288-9), “o mundo inteiro se torna mais razoável”, isso
não significa necessariamente que essa seja uma compreensão
absoluta, uma vez que muita coisa teve que ser sacrificada a fim de
que essa aparência de racionalidade pudesse se estabelecer. É aqui
que o pensamento de Lévy-Bruhl pode demonstrar uma quase
As Duas Direções 369

paradoxal atualidade ou, como diz Marc Augé (1986: 78), “reencon-
trar uma nova juventude”. Seu “esquecimento” durante meio século
pode ser, é claro, o efeito de teses errôneas e posições equivocadas.
Pode ser também, no entanto, o sub-produto de um certo modelo
de desenvolvimento da reflexão antropológica, que tendeu a
privilegiar o “claro e distinto”, seja no nível da organização social,
seja no do pensamento, seja no da própria prática de pesquisa. As
reflexões oriundas da hermenêutica, da crítica política e das novas
tendências em etnologia podem ser um sinal de que esse modelo
esgotou suas incontestáveis virtudes e de que outros caminhos
poderiam ser buscados. Os “universais”, lógicos ou sociológicos,
talvez não sejam o único objeto legítimo da antropologia. Sua
investigação direta ou indireta — o simples pressuposto de que
constituiriam a única condição de possibilidade dessa disciplina —
pode ceder espaço para a diferença pensada em si mesma, espaço
sempre disponível no interior de um saber afinal de contas
comprometido com a questão da diversidade. Uma das virtudes de
Lévy-Bruhl é ter ao menos apontado o fato de que o reconhecimento
da existência de certas propriedades universais da cultura ou do
espírito humano não deve constituir obstáculo para a consideração
da diferença, que esta não precisa necessariamente ser pensada na
forma de uma “lógica” que, em virtude de seu próprio caráter de
lógica, remeteria de novo para o plano da universalidade e da
identidade. O princípio das diferentes orientações do espírito
humano escapa dos impasses da dicotomia unidade/diversidade;
assim como o “termo-refúgio” afetividade contorna as dificuldades
da oposição racional/irracional; assim como o emprego, a crítica e
a modificação constantes de nossas próprias categorias evita o par
relativismo/anti-relativismo. Acima de tudo, a obra de Lévy-Bruhl
abre espaço para um verdadeiro diálogo com as outras culturas e os
outros modos de pensamento, diálogo que, escapando da tentação
de ser um discurso sobre os outros, de explicar ou mesmo
compreender esses outros, pode permitir o acesso a formas de
pensar e se organizar muito diferentes das nossas. Nesse sentido,
essas formas e sua investigação podem ser úteis: não, certamente,
como modelos, mas como elementos de uma reflexão crítica a
respeito das que marcam nossa própria cultura.
370 Razão e Diferença

Notas
1. Merllié (1989a: 446) chega a mencionar um pequeno prefácio que
Lévy-Bruhl escreveu para um livro publicado em 1934 a respeito da ascensão
do nazismo na Alemanha.
2. Essa é uma das duas questões da circular que pedia contribuições
para o número especial da Revue Philosophique que homenageia Lévy-Bruhl.
A outra indagava a respeito da existência “hoje, de um recuo permitindo situar
[a Lévy-Bruhl] numa história ainda viva” (Merllié 1989a: 419, nota 3). De acordo
com Merllié, “a resposta mais freqüente à circular (…) foi o silêncio” (idem).
3. Embora este não deixe de ser um “argumento polêmico”, para usar
uma expressão de Lévy-Bruhl: para demonstrar a falsidade de uma doutrina,
“objeta que se ela fosse verdadeira, suas conseqüências seriam deploráveis, e
que é melhor então que não o seja. Mas essa preferência sentimental não
modifica em nada a realidade das coisas” (MM: XVIII).
4. Em um texto muito mais inspirado que Nós e os Outros, Todorov
mostrou, ao analisar a “conquista da América”, como a vitória européia nesse
empreendimento deveu-se em grande parte a uma capacidade historicamente
determinada de “compreender os outros”, compreensão que permitiu aos
europeus manipularem com habilidade as contradições internas às sociedades
pré-colombianas para poder destruí-las (Todorov 1982: 251-3). A antropologia
certamente não é “filha” do colonialismo; talvez ela seja, contudo, sua “irmã”,
na medida em que ambos derivam de um mesmo contexto histórico, de modo
que suas relações recíprocas estão longe de se reduzir tanto a puro antagonis-
mo quanto a simples identidade de propósitos.
5. O próprio Needham já havia efetuado uma investigação e uma crítica
semelhantes no quarto capítulo de Crença, Linguagem e Experiência.
6. “Por certo, no passado, muitos etnólogos mostraram uma tendência
a tomar as metáforas por crenças, mas, considerar ao contrário todas as crenças
como metáforas é ganhar tempo” (Sperber 1974a: 96).
7
O Final e a Finalidade

O final não é a finalidade. O final de uma melodia não


é sua finalidade; não obstante, se a melodia não
chegou a seu final, não atingiu tampouco sua finali-
dade. Parábola, isso.
Humano Demasiado Humano

Talvez a ilusão mais permanente da antropologia seja a que


Françoise Paul-Lévy (1986: 314-6) denominou “ideologia primitivis-
ta” — essa aproximação entre “selvagens” e “primitivos” que nos dá
a esperança de poder conhecer nosso passado mais remoto através
do estudo de sociedades bem vivas, cujo modo de vida considera-
mos próximo do de nossos antepassados mais distantes. Lévy-Bruhl
compartilhou certamente dessa ilusão, o que não chega a ser
surpreendente dada a época e o contexto intelectual em que
desenvolveu seu pensamento. O problema é que essa ideologia
pode assumir formas não tão explícitas e é nesse sentido que Paul-
Lévy detecta sua presença em autores como Lévi-Strauss ou Sahlins,
ainda que estes se nutram dela de forma aparentemente mais
discreta e implícita. Uma observação de Deleuze e Guattari (1980:
441-6) sobre Pierre Clastres pode esclarecer melhor este ponto.
Apesar das críticas dirigidas ao evolucionismo, Clastres teria per-
manecido preso de algum modo a uma visão primitivista, que
parece permear sua obra de ponta a ponta. A conseqüência dessa
postura é que mesmo tendo percebido a presença das forças do
Estado entre os primitivos — ainda assim, de forma apenas negativa
— não foi capaz de se dar conta de que o “contra-Estado” existe
entre nós. Desse modo, apesar de toda a riqueza de seu pensamento
e do esforço explícito para estabelecer um verdadeiro diálogo com
as outras culturas, os primitivos ainda aparecem na obra de Clastres
como um objeto estranho a ser mantido a distância. O que seria
preciso, é demonstrar que os princípios isolados através de seu
estudo continuam ativos e que, longe de nos ensinar algo sobre
372 Razão e Diferença

nosso passado, é nosso presente que poderia ser melhor esclarecido


e problematizado no contato com essas sociedades.
É essa também a posição de Jorion, em um texto do qual o
estilo meio apocalíptico ameaça esconder a importância. Já vimos
de passagem que de seu ponto de vista, todo o empreendimento da
antropologia social e cultural teria redundado em um grande
fracasso, a ponto de entre o evolucionismo e o estruturalismo, assim
como depois deste, Jorion só detectar um enorme “silêncio” (Jorion
1986: 335). Entretanto, essa mesma antropologia teria podido ser
responsável por uma crítica radical dos nossos próprios modos de
pensamento, ou ao menos de sua tendência excludente e ex-
clusivista, tarefa que acabou inadvertidamente deixando na mão
dos “filósofos” (idem: 340). Lévy-Bruhl teria desempenhado o papel
de pioneiro nesse trabalho fundamental da antropologia, que
consistiria em “nos ensinar como pensamos” (idem: 337), papel que
teria sido mesmo o principal responsável pelo esquecimento de seu
pensamento. Jorion sugere, enfim, que o pensamento primitivo
talvez seja, de fato, “inteiramente estrangeiro” ao nosso (idem: 339),
radicalizando assim, de modo provocador, a posição em geral
lançada como crítica fundamental aos trabalhos de Lévy-Bruhl. De
minha parte, creio que Jorion tem razão, mas apenas em parte.
Ensinar-nos como pensamos (idem: 337), admitir que os “selvagens”
têm algo a nos ensinar (idem: 338), abolir a fictícia fronteira que
separaria o social do psíquico (idem: 340-6), são de fato idéias
presentes na obra de Lévy-Bruhl, ainda que de forma implícita e
subordinada ao princípio metodológico que postula uma diferença
entre nós e os outros. Se ele não desenvolveu inteiramente seu
pensamento nessa direção, isso talvez se deva à “ideologia primiti-
vista” que não soube ou não pôde abandonar, ideologia que o
levava sempre, como no caso de Clastres, a colocar o primitivo à
distância, mesmo quando o situava no interior do civilizado. Na
verdade, apenas o diferente pode se aproximar ou ser aproximado,
o mesmo coincidindo sempre, por definição, com nossa própria
posição. Lévy-Bruhl admitiu, como Clastres, a diferença, e esse não
foi certamente um pequeno esforço para um homem de sua
formação; nenhum dos dois, contudo, foi capaz de converter essa
diferença em princípio de inquietação e transformação. O erro de
Jorion é falar simplesmente de “fracasso” e “silêncio” em um campo
repleto de contribuições desse tipo, ainda que muitas vezes esparsas
e esquecidas. A tarefa que se coloca não é lamentar esse estado de
coisas ou pretender “reprendre à zéro” o pensamento antropológi-
O Final e a Finalidade 373

co; trata-se, antes, de localizar ao longo da história da antropologia


esses pontos de lucidez, levá-los adiante e desenvolvê-los.
Conhece-se certamente a “arqueologia das ciências humanas”
elaborada por Michel Foucault em 1966. Remetendo essas ciências
para o solo teórico que as teria historicamente tornado possíveis,
Foucault traça um panorama fechado no qual apenas a história, a
psicanálise e a etnologia — por razões distintas — ocupariam uma
posição questionadora. O problema é que essa análise parece tão
cerrada que provoca a falsa impressão de não haver saída do campo
mapeado, a não ser através de uma espécie de grande recusa que
pretenderia, como Jorion, reiniciar tudo do zero. Isso tem o duplo
e lamentável efeito de fazer com que alguns simplesmente deixem
de dar atenção a tudo o que provém, por exemplo, da etnologia; e
que outros recusem, de forma igualmente global, os trabalhos de
Foucault em nome da preservação dessa mesma etnologia. A
verdade é que toda análise apresenta sempre múltiplas entradas e
saídas, e o próprio Foucault aponta nessa direção, ao estabelecer
uma conexão quase sempre desprezada entre a etnologia e a
historicidade (Foucault 1966: 388). Uma leitura possível dessa
aproximação é constatar que o pensamento antropológico pode ser
— como Foucault demonstrou em relação ao histórico — simulta-
neamente acolhedor e ameaçador frente a todas as supostas certezas
estabelecidas pelas ciências humanas, entre as quais se encontram
as propostas da própria etnologia. Este pensamento seria acolhedor
quando se contenta em nos transportar para as outras culturas para
confirmar lá o que seria verdade aqui, operação efetuada de modo
um pouco sub-reptício uma vez que a crítica explícita do etnocen-
trismo é um fato quase definitivo no interior da disciplina. Por outro
lado, pode ser ameaçador quando se esforça em demonstrar que
essas outras culturas são quase outros mundos, que todos os nossos
hábitos e modos de pensar não podem deixar de ser afetados no
contato com elas. Investigar a situação histórica na qual a antropo-
logia se constituiu e confrontar-nos com outras maneiras de se
organizar e pensar, são vias que o pensamento antropológico pode
seguir se pretender não apenas se renovar como também, e
principalmente, renovar a nós mesmos. Isso significa deixar de se
relacionar com os outros “sob o modo da pura teoria” (idem),
estabelecendo com eles um diálogo que não podemos saber ao
certo aonde irá conduzir.
Já mencionei a bela análise desenvolvida por Todorov (1982)
a respeito da “questão do outro”. A conquista da América é
interpretada como um caso especial — do ponto de vista metodo-
374 Razão e Diferença

lógico — da nossa relação com as outras culturas. Essa relação


costuma sempre se produzir sob o signo da “degradação”, pouco
importando o fato de que sejamos capazes de “compreender” o
outro (Cortez), “amá-lo” (Las Casas) ou concebê-lo como “igual”.
Isso não significa, é claro, que ignorar, odiar ou pensar como
desigual sejam posições mais sábias. O que Todorov demonstra é
que essa relação com o outro se processa sob condições que são
mais ou menos independentes das paixões e vontades individuais
e coletivas, sendo determinadas pelos diferentes princípios culturais
que põe em choque. É justamente por isso que a solução proposta
pelo próprio Todorov é decepcionante, simples mistura de etnocen-
trismo, romantismo e voluntarismo:
Nós queremos a igualdade sem que ela acarrete a
identidade; mas também a diferença sem que esta se
degenere em superioridade/inferioridade; nós esperamos
recolher os benefícios do modelo igualitário e do modelo
hierárquico; nós aspiramos reencontrar o sentido do
social sem perder a qualidade do individual (Todorov
1982: 253).
Esta posição será levada às últimas conseqüências em Nós e
os Outros, onde, como vimos, todo o mal derivado das posições
universalistas é encarado como simples “perversão”, ao mesmo
tempo em que o relativismo é tido por intrinsecamente responsável
por seus pecados (Todorov 1990: 436-7). O problema, parece-me,
é que Todorov pensa a diferença “nós/outros” de um ponto de vista
que poderia ser considerado puramente quantitativo. Para ele, o
contato entre duas culturas colocaria sempre em relação códigos,
que só poderiam variar em torno dos mesmos princípios fundamen-
tais. Assim, os astecas agiriam como se os signos derivassem do
mundo, não dos homens, impedindo-se portanto de utilizá-los
como “arma destinada a manipular outrem”, modo pelo qual o
Ocidente manipularia os códigos semiológicos (Todorov 1982: 95).
Pode-se concluir, assim, que “toda pesquisa sobre a alteridade é
necessariamente semiótica, e reciprocamente: o semiótico não pode
ser pensado fora da relação com o outro” (idem: 163). Seria possível
ir um pouco mais longe, utilizando essa “relação com o outro” para
ajudar a afastar nosso próprio pensamento do modelo semiótico”,
não simplesmente para produzir uma análise semiológica do outro?
Foram, sem dúvida, Deleuze e Guattari que exprimiram de
forma mais aguda nosso fascínio pelo semiótico: “nossas sociedades
apresentam um gosto muito forte por todos os códigos, os códigos
O Final e a Finalidade 375

estrangeiros ou exóticos” (Deleuze e Guattari 1972: 311). Eles


acreditam, contudo, que este seria “um gosto destrutivo e mortuário”,
de modo que “decodificar” é um termo que deveria ser entendido
ao pé da letra, mais como destruir que traduzir. É essa “decodifica-
ção”, tida como tradutora mas funcionando como destruidora, que
faria “da psicanálise e da etnologia duas disciplinas apreciadas em
nossas sociedades modernas” (idem). Isso não corresponde a uma
condenação global do projeto antropológico. Ao contrário, creio
que é preciso repetir com Clastres (in Carrilho 1976: 75), “que os
etnólogos deveriam se sentir em O Anti-Édipo como em sua casa
(…); isto significa que Deleuze e Guattari não desprezam os
etnólogos: põem-lhes verdadeiras questões, questões que obrigam
a refletir”. A mais importante dessas questões talvez seja saber se o
esquema geral da codificação — o modelo semiótico ou semioló-
gico — é de fato fundamental e determinante para toda e qualquer
sociedade, em especial para a nossa própria. Ou se, ao contrário,
nossa cultura não operaria a partir de “uma axiomática social que
se opõe ao códigos em todos os aspectos” (Deleuze e Guattari 1972:
316)1. Ora, se isso for verdadeiro, a relação do Ocidente com as
outras culturas não é, como pensa Todorov, passível de ser
traduzida nos termos de um confronto entre códigos, consistindo
antes em um processo de decodificação, de ruptura imediata ou
progressiva de todos os códigos primitivos — o que, evidentemente,
só pode redundar em destruição. A Conquista da América é um
texto que se torna certamente mais interessante se lido desse ponto
de vista. Da mesma forma, boa parte da produção antropológica
contemporânea a respeito das “sociedades complexas” só teria a
lucrar se abandonasse o fascínio semiótico, deixando de lado a
posição simplista que se limita a reivindicar, também para nós, uma
“cultura” (cf. Sahlins 1976: cap. 4, “La Pensée Bourgeoise — a
sociedade ocidental enquanto cultura”), e investigando a originali-
dade, a diferença específica que, desse ponto de vista, o mundo
ocidental constitui.
Há outras questões colocadas pelos autores de O Anti-Édipo
sobre as quais a antropologia deveria refletir. De acordo com eles,
os etnólogos teriam uma vantagem sobre os psicanalistas ao não se
limitaram ao campo da significação, colocando sempre os proble-
mas, mesmo os símbolos, em termos de seu funcionamento
(Deleuze e Guattari 1972: 227-9). É por isso que, apesar da
aparências, O Anti-Édipo deve mais à antropologia que à psicaná-
lise. Como disse Donzelot (1976: 172-4), o salto decisivo é deixar de
colocar a abstrata questão da natureza última do social — “o que é
376 Razão e Diferença

a sociedade?” — e passar a investigar “como nós vivemos em


sociedade”. Nós, ou os outros, pois é preciso compreender bem o
que significa a análise do “funcionamento” de que falam Deleuze,
Guattari e Donzelot. Não se trata, é claro, de um funcionalismo no
sentido usual do termo: funcionamento não se confunde com
função. Estaríamos aqui às voltas com uma espécie de “micro-
funcionalismo”, que, escapando do nível macroscópico das repre-
sentações, tentaria penetrar no “domínio molecular das crenças e
desejos” (Deleuze e Guattari 1980: 267). Fórmula elaborada em
“homenagem a Gabriel Tarde”, autor injustamente esquecido, que
poderia ser recuperado se admitíssemos que a “imitação” de que fala
— que Durkheim se viu obrigado a questionar e excluir para fundar
sua macro-sociologia — dar-se-ia sempre sobre um nível menos
aparente, mais microscópico; que as crenças e desejos são, na
verdade, “micro-crenças” e “micro-desejos” constitutivos dos gran-
des conjuntos que aparecem de forma global sobre o plano das
representações.
Esse mesmo tipo de observação poderia ser efetuado em
relação ao pensamento de Lévy-Bruhl, que Deleuze e Guattari
tratam com admiração bem menor (idem: 289-92). As emoções,
afetos, desejos, participações, crenças e experiências de que tanto
falava, são processos que poderiam perfeitamente ser alocados em
um plano distinto daquele sobre o qual a sociologia durkheimiana
nos acostumou a trabalhar. Por outro lado, suas descrições da
mentalidade primitiva poderiam ser legitimamente consideradas
análises moleculares do funcionamento dessa forma de pensar, não
a investigação de sua natureza ou significação. Lévinas demonstrou,
como vimos, de que forma o trabalho etnológico de Lévy-Bruhl teria
contribuído para a “ruína da representação” no pensamento
contemporâneo, por mais que o próprio autor tenha insistido —
especialmente em seus primeiros livros sobre os primitivos — na
noção durkheimiana de representações coletivas. Ao substituí-la
bem mais tarde pela idéia de uma experiência mística, Lévy-Bruhl
revelava o plano sobre o qual efetivamente pretendia trabalhar,
plano de funcionamento molecular e real, não aquele sempre um
pouco fantasmático das representações molares. Não deixa de ser
significativo que já em 1895, tivesse consagrado um artigo elogioso
ao pensamento do mesmo Tarde. Ao compará-lo a Durkheim,
afirmando que Tarde não seria, como este, um “cientista”, mas um
“poeta”, Lévy-Bruhl se vê na obrigação de acrescentar que “há ainda
lugar para pensadores como Tarde” (in Merllié 1989a: 512).
O Final e a Finalidade 377

A
Ao longo de todo este trabalho, observamos como a oposição
razão/emoção parece ter funcionado como impulso criador e
transformador na obra de Lévy-Bruhl. Ela serviu igualmente como
ponto de apoio para a maior parte das críticas que lhe foram
dirigidas. Seria possível, agora, arriscar uma reinterpretação de seu
pensamento? Ou antes — já que é esse o objetivo perseguido —
seria possível isolar e desenvolver uma virtualidade, uma potência,
nele contidas? A maior parte das soluções que pretenderam “supe-
rar” essa dicotomia dificilmente são capazes de esconder o fato de
que longe de uma superação do dualismo, atingem apenas um
monismo descarnado ou, no máximo, uma simples mediação, com
a inclusão de um plano intermediário entre os dois pólos iniciais.
Também em relação a essa questão, Deleuze procurou demonstrar
a viabilidade de um outro modelo. É óbvio, afirma, que em filosofia
existem conceitos e perceptos; ocorre, contudo, que estes últimos
não se opõem aos primeiros: “não são percepções, são feixes de
sensações e relações que sobrevivem àquele que os experimenta”
(Deleuze 1990: 187). Além disso, ao lado desses conceitos e
perceptos, existiria uma “terceira dimensão”, a dos “afetos”, que
“não são sentimentos, são devires que transbordam aquele que
passa por eles (ele devém outro)” (idem). Deleuze pretende,
portanto, afastar essas noções de seu significado mais habitual, já
desgastado. Os “conceitos” não se referem simplesmente à pura
capacidade de abstração, destacada do mundo real; trata-se, antes,
de um esforço de conceptualização, que transforma simultanea-
mente o objeto e o sujeito do processo. Do mesmo modo, os
“perceptos” não estão relacionados à simples absorção de uma
realidade supostamente exterior; constituem uma forma de acesso
quase intuitivo e imediato, que modifica tanto aquele que percebe
quanto o que é percebido. Enfim, os “afetos” não dizem respeito a
uma pretensa “afetividade”, exterior e oposta à “razão”; trata-se de
“afecções”, de forças que nos “afetam”, conduzindo nossa per-
cepção e nosso pensamento nas mais variadas direções. Assim
reunidas, essas três dimensões constituiriam “os três gêneros de
conhecimento”, absolutamente inseparáveis e que não poderíamos
opor entre si. As três dimensões dependem, portanto, da ordem do
conhecimento, que, contudo, não pode mais ser definida de forma
restritiva, como sendo de ordem puramente intelectual, dependen-
378 Razão e Diferença

do exclusivamente de uma misteriosa afetividade ou provindo de


uma não menos misteriosa capacidade de acesso imediato ao real.
Tudo está ligado e em toda forma de conhecimento, assim como na
“mentalidade primitiva”, se misturam idéias, imagens e paixões.
Guardadas as devidas proporções, não seria isso que Lévy-
Bruhl poderia estar dizendo acerca de “seus primitivos”? Todo o
esforço para não interpretá-los e reduzi-los a nosso racionalismo
mais tradicional, toda a ênfase nas emoções e na afetividade, toda
a angústia para tentar atingir o mundo no qual vivem, não seriam
o resultado de uma tentativa — ainda que necessariamente formu-
lada em um vocabulário que para nós só pode parecer antiquado
— para recusar os dualismos ocidentais? Isso significa que a
participação e a experiência mística fariam parte mais dos “afetos”,
no sentido de Deleuze, que da afetividade; que seria possível
compreender de outra forma os dois outros “gêneros de conheci-
mento”, o dos conceitos e o dos perceptos — não apenas entre os
“primitivos”, mas também entre nós; que poderíamos, deste modo,
atingir uma nova compreensão dos “três gêneros de conhecimento”,
combatendo o poder coercitivo e excludente de nossas representa-
ções racionalistas e dualistas.
No início deste trabalho, afirmei que se alguma unanimidade
existe em relação ao trabalho de Lévy-Bruhl, esta só pode ser
localizada nos elogios a seu estilo. Ele seria um grande escritor, um
grande “estilista”, como diria Deleuze. Acontece que, às vezes, esse
elogio é proferido em um tom de compensação e mesmo de
censura. No segundo caso, supõe-se que um estilo possa ser forjado
para ocultar as fraquezas de um pensamento; no primeiro, parece
tratar-se apenas de uma obrigação de reconhecer, ao lado das idéias
inadequadas e análises errôneas, as qualidades meramente “literá-
rias” de seu autor. A posição de censura adota uma concepção
formalista, na medida em que acalenta o sonho de que forma e
conteúdo poderiam ser nitidamente distinguidos e separados nessas
disciplinas que tratam do homem, da sociedade e do pensamento.
A outra posição é uma espécie de elogio vazio, destinado a atenuar
a crítica, sendo proferido como testemunho de amizade ou respeito.
Mas o estilo é inseparável da matéria que trabalha, tanto de um
ponto de vista geral quanto no espaço da escrita e do pensamento:
“o estilo em filosofia, é o movimento do conceito” (Deleuze 1990:
192) e isso vale, creio, para toda e qualquer forma de pensamento.
Entretanto, acabamos de vê-lo, os conceitos nunca estão
sozinhos. Os afetos e perceptos sempre os acompanham, constitu-
indo os três “gêneros de conhecimento” que se apresentam sempre
O Final e a Finalidade 379

de forma sucessiva: os afetos formam “o primeiro gênero de


conhecimento”; os conceitos e os perceptos, o segundo e terceiro
gêneros, respectivamente (idem: 225). Isso permite compreender
melhor a importância do estilo de Lévy-Bruhl. Se minha experiência
pessoal puder ser evocada, eu diria que durante muito tempo tentei
lê-lo exclusivamente a partir da ordem conceitual, como somos
acostumados a fazer. Os resultados não deixaram de ser vulgares,
reencontrando apenas os lugares-comuns a seu respeito. Se é
verdade, contudo, que os afetos precedem os conceitos na ordem
dos gêneros de conhecimento, compreendo agora por que foi no
momento em que fui “afetado” — tal é o sentido de afeto para
Deleuze — por seu pensamento que me dei conta de que poderia
haver aí algo que ultrapassava as leituras tradicionais, permitindo
repensar boa parte do que fazemos. Só então o próprio plano
conceitual se tornou mais claro, permitindo uma leitura mais justa
ou mais útil. Foi necessário esperar mais um pouco até que o terceiro
gênero, o dos perceptos, se tornasse presente, fornecendo um
acesso mais direto e intuitivo ao que Lévy-Bruhl estava efetivamente
dizendo. Creio que poderia considerar este trabalho razoavelmente
bem sucedido se fosse capaz de provocar no leitor essa mesma
experiência.
Vimos também que em certo sentido, foi desse modo que o
próprio Lévy-Bruhl procedeu em relação aos “seus primitivos”,
recusando-se a reduzi-los a nossos esquemas mais correntes que
buscam remeter tudo ao plano puramente conceitual. “Eu supo-
nho”, diz Deleuze, “que existe uma imagem do pensamento que
varia muito, que variou muito na história (…). É a imagem do
pensamento que guia a criação dos conceitos” (Deleuze 1990: 202-
3). Ora, é evidente que nossa imagem do pensamento não é a de
Lévy-Bruhl, assim como esta não é a dos “primitivos”. Recuperar a
imagem que seria a sua é condição indispensável para que tudo o
que disse possa ser utilizado nos quadros da nossa, da mesma forma
que foi necessário, para ele, recuperar as imagens do pensamento
produzidas pelos “primitivos” a fim de que permitissem a problema-
tização e o questionamento das nossas. Não se trata, certamente, de
“redizer o que diz um filósofo, mas dizer o que subentende
necessariamente, o que não diz e que está entretanto presente no
que diz” (idem: 186). Se ao longo das páginas precedentes, vários
discursos constantemente se misturaram — o de Lévy-Bruhl, o dos
autores que comenta, o dos autores que o comentam, o dos
“primitivos”, o da antropologia, o de pensadores que não são
antropólogos, o meu próprio… — isso se deve exatamente a esse
380 Razão e Diferença

desejo de ter acesso a algumas imagens diferentes do pensamento,


imagens que podem ajudar a revelar ou a produzir outras tantas. Não
se trata, portanto, de “interpretar” ou “revelar” idéias ocultas em uma
obra; não se trata, tampouco, é claro, de introduzir nesta obra idéias
que seriam absolutamente estranhas a ela. Trata-se — não é demais
repetir — de revelar e desenvolver certas virtualidades e potencia-
lidades de um pensamento que tem sido sistematicamente deixado
de lado.
A viagem bem real que o Ocidente empreendeu à “América”
pode não ter sido enlouquecedora, inútil ou apenas tranqüilizadora.
Ela nos revelou outros mundos e outras imagens do pensamento.
Não há dúvida de que a antropologia ocupa nesse processo uma
posição privilegiada, cabendo a ela decidir o destino a ser dado a
essa experiência especial e fascinante. Que a última palavra caiba
ainda a Descartes, o de Leminski é claro. Sentado sob a árvore,
fumando e olhando com suas lunetas esse novo mundo tão
estranho, ainda é capaz de um momento de lucidez, percebendo em
um relance tudo o que pretendi dizer ao longo deste trabalho:
— “Saber não basta, carece corromper, comprometer e
ameaçar o que existe. Para isso, parece que esse mundo é bom. O
barco é parado em pedra mas para ir nada como um rio”.
O Final e a Finalidade 381

Notas
1. A discussão das noções de “código”, “codificação”, “axiomática” e
“decodificação” se encontra em Deleuze e Guattari 1972: 311-34, e não pode
ser resumida sob pena de simplificação. Grosso modo, a “codificação” implica
um rígido controle dos “fluxos” que atravessam o corpo social. Em um
vocabulário estruturalista, dir-se-ia que os “acontecimentos” são continuamente
postos em estrutura, até o momento em que esse ajuste se torna impossível e
a própria estrutura acaba sendo rompida. Essa “decodificação” sobrevém em
geral, embora não necessariamente, quando do contato com o mundo
ocidental. Este, por outro lado, ainda que não desconheça os códigos,
funcionaria apoiado em um sistema mais fluido, que permite a contínua
incorporação de fluxos que, mesmo quando aparentemente estranhos e
ameaçadores, são convertidos em outras tantos elementos de sua “axiomática”
global. Para Deleuze e Guattari, a sociedade ocidental, o “capitalismo”,
funcionaria sobretudo a partir de um modelo de destruição e incorporação,
mais que de tradução e codificação.
382 Razão e Diferença
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Índice Remissivo

A Cardoso de Oliveira, Roberto 41


abstração mística 206-207 Carnets de Lucien Lévy-Bruhl, Os 275-
aceitação de incompatibilidades físicas 321
278-280, 296-297, 309, 315 ver categoria afetiva do sobrenatural 264-
contradição e não contradição 265, 267-268, 271, 276, 279, 298,
afetividade 15, 41, 211, 291, 295, 297- 299, 365
301, 318-320, 322, 333, 364-366, causalidade ver ocasionalismo, nega-
369, 376-379 ver sentimento ção do acaso, causalidade
Akoun, André 19-20, 130, 145-146 Cavaillé, Jean-Pierre 58, 285
Alemanha desde Leibniz…, A 89-92 Cazeneuve, Jean 10-11, 178-180, 228,
Allier, Raoul 185, 225, 228 229
Alma Primitiva, A 255-260 Chamboredon, Jean-Claude 157
Alquié, Ferdinand 38 Châtelet, François 24-26, 29-30, 37-38,
antropocentrismo, antropomorfismo 74- 115-117, 130
75, 122, 147, 305 classificação 206-207, 233, 256
Asad, Talal 18, 340-341, 345 Clastres, Hélène 5, 12, 181, 243
Augé, Marc 368 Clastres, Pierre 3-4, 18, 22, 25, 35, 42,
axiomática e codificação 204, 374-375, 158, 243, 324, 367, 371-372, 375
381 Clifford, James 338
Clifford, James e George, E. 17, 338
B codificação ver axiomática e codifica-
ção
Barthes, Roland 21, 28, 34, 35, 42
cogito 285, 314
Bastide, Roger 212, 229-230, 333, 364
Comte, Auguste 23, 51, 69-83, 91, 99,
Bataille, George 14
103, 105, 114, 116-117, 121-122,
Bateson, Gregory 344
125, 129, 130, 132-134, 136-139,
Bayle, Pierre 61-62, 84, 115 144, 146, 151, 154-155, 162, 165-
Beattie, John 341 166, 173, 187, 188, 242, 308, 313,
Bergson, Henri 185, 210-211, 216, 225, 315 ver positivismo
227, 245 Condillac, Étienne de 60, 63-64, 69
bipresença e multipresença 205-206, Condorcet, Antoine-Nicolas de 64, 80-
303 81
Biran, Maine de 51, 67-68 contradição e não contradição 50, 96,
Blondel, Charles 231 109, 151, 196, 198-199, 200, 202,
Boas, Franz 330, 336 205, 214, 223, 245, 259, 277-278,
Bonald, Louis de 51, 67, 100, 113 280, 310-311, 322, 360 ver aceita-
Boon, James 338 ção de incompatibilidades físicas
Boyer, Pascal 351 Cooper, David E. 322
Bréhier, Émile 11, 23-24, 142, 226-227 Cournot, Auguste 46, 49, 50-51
C crença 94-95, 96, 104, 272-275, 290, 291-
294, 322, 324, 347-354, 359-360,
Cabanis, Pierre 65 370, 376
Cailliet, E. 185, 211, 225 crise da antropologia 16-21
Canguilhem, George 13 criticismo 46, 86, 109 ver kantismo
396 Razão e Diferença

D 298, 299, 303, 305, 310, 311, 313,


318, 319, 347-348, 351, 354, 376,
Davy, George 157, 179-180, 188, 228, 378 ver impermeabilidade à expe-
229, 237-239, 245, 249, 257, 269, riência
298, 301, 329 Experiência Mística e os Símbolos entre
Deleuze, Gilles 11, 31-32, 41, 42, 102, os Primitivos, A 269-275
161, 180-181, 190, 248, 315, 367,
377-379 F
Deleuze, Gilles e Guattari, Félix 204,
342, 368, 371, 374-376, 381 Febvre, Lucien 321
Descartes, René 1-5, 33-34, 51, 52-60, Fernandes, Florestan 15, 104, 108, 109,
83, 91, 95, 99, 108, 112, 122, 285, 145, 169, 179, 189, 207, 209, 231,
380 249, 309-310, 331, 332, 333, 341
Destutt de Tracy, Antoine 65 Ferrater-Mora, Jose 108, 131, 136, 137-
Detienne, Marcel 355 138, 213, 216, 243, 251, 289-290,
disposições místicas 256-257, 263 291
Douglas, Mary 244, 344 Filosofia de Augusto Comte, A 69-83
dualidade-unidade, multiplicidade-uni- Filosofia de Jacobi, A 92-100
dade 203, 206, 278, 286, 294 Fischer, Michael J. ver Marcus, George
dualismo 40, 179-181, 227-229, 238- E. e Fischer, Michael J.
240, 245, 254, 268-269, 282, 297, fluidez 261, 270, 280, 285, 320
298, 301, 324, 327, 329, 334, 355- Fontenelle, Bernard de 61-62, 70, 132,
356, 358, 377-378 ver pluralismo, 148
ver unitarismo Foucault, Michel 18, 19, 20, 21, 27-28,
Duarte, Luiz Fernando Dias 167, 223 30, 33-34, 35, 117, 347-348, 352,
Dumont, Louis 168 373
Durkheim, Émile 11, 13, 139-143, 152, Fourier, Charles 69, 71
154, 157, 164, 166-167, 175-180, Freud, Sigmund 157, 158
217-218, 222-224, 229-230, 232- Funções Mentais nas Sociedades Infe-
242, 243, 267, 268, 283, 299-300, riores, As 162-242
303-305, 313, 322, 329, 363, 376
G
E Geertz, Clifford 6, 28-30, 170, 310, 337,
ecletismo 46, 48-49, 68-69, 100, 108, 113 340
Engel, Pascal 322, 341, 346, 360 Gellner, Ernest 340, 341
espiritualismo 67-68, 98-99, 108, 113 geografia das idéias 24-26
estruturalismo 20, 335, 358-359, 361- Gilson, Étienne 53-59, 108, 226-227
369, 372 Guattari, Félix ver Deleuze, Gilles e
etnocentrismo 40, 134-135, 169-171, Guattari, Félix
231-232, 326, 331, 338-339, 367, Gurvitch, George 144-145, 188, 220,
373-374 226-227, 317
Evans-Pritchard, Edward E. 41, 139-140, Gusdorf, Georges 74
158, 185-186, 220-221, 223-224, 243,
244, 248, 310-311, 325, 329-330, H
334, 344 história das idéias 22-26, 250
evolucionismo social 5-6, 20, 23-24, História da Filosofia Moderna na Fran-
150, 152, 166, 173-174, 176, 178- ça 45-70
179, 182-183, 194, 207, 239, 241, Hollis, Martin e Lukes, Steven 325
307-308, 312-313, 328-329, 347, 356- Hume, David 9, 11, 102-104, 114-115,
357, 361, 371-372 291, 313, 315, 351
experiência, experiência mística 261, Husserl, Edmund 12, 227-228
270-275, 276, 288-294, 295, 297,
Índice Remissivo 397

I 287, 297, 309, 315, 322, 360, 364,


369 ver prelogismo
Idéia de Responsabilidade, A 83-89 Lowie, Robert H. 139
iluminismo 5, 48, 63-66, 100, 112-113, Lukes, Steven 13, 341 ver Hollis, Martin
162, 179, 181-184, 222, 250, 302 e Lukes, Steven
impermeabilidade à experiência 202, Lyotard, Jean-François 366
206, 253, 254, 270, 289 ver expe-
riência, experiência mística M
insólito 253-254, 263, 271
intelectualismo 15, 104, 183, 341, 344- Maistre, Joseph de 51, 67, 71, 113
347, 361, 364-366 Malebranche, Nicolas 60-61, 67, 199,
Izard, Michel e Smith, Pierre 361 245, 251`
Mannoni, Octave 351
J Marcus, George E. ver Clifford, James e
Marcus, George E.
Jacobi, Friedich Heinrich 9, 92-100, 109, Marcus, George E. e Fischer, Michael J.
112, 272, 291, 351 336-337
Jorion, Paul 18, 20, 21, 25, 40, 243, 328, Mauss, Marcel 7, 36, 42, 102, 140, 168,
330, 338, 339, 343-344, 346, 367, 179, 185, 197-198, 205, 207, 233,
372-373 235-236, 322, 329, 333
K mentalidade primitiva 145, 147, 149,
164, 180, 185-186, 192, 205-207,
kantismo 46, 49-52, 86, 88, 101, 103, 216-217, 220-221, 232-235, 238-9,
117-118, 171, 183-184, 204, 205, 251-255, 280,288-289, 296-297, 300-
213-214, 243, 264, 282-283, 293, 303, 309, 317-318, 321, 333, 344,
315, 331 ver criticismo 354-355
Koyré, Alexandre 41, 285 Mentalidade Primitiva, A 251-255
Merleau-Ponty, Maurice 13, 15, 40, 105,
L 245
Lalande, André 212, 213, 216, 291, 324, Merllié, Dominique 15-16, 29, 31, 42,
350 108, 109, 158, 235, 326-327, 366,
Leach, Edmund 17, 20 370
Leenhardt, Maurice 3, 14, 37, 84, 92, metáfora 344-347, 351, 370
109, 155, 188, 190, 191, 223, 228, misoneísmo 122, 147, 203, 206, 253, 254
229-230, 301, 332 misticismo, místico 61,76, 94, 105, 121,
Leminski, Paulo 1-3, 12, 24, 380 186, 192-196, 200, 203, 205-209,
Leroy, Maxime 10, 353-354 211-213, 219, 224-227, 257, 265,
Lévi-Strauss, Claude 5-6, 16, 22, 35, 100, 270, 279-280, 282-283, 287-288, 289,
140, 142, 166-168, 170, 175-176, 301, 310, 324 ver orientação mís-
213-214, 222-224, 226-227, 229- tica
230, 243, 299, 313, 327, 333, 357- mito, mítico 135, 261, 263-264, 266-267,
359, 362-367, 371 270, 273, 285-286, 288-289, 292,
Lévinas, Emmanuel 11-12, 15, 216, 218, 293, 352-353, 355
320-321, 325, 335, 376 Mitologia Primitiva, A 260-268
literalismo 345-346 Monod, G. 10, 73
Littré 82, 211, 215 Montesquieu, Charles de 61-63, 70, 132
lógico e prelógico 7, 8, 40, 78, 134, 150, moral 50, 72, 81-82, 99-100, 106, 107,
155, 160, 166-167, 188, 192, 195- 111-156
198, 200, 205-206, 213-214, 219, Moral e Ciência dos Costumes, A 117-
227-228, 230, 233, 238-239, 244, 156, 251-255
262, , 267-269, 271, 277-282, 286- multiplicidade-unidade ver dualidade-
unidade
398 Razão e Diferença

multipresença ver bipresença e 183, 199, 302, 308, 312, 315, 341,
multipresença 343 ver Comte, Auguste
Pouillon, Jean 350-351, 361
N Pound, Ezra 41
Nandan, Yash 139 prelogismo 159, 163, 196, 200, 202, 206,
natureza humana 65, 74-75, 79, 80, 103, 211, 213-214, 215, 219, 225, 227,
106-107, 112-113, 132-134, 182, 225- 239, 260, 261, 265, 277-280, 281,
226, 228-229, 268, 301, 308, 312, 286-287, 289, 295-297, 303, 315,
330, 334-335, 357-359 318, 319, 324, 327, 356 ver lógico
Needham, Rodney 16, 17, 22, 243, 341, e prelógico
347, 348, 349, 350, 352, 370 Przyluski, Jean 225

O R
ocasionalismo, negação do acaso, cau- Rabinow, Paul 18, 339-340
salidade 61, 67, 147, 251-255, 280 racionalidade, racionalismo 4, 9, 18, 38,
Orientação do Pensamento Filosófico 40, 45-46, 51-53, 57-58, 61, 64, 68-
de David Hume, A 102-104 69, 84, 92-95, 100-101, 105, 109,
orientação mística 201-202, 211, 214, 113-114, 163, 182, 222, 226-227,
215, 219, 221, 261, 262, 265, 270, 242, 285, 300, 323-324, 325, 333-
279-283, 286, 287-288, 290, 295- 334, 335, 343-347, 349-351, 356-
297, 300, 310, 313 ver misticismo, 357, 359-361, 364, 369, 378
místico relativismo e anti-relativismo 6, 29, 30,
35, 40, 70, 76-77, 108, 120, 137-138,
P 142, 170-171, 219, 231-232, 243,
293-294, 321, 324, 325, 335, 336-
participação 61, 198-201, 203, 205-206, 343, 346-347, 350, 353, 357-360,
208, 210, 211, 214-215, 219, 220, 369
230, 233, 235, 241, 242, 245, 251- Renan, Ernest 69, 46
252, 256-257, 259, 261-262, 265, Renouvier, Charles 46, 49-50
270-271, 274, 276, 281-288, 289, representações coletivas 143, 146, 150,
290, 292, 295, 297-300, 302-310, 164-166, 174, 175, 176, 184-185,
314, 315-316, 318-321, 344, 378 187, 188, 189, 190, 191-193, 195,
Pascal, Blaise 60-62, 84, 87, 91, 101, 105, 196, 197, 198, 199, 200, 201, 202,
112, 121, 294, 351 203, 205, 206, 208, 214, 216-217,
Paul-Lévy, Françoise 371 219, 221, 227, 241, 243, 252, 253,
pensamento conceitual e não conceitu- 254, 255, 257, 258, 259, 260, 261,
al 165, 206, 234-235, 241, 256, 261, 262, 264, 265, 270, 272, 274, 285,
264, 270, 280, 283, 286, 290, 295- 290, 329, 376
296, 297, 300, 308-309, 318-320, romantismo 9, 38, 54, 68, 84, 93, 105,
365, 367, 377-379 119, 162, 323
pertences (appartenence) 258-259, 290, Rousseau, Jean-Jacques 64-65, 84, 101,
302, 316, 319 105, 115, 148
Piaget, Jean 229
pluralismo 181, 228, 245, 269, 308, 310, S
329, 334 ver dualismo, ver unita-
rismo Sahlins, Marshall 336, 371, 375
Poirier, Jean 30, 40, 42, 180, 197, 219, Saint-Simon, Louis de 69, 70, 71, 118
228, 229, 327 Scholte, Bob 18, 40, 325-326, 335, 340,
positivismo 38, 46, 60, 69-70, 73, 76, 81- 346-347, 359
83, 85, 88, 101-104, 108, 114, 116- Schul, Pierre-Maxime 15, 42, 188
117, 123, 136-139, 143, 158, 179, Sebag, Lucien 361
Índice Remissivo 399

sentimento 9, 38, 60-61, 65, 78, 90, 91, tradução cultural 40, 318, 337, 343-344,
92-100, 105, 124, 128, 131, 134, 349, 356
151, 154, 155, 191-192, 217, 271, triângulo conceitual 200-201, 211, 214-
287, 297-298, 303, 305-307, 319, 215, 265, 281, 287, 289-290, 292
323 ver afetividade Tylor, Edward B. 9, 182-183, 305, 344,
Séroya, Henri 55 345
Serres, Michel 28, 34
simbolismo, símbolo 223, 234, 238, 270, U
273-275, 299, 341, 345-346, 359- unitarismo 134, 147, 225-231, 245, 266-
360, 361, 365, 375 267, 268-269, 271, 282, 307-313,
Skorupski, John 344-346 317-318, 322, 328-329, 363-364 ver
Smith, Pierre 361 ver Izard, Michel e dualismo, ver pluralismo
Smith, Pierre universalismo, universais 169-171, 174-
sobrenatural, sobrenatureza 261-264, 175, 178-179, 183-184, 227, 238-
270, 272, 281, 285-286, 289, 293- 239, 269, 300-301, 313, 318, 328-
294 329, 330, 335, 338-341, 349-350,
Sobrenatural e Natureza na Mentalida- 354, 357-360, 364-365, 368-369, 374
de Primitiva, O 260-268
Soulez, Philippe 109, 227-228 V
Sperber, Dan 170, 357-361, 370
Spinoza, Baruch 9, 11, 94-95, 97-98, 99 Van der Leeuw, G. 197, 228
Stocking Jr, George W. 243 Verdenal, René 49, 108, 158
Vernant, Jean-Pierre 36, 356, 361
T Veyne, Paul 292, 317, 342, 343, 347,
351-355, 359, 360, 368
Taine, Hippolyte 46, 69 Voget, Fred W. 139, 243
Tambiah, Stanley J. 158, 341 Voltaire 64
Tarde, Gabriel 46, 113, 376
tendência pouco conceitual ver pensa- W
mento conceitual e não conceitual
Todorov, Tzvetan 21, 156, 170, 210, Wallon, Henri 197
211, 338, 370, 373-375 Weber, Max 144, 157-158, 188
tradicionalismo 66-67, 100, 105, 118, Wilson, Brian R. 42, 338-339
162
Coordenação de Produção
Francisco Teixeira Portugal

Índice Remissivo
Marcio Goldman

Capa
Julio Silveira
Tatuagem representando um corvo, HAIDA

Editoração Eletrônica
GRYPHO Edições e Publicações Ltda

Papel Miolo
Pólen 70 g/m2

Papel Capa
Super 6 Quartz 250 g/m2

Impressão
EBAL

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