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A NOVA JURISDIÇAO
CONSTITUCIONAL
BRASILEIRA
Legitimidade democrática e
instrumentos de realização
4ª Edição
Revista, ampliada e atualizada
RENOVAR
Rio de Janeiro
2014
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LIVRARIA E EDITORA RENOVAR L TOA.
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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
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Binenbojm, Gustavo
B427n A nova jurisdição constitucional- Legitimidade democrática e instru-
mentos de realização. - 4' ed. revista, ampliada e atualizada - Rio de
Janeiro: Renovar, 2014.
319.; 2lcm.
CDD-346.81052
Gustavo Binenbojm
NOTA À 3ª EDIÇÃO
Gustavo Binenbojm
Prefácio
Nota à 4ª Edição . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . V
Nota à 3ª Edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VII
Prefácio Luís Roberto Barroso
- . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IX
Apresentação Clemerson Merlin Cleve
- . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XV
Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 287
Apresentação do tema
2
"Se Aristóteles, em vez de Platão, fora o 'constitu
cionalista ' da filosofia grega, foi porque ele com
preendera que o regime da lei é superior ao governo
dos homens - mesmo quando filósofos-reis, como
na República. O problema era, portanto1 desde sem
pre, como eliminar a arbitrariedade do poder. Na
época do absolutismo autocrático, era natural que
se chegasse à resposta de Rousseau: transferir a
soberania à nação. Mas foi preciso esperar pelo
primeiro liberalismo pós-revolucionário, com Benja
min Constant (1767-1830), para que o constitucio
nalismo aprendesse a separar a questão da fonte da
autoridade do problema1 não menos real, do seu
âmbito. Não bastava, segundo Constant, atinar com
a boa fonte do poder (o povoJ ; era também necessário
limitar-lhe a extensão." 7
3
No plano político, o surgimento do constituciona
lismo coincide com a era das revoluções burguesas. A
Constituição institucionaliza a conquista do Estado pela
burguesia emergente, dando feição jurídica ao libera
lismo. O Direito Constitucional surge, assim, como
"técnica de proteção da liberdade e da propriedade,
limitando o poder monárquico, despersonalizando o
direito e regulando o processo representativo. "9 Em
uma palavra: o constitucionalismo representa a apro
priação das relações e fenômenos políticos pelo Direito
- a sua juridicização. 1º
Consagram-se, nesse momento inicial, os chamados
direitos humanos de primeira geração, que representam,
em essência, limites à intervenção do Estado na esfera
individual. Tais direitos impõem ao Poder Público um
dever de abstenção, sendo por isso identificados como
liberdades negativas (liberdade de expressão, liberdade
religiosa, liberdade de associação, liberdade de locomo
ção, livre iniciativa econômica) .
Também nesse período, como corolário da igualdade
formal proclamada pelo liberalismo, extinguem-se os
antigos privilégios do clero e da nobreza e surgem os
chamados direitos políticos. Estes, inicialmente restritos
às classes oligárquicas, vão gradativamente se universa
lizando, na justa medida em que o ideal democrático
se consolida e se afirma como pedra-de-toque da cultura
política contemporânea .
4
No campo econômico1 o desenvolvimento desen
freado do capitalismo a partir da primeira Revolução
Industrial gera a chamada questão social1 produzida pela
lógica da exploração da mão de obra assalariada pelo
capital. Como reação ao quadro de miséria e degradação
humana criado pelo capitalismo1 desenvolvem-se mo
vimentos de contestação ao regime liberal burguês. Sob
o influxo do marxismo1 do socialismo utópico e da
doutrina social da Igrej a Católica1 o constitucionalismo
dá início1 então1 à tentativa de juridicização dos pro
cessos econômico e sociat com as experiências pioneiras
da Constituição mexicana1 de 1 9 1 71 e da Constituição
de Weimar1 de 1 9 1 91 cujo exemplo se espraiaria para
praticamente todas as Constituições editadas a partir
da década de 1 93 0 . 1 1
Com a extensão do sufrágio a parcelas crescentes
da população1 crescem as demandas por mudanças no
status quo 1 o que resulta na consagração de novos di
reitos - os direitos humanos de segunda geração. Sur
gem1 assim1 os chamados direitos sociais (direitos tra
balhistas 1 direito à saúde 1 à educação) 1 que passam a
exigir do Estado a realização de prestações positivas no
sentido de garantir o bem-estar dos cidadãos. No plano
da economia1 o dogma liberal do não-intervencionismo
e statal (laissez-faire1 laissez-passer, laissez-aller) é
substituído por uma vigorosa e crescente regulamenta
ção das atividades empresariais e pela intervenção direta
do Poder Público como agente do processo econômico .
O constitucionalismo d e então formata juridicamen
te a passagem do Estado Liberal para o Estado Social, 1 2
5
traçando, programaticamente, as políticas públicas a
serem implementadas e os objetivos socioeconômicos
a serem alcançados pela sociedade. A Constituição, a
par de seu papel de instância meramente limitativa do
poder (Constituição-garantia) , assume a feição de um
amplo programa de reformas econômicas e sociais a
serem compulsoriamente concretizadas pelas legislatu
ras e pelos governos (Constituição-programa ou Cons
tituição dirigente) .13
Ainda na linha de evolução cronológica acima deli
neada, o último quartel do século XX assiste ao surgi
mento de uma nova geração de direitos - os chamados
direitos de terceira geração - que se caracterizam pela
transindividualidade, cujos titulares se ligam por um
vínculo de solidariedade (direitos difusos) . Incluem-se
nesse grupo os direitos ao meio ambiente ecologica
mente equilibrado e à preservação do patrimônio his
tórico, artístico e cultural. 1 4
As últimas décadas do século marcam uma profunda
crise do Estado de bem-estar social (Welfare State) , de
6
inspiração keynesiana. A expansão desordenada do apa
relho burocrático estatal revelou-se inapta para atender
às crescentes demandas sociais represadas ao longo de
gerações. O paradigma da inesgotabilidade dos recursos
públicos entrou em crise, reduzindo as promessas con
tidas nas Constituições dirigentes a "um feixe bacha
relesco de idealidades inviáveis, cruelmente desmenti
das pela prática político-social" . 1 5
Some-se a tais fatores o advento da globalização
econômica, que contribui para o agravamento da crise
do Estado Providência, na medida em que põe em
xeque a soberania estatal e restringe seu poder de
subordinar os fatores econômicos e sociais nacionais. 1 6
A crise do Estado de bem-estar social é , também,
a crise do constitucionalismo contemporâneo, que co
loca em risco todo um conjunto de valores e conquistas
da civilização. Propugna-se pelo esvaziamento axiológico
da Constituição, reduzida atavicamente a esquemas pro
cedimentais supostamente neutros que se cifram a es
truturar o Estado e a definir regras básicas para o
exercício do poder político, devolvendo-se aos corpos
legislativos uma ampla liberdade de conformação. 1 7
7
Chega-se, inclusive, a propalar uma crise de paradigmas
do próprio Direito Constitucional. 1 8
Nada obstante, e de modo até certo ponto paradoxal,
j amais se assistiu a tamanha expansão do movimento
constitucionalista como nas últimas décadas. 1 9 Basta
constatar o fenômeno na América Latina redemocrati
zada, em diversos países africanos e nos antigos Estados
comunistas do Leste europeu.
No mesmo diapasão1 cresce constantemente o nú
mero de países que adotam algum tipo de jurisdição
constitucional. Se o período entre guerras1 a fase ime
diatamente posterior à Segunda G rande Guerra e a
década de setenta marcaram as três grandes "vagas" no
movimento de criação de Tribunais Constitucionais ao
longo do século, assiste-se hoje ao desenrolar de uma
quarta vaga nas novas democracias periféricas. 2 º Com
efeito, a existência de uma jurisdição constitucional
parece ter-se tornado hodiernamente, na observação de
Vital Moreira1 um requisito de legitimação e de credi
bilidade política dos regimes constitucionais democrá
ticos. 2 1
8
Por mais aguda que sej a a crise, a Constituição
continua sendo aquela tentativa - "talvez impossível,
talvez 'faustiana', mas profundamente humana", como
diria Cappelletti - "de transformar em direito escrito
os supremos valores, a tentativa de recolher, de 'definir',
em suma, em uma norma positiva o que, por sua na
tureza, não se pode recolher, não se pode definir - o
Absoluto. A justiça constitucional é a garantia desta
'definição'; mas é também, ao mesmo tempo, o instru
mento para torná-la aceitável, adaptando-a às concretas
exigências de um destino de perene mutabilidade" . 2 2
No moderno Estado Democrático de Direito, bus
ca-se a compatibilização do ideal rousseauniano de um
"governo de leis" - expressão da vontade geral - com
a plataforma liberal, apropriada pelo constitucionalismo,
de limitação do poder político. Eis a configuração, em
certa medida até singela, mas inegavelmente utópica,
do projeto constitucionalis�a; srigir um governo que
9
respeite, a um só tempo, a soberania popular, expressa
pela regra da maioria, e os princípios consagrados na
Constituição.
À jurisdição constitucional compete realizar tal pro
jeto, atuando como árbitro do jogo democrático e tendo
como objetivo assegurar, contra eventuais maiorias, a
pauta de direitos fundamentais e a sobrevivência das
minorias políticas. Embora a jurisdição constitucional
se apresente como uma instância de poder contrama
joritário, situada no limite entre o jurídico e o político,
sua missão será a de intervir a favor e não contra a
democracia.
10
O Capítulo I I I é dedicado ao estudo das tensões
entre democracia e constitucionalismo1 com especial
enfoque na questão da legitimidade democrática da
jurisdição constitucional e seus limites de atuação. Será
analisado se e em que medida um corpo de juízes
profissionais1 cuja investidura não advém do voto po
pular1 está legitimado a anular leis elaboradas por re
presentantes eleitos diretamente pelo povo. O trabalho
se volta1 nesse passo1 para a busca de respostas às
objeções tradicionalmente opostas à legitimidade da
fiscalização judicial da constitucionalidade1 como o prin
cípio da separação dos poderes e o princípio da maioria1
expressão da soberania popular. Enfrenta-se1 aqui1 a
questão do risco democrático que representam os Tri
bunais Constitucionais1 não apenas por seus juízes es
tarem imunes aos mecanismos de aferição de legitimi
dade peculiares aos agentes políticos (eleições periódi
cas1 satisfação à opinião pública) , mas, sobretudo1 pelo
fato de que suas decisões são obrigatórias e definitivas
para as demais instituições políticas (governo 1 parla
mento1 juízes1 sociedade civil) 1 não se sujeitando a
qualquer controle democrático posterior.
A partir do C apítulo IV se inicia o estudo da juris
dição constitucional na experiência brasileira. Um es
corço histórico do controle da constitucionalidade das
leis no país é traçado desde a adoção do método de
fiscalização concreta e difusa na Constituição republi
cana de 1 89 1 , passando pela instituição do controle
abstrato e concentrado1 levada a efeito pela Emenda
Constitucional nº 1 6/651 e sua evolução até o sistema
eclético hoj e vigente1 substancialmente ampliado pela
Carta de 1 988 e complementado pela Emenda Cons
titucional nº 03/9 3 . Com a recente edição da Lei nº
9 . 868, de 1 0 de novembro de 1 999 - que versa sobre
o processo e julgamento da ação direta de inconstitu-
11
cionalidade e da ação declaratória de constitucionali
dade - e da Lei nº 9 . 8 8 2 1 de 03 de dezembro de 1 999
- que disciplina a arguição de descumprimento de
preceito fundamental -1 confirma-se a tendência ao
fortalecimento do sistema de controle concentrado e
abstrato1 mediante ampliação de seus instrumentos e
efeitos1 como tentativa de dar conta do fenômeno da
litigiosidade de massa1 que não tem encontrado resposta
adequada nas instâncias ordinárias do Poder Judiciário.
No C apítulo V realiza-se uma ampla exposição des
critiva e crítica dos instrumentos de controle abstrato
da constitucionalidade contemplados no Direito brasi
leiro1 sob a forma de comentários às principais inovações
introduzidas pela Lei nº 9 . 868/99. Dá-se aqui especial
relevo à análise da profícua jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal sobre a matéria e dos aspectos pro
blemáticos do recente diploma legal1 como1 v.g. 1 aqueles
relativos à possibilidade de modulação dos efeitos tem
porais das decisões1 cautelares e de mérito1 e seu caráter
necessariamente vinculante para os órgãos judiciários e
administrativos. Destacam-se também os dispositivos
em que a nova Lei sinaliza com uma maior abertura
no processo de interpretação constitucional - no sen
tido que lhe empresta Peter H aberle - ao admitir
expressamente a manifestação de outros órgãos ou en
tidades além das partes formais no processo de con
1 1
12
mento de preceito fundamental, previsto no art. 1 02 ,
§ 1 º , d a Constituição Federal e recentemente regula
mentado com a edição da Lei nº 9 . 8 82/99.
No Capítulo V I são abordados dois problemas re
lativos à fiscalização da constitucionalidade em ativida
des intestinas dos Poderes Legislativo e Executivo e
que tangenciam a temática da jurisdição constitucional:
(i) a sindicabilidade do veto aposto sob o fundamento
de inconstitucionalidade do projeto de lei; e (ii) a
possibilidade de o Poder Executivo negar aplicação às
leis que reputar incompatíveis com a Constituição, in
dependentemente de qualquer pronunciamento prévio
do Poder Judiciário.
Finalmente, no C apítulo VII se procede a uma
síntese conclusiva das ideias expostas ao longo da dis
sertação, sob a forma de proposições objetivas.
13
Capítulo I I
15
de submissão da ação estatal a uma norma positiva que
deve vincular a existência mesma dos poderes e garantir
a incolumidade das liberdades individuais frente ao
Estado. A Constituição surge, assim, como exigência
burguesa de limitação e racionalização do poder real,
até então absoluto, que passa a curvar-se aos interesses
da nova classe dominante.
Todavia, não seria equivocado dizer que as origens
remotas do constitucionalismo são anteriores ao libera
lismo. Como anota Nelson Saldanha, as concepções
medievais já contemplavam uma certa noção de limi
tação do poder, sempre compartilhado, naquele perío
do1 entre imperador e papa, entre reis e senhores1 e
controlado aqui e ali por cortes e parlamentos. 23 Há
autores que enxergam no movimento conciliarista e nas
contestações ao absolutismo pontifício as raízes ances
trais do moderno constitucionalismo. 24 "É esta limitação
que autoriza os historiadores a falar de um constitucio
nalismo medieval (Mac Ilwain e Kern, por exemplo) e
mesmo a enxergar nas experiências medievais os germes
do liberalismo moderno e da teoria constitucional. " 2 5
Não obstante, as concepções do período medievo
se encontravam vinculadas a uma visão de mundo ainda
marcada pela filosofia escolástica, de viés pré-moderno.
Só aos poucos a secularização da temática se impõe,
instaurando-se com Maquiavel, ainda sob o antigo re-
16
gime, a laicização do pensamento político. 26 A influência
das formulações teológicas medievais, entretanto, ainda
se faria sentir em diversos pensadores modernos. 27
No final do século XVII, com a chamada Revolução
Gloriosa ( 1 688) e a obra de John Locke, é que se inicia
propriamente o liberalismo político, e um Estado cons
titucional se erige subordinado ao controle parlamentar
e comprometido com o respeito aos novos direitos
individuais . Locke - considerado o "pai do liberalismo"
- lança as bases do ideal de governo limitado nutrido
pelo jusnaturalismo racionalista, que afirma a existência
de direitos inerentes à natureza humana e preexistentes
ao Estado. Segundo sua conhecida formulação, a legi
timidade do exercício do poder político decorre do
respeito às liberdades inatas e inalienáveis, os direitos
naturais. 2 8
As cartas e declarações de direitos, tão caros ao
constitucionalismo inglês desde a Magna Carta Liber
tatum, de 1 2 1 5, simbolizam o reconhecimento de tais
direitos e estabelecem os limites da liberdade individual
que não poderiam ser invadidos pelo poder político. 29
Tais documentos se apresentam como contratos entre
o povo e os governantes, e acabam por se convolar em
26 Idem, p. 39.
27 . No pensamento de Locke, por exemplo, são comuns as alusões a textos
bíblicos. Também em Morus, Bacon e Erasmo a linguagem política ainda
continua, sob certos aspectos, semimedieval, dada a persistência da termino
logia escolástica. V. , neste sentido, Nelson Saldanha, ob . cit., p. 39.
2 8 . John Locke, Segundo tratado sobre o governo: ensaio relativo à verdadeira
origem, extensão e objetivo do governo civil, ín Os Pensadores, Editora Abril
Cultural, 1 973, p. 3 7/ 1 3 8 .
29. Citem-se, exemplificativamente, a Petition o f Rights ( 1 627J, o Habeas
Corpus Act ( 1 679J e o Bill of Rights ( 1 688J, dentre outros.
17
verdadeiros instrumentos de governo. 3 0 Esta tradição,
de "ordenação sistemática e racional da comunidade
política através de um documento escrito", 3 1 viria a se
constituir, a partir da Constituição norte-americana,
promulgada em 1 7 8 7, na ideia-síntese do Estado cons
titucional contemporâneo .
Todavia, como se sabe, a experiência constitucional
inglesa não consagrou a supremacia de uma Constituição
escrita, mas antes do Parlamento. 32 Na dicção sempre
inspirada de Ruy Barbosa, o Parlamento inglês seria "a
constituição viva do país, a constituinte nacional em
permanência, a vontade legislativa soberana. " 33
Por via de consequência, sendo ilimitado o poder
do Parlamento, expressão da vontade majoritária, não
haveria lugar, no Reino Unido, para a instituição de um
mecanismo de fiscalização de constitucionalidade . 3 4
Nada obstante, ainda na primeira metade do século
XVII, na Inglaterra e em suas colônias foi praticada
espécie de controle judicial da constitucionalidade.
Com efeito, era corrente na tradição jurídica inglesa
a concepção da lei não como ato de vontade, mas como
18
mero ato declaratório do direito consuetudinário. Em
suma1 a common law tinha prevalência sobre a lei escrita
(statutory law) ; aquela poderia até ser completada1 mas
jamais contrariada por essa. 35 Fundado em tal tradição,
desenvolveu-se e ganhou expressão a teoria de Edward
Coke1 que propugnava pela atuação dos juízes como
mediadores entre rei e nação e como guardiões da
supremacia da common law sobre a autoridade do Par
lamento e do próprio soberano. 36 Após praticada por
algumas décadas do século XVII? 7 a doutrina de Sir
Coke - considerada por alguns o ponto de partida da
ideia de jurisdição constitucional 38 - acabou abando
nada com o advento da Revolução Gloriosa e a afirmação
da ainda hoje vigente supremacia do Parlamento. Seus
frutos1 entretanto1 germinariam no solo das colônias
inglesas da América1 como adiante se verá.
Do iluminismo inglês, cumpre passar a um breve
exame da influência que alguns pensadores franceses
do período da Ilustração - e da fase imediatamente
posterior à Revolução Francesa - exerceram sobre a
formação da moderna teoria constitucional e1 mais es
pecificamente1 da ideia de controle da constitucionali
dade das leis.
A obra de Rousseau representa1 apesar de todos os
senões que se lhe opõem1 um dos marcos mais impor
tantes para a delimitação ética e técnica do poder
político na modernidade: a retomada e a vulgarização
21
não é mais que a expressão verdadeira ou suposta dessa
vontade, consequentemente não é ilimitada. " 42
Não bastaria, segundo o autor, a limitação mera
mente abstrata da soberania popular, senão que deveria
ela ser promovida por instituições políticas, 43 como o
sistema representativo, o voto censitário, o bicamera
lismo, a separação de poderes e o poder moderador.
Constant atribui grande relevância ao que chama poder
real, moderador ou neutro, a ser exercido pelo monarca
constitucional, cuja função seria a de equilibrar e har
monizar a atuação dos demais poderes. 44 S ituando-se
em um patamar superior ao dos debates e paixões
políticas, com a prerrogativa, inclusive, de dissolver o
Parlamento, o rei desempenha um papel claramente
contramajoritário, cuja justificativa seria a de garantir
as liberdades individuais e o exercício do poder com
moderação. 45
A função do poder moderador nas monarquias cons
titucionais, tal como concebido por Benjamin Constant,
tem sido associada à da jurisdição constitucional nas
23
pelo próprio povo. 48 Aliás, como argutamente observado
por John Rawls, o hoje decano do liberalismo norte
americano, serão as obras de Locke e Rousseau que,
em conjunto, constituirão o cerne da moderna demo
cracia constitucional. 49
Deve-se ainda a Sieyes a formulação da ideia - já
antes concebida por Edward Coke e que ganharia corpo
nos Estados Unidos - da jurisdição constitucional como
instituição política essencial à garantia da supremacia
da Constituição. Em célebre pronunciamento na Con
venção Nacional do 1 8 do Termidor do ano III da
República, 50 o autor sustenta que a obediência à Cons
tituição não poderia ficar na dependência da "boa von
tade" do Poder Legislativo, propugnando pela institui
ção de um Tribunal Constitucional encarregado de ex
cluir do ordenamento jurídico as leis inconstitucionais .
A este tribunal caberia conter os excessos cometidos
por maiorias legislativas irresponsáveis, cuja vontade
não se poderia sobrepor à vontade superior do povo
expressa na Constituição. 51
Como se vê, antecipou Sieyes a consequência, no
campo das instituições jurídico-políticas, advinda da
24
teoria da supremacia constitucional, por ele mesmo
formulada, e que a história viria a confirmar: o surgi
mento do controle da constitucionalidade das leis.
25
à Lei Fundamental. Embora tal competência se distribua
difusamente por todos os órgãos jurisdicionais, a Supre
ma Corte - órgão de cúpula do Poder Judiciário -
desempenha função determinante no campo da inter
pretação constitucional em virtude do princípio do stare
decisis, ou seja, da eficácia vinculante de suas decisões.
Assim, cabe à Suprema Corte dar a última e definitiva
palavra a respeito das questões constitucionais . 5 4
O Direito norte-americano recepcionou, desde os tem
pos coloniais, as teses desenvolvidas durante o século
XVII, na Inglaterra, por Edward Coke, já anteriormente
expostas, segundo as quais os juízes deveriam controlar
a legitimidade das leis votadas pelo Parlamento, negando
aplicação àquelas contrárias à common law. 55 Transferindo
o raciocínio para a realidade colonial, os juízes muitas
vezes negavam aplicação a normas de direito local consi
deradas incompatíveis com as "Cartas" outorgadas pela
Coroa a cada uma das colônias. 5 6 Assim, nas palavras de
Clemerson Merlin Cleve, "a doutrina da supremacia da
common law, repudiada na Inglaterra depois de 1 688,
mas incorporada à tradição jurídica americana e somada
à prática judicial experimentada antes da independência,
ofereceu o terreno apropriado para o desenvolvimento
da judicial review. " 57
É bem de ver que a ideia da jurisdição constitucional
como técnica de atuação da supremacia da Lei Funda-
61 . Como esclarece Luís Roberto Barroso, " O Federalista (no original, The
Federalist) reúne um conjunto de ensaios numerados, escritos por Alexander
Hamilton, James Madison e John Jay, publicados na imprensa de Nova York
durante os debates sobre a ratificação da Constituição aprovada em 1 787, pela
Convenção de Filadélfia. Tais textos explicavam o conteúdo da Constituição
e defendiam sua ratificação. A adesão do Estado de Nova York era decisiva, e
a ela se opunha o Governador do Estado, George Clinton (Interpretação e
Aplicação da Constituição, ed. cit., p. 1 5 5 , nota 3 1 } .
27
"Alguma perplexidade quanto ao poder dos tribunais
de pronunciar a nulidade de atos legislativos con
trários à Constituição tem surgido, fundada na su
posição de q ue tal doutrina implicaria na supe
rioridade do Judiciário sobre o Legislativo. Afirma-se
que a autoridade que pode declarar os atos da outra
nulos deve ser necessariamente superior àquela cujos
atos podem ser declarados nulos (. . .)
Nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode
ser válido (. . .)
A presunção natural, à falta de norma expressa, não
pode ser a de que o próprio órgão legislativo seja o
juiz de seus poderes e que sua interpretação sobre
eles vincula os outros Poderes (. . .) É muito mais
racional supor que os tribunais é que têm a missão
de figurar como corpo intermediário entre o povo e
o Legislativo, dentre outras razões, para assegurar
que este último se contenha dentro dos poderes que
lhe foram deferidos. A interpretação das leis é o
campo próprio e peculiar dos tribunais. Aos juízes
cabe determinar o sentido da Constituição e das leis
emanadas do órgão legislativo.
Esta conclusão não importa, em nenhuma hipótese,
em superioridade do Judiciário sobre o Legislativo.
Significa, tão-somente, que o poder do povo é superior
a ambos; e que onde a vontade do Legislativo, de
clarada nas leis que edita, situar-se em oposição à
vontade do povo, declarada na Constituição, os juízes
devem curvar-se à última, e não à primeira. " 6 2
28
Assim, embora o texto constitucional norte-ameri
cano não contemplasse expressamente o controle judi
cial da constitucionalidade das leis, pode-se afirmar
que, de certa forma, já o prenunciava. 63 Por isso, o
célebre aresto de John Marshall, proferido pela Supre
ma Corte no caso William Marbury v. James Madison,
em 1 803, que entraria para a história como o marco
primeiro da jurisdição constitucional, não foi um gesto
de improvisação, mas o resultado de um longo amadu
recimento doutrinário e jurisprudencial. 64 A partir dele,
entretanto, o controle judicial da constitucionalidade
das leis se incorporou definitivamente à experiência
constitucional dos Estados Unidos.
A conjuntura política e a solução estratégica encon
trada por Marshall para assentar os princípios do judicial
review of legislation singularizam a sua decisão, que
chega a ser considerada por Luís Roberto Barroso "a
mais célebre decisão judicial de todos os tempos". 65
Marshall era Secretário de Estado do Presidente
Adams, ambos do Partido Federalista, derrotado por
Jefferson nas eleições presidenciais. No interregno entre
o resultado do pleito e a posse dos novos governantes,
Adams levou a efeito o seu "testamento político", no
meando para o Judiciário seus correligionários políti
cos. 66 Um dos beneficiários foi o próprio Marshall,
nomeado para Presidente da Suprema Corte (Chief
Justice) e empossado no cargo após a aprovação de seu
67. Idem.
68. Lúcio Bittencourt, O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das
Leis, Editora Forense, 1 949, p. 1 7 .
30
pelo mérito, proclamando o direito de Marbury à posse
do cargo para o qual fora nomeado. Assim, ficava con
signada perante a opinião pública a posição da Suprema
Corte acerca da ilegalidade da conduta do Presidente
Jefferson e seu Secretário de Estado. Nada obstante, a
ordem era denegada por força de uma preliminar de
incompetência da Corte, com o que se afastava o risco
de uma crise entre Poderes. Para o reconhecimento da
preliminar, entretanto, foi necessário declarar incons
titucional a lei que atribuía competência à Suprema
Corte para julgar casos como aquele em exame. O
argumento utilizado foi o de que as competências da
Suprema Corte estavam taxativamente elencadas na
Constituição, sendo insuscetíveis de ampliação por lei.
Com essa especiosa estratégia, apesar de se curvar
ao Executivo no caso concreto, o Judiciário americano
lançou as bases, pioneiramente, para a sua afirmação
como verdadeiro Poder do Estado. 69 Também por essa
delicada conjuntura política que o envolveu - tão
corriqueira, de resto, nos afazeres cotidianos dos Tri
bunais Constitucionais - e pela sabedoria com que se
houve a Suprema Corte, o caso Marbury v. Madison
tornou-se tão importante para o constitucionalismo uni
versal. A lógica primorosa de Marshall, entretanto, ainda
hoje aludida nos compêndios, não pode ser desconsi
derada. Merece transcrição, pela excelência do racio
cínio jurídico, trecho de seu voto que se tornaria clás
sico:
31
poderes. E pode contentar-se com isso ou fixar certos
limites para que não sejam ultrapassados por esses
departamentos.
Pertence à última classe o governo dos Estados Uni
dos. Os poderes da legislatura são definidos e limi
tados; e, para que esses limites não se possam tornar
confusos ou apagados, a Constituição é escrita. Para
que fins os poderes são limitados e com que intuito
se confia à escrita essa delimitação, se a todo tempo
esses limites podem ser ultrapassados por aqueles a
quem se quis refrear? A distinção entre um governo
de limitados ou de ilimitados poderes se extingue
desde que tais limites não confinem as pessoas contra
quem são postos e desde que atos proibidos e atos
permitidos sejam de igual obrigatoriedade. É uma
proposição por demais clara para ser contestada, que
a Constituição veta qualquer deliberação legislativa
incompatível com ela; ou que a legislatura possa
alterar a Constituição por meios ordinários.
Não há meio termo entre estas alternativas. A Cons
tituição ou é uma lei superior e predominante, e lei
imutável pelas farmas ordinárias; ou está no mesmo
nível juntamente com as resoluções ordinárias da
legislatura e, como as outras resoluções, é mutável
quando a legislatura houver por bem modificá-la.
Se é verdadeira a primeira parte do dilema, então
não é lei a resolução legislativa incompatível com a
Constituição; se a segunda parte é verdadeira, então
as Constituições escritas são absurdas tentativas do
povo para delimitar um poder por sua natureza ili
mitável.
Certamente, todos quantos fabricaram Constituições
escritas consideraram tais instrumentos como lei fun
damental e predominante da nação e, conseguinte-
32
mente, a teoria de todo o governo, organizado por
uma Constituição escrita, deve ser que é nula toda
resolução legislativa com ela incompatível.
Se nula é a resolução da legislatura inconciliável
com a Constituição, deverá, a despeito de sua nuli
dade, vincular os tribunais e obrigá-los a dar-lhe
efeitos?
Enfaticamente, é a província e o dever do Poder
Judiciário dizer o que é a lei. Aqueles que aplicam
a regra aos casos particulares devem necessariamente
expor e interpretar essa regra. Se duas leis colidem
uma com a outra, os tribunais devem julgar acerca
da eficácia de cada uma delas.
Assim, se uma lei está em oposição com a Consti
tuição; se aplicadas ambas a um caso particular, o
tribunal se vê na contingência de decidir a questão
em conformidade da lei, desrespeitando a Constitui
ção, ou consoante a Constituição, desrespeitando a
lei; o tribunal deverá determinar qual destas regras
em conflito regerá o caso. Esta é a verdadeira essência
do Poder Judiciário.
Se, pois, os tribunais têm por missão atender à Cons
tituição e observá-la, e se a Constituição é superior
a qualquer resolução ordinária da legislatura, a
Constituição, e nunca essa resolução ordinária, go
vernará o caso a que ambas se aplicam. " 7 º
33
fundamental, expressão da vontade originária do povo
(soberania popular) que institui e, ao mesmo tempo,
delimita os poderes do Estado (governo limitado) . Rea
firma-se, assim, o princípio da supremacia constitucio
nal, segundo o qual nenhum ato do governo ou da
legislatura pode subsistir validamente se incompatível
com a Constituição. 71
Em segundo lugar, reconhece-se a todo e qualquer
juiz ou tribunal, chamado a decidir uma demanda, a
possibilidade de deixar de aplicar uma norma da legis
lação ordinária, pertinente ao caso, quando esta se re
velar contrária ao texto constitucional. A harmonia do
sistema judicial é assegurada pela força vinculante dos
precedentes judiciais (stare decisis) , tão cara ao sistema
jurídico da common law. Deste modo, a decisão profe
rida pela Suprema Corte no julgamento de um caso
concreto acabará por gerar um efeito regulador sobre
todos os demais órgãos do Poder Judiciário.
Em terceiro lugar, a lei inconstitucionaC porque
contrária a uma lei superior, é considerada nula, isto
é, inválida desde o seu nascedouro, cabendo ao Judi
ciário, apenas, declarar tal nulidade . A decisão judicial
cinge-se a reconhecer uma situação preexistente, ope
rando, portanto, efeitos retroativos (ex tunc) . Daí de
corre, como corolário lógico, a invalidade de todos os
direitos e obrigações constituídos sob a égide da lei
incompatível com a Constituição, tradição que só viria
a ser contestada anos mais tarde pelo gênio de Hans
Kelsen.
34
Não sem alguma resistência inicial, 7 2 a doutrina nor
te-americana do judicial review of legislation se conso
lidou nos Estados Unidos da América e se espraiou por
diversos países do mundo, como Canadá, Brasil, Argen
tina, Japão, Portugal, Noruega, Dinamarca, Suécia, Ale
manha (na época da Constituição de Weimar, 1 9 1 9) e
Itália (entre 1 94 8 e 1 95 6) . 73
A importação direta e acrítica do sistema difuso
para países ligados à tradição jurídica romano-germânica
se revelaria, no entanto, problemática (II . 3 , infra) . As
sim, a despeito de sua notável expansão e da enorme
influência intelectual que exerceu, e ainda exerce, na
doutrina constitucional universal, o modelo americano
cedeu espaço ao longo do século XX , sobretudo na
Europa continental, para o sistema de controle concen
trado, em que a fiscalização da constitucionalidade das
leis é confiada, com exclusividade, a um órgão jurisdi
cional independente (o Tribunal Constitucional) , situa
do na cúpula ou fora da estrutura do Poder Judiciário.
Seu surgimento não se daria senão no período entre
guerras, com a promulgação da Constituição austríaca
de 1 º de outubro de 1 920, redigida a partir de proj eto
elaborado, a pedido do governo, por Hans Kelsen.
36
tos na Constituição, e alternativo ao processo usual,
consistente na edição de outra lei por aplicação do
princípio lex posterior derogat priori . 77 No mesmo sen
tido, como o juízo acerca da compatibilidade da lei com
a norma constitucional não envolve a solução de um
caso concreto, parece claro a Kelsen que a fiscalização
da constitucionalidade não é função própria do Poder
Judiciário, "mas uma função constitucional autônoma
que tendencialmente se pode caracterizar como função
de legislação negativa" . 7 8 Assim, no sistema de controle
concentrado, antes da decisão da Corte Constitucional,
aos juízes comuns falece competência para apreciar -
ainda que incidentalmente (incidenter tantum) e com
eficácia limitada ao caso concreto - a validade da lei
aplicável à espécie. 79
A Constituição da Áustria de 1 920, em sua formu
lação originária, não apenas concentrou na Corte Cons
titucional a competência para decidir as questões de
constitucionalidade, mas, além disso, subordinou tal
controle à existência de um pedido especial, isto é,
uma ação especial (que chamaríamos hoje ação direta) ,
passível de ser ajuizada por alguns órgãos políticos. 80
Portanto, o sistema austríaco, nos seus primórdios, era
77 . Idem.
78. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
ed. cit., p. 792.
79 . Como adiante se verá, em grande parte dos países que adotam o sistema
de controle concentrado, o juiz tem o poder de suspender o processo que lhe
compete julgar e submeter ao Tribunal Constitucional a questão de constitu
cionalidade surgida naquele caso concreto.
80 . Mauro Cappelletti, ob. cit., p. 1 04 . Na versão original da Constituição
austríaca de 1 920, o Governo Federal tinha legitimidade para postular o
controle da legitimidade constitucional das leis dos Lander, enquanto os Go
vernos dos Lander tinham legitimidade para questionar a constitucionalidade
de leis federais.
37
inteiramente desvinculado dos casos concretos, uma
vez que os juízes e tribunais não apenas não tinham
competência para decidir, incidentalmente, as questões
de constitucionalidade surgidas nos processos de sua
alçada, como também não estavam legitimados a sub
metê-las à Corte Constitucional para que esta exercesse
o controle que lhes era vedado. 8 1 Esta é a origem do
sistema de controle abstrato de constitucionalidade, em
que a compatibilidade da lei com a Constituição é
aferida em tese pelo Tribunal Constitucional, sem vin
culação imediata a qualquer caso concreto.
Com a reforma constitucional de 1 92 9, o art. 1 40
da Constituição austríaca é alterado para ampliar o
elenco de legitimados para a deflagração do controle
perante a Corte Constitucional, nele incluindo os tri
bunais de segunda instância (a Corte Suprema para
causas civis e penais e a Corte Suprema para causas
administrativas) . Tais órgãos jurisdicionais, no entanto,
não podem arguir a questão da constitucionalidade me
diante ação direta - como os outros legitimados -
mas apenas em via incidental, isto é, no curso de um
processo que se esteja desenvolvendo e para cuja decisão
seja relevante o deslinde da controvérsia sobre a cons
titucionalidade de lei federal ou estadual. A par do
controle abstrato, o sistema austríaco passava a admitir,
assim, o controle concreto da constitucionalidade, em
bora em ambas as vias fique ele a cargo exclusivo da
Corte Constitucional.
Note-se, todavia, que aos juízes ordinários não se
reconhecia qualquer acesso àquela Corte, estando eles
jungidos à aplicação cega da lei, ainda quando pairasse
81 . Idem, p. 1 05 .
38
sobre ela fundada suspeita de ilegitimidade constitu
cional. 82 Tal sistema viria a ser corrigido nos sistemas
italiano e alemão, onde, diferentemente da Áustria,
todos os juízes, mesmo os inferiores, encontrando-se
diante de uma lei que considerem contrária à Consti
tuição, em vez de serem passivamente obrigados a apli
cá-la, têm, ao contrário, o poder (e o dever) de submeter
a questão da constitucionalidade à Corte Constitucio
nal, a fim de sej a decidida por esta, com eficácia vin
culatória. 83
O modelo austríaco de jurisdição constitucional con
centrada, embora tendo sido adotado na então Tche
coslováquia ( 1 9 2 1 ) e na Espanha ( 1 9 3 1 ) , 8 4 só veio a
experimentar notável expansão a partir do segundo
pós-guerra, com sua assimilação por diversos países da
Europa continental como Alemanha ( 1 9 4 9) , Itália
( 1 9 56) 8 5 , Chipre ( 1 960) , Turquia ( 1 96 1 ) e na então
Iugoslávia ( 1 963) . As décadas de setenta e oitenta
assistem a um novo boom de Tribunais Constitucionais,
com sua instituição na Grécia ( 1 9 7 5 ) , Espanha ( 1 9 7 8) ,
Portugal ( 1 982) 86 e Bélgica ( 1 9 84) . Mais recentemente,
nas duas últimas décadas do século XX , foram implan
tadas Cortes Constitucionais em antigos países da "cor-
39
tina de ferro", no Leste Europeu, como Polônia, Repú
blica Tcheca, Hungria, e em países africanos, como
Argélia e Moçambique. 87
Vale notar que o desenvolvimento de um sistema
de jurisdição constitucional europeu diverso do norte
americano atendeu, simultaneamente, a razões de or
dem sociopolítica e prática. De um lado, não se deve
olvidar que o constitucionalismo na Europa se desen
volveu em sociedades divididas, com ideologias confli
tantes, enquanto o constitucionalismo norte-americano
floresceu em ambiente social e ideológico mais homo
gêneo. 88 Seria natural, portanto, a tendência à concen
tração das decisões sobre matéria constitucional, por
sua relevância política, em um único órgão, composto
de membros nomeados pelas autoridades políticas le
gitimadas pelo voto popular.
Por outro lado, do ponto de vista prático, a intro
dução do sistema difuso em países ligados à tradição
romano-germânica - que de resto se deu em diversos
países -, que não conhecem o princípio do precedente
vinculativo (stare decisis) , típico dos sistemas de com
mon law, se revelaria problemática do ponto de vista
da segurança jurídica.
De fato, uma determinada lei poderia não ser apli
cada por alguns juízes, sob argumento de inconstitucio
nalidade, enquanto outros juízes, de opinião contrária,
poderiam entendê-la aplicável. Ademais, é possível que
se formem verdadeiras tendências contrastantes entre
órgãos judiciários de diverso grau, como ocorre, v.g. ,
40
entre juízes de primeiro grau - geralmente mais jovens
e progressistas - e juízes de instâncias superiores -
mais ligados à tradição e invariavelmente mais conser
vadores -} gerando "uma situação de grave conflito
entre órgãos e de incerteza do direito} situação perni
ciosa quer para os indivíduos como para a coletividade
e o Estado. " 89 Por fim} aponta-se ainda como inconve
niente a circunstância de a decisão de inconstituciona
lidade no sistema difuso produzir efeitos apenas entre
as partes do litígio} o que obriga todo e qualquer inte
ressado na mesma questão à propositura de ação idên
tica} só que sem a garantia de obter igual solução. A
pletora de ações rigorosamente iguais (circunstância tão
frequente na realidade brasileira) sem uma solução
célere e homogênea} além de emperrar o funcionamento
da máquina judiciária} representa um foco recorrente
de conflitos sociais e descrédito das instituições do
Estado de Direito.
Tais razões podem explicar} em parte} a adoção da
jurisdição constitucional concentrada por diversos paí
ses ligados à tradição jurídica romano-germânica} bem
assim o incremento e ampliação dos mecanismos de
controle concentrado em países} como Brasil e Portugal}
cada qual com as suas especificidades} que adotam
sistemas de controle ecléticos ou híbridos} nos quais
coexistem o método difuso} pelo sistema de exame
incidental (herdeiro do judicial review norte-america
no) e o método concentrado} pelo sistema de exame
abstrato (inspirado na matriz austríaca) .
Tomando como fonte de inspiração o critério de
sistematização proposto por Clemerson Merlin Cleve J 9 0
41
podem-se classificar os sistemas de controle de cons
titucionalidade da seguinte forma:
a) o modelo inglês de ausência de fiscalização da
constitucionalidade1 no qual vigora a supremacia do
Parlamento1 e não a da Constituição; juízes e tribunais
são incompetentes para conhecer e decidir qualquer
questão de constitucionalidade;
bJ o modelo francês de controle político e preventivo
da constitucionalidade1 exercido pelo Conselho Cons
titucional anteriormente à promulgação da lei; juízes e
tribunais são também incompetentes para conhecer e
decidir qualquer questão de constitucionalidade; 91
cJ o modelo de jurisdição constitucional difusa, de
origem norte-americana, no qual os juízes e tribunais
são competentes para conhecer e decidir a questão
constitucional, deixando de aplicar a lei ao caso sub
metido a seu crivo1 quando considerada inconstitucio
nal, com possibilidade de recurso para a superior ins
tância1 inclusive para a Suprema Corte;
d] o modelo de jurisdição constitucional concentrada,
desenvolvido a partir da matriz austríaca1 no qual os
42
juízes e tribunais são competentes para conhecer, mas
incompetentes para decidir a questão de constitucio
nalidade, cabendo exclusivamente ao Tribunal Consti
tucional deliberar sobre a validade da lei em face da
Constituição.
Neste último caso, o Tribunal Constitucional poderá
ser chamado a pronunciar-se, em geral, por três vias
distintas:
(I) por meio de uma ação direta, intentada por
algum dos órgãos legitimados, na qual irá aferir a com
patibilidade, em tese, da lei com a Constituição, sem
vinculação a qualquer caso concreto, pronunciando de
cisão com efeitos gerais (erga omnes) ;
(II) por meio de exame incidental, suscitado por
algum juiz ou tribunal, no qual irá aferir a compatibi
lidade de determinada lei com a Constituição, quando
tal questão for relevante (questão prejudicial) para a
solução de um determinado caso concreto;
(III) por meio de um pedido formulado diretamente
ao Tribunat existente em países como Alemanha e
Espanha, no qual irá aferir se determinada lei ou ato
do Poder Público acarreta lesão a direito fundamental
do requerente assegurado na Constituição.
Os sistemas português e brasileiro são dignos de
nota por incorporarem elementos do modelo norte
americano e adicionarem outros, tributários da matriz
austríaca. Assim, em Portugal, os juízes e tribunais têm
competência para conhecer e decidir as questões cons
titucionais nos casos concretos, com recurso voluntário
ou necessário, conforme o caso, para o Tribunal Cons
titucional. 9 2 Existe, também, o controle exercido pelo
Tribunal por via de ação direta, na qual a Corte examina
43
a lei em tese, proferindo decisão com força obrigatória
geral. Cabe mencionar, ainda, a participação do Tribunal
Constitucional no controle prévio de constitucionalida
de - de inspiração francesa - por solicitação do Pre
sidente e dos Ministros da República; sendo pela in
constitucionalidade o pronunciamento do Tribunal, re
sultará ele em veto ao projeto de lei ou tratado. 93
O sistema eclético de controle da constitucionalidade
adotado no Brasil, por seu turno, será objeto de deta
lhado exame nos Capítulos IV, V, e VI (infra) , desde
suas origens históricas, sua evolução ao longo da história
republicana, até o advento da Constituição de 1 988,
que marca a redemocratização do país após mais de
vinte anos de ditadura militar, e das recém-editadas
Leis nºs 9.868, de 1 O de novembro de 1 999 e 9 . 8 8 2 ,
de 03 d e dezembro d e 1 999, que consolidam e robus
tecem entre nós os instrumentos da jurisdição consti
tucional concentrada.
Como visto no decorrer do presente capítulo, a
jurisdição constitucional se afirmou, pelo mundo afora,
como o mais importante instrumento de contenção do
poder político nas democracias contemporâneas, che
gando mesmo a ser considerado "elemento necessário
da próp ria definição do Estado de direito democráti
co" . 94 E que, por intermédio da sua constitucionalização,
determinados princípios e direitos são subtraídos do
embate político cotidiano, ficando preservados contra
maiorias legislativas ocasionais. A rigidez constitucional,
pressuposto da supremacia da Lei Maior, e os meca
nismos de controle da constitucionalidade representam,
assim, os limites institucionais do poder da maioria.
44
Não obstante suas virtudes e sua reconhecida utili
dade para o próprio funcionamento do regime demo
crático, a jurisdição constitucional mantém com a de
mocracia uma tensão permanente, uma relação de equi
líbrio instável, 95 que coloca em xeque, de tempos em
tempos, a sua legitimidade para anular decisões tomadas
pelos representantes do povo. O cerne da questão é
assim delineado na síntese preciosa de Luís Roberto
Barroso:
(. .) tem-se travado, nos últimos anos, uma ampla
11 •
45
da legitimidade democrática dos órgãos incumbidos do
exercício da jurisdição constitucional, e dos limites de
sua atuação no âmbito do sistema de freios e contra
pesos, que caracteriza, em termos atuais, a vetusta
teoria da separação dos poderes do Estado.
46
Capítulo I I I
47
a seu turno1 equivale à juridicização do poder e ao
respeito pelos direitos fundamentais. No limite, o ir
restrito poder da maioria poderia subverter as regras
jurídicas que disciplinam o seu exercício e vulnerar o
conteúdo essencial daqueles direitos; por outro lado, a
cristalização de determinados princípios jurídicos, ele
vados à condição de paradigmas do Direito1 poderia
acarretar uma indesej ável asfixia da vontade popular. 97
O papel do constitucionalismo é o de harmonizar esses
ideais até um "ponto ótimo" de equilíbrio institucional
e desenvolvimento da sociedade política, sendo tal pon
to a medida do sucesso de uma Constituição .
Assim, embora consagrando a democracia e o prin
cípio da soberania popular, as Constituições modernas
dispõem sobre a forma a ser observada para a manifes
tação da vontade majoritária e sobre conteúdos mínimos
que devem ser respeitados pelos órgãos representativos
dessa vontade1 sem, no entanto, suprimi-la. Assumindo
a democracia como um jogo, a Constituição seria o
manual de regras e1 os jogçi dores, os agentes políticos
representantes do povo. A jurisdição constitucional,
nesse contexto, cumpre o papel de ser o árbitro do
jogo democrático.
O equilíbrio e a harmonização dos ideais do Estado
democrático de direito se buscam através da complexa
estrutura de funcionamento do sistema de divisão de
poderes entre órgãos políticos e jurisdicionais, adrede
mente delineada na Constituição . Nos países que ado
tam o sistema de controle judicial da constitucionali
dade das leis, os eventuais conflitos políticos de índole
48
constitucional não se resolvem, em caráter definitivo,
pela decisão da maioria, mas, ao contrário, por uma
decisão do Tribunal Constitucional. Realmente, como
intérprete último da Constituição, compete-lhe ditar
aos demais poderes os limites de sua autoridade, velando
por que atuem pautados pelos procedimentos e dentro
dos limites substanciais constitucionalmente previstos .
Evita-se, com isso, que o poder da maioria se tiranize,
suprimindo os direitos das minorias e pondo em risco
o próprio funcionamento do regime democrático. 98
Pode-se dizer que à Corte Constitucional cabe pro
nunciar a última palavra institucional no âmbito do
Estado democrático de direito, de vez que suas decisões
jurídicas não estão sujeitas a qualquer controle demo
crático posterior. Portanto, sendo o juiz último da au
toridade dos demais poderes, o Tribunal Constitucional
é o único juiz da sua própria autoridade. 99
98. John Elster, em livro clássico, traça uma interessante analogia das relações
entre democracia (autodeterminação popular) e constitucionalismo (autolimi
tação popular) com a passagem do Livro XII da Odisseia, de Homero, na qual
Ulisses, advertido por Cirnê, determina que o amarrem ao mastro de sua
embarcação para que não sucumba ao canto irresistível e mortal das sereias.
Com os braços deliberadamente atados - e só assim - Ulisses consegue passar
ao largo dos rochedos, ouvir o canto das sereias, sem, no entanto, sucumbir à
sua sedução. V. John Elster, Ulysses and the Sirens, Cambridge University
Press, 1 979.
99. A frase é atribuída a Rui Barbosa por Inocêncio Mártires Coelho em artigo
intitulado As ideias de Peter Haberle e a Abertura da Interpretação Constitu
cional no Direito Brasileiro, Revista de Direito Administrativo nº 2 1 1 , p. 1 3 1 .
V., também, Edgard Costa, Os Grandes Julgamentos do Supremo Tribunal
Federal, Editora Civilização Brasileira, 1 964, 1 ° vol., p. 22. Frase de mesmo
conteúdo foi proferida por Francisco Campos em discurso na solenidade de
reabertura dos trabalhos do STF, em 02.04. 1 94 1 , O Poder Judiciário na
Constituição de 1 93 7, in Direito Constitucional, Editora Forense, 1 942, p.
367: "Juiz das atribuições dos demais Poderes, sois o próprio juiz das vossas.
O domínio da vossa competência é a Constituição, isto é, o instrumento em
49
Situa-se aqui a questão da legitimidade democrática
das Cortes Constitucionais ou, de forma mais apropria
da, o que Dieter Grimm denominou de "risco demo
crático" proveniente da sua atuação. 1 00 Tal risco fora
captado na doutrina brasileira, ainda em 1 949, por
Carlos Alberto Lúcio Bittencourt que, comentando a
doutrina americana do judicial review of legislation,
assim se manifestou:
50
um direito superior que, em parte, apenas é explici
tado no processo decisório, a produção de um órgão
direta e democraticamente legitimado. Embora não
se negue que também as Cortes ordinárias são do
tadas de um poder de conformação bastante amplo,
é certo que elas podem ter a sua atuação reprogra
mada a partir de uma simples decisão do legislador
ordinário. Ao revés, eventual correção da jurispru
dência de uma Corte Constitucional somente há de
se fazer, quando possível, mediante emenda. " 1 02
51
do) a circunstância de as decisões das Cortes Consti
tucionais não estarem submetidas1 em regra1 a qualquer
controle democrático1 salvo por meio de emendas que
venham a corrigir a jurisprudência do tribunal. Ainda
assim1 como se expôs1 tal solução é apenas parcialmente
satisfatória1 eis que também as emendas à Constituição
podem1 em tese1 ser obj eto de declaração de inconsti
tucionalidade 1 04 .
A tais indagações diferentes respostas têm sido ofe
recidas 1 refletindo a variedade de matizes do pensa
mento jurídico moderno . Sem a pretensão de exaurir
o tema1 algumas dessas ideias serão expostas neste
capítulo.
Abordam-se1 inicialmente1 as justificativas teóricas
oferecidas pela doutrina constitucional clássica1 que
parte da afirmação dos direitos do homem1 cujo reco
nhecimento independe de previsão legal e que deveriam
ser assegurados pela jurisdição constitucional em face
de maiorias legislativas ocasionais; da distinção entre
poder constituinte e poder constituído1 que subordina
a vontade dos governantes1 expressa nas leis1 à vontade
do povo1 expressa na Constituição; e da compreensão
da Constituição como norma jurídica superior1 situada
no vértice do ordenamento jurídico1 que condiciona a
validade de todo e qualquer ato produzido no âmbito
do Estado. Têm predomínio, nesse primeiro tópico1
argumentos tributários1 respectivamente1 do jusnatura
lismo racionalista1 de pensadores como John Locke e
Emmanuel Sieyes1 e do positivismo jurídico1 especial
mente do normativismo de Hans Kelsen1 cuja preocu-
52
pação fundamental é a coerência e unidade sistémica
do Direito.
A seguir, e já acenando com o novo contexto jusfi
losófico de superação do paradigma positivista, são apre
sentados os argumentos de autores da vertente liberal
pós-positivista, como John Rawls e, especialmente, Ro
nald Dworkin, que partem da fundamentação moral e
universal dos direitos fundamentais e veem no consti
tucionalismo e no judicial review a garantia da sua
indisponibilidade em face de maiorias legislativas even
tuais. Com a obra de Dworkin, o construtivismo inter
pretativo que caracterizou a Suprema Corte norte-ame
ricana sob a presidência de Earl Warren ( 1 9 5 3 - 1 969)
e Warren Burger ( 1 969- 1 986) ganha a sua expressão
teórica mais sofisticada e consistente. A leitura moral
da Constituição e a hermenêutica baseada em argu
mentos de princípio, propostas pelo autor, constituem
um esforço doutrinário para legitimar o papel político
decisivo que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos
cumpriu, entre as décadas de cinquenta e setenta, na
afirmação dos direitos individuais e na proteção das
mmonas .
Por fim, expõem-se algumas das ideias antagônicas
ao ativismo judicial. Para seus defensores, as constru
ções jurídicas feitas pelo Judiciário para além da letra
expressa da Constituição implicam uma subversão do
sistema representativo, que pressupõe sejam as decisões
políticas fundamentais tomadas por agentes públicos
eleitos . Faz-se, de início, breve alusão à doutrina ori
ginalista, que busca limitar o papel do intérprete da
Constituição à busca da intenção original (the original
intent) dos elaboradores da Carta. Embora antiga, tal
doutrina foi reavivada na década de oitenta na América,
chegando a alçar um de seus ideólogos - William
53
Rehnquist - à presidência da Suprema Corte . 1 05 Dá-se
ênfase, em seguida, à obra clássica de John Hart Ely,
Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review,
que representa a defesa mais articulada das posições
de autocontenção judicial (judicial self-restraint) . Se
gundo sua teoria, a atuação da jurisdição constitucional
deve cingir-se à defesa da lisura do procedimento de
mocrático, o que, na prática, limita seu âmbito à tutela
dos direitos de livre participação política e proteção
das minorias. 1 0 6
Essa postura em relação à jurisdição constitucional
encontra seu fundamento mais eloquente na justificativa
procedimentalista da democracia e dos direitos funda
mentais, 1 º 7 desenvolvida pelo alemão Jürgen Habermas,
talvez o mais influente filósofo da atualidade. Conforme
a tese de Habermas, exposta ao final do capítulo, o
procedimento democrático tem como limite delibera
tivo as suas próprias condições de existência, consubs
tanciadas nos direitos fundamentais . Sua teoria pressu
põe, assim, uma justificação procedimental - e não
metafísica - dos direitos fundamentais, que passam a
ser compreendidos como condições viabilizadoras da
participação dos cidadãos na formação do consenso
democrático . Atuando como guardião de direitos fun
damentais assim compreendidos contra maiorias legis
lativas ocasionais, o Tribunal Constitucional se erige,
simultaneamente, como guardião da própria demo
cracia.
54
Embora tratados a seguir1 para fins didáticos1 em
seções distintas1 os argumentos acima colacionados en
contram-se imbricados1 compondo um mosaico de ra
zões que por vezes se superpõem. Como se verá a
seguir1 esse discurso de legitimação acaba por resultar
em uma reflexão sobre o âmbito e os limites da atuação
dos órgãos investidos da jurisdição constitucional.
55
homem sobre as criações da vontade geral, 1 º 9 pela não
aplicação das leis contrastantes com os preceitos cons
titucionais.
Na tradição democrática, à moda de Rousseau, não
haveria direitos e liberdades senão como expressão da
vontade geral. A Constituição seria, assim, o instrumen
to pelo qual a vontade geral se autolimita, estabelecendo
uma subordinação do legislador ordinário ao legislador
constitucional. 1 1 º Tal concepção coincide com distinção
feita por Sieyes entre poder constituinte e poder cons
tituído, já exposta anteriormente . Enquanto aquele seria
juridicamente ilimitado (salvo as limitações impostas
pelo direito natural) , este estaria subordinado às regras
impostas pelo primeiro, corporificadas na Constituição.
Embora profundamente influenciado pela doutrina
jusnaturalista em seus primórdios, o constitucionalismo
representa, de certo modo, a sua superação. De fato,
ao longo do século XIX e até a metade do século XX ,
o jusnaturalismo sofre um processo de arrefecimento
e cede espaço ao positivismo jurídico, cuja ideia central
é a de que não há outro direito senão o formalmente
editado pela autoridade estatal. 1 1 1
No plano do Direito Constitucional, o positivismo
jurídico contribui para o desenvolvimento de um con
ceito formal de Constituição, em oposição a um con
ceito material. A Constituição não se define pelo con-
56
teúdo de suas normas - limitação do poder político e
proteção dos direitos individuais - mas pela sua su
perioridade hierárquica em relação às leis. Tal supe
rioridade está assentada no predicado da rigidez cons
titucional, que pressupõe um conjunto de óbices e
procedimentos mais dificultosos para a alteração do
texto da Constituição que para a modificação da legis
lação ordinária. 1 1 2
O positivismo postula, assim, uma equiparação on
tológica entre lei e Constituição, sendo ambas normas
jurídicas, cuj a única diferença seria de grau hierárquico.
M ais que isto: essa equiparação chega a ser celebrada
como conquista do Estado de Direito e fundamento da
sua estabilidade . 1 1 3 Transpondo-a para o campo da her
menêutica jurídica, a equiparação entre lei e Consti
tuição trará como consequência a aplicação à interpre
tação constitucional dos mesmos métodos e critérios
tradicionais utilizados na interpretação em geral. 1 14 Os
métodos clássicos de interpretação remontam ao ma
gistério de S avigny, fundador da Escola Histórica do
Direito, e que, em seu Sistema, de 1 840, distinguiu,
em terminologia moderna, os métodos gramatical, sis-
57
temático e histórico, aos quais, posteriormente, se acres
centaria a interpretação teleológica. 1 1 5
Concebe-se, destarte, a interpretação constitucional
como atividade meramente subsuntiva, desprovida de
qualquer participação criativa por parte do intérprete.
Faz-se aqui a distinção entre atos volitivos e atos cog
nitivos, tão cara à hermenêutica positivista clássica: o
ato volitivo cabe ao legislador constituinte, que exaure,
desde logo, o comando normativo; o ato cognitivo cabe
ao aplicador da norma, que, através dos métodos clás
sicos de interpretação, faz com que aquela vontade
pré-constituída atue no caso concreto. 1 1 6 O papel do
intérprete é, assim, o de revelar o conteúdo do preceito
constitucional, aplicando-o, pelo mecanismo da subsun
ção, às diversas situações do cotidiano.
Em semelhante contexto, no qual a Constituição é
concebida como norma jurídica, 1 1 7 não há maiores di
ficuldades em justificar, dentro do sistema de separação
de poderes, a atuação da jurisdição constitucional sob
o prisma da sua legitimidade . Esta, com efeito, a con
clusão de García de Enterría em obra clássica:
58
compromiso ocasional de grupos políticos, substituible
en cualquier momento en que el equilibrio de éstos
arroje un resultado diverso; lo cual se traduce en
una incitación positiva al cambio constitucional, por
la via del cual cada grupo intentará mejorar sus
posiciones y, si le resulta posible, eliminar a sus
competidores.
En cambio, si a la Constitución se le dota de los
caracteres de una norma jurídica que ha de presidir
el processo político y la vida colectiva de la comu
nidad de que se trate, la perspectiva cambia esen
cialmente. La Constitución será considerada no ya
como un simple mecanismo de articulación más o
menos ocasional de grupos políticos más o menos
relevantes y amenazados siempre de cambio o desa
parición como tales grupos (. . .) sino como el estatuto
básico de la vida común, lo cual implica, por fuerza
como hemos notado en otro lugar, una necesidad
nueva, no presente en las Constituciones puramente
mecanicistas, la necesidad de definir limites al poder
por relación a los ciudadanos, o, en otros términos,
derechos de éstos, tanto a una vida provada exenta
del poder como a la dominación e instrumentación
de éste, como, en fin, a las actuaciones positivas del
Estado para promover la libertad efectiva y la igual
dad. Resulta obvio que si esta definición de esferas
de actuación (como la paralela de los órganos polí
ticos o de niveles territoriales del EstadoJ se la dota
deliberadamente de la condición de norma jurídica,
su eficacia debe ser assegurada jurisdiccionalmente.
Está probado que ésta fue, y no complicados y con
vencionales tecnicismos, la concepción básica que
condujo a los constituyentes americanos a la creación
de una justicia constitucional; fue también el argu-
59
menta básico, y hasta hoy inconmovible, de le sen
tencia Marbury v. Madison, de 1 803 , que es la
primeira aplicación histórica del sistema de judicial
review. " 1 1 8
60
a vontade da maioria constituinte incorporada na Lei
Fundamental. 1 19
No paradigma positivista, a neutralidade dos juízes
é assegurada pela crença de que estes se limitariam a
uma aferição formal e asséptica da compatibilidade
entre lei e Constituição. Não havia espaço para a cons
trução judicial, que demanda necessariamente uma ati
vidade criativa por parte do magistrado. Deste modo,
a decisão que proclama a inconstitucionalidade de uma
lei seria, em termos ideais, a expressão da vontade do
legislador constituinte, e não a da Corte Constitucional
que a proferiu.
A questão da legitimidade democrática da justiça
constitucional ficaria, assim, superada pelos mitos da
neutralidade do juiz e do formalismo hermenêutico que
caracterizam o positivismo jurídico.
Como é trivialmente sabido, as diversas vertentes
positivistas foram alvo de intensas críticas, provenientes
das mais diversas matrizes teóricas. Especialmente no
campo da metodologia constitucional, questiona-se que
os ideais de completude e coerência sistêmica do or
denamento jurídico soam como uma bela figura de
retórica. E porque assim é, toda atividade judicial,
sobretudo em matéria constitucional, tem uma dimen
são essencialmente criativa, de forma a adaptar o frio
relato normativo às circunstâncias específicas de cada
caso.
As normas constitucionais singularizam-se por um
conjunto de peculiaridades que influenciam decisiva
mente o trabalho de seus intérpretes . Luís Roberto
Barroso aponta quatro dessas peculiaridades como prin
cipais: a) a superioridade hierárquica; b) a natureza da
61
linguagem; c) o conteúdo específico; d) o caráter po
lítico. 1 2 º Lecionando acerca de tais características, o
autor demonstra como as Constituições tendem à vei
culação de normas principiológicas e esquemáticas, de
textura aberta 1 2 1 e maior grau de abstração, conferindo
ao intérprete um significativo espaço de conformação. 1 22
A jurisdição constitucional, assim, embora desem
penhando uma tarefa jurídica, e não política, 1 23 exerce
sempre um papel construtivo e concretizador da vontade
constitucional. Por mais fiel que seja aos cânones de
racionalidade, objetividade e motivação, exigíveis de
qualquer decisão judicial, a justiça constitucional jamais
neutraliza inteiramente a influência dos fatores políticos
no desempenho do seu mister. 1 2 4
Curiosamente, esta circunstância foi argutamente
captada na obra de Hans Kelsen, cujo principal esforço
teórico foi o de conferir à dogmática jurídica um esta-
62
tuto científico. 1 25 O normativismo jurídico1 por ele de
senvolvido1 representou a radicalização do positivismo
e1 simultaneamente1 o seu esgotamento. 1 2 6
Em sua conhecida formulação sobre a estrutura do
ordenamento jurídico1 Kelsen o concebe como um sis
tema escalonado e hierarquizado1 em que a norma de
escalão inferior tem seu fundamento de validade na
norma de escalão superior. S eguindo uma direção as
cendente1 da base rumo ao topo da pirâmide normativa1
a sentença judicial (norma para o caso concreto) teria
fundamento de validade na lei (norma geral) 1 enquanto
a lei encontraria seu fundamento de validade na Cons
tituição (norma superior que representa o escalão de
direito positivo mais elevado) .
Como fundamento de validade último do ordena
mento jurídico1 situada no vértice da pirâmide1 Kelsen
concebe uma norma fundamental1 que não é posta en
quanto norma de direito positivo1 mas pressuposta . 1 2 7
Para distingui-la da Constituição em sentido jurídico
positivo1 o autor a designa como " Constituição em
sentido lógico-jurídico"1 1 28 cujo preceito seria o seguin-
64
como as leis serão produzidas e, eventualmente, o con
teúdo que haverão de ostentar. O mesmo fenômeno
acontece entre as leis e as sentenças judiciais, numa
relação de determinação ou vinculação .
Essa relação de determinação, entretanto, nunca é
completa - quem o afirma é o próprio Kelsen l 3 2 -
,
pois a norma de escalão superior não pode vincular em
todas as direções e sob todos os aspectos o ato através
do qual é aplicada, seja ele uma lei ou uma decisão
judicial. Existe, assim, uma relativa e inevitável inde
terminação permeando os sucessivos atos de realização
do Direito. E tal indeterminação pode decorrer de uma
deliberação intencional do órgão que editou a norma a
aplicar (imagine-se a norma penal que confere ao juiz
o poder de fixar a pena dentro de certos limites) ou
de uma circunstância não-intencional, como a plurivo
cidade de palavras e expressões normativas, que ofere
cem ao intérprete várias significações possíveis. Deste
modo, segundo Kelsen, "o Direito a aplicar forma, em
todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual
existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é
conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro
deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura
em qualquer sentido possível. " l 33
Aqui se encontra uma distinção fundamental do
normativismo kelseniano em relação às demais escolas
positivistas: sua crítica ao que Kelsen denomina, gene
ricamente, "teoria usual da interpretação" . Pela sua
pertinência ao ponto em estudo, vale conferir o racio
cínio textual do autor vienense :
1 3 2. Idem, p . 364.
1 33 Idem, p . 366.
65
"A teoria usual da interpretação quer fazer crer que
a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer,
em todas as hipóteses, apenas uma única solução
correta (ajustadaJ , e que a 'justeza ' (correçãoJ ju
rídico-positiva desta decisão é fundada na própria
lei. Configura o processo desta interpretação como
se se tratasse tão somente de um ato intelectual de
clarificação e de compreensão, como se o órgão apli
cador do Direito apenas tivesse que pôr em ação o
seu entendimento (razão) , mas não a sua vontade,
e como se, através de uma pura atividade de inte
lecção, pudesse realizar-se, entre as possibilidades
que se apresentam, uma escolha que correspondesse
ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no
sentido do Direito positivo. " 1 34
66
dirigido ao Direito pos1t1vo1 não é um problema de
teoria do Direito1 mas um problema de política do
Direito ( . . . ) Assim como da Constituição1 através de
interpretação1 não podemos extrair as únicas leis cor
retas1 tampouco podemos1 a partir da lei1 por interpre
tação1 obter as únicas sentenças corretas. " 1 35 Ao fim e
ao cabo1 a definição do sentido de uma norma pelo
órgão jurisdicional é produto de um ato de vontade1
balizado pelos lindes que os métodos de interpretação
extraem do enunciado normativo . Trata-se1 em última
análise1 de um "eu quero"1 e não de um "eu sei" -
como dito por Tercio S ampaio Ferraz Junior 1 36 - cuja
força vinculante advém da competência atribuída ao
órgão por outra norma de superior hierarquia.
No que se refere à jurisdição constitucional1 vimos
no capítulo anterior que Kelsen é o precursor da ideia
de um Tribunal1 independente dos Poderes Executivo1
Legislativo e Judiciário1 e especialmente designado para
a guarda da Lei Fundamental. Seu argumento está ba
seado na velha máxima de que ninguém pode ser bom
juiz de si mesmo. Confira-se-lhe o raciocínio:
68
concretização e ponderação ensej a sempre uma larga
margem de participação criativa do intérprete. Por isso
mesmo, o próprio Kelsen reconhece que a função do
Tribunal Constitucional mais se assemelha à de um
legislador negativo, equiparando a atividade de controle
da constitucionalidade a uma modalidade especial de
revogação da lei . 1 3 9
Mas em que medida tem o Tribunal Constitucional
legitimidade para imiscuir-se nos assuntos políticos e
fazer prevalecer suas deliberações sobre aquelas toma
das por representantes eleitos diretamente pelo povo?
Se na jurisdição constitucional tem lugar uma atividade
volitiva, e não meramente cognitiva, estar-se-ia, então,
diante de uma contradição inconciliável com a demo
cracia. Essa questão deu origem à famosa polêmica
travada, durante o primeiro pós-guerra, entre Carl
S chmitt e H ans Kelsen acerca de quem deveria ser o
"defensor da Constituição" .
O cenário político em que se instaura a querela é
decisivo para a sua compreensão: a crise do Estado
Liberal do final dos anos vinte e a ascensão dos Estados
totalitários durante a década de trinta. No modelo
adotado na Constituição austríaca de 1 920, Kelsen acei
ta como um dado prévio e indiscutível a legitimidade
do regime democrático e dos valores subj acentes ao
constitucionalismo moderno. Sua proposta inovadora
seria a defesa de tais valores políticos, admitidos como
evidentes, por meios e mecanismos jurídicos, isto é,
71
norias . Em passagem memorável de seu discurso - que
soa hoje quase como um vaticínio - registrou o Mestre
de Viena:
72
mente forte para obstar uma decisão qualificada
relativa à reforma constitucional. Se se considera
que a essência da democracia reside não no império
absoluto da maioria, mas exatamente no permanente
compromisso entre maioria e minoria dos grupos
populares representados no Parlamento, então repre
senta a jurisdição constitucional um instrumento ade
quado para a concretização dessa ideia. A simples
possibilidade de impugnação perante a Corte Cons
titucional parece configurar instrumento adequado
para preservar os interesses da minoria contra lesões,
evitando a configuração de uma ditadura da maioria,
que1 tanto quanto a ditadura da minoria, se revela
perigosa para a paz social. " 1 4 6
148 . Veja-se, neste sentido, a lição lapidar de Luís Roberto Barroso: "A impos
sibilidade de chegar-se à objetividade plena não minimiza a necessidade de se
buscar a objetividade possível. A interpretação, não apenas do direito como em
outros domínios, j amais será uma atividade inteiramente discricionária ou
puramente mecânica. Ela será sempre o produto de uma interação entre o
intérprete e o texto, e seu produto final conterá elementos objetivos e subje
tivos" (Interpretação e Aplicação da Constituição, ed. cit . , p. 256) .
74
"Todos concordam que a Constituição proíbe certas
formas de legislação ao Congresso e aos legislativos
estaduais. Mas nem juízes do Supremo Tribunal nem
especialistas em Direito constitucional nem cidadãos
comuns conseguem concordar quanto ao que ela proí
be exatamente, e a discordância é mais grave quando
a legislação em questão é políticamente mais contro
vertida e criadora de divergência. Portanto, parece
que esses juízes exercem um poder de veto sobre a
política da nação, proibindo as pessoas de chegar a
decisões que eles, um número ínfimo de nomeados
vitalícios, acham erradas. Como isso pode ser con
ciliado com a democracía?" l 49
75
não apenas na filosofia do Direito como na filosofia
política. A partir do que se convencionou chamar virada
kantiana, 1 5 1 dá-se uma reaproximação entre ética e
Direito, com a fundamentação moral dos direitos hu
manos e o ressurgimento do debate sobre a teoria da
justiça fundado no imperativo categórico, que "deixa
de ser simplesmente ético para se apresentar também
como imperativo categórico jurídico" . 1 52 A ideia de
dignidade da pessoa humana, traduzida no postulado
kantiano de que cada homem é um fim em si mesmo,
eleva-se à condição de princípio jurídico, valor-fonte do
qual decorrem direitos fundamentais do homem que
não podem ser relativizados em prol de qualquer pro
jeto coletivo de bem comum.
Na vertente dita liberal dessa nova fase do Direito
moderno, além de Dworkin, destaca-se a obra de John
Rawls, cujo livro Uma Teoria da Justiça, 1 5 3 lançado em
1 9 7 1 , é considerado o marco inicial do debate pós-po-
76
sitivista no campo da filosofia política e do Direito.
Com o lançamento de O Liberalismo Político, 1 5 4 j á na
década de noventa, atualizam-se e esclarecem-se algu
mas das ideias abordadas por Rawls em seu livro clássico.
Percorrer em detalhe e de forma exauriente as re
flexões tanto de Rawls como de Dworkin é tarefa a
que não se propõe o presente estudo, nem tampouco
as dimensões para ele estabelecidas poderiam compor
tá-la. Cumpre, pois, destacar aquilo que do pensamento
desses autores mais diretamente interessa à temática
da jurisdição constitucional.
Em Rawls, a noção kantiana de "uso público da
razão" - que pressupõe uma comunidade de sujeitos
livres e iguais - é utilizada para definir aquilo que
denomina "elementos constitucionais essenciais" (cons
titutional essentials) . 1 55 Para Rawls tais elementos se
riam de dois tipos:
(I) os princípios fundamentais que especificam a
estrutura geral do Estado e do processo político: as
competências do Legislativo, do Executivo e do Judi
ciário; o alcance da regra da maioria;
(II) os direitos e liberdades fundamentais e iguais
de cidadania que as maiorias legislativas devem respei
tar, tais como o direito ao voto e à participação na
política, a liberdade de consciência, a liberdade de
pensamento e de associação, assim como as garantias
do Estado de Direito. 1 56
Os direitos e liberdades fundamentais têm, no en
tanto, segundo Rawls, caráter inalienável e um status
especial em relação aos demais valores políticos. Tais
1 5 7 . Idem, p. 349.
1 58 . Ricardo Lobo Torres, Os Direitos Humanos e a Tributação. Imunidades e
Isonomia, Editora Renovar, 1 995, p. 55: ( . ) os direitos da liberdade conti
" ..
79
valores políticos básicos, implícitos na cultura política
democrática, em relação aos quais não há divergência
possível. 1 6 1 Daí tais valores serem inscritos na Consti
tuição, situando-se acima das disputas políticas baseadas
no princípio majoritário.
Assim, as capacidades morais de cidadãos livres e
iguais estão na base da ideia de razão pública, que
permite a formulação, por sobre todas as diferenças,
de um consenso sobreposto ( overlapping consensus) acer
ca dos princípios básicos de justiça e dos direitos e
liberdades fundamentais que serão constitucionalizados.
A Constituição assume, como nos albores do libe
ralismo, a feição de uma Constituição-garantia, que
especifica um procedimento político justo e incorpora
as restrições pelas quais os direitos e liberdades funda
mentais serão protegidos e terão assegurada a sua prio
ridade. "O resto fica a cargo do estágio legislativo. Uma
Constituição desse tipo está em conformidade com a
ideia tradicional de governo democrático, ao mesmo
tempo em que abre um espaço para a revisão judicial. " 1 62
Rawls defende o judicial review e o papel da Corte
Constitucional como instituição exemplar da razão pú
blica, 1 63 cumprindo-lhe evitar que a Lei Fundamental
seja corroída pela legislação de maiorias transitórias ou
"por interesses estreitos, organizados e bem posiciona
dos, muito hábeis na obtenção do que querem . " 1 64
Embora contramaj oritário em relação à lei ordinária -
de vez que pode vir a anulá-la - o papel da Corte
1 6 5 . Idem, p. 288.
1 66. V Eduardo García de Enterría, ob. cit., p. 20 1 : "En efecto, si en su función
interpretativa de la Constitución el pueblo, como titular dei poder constituyen
te, entendiese que e! Tribunal había llegado a una conclusión inaceptable (. . . )
podrá poner en movirniento e! poder de revisión constitucional y definir la
nueva norma en e! sentido que e! constituyente decida, según su libertad
incondicionada. Este mecanismo ha funcionado en América justamente en estos
términos en cuatro ocasiones, en que se ha usado e! amending power, el poder
de enmienda o de revisión constitucional, para 'pasar por encima' (override)
de otras tantas sentencias dei Tribunal Supremo. "
81
dagógico para a cidadania ao situar os valores constitu
cionais no centro do debate político . Confira-se o ra
ciocínio em palavras do próprio Rawls:
11Muitas vezes seu papel obriga a discussão política
a adotar uma forma baseada em princípios, de modo
a tratar a questão constitucional de acordo com os
valores políticos da justiça e da razão pública. A
discussão pública transforma-se em algo mais que
uma disputa pelo poder e por cargos. Ao focalizar a
atenção em questões constitucionais básicas, isso edu
ca os cidadãos para o uso da razão pública e seu
valor de justiça política. " l 6 7
A missão do Tribunal Constitucional se projeta,
assim, para além da mera função de legislador negativo,
guardião da coerência sistêmica do ordenamento jurí
dico . S eu papel é o de articular o debate público em
torno dos princípios constitucionais, constrangendo os
agentes políticos a levá-los em conta no desenrolar do
processo democrático.
A obra de Ronald Dworkin, embora tendo inúmeros
pontos de convergência com as teses de John Rawls,
oferece um importante e original contributo no campo
da hermenêutica constitucional. E, como registra Enri
que Alonso García, é crescente o reconhecimento de
que as discussões sobre a legitimidade e os limites do
judicial review gravitam hoje em torno dos métodos e
limites da interpretação da Constituição. 1 68 Todo o
82
esforço de Dworkin será no sentido de justificar um
papel ativo e engaj ado da jurisdição constitucional me
diante construções teóricas que enfatizam a especifici
dade do seu objeto e o apartam do campo próprio das
escolhas políticas . Pretende ele, como isso, demonstrar
que uma comunidade verdadeiramente democrática não
apenas admite como pressupõe a salvaguarda de posições
contramajoritárias, cuja força obrigatória advém de prin
cípios exigidos pela moralidade política. 1 69
A noção de princípio, acima referida, é de capital
importância para a compreensão do sistema jurídico de
Dworkin, que importa em uma revisão da rígida sepa
ração entre Direito e Moral, cristalizada pelo positivis
mo jurídico. O fundamento metapositivo do Direito é
encontrado no seio do modelo de comunidade que
denomina comunidade de princípios, na qual seus mem
bros, atuando como agentes morais, aceitam que são
governados por princípios comuns e não por regras
forjadas em um compromisso político. 1 7 º Isto significa
que não se está a tratar de uma comunidade geográfica
ou linguística, nem tampouco de uma comunidade li
gada por vínculos emocionais ou convencionais, mas
83
por princípios de conduta compartilhados e endossados
pelos cidadãos.
Tais princípios podem estar - e em geral estão -
incorporados e densificados em normas jurídicas esta
tuídas mediante um processo legislativo autorizado pelo
reconhecimento social, mas as transcendem, sendo até
justificável, sob determinadas circunstâncias excepcio
nais, a desobediência civil como forma de superar a
injustiça de normas contrárias a um princípio transcen
dente. 1 71 Opondo-se frontalmente à concepção norma
tivista (rulebook model) , Dworkin erige um modelo
instituinte de direitos (rights model) , fundados em prin
cípios morais transcendentes e aferidos através da le
gislação e dos precedentes judiciais - e não decorrentes
da legislação e dos precedentes . 1 72
Os direitos fundamentais na visão de Dworkin são,
assim, direitos morais, reconhecidos no seio de uma
comunidade política (comunidade de princípios) cujos
integrantes são tratados com igual respeito e conside
ração (equal protection) . A característica fundamental
do Estado de Direito, segundo sua visão, é o ideal de
igualdade, que fundamenta a crença no valor intrínseco
idêntico de todos os seres humanos . 1 73 Como assinala
Gisele Cittadino, "esta igualdade, que pressupõe os
indivíduos como agentes morais independentes, exige
que direitos fundamentais lhes sejam atribuídos para
84
que tenham a oportunidade de influenciar a vida polí
tica1 realizar os seus projetos pessoais e assumir as
responsabilidades pelas decisões que sua autonomia lhes
assegura. " 1 74
Assim1 a Constituição e seu sistema de direitos
fundamentais incorporam princípios morais1 com os
quais a legislação infraconstitucional e as decisões ju
diciais devem ser compatíveis . Daí advogar Dworkin
uma leitura moral da Constituição1 "que coloque a
moralidade política no coração do direito constitucio
nal . " 1 7 5 Tal concepção pressupõe que o aplicador do
Direito assuma uma postura ativa e construtiva1 carac
terizada pelo esforço de interpretar o sistema de prin
cípios como um todo coerente e harmônico dotado de
integridade . 1 7 6
A integridade a que se refere Dworkin significa
sobretudo uma atitude interpretativa do Direito que
busca integrar cada decisão em um sistema coerente
que atente para a legislação e para os precedentes
jurisprudenciais sobre o tema1 procurando discernir um
princípio que os haja norteado. Ao contrário da herme
nêutica tradicional1 baseada fortemente no método sub
suntivo1 numa aplicação mecânica das regras legais iden
tificadas pelo juiz ao caso concreto1 o modelo constru
tivo de Dworkin propõe a inserção dos princípios1 ao
lado das regras1 como fonte do Direito. Nos chamados
casos difíceis (hard cases) assim entendidos aqueles
-
85
específica, seja por força de aparente antinomia entre
normas - é a interpretação construtiva dos princípios,
e dos direitos dele decorrentes, que fornecerá ao apli
cador do Direito condições de encontrar a "resposta
certa", entendida como a "melhor resposta possível" 1 77
dentro de um processo de argumentação racional.
Neste ponto torna-se imprescindível distinguir os
conceitos de regras e princípios de Direito. As regras
são preceitos jurídicos de reduzido teor de generalidade
a abstração, que indicam claramente suas condições de
aplicação. Sua incidência dá-se sob a forma peremptória
do "tudo ou nada" (all ar nothing) . 1 7 8 Isto é: presentes
determinados pressupostos fáticos, ou a regra incide
plenamente ou sua aplicação é descartada, pela cons
tatação de que os fatos em questão a ela não se sub
sumem. Eventuais conflitos entre regras são resolvidos
pelos critérios clássicos de solução de antinomias: o
critério hierárquico (lex superior derogat inferiori) , o
critério cronológico (lex posterior derogat priori) e o
critério da especialidade (lex specialis derogat genera
li) . 1 79 O que importa, aqui, é que a aplicação de uma
regra ao caso concreto exclui a incidência de qualquer
outra, de tal sorte que, na generalidade dos casos, como
observa argutamente Inocêncio Mártires Coelho, as cha
madas regras de solução de conflitos são invocadas pelos
aplicadores do Direito menos para resolver do que para
declarar inexistentes os conflitos internormativos. 1 80
86
Os princípios, por seu turno, não seguem a mesma
forma de incidência das regras . Com efeito, contêm os
princípios uma certa maleabilidade, a que os doutrina
dores denominam calibragem, decorrente de sua estru
tura aberta e maior grau de abstração. Assim, é juridi
camente possível que dois ou mais princípios conflitan
tes entre si sejam aplicáveis a uma mesma situação
concreta, não podendo o intérprete optar pela incidên
cia exclusiva de um em detrimento do outro. Através
do método hermenêutico da ponderação, 1 8 1 o intérprete
se habilita a aferir, diante de um caso concreto, qual
o "peso" específico que, naquela hipótese, deve ter cada
um dos princípios aplicáveis. É preciso, portanto, buscar
uma otimização na aplicação dos princípios, 1 82 de forma
a permitir a máxima incidência de cada um deles, com
prejuízo mínimo dos demais . Esta a lição precisa de
Ruy S amuel Espíndola:
1 8 1 . Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, ed. cit., p. 26/2 7. Entre nós,
confira-se, sobre o tema da ponderação de princípios, o valioso trabalho de
Daniel Sarmento, A Ponderação de Interesses na Constituição, Editora Lumen
Juris, 2000.
1 82 . Sobre a visão dos princípios como mandados de otimização, naturalmente
circunstanciados por fatores materiais e jurídicos, que devem ser observados
na maior extensão possível, v. Robert Alexy, Sistema Jurídico, Princípios Jurí
dicos y Razón Prática, in Derecho e Razón Prática, Editora Fontamara, 1 993,
p. 1 5 .
87
no caso, o princípio cujo peso foi sobrepujado pelo
outro, que recebeu aplicação, ou ainda, pela metódica
da harmonização ou concordância prática aplicam-se
ambos os colidentes, até o limite das possibilidades
que o peso de cada um comporta. " l 83
88
-, busca-se densificar o ambiente decisório a partir
de princípios. " 1 84
89
desenvolvimento da democracia, tendo cada qual um
âmbito de atuação e uma racionalidade próprios . As
questões de princípio são matérias insensíveis à escolha
ou à preferência da população (choice-insensitive ar
preference-insensitive) sendo1 antes1 imperativos morais
1
90
a habitual clareza, Dworkin expõe assim sua concepção
de democracia:
91
As "condições democráticas" são, assim, os direitos
fundamentais, reconhecidos pela comunidade política
sob a forma de princípios, sem os quais não há cidadania
em sentido pleno, nem verdadeiro processo político
deliberativo. Os direitos fundamentais são, portanto,
uma exigência democrática antes que uma limitação à
democracia.
Em suma: o ideal democrático de autogoverno (go
verno pelo povo) é satisfeito quando o princípio da
maioria é respeitado; nada obstante, o princípio majo
ritário não assegura o governo pelo povo senão quando
todos os membros da comunidade são concebidos e
igualmente respeitados como agentes morais. Dworkin
cita o exemplo dos judeus alemães que não foram
respeitados como membros morais da comunidade po
lítica que, durante o regime nazista, tentou exterminá
los . Embora tivessem eles direito ao voto, o programa
hitlerista e o Holocausto não foram democráticos (no
sentido empregado por Dworkin) , mesmo havendo sido
aprovados pela maioria do povo alemão. 191 Um único
princípio de moralidade política - valor-fonte de todos
os direitos do homem - seria suficiente para j ogar por
terra a legitimidade constitucional de toda a nefanda
legislação aprovada sob o Terceiro Reich: o princípio
da dignidade da pessoa humana.
S eguindo esta mesma linha, embora com fundamen
tação filosófica diversa, o jurista alemão Robert Alexy
sustenta que os direitos fundamentais são compatíveis
com a democracia, mas representam, simultaneamente,
uma desconfiança do processo democrático. São demo
cráticos na medida em que asseguram a existência e
desenvolvimento de pessoas capazes de manter o pro-
1 9 1 . Idem, p . 23.
92
cesso democrático em funcionamento 1 pois sem eles a
democracia fica reduzida a mera figura de retórica. Por
outro lado1 com a vinculação também do legislador1 os
direitos fundamentais são subtraídos do poder decisório
das maiorias parlamentares1 o que reflete a aludida
desconfiança na democracia. 1 92
A existência da jurisdição constitucional como ins
tituição política tem1 precisamente1 a missão - que é1
ao mesmo tempo1 sua fonte de legitimação - de fazer
com que os problemas mais fundamentais1 os conflitos
mais profundos entre o indivíduo e a sociedade sejam
expostos e debatidos como questões de princípio1 e não
definitivamente resolvidos na arena das disputas de
poder. 1 93
93
nesta medida, ela é sempre uma disputa em torno do
princípio da divisão de poderes. 1 94 A assertiva soa quase
tautológica: quanto mais ampla a atividade judicante
da Corte Constitucional, menor o espaço de livre con
formação do Legislativo. 1 9 5 A calibragem exata dessa
distribuição de poder é uma discussão teórica que per
manece em aberto.
Nos Estados Unidos, após dois períodos em que a
Suprema Corte ostentou um perfil nitidamente pro
gressista, l 9 6 com vasta utilização do método de inter
pretação construtivo - que, na doutrina contemporâ
nea, tem em Ronald Dworkin um de seus expoentes
-, articula-se, a partir dos anos oitenta, um amplo
movimento de reação conservadora. 1 97 Difundem-se,
nesse contexto, ideias antagônicas ao ativismo judicial,
que consideram antidemocráticas as construções juris
prudenciais feitas para além do texto literal da Cons
tituição. Segundo a crença de seus expositores, o cons
trutivismo do Tribunal Constitucional acaba por esta
belecer um governo de "guardiões platônicos" - numa
alusão aos reis-filósofos de Platão - que substituem a
vontade dos representantes do povo pelas suas próprias
convicções. 1 9 8
94
O originalismo foi uma corrente doutrinária renas
cida nesse período, precisamente com o projeto de
justificar, no plano teórico, a plataforma política con
servadora de autocontenção judicial (judicial self-res
traint) . A doutrina é fundada no argumento de que o
intérprete da Constituição deve cingir-se, no desempe
nho de seu mister, à busca da intenção original (the
original intent) dos "fundadores" da nação, dos elabo
radores da Carta. Qualquer tentativa de atualização
evolutiva de disposições constitucionais vetustas, segun
do a nova realidade social, é tida pelos originalistas
como ilegítima, pois importaria em uma ação do Judi
ciário não autorizada pela Lei maior na sua vontade
seminal; seria como que um ato praticado ultra vires
mandati . 1 99
Como assinala Luís Roberto Barroso, com a argúcia
de praxe, o originalismo é a patologia da interpretação
histórica, pois nem mesmo o constituinte originário
pode ter a pretensão de aprisionar o futuro. 200 É o
mesmo autor quem cita, como subproduto burlesco do
originalismo, o julgamento, pela Suprema Corte norte
americana, do caso Olmstead vs. United States (2 7 7
U . S . 4 3 8 - 1 92 8 ) , no qual o Chief Justice Taft
considerou que a interceptação telefônica não violava
a 4ª Emenda (que veda provas ilegais e buscas e apreen-
95
sões sem ordem judicial) porque, ao tempo em que
seu texto foi redigido ( 1 7 9 1 ) , não existia telefone. 2 º 1
A tentativa frustrada do Presidente Ronald Reagan
de alçar à Suprema Corte Robert Bork, um dos mais
aguerridos defensores do originalismo - cuja indicação
acabou sendo rejeitada pelo Senado 2 º 2 -, não impediu
que se formasse na Corte, sob a presidência de William
Rehnquist - ele próprio um originalista - uma sólida
maioria conservadora. S ob sua batuta, e após a nomea
ção de diversos juízes de perfil conservador, a Corte
Suprema americana teve significativamente reduzida
sua relevância política e seus julgados já não ostentam
o mesmo caráter quase mítico de antanho. Após o fiasco
das indicações de Robert Bork - rejeitado pelo Senado
- e de Douglas Ginsburg - que renunciou à indicação
após acusações de uso de maconha na juventude - o
Presidente Reagan conseguiu nomear, em 1 98 7 , An
thony Kennedy. Em 1 99 1 , foi a vez de Clarence Tho
mas, hoje o único juiz afrodescendente da Suprema
Corte norte-americana. No governo do presidente re
publicano George W. Bush, Rehnquist, Kennedy, Tho
mas, S calia e O 'Connor formavam a maioria conserva
dora que costuma dominar as votações da Corte em
casos controvertidos . Os dois mandatos consecutivos
conferidos, durante os anos noventa, ao democrata Bill
Clinton - advogado formado pela prestigiosa Faculda
de de Direito da Universidade de Yale e político de
tendência progressista - não contribuíram para o res-
2 01 . Idem, p. 1 2 7 .
202 . Sobre o tema, v . Morton J . Horwitz, The Bork Nomination and American
Constitutional History, Syracuse Law Review nº 39, 1 988, p. 1 .029. Sobre o
mesmo tema, ver também Ronald Dworkin, Freedom's Law, especialmente os
artigos intitulados Bork: The Senate Responsability, p. 265-275 e What Bork's
Defeat Meant, p. 2 76-286.
96
gate do prestígio institucional da Suprema Corte, até
mesmo em razão da vitaliciedade dos seus juízes, que
não permite a renovação periódica de sua composição. 20 3
O atual presidente dos Estados Unidos Barack Obama
- também advogado, formado pela Faculdade de Di
reito da Universidade de Harvard - já indicou, até o
momento, dois membros à Suprema Corte: a Justice
S onia S otomayor, primeira juíza hispano-americana a
chegar à Suprema Corte americana, bem como a Justice
Elena Kagan .
No campo doutrinário, as posições de judicial self
restraint tiveram a sua defesa mais articulada e con
tundente com a obra de John Hart Ely, Democracy and
Dístrust. A Theory of Judicial Review, publicada em
1 980 e já considerada um clássico da literatura consti-
97
tucional norte-americana. A construção teórica de Ely
tem interessado1 inclusive1 à ciência política1 2º4 por
quanto1 ao invés de investir no desenvolvimento de uma
específica hermenêutica para o trato da Constituição1
apta a reduzir o espectro da discricionariedade judicial1
o autor reavalia o papel a ser desempenhado nas socie
dades democráticas pela jurisdição constitucional. 2º5 O
cerne de suas preocupações está sintetizado logo no
intróito de seu conhecido livro:
204 . Robert Dahl, Democracy and its Critics, Yale University Press, 1 989, p.
1 73 e segs.
205. Oscar Vilhena Vieira, ob. cit., p. 2 1 2 .
206. John Hart Ely, Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review, ed.
cit., p. 4/5 . Para uma compreensão crítica, embora resumida, da obra de Ely
em português, v. Jorge Hage Sobrinho, "Democracy and Distrust - A Theory
of Judicial Review" - John Hart Ely: Resumo e Breves Anotações à Luz da
Doutrina Contemporânea sobre Interpretação Constitucional, in Arquivos do
Ministério da Justiça, 4 8 ( 1 86) , jul./dez. 1 995, p. 20 1/22 5 .
98
queles que redigiram a Constituição há mais ·de dois
séculos (mesmo as emendas mais significativas, das
vinte e sete existentes foram promulgadas há muito
1
20 7 . Note-se que a 27" Emenda - segundo a qual toda lei que altere a
remuneração de senadores e deputados só entra em vigor na legislatura seguinte
- foi aprovada pelo Congresso em 1 789, vindo a ser promulgada apenas em
0 7 . 05 . 1 992, quando só então obteve a trigésima oitava ratificação, do Estado
de Michigan. Apenas a título de esclarecimento, para que uma proposta de
emenda se torne parte da Constituição norte-americana, é necessária, nos
termos do art. V, sua aprovação por maioria de dois terços das duas Casas
Legislativas e três quartos das Assembleias Legislativas dos Estados ou pelo
mesmo número de Convenções estaduais especialmente convocadas para este
fim.
208 . John Hart Ely, ob. cit ., p. vii.
2 09 . Sobre o tema, consulte-se a obra primorosa de Anna Cândida da Cunha
Ferraz, Processos Informais de Mudança da Constituição, Editora Max Limo
nad, 1 98 6 .
99
legitimidade como documento político fundamental.
Invocando célebre carta de Jefferson a Madison1 Ely
conclui que a Constituição é patrimônio dos v1vos1 e
não dos mortos. 21 0
Quanto à segunda alternativa1 Ely objeta que1 no
contexto de um Estado que nasceu sob o signo da
democracia1 o conteúdo das normas abertas da Cons
tituição possa ser preenchido segundo valores ditados1
em caráter obrigatório e definitivo1 por uma elite de
poucos juízes não ungidos pelo voto popular e desone
rados da responsabilidade política própria dos repre
sentantes eleitos. Sua tese é a de que as decisões morais
fundamentais numa sociedade democrática devem ser
tomadas pelos representantes do povo1 e não por ma
gistrados a partir de concepções morais supostamente
universais ( como1 v.g. 1 os direitos naturais) ou preten
samente aceitas como um consenso da comunidade.
Em relação aos direitos naturais1 Ely concorda com
Mangabeira Unger em que "todas as tentativas de cons
truir uma doutrina moral e política a partir da natureza
humana falharam. Os fins universais alegados são poucos
e abstratos para dar conteúdo à ideia de bem1 ou eles
são numerosos e concretos para serem verdadeiramente
universais. Deve-se escolher entre a trivialidade e a
implausibilidade" . 2 1 1
No que se refere à tese da existência de princípios
morais1 aceitos e endossados pela coletividade1 e que1
à moda de Rawls e Dworkin1 devem ser tomados em
1 00
conta para pautar a atuação da jurisdição constitucional,
Ely se mostra cético. Dada a multiplicidade de visões
de mundo e concepções sobre o bem e o justo existente
nas sociedades pluralistas, não parece aceitável ao autor
"a noção de um conjunto objetivo de princípios morais
válidos e descobríveis, ao menos não um conjunto de
valores que possa derrogar decisões tomadas por rep
resentantes eleitos pelo povo " . 21 2 Os supostos princípios
consensuais não passariam, no mais das vezes, da pro
j eção de preferências valorativas - conscientes ou não
- dos próprios magistrados.
Assim, descrendo na viabilidade de princípios morais
consensuais ou neutros, 2 1 3 dedutíveis pela razão e sus
cetíveis de fundar um ativismo judicial em termos
consistentes com a democracia, Ely propõe a limitação
do judicial review (judicial self-restraint) a questões
1 01
relativas à preservação da integridade do próprio regime
democrático. Isto é: o papel do Judiciário não seria o
de fazer escolhas substantivas, incluindo a conteudização
de princípios e direitos, tarefa reservada, nos Estados
democráticos, aos agentes políticos investidos pelo voto
popular; sua missão seria a de garantir a lisura dos
procedimentos pelos quais a democracia se realiza. Um
controle, enfim, centrado apenas nas condições de for
mulação do ato legislativo (input) , desprovido de qual
quer pretensão de alcançar o seu resultado substantivo
(outcome) . Para Ely, "apenas uma teoria que enxergue
o controle de constitucionalidade, atribuído aos tribu
nais, como um reforço da democracia, e não como um
guardião superior que arbitra quais resultados devem e
quais não devem ser admitidos, será compatível com a
própria democracia . " 21 4
A inspiração declarada d a tese advém d a famosa
nota de rodapé nº 4 do voto proferido pelo Justice
Harlan Stone no caso United States v. Carolene Products
Co. , 2 1 5 julgado em 1 93 8 pela Suprema Corte . Tal nota
aponta como que um itinerário a ser percorrido por
um Tribunal Constitucional na aferição da validade de
qualquer lei: (I) os juízes devem se ater, o quanto
possível, ao texto constitucional; (II) devem avaliar se
os canais de participação política que levaram à elabo
ração da norma legal estavam abertos; (III) por fim,
devem verificar se a norma em questão discrimina
grupos minoritários, levando à fragilização do processo
democrático.
1 02
Na v1sao de Ely, a Constituição é um documento
cuj a finalidade precípua é de natureza procedimental,
destinada a viabilizar que cada geração se autogoverne,
consoante as decisões da maioria. Não contém ela,
assim, um quadro de valores a ser descoberto; ao con
trário, estabelece apenas os meios de chegar a tais
valores. A essência da Constituição seria, portanto, a
disciplina do procedimento democrático. O regime de
mocrático, no entanto, pressupõe que todo cidadão
deva ser tratado com igual respeito e que as minorias
tenham assegurada a sua subsistência. No pensamento
do autor norte-americano1 a missão da jurisdição cons
titucional consistiria em velar por tais pressupostos
procedimentais da democracia. 2 1 6
Assim1 o controle de constitucionalidade deve preo
cupar-se fundamentalmente com a preservação das li
berdades que preservem abertos os canais da partici
pação política, tais como as liberdades de expressão1
de consciência1 de associação e o voto universal1 secreto,
igualitário e periódico. Qualquer bloqueio nos canais
da mudança política, de molde a perpetuar determina
dos grupos no poder ou dele alijar sistematicamente
outros1 compromete o bom funcionamento do regime
democrático. Além disso1 cabe à Corte Constitucional
facilitar a representação das minorias, sustando leis que
exibam caráter discriminatório e, como tal, representem
risco para a higidez do sistema representativo. Nestes
casos1 a maioria política não merece confiança1 pois
seus interesses podem colocar em xeque a própria de-
216.Embora não haja uma referência sequer à obra de Kelsen no livro de Ely,
é de se assinalar a precedência do jurista austríaco na associação do papel das
Cortes Constitucionais à defesa das minorias e, via de consequência, do próprio
processo democrático. A este propósito, v. seção III.2, supra.
1 03
mocracia: assim, e só assim, no pensamento de Ely, se
legitima a justiça constitucional em um regime demo
crático.
Oscar Vilhena Vieira figura exemplo pertinente de
uma tal situação, colhida da realidade política brasileira:
1 04
cional nas bases propostas em sua teoria, já que impor
tavam na exclusão social, vitimização e extermínio de
minorias isoladas.
Inobstante seu louvável esforço intelectual no sen
tido de tornar o instituto da judicial review compatível
com a democracia, a obra de Ely apresenta várias de
ficiências teóricas e algumas inconveniências práticas.
Crítica arguta e consistente à sua teoria é formulada
por Ronald Dworkin no ensaio O fórum do princípio,
publicado na coletânea intitulada Uma Questão de Prin
cípio. 220
Dworkin concorda com a tese de que as decisões
políticas devem ser tomadas, em regra, pelos agentes
eleitos e que o controle judicial deva centrar-se nos
critérios que presidiram a elaboração das leis, e não nos
seus resultados. Discorda, entretanto, de que o ideal
abstrato de democracia - tão invocado por Ely -
possa oferecer sustentação maior para uma doutrina da
jurisdição constitucional baseada no controle do pro
cesso do que para uma baseada nos resultados. Na
verdade, Dworkin procura demonstrar a inviabilidade
de que um judicial review focado no processo de feitura
das leis possa prescindir de considerações de índole
substantiva.
Utilizando o argumento do próprio Ely - segundo
o qual não há consenso sobre que princípios morais
devem prevalecer, o que inviabilizaria um controle subs
tantivo - Dworkin demonstra que também quanto ao
significado da democracia, e aos direitos processuais
dela decorrentes, existem divergências . Assim, a escolha
1 05
entre diferentes acepções de democracia é uma escolha
necessariamente substantiva. 2 2 1
Como visto na seção anterior (III . 3 , supra) , Dworkin
propõe um modelo de democracia constitucional em
oposição à democracia majoritária, baseando-se, justa
mente, em determinados direitos que, por uma questão
de princípio, devem ser assegurados às pessoas, com
prevalência sobre as políticas públicas decididas pelas
maiorias eleitorais. Uma teoria da democracia pressu
põe, assim, uma teoria dos direitos fundamentais do
homem, que funcionem como trunfos contra maiorias
irresponsáveis, mas, ao mesmo tempo, como princípios
deontológicos inerentes à própria noção de regime de
mocrático. 2 2 2
A despeito de considerar inevitável que a Corte leve
em conta aspectos substantivos da lei no exercício do
controle da constitucionalidade, isto não significa que
deva aquilatar o grau de utilidade de seus resultados .
Esta é uma consideração e uma avaliação que compete
aos representantes eleitos pelo povo. Daí a importância
da distinção entre argumentos de princípio (dos quais
se extraem razões para a afirmação de direitos) e ar
gumentos de política (dos quais se extraem razões para
medidas utilitárias, voltadas ao bem-estar geral) , apre
sentada na seção anterior, que estabelece a linha divi
sória entre os campos de atuação da jurisdição consti
tucional e do parlamento.
Não obstante as críticas, a compreensão procedimen
talista da jurisdição constitucional - que, de resto,
1 06
reflete uma visão procedimental da própria Constitui
ção - foi recebida com interesse por teóricos da filo
sofia política como Robert Dahl e Jürgen Habermas .
Sua preocupação fundamental é a de "buscar a cons
trução de procedimentos éticos de deliberação1 dada a
impossibilidade da revelação de valores éticos a prio-
. ,, 22
n . 3
1 07
da convergência preliminar em relação a convicções
éticas consuetudinárias, mas sim de pressupostos co
municativos e procedimentos, os quais permitem que,
durante o processo deliberativo, venham à tona os me
lhores argumentos . 22 7 Assim, n a perspectiva haberma
siana, os direitos fundamentais do homem não são pro
duto de uma revelação transcendente (como na doutrina
jusnaturalista) , nem de princípios morais racionalmente
endossados pelos cidadãos (como propõe, kantianamen
te, Dworkin) , mas consequência da decisão recíproca
dos cidadãos livres e iguais de legitimamente regular
as suas vidas por intermédio do direito positivo. O
papel de tais direitos básicos é o de assegurar a auto
nomia pública e privada dos cidadãos para que estes
possam deliberar num ambiente de liberdade e igual
dade, no qual a única forma de coerção seja a do melhor
argumento.
O Direito legítimo será aquele em que os cidadãos
participam não apenas como destinatários, mas também
como autolegisladores. Sua teoria pressupõe, assim, uma
justificação procedimental - e não metafísica - dos
direitos fundamentais, que passam a ser compreendidos
como condições viabilizadoras da participação dos ci
dadãos na formação do consenso democrático. Com a
clareza e o apuro didático possíveis - e que ficam
muito aquém do desejável 2 2 8 assim Habermas ex-
-1
1 08
plica as relações entre a teoria do discurso, a democracia
e os direitos fundamentais:
infólios, aquela ingénua interrogação dos Shadoks: 'Pourquoi faire simple, quand
on peut faire compliqué7' E com toda a humildade, sincera humildade, e sem
a mais leve fímbria de demagogia (que de facto poderia esta insinuar-se, em
tempos de incultura generalizada) somos levados a questionar-nos em surdina,
com medo até de proferirmos heresia inapelável: não haverá contradição entre
pregar-se a comunicação e ser-se afinal tão impenetravelmente prolixo7"
1 09
farma um processo circular, no qual o código do
direito e o mecanismo para a produção de direito
legítimo, portanto o princípio da democracia, se cons
tituem de modo cooriginário . " 229 (grifos do original) .
111
não apenas como destinatários das leis, mas também,
à moda de Rousseau, como seus autores .
Por fim, surge uma quinta categoria de direitos, que
proporcionam as condições materiais para o exercício
dos direitos anteriores: (5) direitos fundamentais a
condições de vida garantidas social, técnica e ecologi
camente, na medida em que isso for necessário para
um aproveitamento, em igualdade de chances, dos di
reitos mencionados de ( 1 ) até ( 4) . 234 Neste grupo se
incluem os direitos econômicos e sociais básicos, essen
ciais à dignidade humana, que constituiríam o chamado
mínimo existencial. 235 Sua inclusão no elenco de direitos
fundamentais se justifica na medida em que constitui
verdadeira condição das demais liberdades civis e po
líticas, sobretudo nos países em desenvolvimento. 23 6
Habermas procura, assim, compatibilizar a soberania
popular com os direitos humanos, pois estes são vistos
como "condições necessárias que apenas possibilitam o
exercício da autonomia política; como condições pos
sibilitadoras, eles não podem circunscrever a soberania
do legislador, mesmo que estej am à sua disposição.
Condições possibilitadoras não impõem limitações àqui
lo que constituem" _ 237
Deste modo sendo condições necessárias do pro
1
234 . Idem.
235 . V., sobre o tema, Ricardo Lobo Torres, Os Direitos Humanos e a Tribu
tação. Imunidades e Isonomia, ed. cit. , p. 1 2 1 e segs.
236 . Neste sentido, v. Carlos Santiago Nino, Fundamentos de Derecho Consti
tucional. Análisis Filosófico, Jurídico y Politológico de la Práctica Constitucio
nal, Editorial Astrea, 1 992, p. 705/706.
237 . Jürgen Habermas, Direito e Democracia entre Facticidade e Validade, vol.
I, p. 1 65 .
1 12
a maioria democraticamente eleita não tem a prerro
gativa de inviabilizar o próprio procedimento democrá
tico. 238 Aqui se situa o locus de atuação legítima da
jurisdição constitucional: a proteção do sistema de di
reitos que possibilita a autonomia privada e política dos
cidadãos, condição da gênese democrática das leis. Em
palavras do próprio Habermas:
11(. .) o tribunal constitucional precisa examinar os
•
1 14
Para que o Tribunal Constitucional não se converta
em uma instância autoritária de poder1 Habermas res
gata a ideia da sociedade aberta de intérpretes da Cons
tituição1 243 formulada por Peter Haberle1 segundo a
qual o círculo de intérpretes da Lei Fundamental deve
ser elastecido para abarcar não apenas as autoridades
públicas e as partes formais nos processos de controle
de constitucionalidade1 mas todos os cidadãos e grupos
sociais que1 de uma forma ou de outra1 vivenciam a
realidade constitucional. 244
Como destinatários e autores do seu próprio Direito1
os cidadãos devem poder participar e ter voz ativa nos
processos de interpretação constitucional (a cidadania
procedimentalmente ativa1 como pretende Haberle) 1
não podendo ser ignorados pelos operadores oficiais.
Assim1 embora à Corte Constitucional se cometa a
palavra final sobre a interpretação da Constituição1
suas decisões devem ser amplamente fundamentadas e
expostas ao debate público1 pois a crítica advinda da
esfera pública Uuristas1 operadores do direito1 políticos1
jornalistas1 profissionais liberais em geral) possui um
11 5
potencial racionalizador e legitimador. 245 Aliás, esta
mesma ideia já era defendida, ainda em 1 959, por Otto
Bachof, para quem a legitimação da jurisdição consti
tucional seria obtida através de um permanente diálogo
com a opinião pública e, sobretudo, com a comunidade
jurídica. 2 4 6
Costuma-se repetir, de forma até mecânica, que
"decisão judicial não se critica, apenas se cumpre" . Tal
frase, em sua despretensão, revela a herança positivista
e autoritária de nossa tradição jurídica. Por certo, o
dever de submissão às decisões emanadas do Poder
Judiciário - e mesmo de um Tribunal Constitucional
- não importa necessariamente a sua aceitação acrítica
por quem quer que seja. Decisão judicial se critica,
sim: nos autos, por meio do recurso cabível, nas obras
doutrinárias, nos bancos universitários, na imprensa ou
até em sedes menos ortodoxas, como conselhos comu
nitários e associações de moradores.
Em se tratando de processos de jurisdição constitu
cional abstrata, cujos efeitos se irradiam, via de regra,
por uma infinidade de destinatários, afigura-se ainda
mais conveniente uma abertura interpretativa que possa
alcançar o maior espectro possível de interessados. Afi
nal de contas, como assinala Inocêncio Mártires Coelho,
"nunca é demais relembrar que no âmbito da jurisdição
constitucional, aqueles que não participarem da relação
processual, que não assumirem qualquer posição no
processo ou que, até mesmo, ignorarem a sua existência,
poderão considerar-se políticamente não alcançados pe
los efeitos da coisa julgada e, por via de consequência,
1 16
autorizados a ignorar a força normativa da Constitui
ção " . 247 O desenvolvimento do tão almejado sentimento
constitucional passa, necessariamente, por uma integra
ção cada vez maior da cidadania no processo de reve
lação e definição dos significados constitucionais pre
valecentes.
A fonte última de legitimação da justiça constitu
cional se encontra no "plebiscito diário " a que estão
sujeitas suas decisões e na sua capacidade de gerar
consenso, de forma a que sejam aceitas como justas e
extraídas dos valores constitucionais básicos. 2 4 8 Nessa
mesma linha de pensamento, Robert Alexy sustenta
que o Tribunal Constitucional se legitima quando a
coletividade o aceita como instância de reflexão racional
do processo político. Se um processo de reflexão entre
coletividade, legislador e Tribunal Constitucional se
estabiliza duradouramente - isto é, quando a Corte
Constitucional adquire credibilidade política e social
-, pode-se afirmar que a institucionalização dos direitos
do homem deu certo, no âmbito do Estado Democrático
de Direito. 2 4 9
À guisa de conclusão, é possível afirmar que as
construções teóricas de Dworkin e H abermas acerca
da jurisdição constitucional, embora partindo de fun
damentos filosóficos diversos, acabam por apresentar
vários pontos de intersecção, além de outros que se
117
afiguram complementares. Importa ressaltar, para os
fins aqui visados, que direitos fundamentais e demo
cracia, tanto para Dworkin como para Habermas, con
vivem numa relação de implicação recíproca. Assim,
parece correta a assertiva de que só há democracia onde
se respeitam os direitos fundamentais do homem; in
versamente, só há espaço para a afirmação e efetivação
de tais direitos no âmbito de um regime democrático.
S ão faces da mesma moeda.
Assim, não há qualquer inconsistência lógica em se
sustentar que à jurisdição constitucional compete a
guarda tanto dos direitos fundamentais (proposta de
Dworkin) como do procedimento democrático (tese de
Habermas) . Ao revés, tais funções, longe de serem
antagônicas, são compatíveis e complementares . Em
muitos casos1 na verdade1 superpõem-se.
É louvável o esforço das teorias contemporâneas
sobre democracia e direitos fundamentais no sentido
do balizamento de um âmbito próprio de atuação da
jurisdição constitucional, que a torne compatível com
o sistema de separação e harmonia entre os poderes.
Mais do que meros corretivos liberais do princípio
majoritário1 os direitos fundamentais se afirmam1 ho
diernamente1 como condições estruturantes da própria
democracia; devem eles1 por isso1 ficar à margem das
disputas políticas1 sob a proteção de um órgão inde
pendente e capaz de subordinar os demais poderes à
autoridade moral e intelectual de suas decisões . Por
evidente1 numa sociedade aberta e pluralista1 tais de
cisões 1 embora definitivas, submetem-se, sempre1 à crí
tica intersubjetiva, não apenas dos operadores profis
sionais do Direito como de todo e qualquer cidadão
interessado.
Por outro lado1 o desenvolvimento de uma herme
nêutica especificamente constitucional1 disposta a con-
1 18
ter, em limites racionais, a discricionariedade judicial,
também tem contribuído, a seu turno, para conferir
maior consistência à atividade dos juízes constitucionais.
O projeto de juridicização da realidade política não se
esgota na promulgação de uma Constituição; é na prá
tica diuturna das Cortes Constitucionais que ele se
completa, contribuindo para a racionalização do debate
político e para que algumas questões tradicionalmente
resolvidas no campo das disputas de poder sejam tra
tadas, enfim, como questões de justiça. 2 5 0
Parafraseando Claude Lefort, a ideia moderna de
democracia constitucional nos convida a substituir a
noção de um regime fundado na legitimidade da Cons
tituição e do Tribunal Constitucional, pela noção de
um regime fundado na legitimidade de um debate sobre
o que é legítimo e o que é ilegítimo - um debate
necessariamente sem garantidores e sem fim. 2 5 1 É dizer:
o Tribunal Constitucional não pode ser visto como "o
garante" dos direitos fundamentais e da democracia.
Seu papel é o de ser uma instância de reflexão racional
sobre a legitimidade das decisões da maioria e, no limite,
sobre a legitimidade das suas próprias decisões. A maior
contribuição de uma Corte Constitucional ao desenvol
vimento civilizatório não está na verdade ou bondade
intrínseca de seus julgados, mas na forma pela qual eles
energizam o diálogo público e incrementam o seu grau
de racionalidade. Acreditamos que os juízes possam
fazê-lo melhor, atuando de forma paralela e comple
mentar aos agentes políticos eleitos, por razões de fi-
1 19
losofia política, mas também por razões empíricas e
históricas.
De todo modo, há quem entenda que os Tribunais
Constitucionais não são mais do que um atavismo pla
tônico, uma versão rediviva da República de reis-filó
sofos, produto da patética esperança humana de que,
um dia, a verdade e o saber prevalecerão sobre o poder.
Assim, a questão da legitimidade democrática dos Tri
bunais Constitucionais, provavelmente, nunca deixará
de inscrever-se entre as aporias recorrentes da filosofia
política e da doutrina constitucional. 2 5 2
1 20
Capítulo IV
121
imperial não contemplou qualquer sistema de controle
judicial da constitucionalidade das leis . Em seu art. 1 5 1
nºs 8° e 9°1 outorgava ao Poder Legislativo a atribuição
de fazer leis1 interpretá-las1 suspendê-las e revogá-las1
bem como velar na guarda da Constituição . Consagra
va-se1 assim1 no Direito Constitucional brasileiro1 ao
menos em termos ideais1 a supremacia do Parlamento1
e não a da Constituição. 253
A existência do Poder Moderador1 "chave de toda
a organização política" 1 como proclamava a Constituição
de 1 8241 longe de atenuar1 antes agravava o desprestígio
institucional da Lei Maior. Isto porque1 nos termos do
seu art. 98 - e refletindo a influência das ideias de
Benjamin Constant1 já aqui anteriormente expostas (v.
capítulo II1 supra) -1 ao Imperador cumpria resolver
os conflitos entre os Poderes1 tarefa levada a cabo1
evidentemente1 no terreno político1 e não jurídico. Por
tanto1 durante o período imperiat não se reconhecia
aos juízes o poder de recusar aplicação aos atos do
Parlamento que contraviessem ao texto constitucio
nal. 25 4
A conhecida influência do direito norte-americano
sobre os artífices da Constituição republicana1 especial
mente Rui Barbosa1 foi decisiva para a introdução do
controle judicial difuso da constitucionalidade entre
1 22
nós. 255 Embora alguns autores cheguem a questionar a
originalidade histórica do judicial review1 25 6 fato é que
o caso Marbury vs. Madison1 julgado em 1 803 pela
Suprema Corte dos Estados Unidos1 entrou para a
história como o primeiro precedente da proclamação
do poder dos juízes de deixar de aplicar as leis votadas
pelo Congresso quando incompatíveis com a Constitui
ção (v. capítulo II1 supra) .
O Direito Constitucional brasileiro adota1 desde a
promulgação da Carta de 1 89 1 , a técnica da aferição
incidental da constitucionalidade das leis pelos órgãos
do Poder Judiciário . Em caso de incongruência entre a
lei e a Constituição1 reconhece-se a juízes e tribunais
o poder não apenas de conhecer do incidente de incons
titucionalidade1 mas também o de resolvê-lo; isto é1
têm eles o poder de afastar a aplicação da lei reputada
inconstitucional na solução dos litígios concretos sub
metidos à sua cognição.
Tal sistema é usualmente denominado incidental ou
difuso1 como se esses adjetivos fossem sinônimos1 o
que não é correto. Com efeito1 nem todo sistema de
controle incidental atribui difusamente aos órgãos ju
risdicionais competência para decidir o incidente de
inconstitucinalidade . Em vários países1 como já visto
precedentemente1 os juízes têm o poder de apenas
conhecer e suscitar o incidente1 elevando-o à apreciação
da Corte Constitucional; e a esta se reserva1 em caráter
1 23
concentrado1 a competência para dirimir as questões de
constitucionalidade (v. capítulo II1 supra) . Assim1 o
correto é dizer que com a Constituição republicana de
1 89 1 foi introduzido 257 no Brasil um sistema de controle
judicial incidental e difuso da constitucionalidade das
leis.
Não se deve olvidar1 entretanto1 que o referido
sistema foi plagiado da matriz norte-americana1 vincu
lada à tradição anglo-saxônica da common law. Assim1
representando embora inegável avanço1 do ponto de
vista democrático1 pelo acesso direto à Constituição
que proporciona às partes em litígio e aos juízes e
tribunais1 tal sistema exibiu1 desde logo1 algumas defi
ciências e outras tantas inconveniências1 decorrentes de
sua adoção em um país herdeiro da tradição jurídica
romano-germânica.
A divergência de entendimentos entre juízes e mes
mo1 por vezes1 entre tribunais1 associada à inexistência
de um sistema de vinculação aos precedentes1 como o
stare decisis1 no direito anglo-saxônico1 sempre foi fonte
geradora de incerteza e insegurança jurídicas. Por outro
lado1 o sistema não oferecia solução para o problema
da multiplicidade de demandas idênticas1 fundadas na
mesma questão constitucional. De fato1 como a lei
continuava formalmente em vigor (on the books) mesmo
após haver sido declarada inconstitucional1 inclusive
pelo Supremo Tribunal Federal1 não se evitava a pro
liferação de tantas ações quantos fossem os interessados
naquela matéria. 25 8
1 24
A Constituição de 1 93 4 pretendeu criar um corretivo
para o sistema de controle puramente difuso até então
adotado, atribuindo, em seu art. 9 1 , inciso IV, compe
tência ao Senado Federal para suspender, no todo ou
em parte, a execução de ato jurídico declarado incons
titucional pelo Supremo Tribunal Federal. Procurou-se,
assim, dar efeito geral às decisões judiciais de incons
titucionalidade, corrigindo os inconvenientes acima
apontados . 259
Após o eclipse autoritário do Estado Novo, sob cuja
égide o Presidente G etúlio Vargas chegou a editar De
cretos reafirmando a validade de textos de lei declarados
inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, 260 a
Constituição de 1 946 restaura a tradição do controle
judicial no Direito brasileiro . 261 A par da manutenção
do sistema difuso e da competência do Senado Federal
para suspender a execução de atos declarados incons
titucionais pelo Supremo Tribunal Federal, instituiu-se
a chamada representação interventiva, que permitia a
arguição, pelo Procurador-Geral da República, da in
compatibilidade de atos normativos estaduais com os
chamados princípios constitucionais sensíveis . 262
1 25
Tal instrumento abriu caminho para a adoção, entre
nós, do controle abstrato de normas, eis que se tratava
de incidente suscitado independentemente da instau
ração de uma lide concreta e cujo escopo essencial era
a suspensão da eficácia do ato impugnado. 2 6 3 De fato,
o art. 1 3 da Constituição de 1 946 dispunha que o
Congresso Nacional deveria cingir-se a suspender a
eficácia do ato atacado na representação interventiva
- ao invés de chancelar o pedido de intervenção -,
caso tal medida fosse suficiente para reconduzir a si
tuação à normalidade .
Somente com o advento da Emenda Constitucional
nº 1 6, de 26 de novembro de 1 96 5 , é que foi introduzido
no Brasil o controle abstrato da constitucionalidade de
normas federais e estaduais, nos mesmos moldes da
representação interventiva. Essa mesma Emenda intro
duziu, no art. 1 24, inciso XIII, da Constituição de 1 946,
a possibilidade de o legislador instituir processo de
competência originária dos Tribunais de Justiça dos
Estados para a declaração de inconstitucionalidade de
lei ou ato normativo estadual ou municipal em face da
Constituição do Estado-membro.
Era, portanto, introduzido no Brasil o sistema de
controle abstrato da constitucionalidade, inspirado no
modelo idealizado pelo gênio de Hans Kelsen e con
substanciado na Constituição austríaca de 1 92 0 (v. ca
pítulo II, supra) . Conferia-se ao Procurador-Geral da
República a iniciativa exclusiva para deflagrar, perante
127
requerimento para o ajuizamento de representação por
inconstitucionalidade1 dispunha o Procurador-Geral da
República de uma ampla margem de discricionariedade
na apreciação da plausibilidade da demanda1 o que1 no
final das contas1 restringia significativamente o acesso
de autoridades públicas e da sociedade civil em geral
à prestação jurisdicional da Suprema Corte.
Vale lembrar1 por oportuno e relevante1 que até o
advento da Constituição de 1 98 8 o Procurador-Geral
da República era nomeado e exonerado ad nutum pelo
Presidente da República1 sendo certo que a Procuradoria
Geral da República - instituição que lhe incumbia
chefiar - acumulava as funções de Ministério Público
Federal com a representação judicial da União Federal.
Esta dupla feição do cargo de Procurador-Geral da
República1 com certa submissão funcional à Chefia do
Poder Executivo1 explica1 de certo modo1 a timidez e
parcimônia com que a representação por inconstitucio
nalidade foi utilizada até 1 98 8 . Pode-se mesmo dizer
que a deflagração da jurisdição constitucional abstrata
foi até então1 no Brasil1 uma questão de Estado, da qual
os cidadãos estavam completamente alij ados . Um caso
exemplar e emblemático de sociedade fechada de in
térpretes da Constituição, na qual o cidadão é reduzido
à condição de mero espectador passivo das interpreta
ções ditadas pelos tradutores oficiais da vontade cons
titucional.
Para complementar esse quadro de autoritarismo
institucional, a Emenda C onstitucional nº 0 7 1 de
1 3 .04. 77 (conjunto de medidas conhecidas como pacote
de abril) , instituiu, no art. 1 1 9, inciso I 1 da Constituição
de 1 96 7/69, a alínea "0"1 o instituto que ficaria conhe
cido como avocatória. Tal dispositivo permitia que o
Supremo Tribunal Federal deferisse a avocação, a pe
dido do Procurador-Geral da República, de causas en-
1 28
volvendo perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à
segurança ou às finanças públicas, para que se suspen
dessem os efeitos da decisão proferida e para que o
conhecimento integral da lide lhe fosse devolvido. Tal
expediente foi largamente utilizado, durante o regime
de exceção, para suspender decisões "jurídicas" à luz
de argumentos políticos, conforme a conveniência dos
governantes de plantão. 266
A mesma Emenda Constitucional nº 07 / 7 7 instituiu
a representação para fins de interpretação de lei ou ato
normativo federal ou estadual, posteriormente extinta,
e encerrou a controvérsia sobre a possibilidade da con
cessão de liminar em representação de inconstitucio
nalidade, reconhecendo-a de modo expresso.
Somente após o ocaso da ditadura militar, a reto
mada da democracia e a instauração de um novo pacto
constitucional, a legitimidade do sistema político é re
cuperada, criando o ambiente propício para a construção
de uma nova e efetiva jurisdição constitucional no país .
129
lização da iniciativa para a deflagração do controle
abstrato da constitucionalidade . Confira-se, a este pro
pósito, passagem significativa da lavra de Luís Roberto
Barroso:
267. Luís Roberto Barroso, Dez Anos da Constituição de 1 988 (Foi bom pra
você também7J , Revista de Direito Administrativo nº 2 1 4, 1 998, p. 1 5 .
1 30
aferição da constitucionalidade das leis federais me
diante requerimento do Governador do Estado e a
aferição da constitucionalidade das leis estaduais,
mediante requerimento do Presidente da República.
A propositura da ação pelos partidos políticos com
representação no Congresso Nacional concretiza, por
outro lado, a ideia de defesa das minorias, uma vez
que se assegura até às frações parlamentares menos
representativas a possibilidade de arguir a inconsti
tucionalidade de lei. " 268
131
lante1 a constitucionalidade de determinada lei ou ato
normativo. Por tal decisão1 a presunção de constitucio
nalidade da lei1 que é relativa (juris tantum) 1 torna-se
absoluta (juris et de jure) 1 impedindo a sua inobservân
cia1 sob o argumento de inconstitucionalidade1 por
quem quer que seja1 inclusive pelos demais órgãos do
Poder Judiciário e pelo Poder Executivo. A mesma
Emenda nº 03/93 deslocou para o § 1 ° do art. 1 02 da
Constituição dispositivo que já constava do seu pará
grafo único1 relativo à arguição de descumprimento de
preceito fundamental. Tal· instituto1 dada a dicção la
cônica do dispositivo constitucional mencionado1 per
maneceu como um enigma na doutrina constitucional
brasileira até a edição da Lei nº 9 . 8 8 2 1 de 3 de dezembro
de 1 9991 que pretendeu regulamentá-lo.
A notável produção jurisprudencial do STF em ma
téria de jurisdição constitucional à luz da Constituição
de 1 98 8 revela um significativo avanço do sentimento
constitucional no país. 26 9 Apenas à guisa de ilustração1
em pesquisa levada a efeito em maio de 2 0001 o Su
premo Tribunal Federal havia julgado1 desde a promul
gação da Carta até então (em 1 2 anos 1 portanto) 2 . 2 1 2 1
269 . Com grande entusiasmo Luís Roberto Barroso saúda tal avanço, in verbis:
"O surgimento de um sentimento constitucional no P aís é algo que merece ser
celebrado. Trata-se de um sentimento ainda tímido, mas real e sincero, de
maior respeito e até um certo carinho pela Lei Maior, a despeito da volubilidade
de seu texto. É um grande progresso. Superamos a crônica indiferença que,
historicamente, se manteve em relação à Constituição. E para os que sabem,
é a indiferença, não o ódio, o contrário do amor. ", Dez Anos da Constituição
de 1 988 (Foi bom pra você também?) , Revista de Direito Administrativo nº
2 1 4, 1 998, p. 2 5 .
270. Inocêncio Mártires Coelho, Constitucionalidade/Inconstitucionalidade:
uma questão política?, in Revista Jurídica Virtual nº 13, www . planalto.gov.br.,
junho/2000, p. 4 .
1 32
nos 2 2 anos anteriores, entre 1 966 e 1 98 7, julgara
apenas 7 2 6 processos de igual natureza. 2 7 1
Essa crescente judicialização do controle da cons
titucionalidade acabou por gerar, de outro lado, inú
meras discussões sobre os seus aspectos processuais,
com ênfase nas suas especificidades em relação aos
processos intersubjetivos.
A Emenda Constitucional nº 0 1 /69 previa, em seu
art. 1 1 9, § 3°, alínea "c", competência legislativa ex
clusiva do Supremo Tribunal Federal para dispor sobre
o procedimento aplicável aos processos de sua compe
tência originária e recursal. Assim, só o Regimento
Interno da Corte podia dispor sobre o processo de
controle abstrato da constitucionalidade.
Com o advento da Constituição de 1 988, tal com-·
petência legislativa do Supremo Tribunal Federal de
sapareceu, passando a matéria à competência do legis
lador ordinário (CF, art. 2 2 , inciso I) . O Regimento
Interno da Corte foi recepcionado, no que material
mente compatível com a nova Carta, com o status de
lei ordinária. Todavia, suas disposições mostraram-se
obsoletas e insuficientes face à extensão alcançada pelo
controle abstrato de constitucionalidade após o advento
da Constituição de 1 98 8 . Por outro lado, as leis exis
tentes sobre a matéria - Lei nº 2 .2 7 1 , de 2 2 . 07 . 1 95 4
e Lei nº 4 . 33 7, d e 0 1 .06 . 1 964 também já não con
-
133
Visando a colmatar essa lacuna e a consolidar a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na matéria1
foi apresentado ao Congresso Nacional1 por iniciativa
do Poder Executivo1 o Proj eto de Lei nº 2 . 960/971
dispondo sobre o processo e julgamento da ação direta
de inconstitucionalidade e da ação declaratória de cons
titucionalidade. O anteprojeto foi o resultado do tra
balho de uma Comissão de juristas composta pelos
Professores Ada Pellegrini Grinover1 Álvaro Villaça de
Azevedo1 Antonio Jamyr Dall'Agnol1 Arnoldo Wald1
Carlos Alberto Direito1 Gilmar Ferreira Mendes1 Luís
Roberto Barroso1 Manoel André da Rocha1 Roberto
Rosas1 Ruy Rosado de Aguiar Júnior e Antonio Herman
Vasconcellos Benjamin1 sendo presidida pelo Professor
Caio Tácito. De tal proj eto resultou1 não sem alguns
significativos vetos1 a Lei nº 9 . 8681 de 1 O de novembro
de 1 9991 disciplinando o processo e julgamento da ação
direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória
de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal
Federal.
No capítulo seguinte são analisados alguns dos prin
cipais aspectos inovadores1 positivos ou problemáticos1
do recente diploma legal1 como1 v.g� 1 aqueles relativos
à possibilidade de modulação dos efeitos temporais das
decisões1 cautelares e de mérito1 do Supremo TribunaC
e seu caráter necessariamente vinculante para os órgãos
judiciários e administrativos . Merece relevo1 ademais1
a sistematização promovida pela Lei1 logrando uma po
sitiva harmonização entre os instrumentos da jurisdição
constitucional abstrata e a jurisdição incidental e difusa.
Destacam-se também os dispositivos em que a nova
Lei sinaliza com uma maior abertura no processo de
interpretação constitucional - no sentido que lhe em
presta Peter H aberle - ao admitir expressamente a
manifestação de outros órgãos ou entidades1 além das
1 34
partes formais, no processo de controle abstrato, de
acordo com a sua representatividade e a relevância da
matéria em discussão, bem como a possibilidade de os
juízes da Corte se socorrerem, para a formação de sua
convicção, dos conhecimentos técnicos de peritos e de
depoimentos de pessoas com experiência e autoridade
no tema em debate, mediante realização de audiências
públicas. Um passo significativo na caminhada pela
democratização do processo constitucional brasileiro.
Uma outra Comissão de juristas, composta pelos
Professores Celso Ribeiro Bastos, G ilmar Ferreira Men
des, Arnoldo Wald, Ives G andra Martins e Oscar Dias
Corrêa, foi convocada pelo então Ministro da Justiça,
em 1 99 7, para que elaborasse um anteprojeto de lei
destinado à regulamentação da arguição de descumpri
mento de preceito fundamental, prevista, em redação
absolutamente vaga, no art. 1 02, § 1 º, da Constituição
da República. 272 A Lei nº 9 . 8 8 2 , de 3 de dezembro de
1 999, resultante do trabalho da aludida Comissão, res
tou bastante desfigurada, em função dos vetos apostos
pelo Presidente da República ao proj eto original.
Como se verá no capítulo seguinte, embora inspirado
no recurso constitucional alemão (Lei Fundamental de
Bonn, de 1 949, art. 93, 1, 4) e no recurso de amparo
do Direito Constitucional espanhol (Constituição espa
nhola de 1 9 78, art. 1 6 1 , 1 e 1 62, I, b) , o produto final
da Lei nº 9 . 8 8 2/99, a arguição de descumprimento de
preceito fundamental, longe está de ser - como seus
supostos congêneres europeus - um instrumento pro
cessual que assegura o acesso direto do cidadão ao
272 . "Art.
1 02, § 1 ° A arguição de descumprimento de preceito fundamental
decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal,
na forma da lei . "
1 35
Tribunal Constitucional, de forma a alcançar a proteção
mais célere e efetiva de um direito fundamental seu
que haj a sido vulnerado. Antes que um recurso-cidadão,
o novel instituto - sobretudo após os nefastos vetos
presidenciais ao projeto original - assemelha-se muito
mais à vetusta e malsinada avocatória.
Mais recentemente, com a edição da Lei nº 1 2 .063,
de 27 de outubro de 2009, foi estabelecida a disciplina
processual da ação direta de inconstitucionalidade por
omissão. Fruto do II Pacto Republicano de Estado1
firmado entre os Poderes Executivo, Legislativo e Ju
diciário, 273 o referido diploma acrescentou o Capítulo
II-A à Lei nº 9 . 8 68/99, que já regrava o trâmite da
ação direta de inconstitucionalidade e da ação declara
tória de constitucionalidade. Aguardada por mais de 2 0
anos, a regulamentação d a ADIN por omissão ficou
aquém das expectativas nela depositadas. De fato, a
Lei nº 1 2 .063/09 pouco inovou naquilo que doutrina
e jurisprudência j á definiam como regime jurídico apli
cável ao instituto. Nesse sentido, destaca-se a previsão
expressa da possibilidade de manifestação por escrito
dos demais legitimados para a propositura da ação,
dispositivo de teor idêntico ao vetado § 1 ° do art. 7°
da Lei nº 9 . 868/99 . Ressalte-se também a afirmação
do cabimento de medida cautelar no procedimento da
136
ADIN por omissão, o que era rechaçado pela própria
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 27 4
Com o quadro normativo traçado tanto pela Lei nº
9 . 8 68/99 como pela Lei nº 9 . 8 8 2/99, confirma-se a
tendência ao fortalecimento do sistema de controle
concentrado e abstrato, mediante ampliação de seus
instrumentos e efeitos, como tentativa de dar conta do
fenômeno da litigiosidade de massa, que não tem en
contrado resposta adequada nas instâncias ordinárias do
Poder Judiciário . Mas quais os limites democraticamen··
te aceitáveis de tal movimento?
A análise empreendida no capítulo seguinte, centra
da especialmente nas aludidas Leis nº 9 . 8 6 8/99 e
9 . 8 82/99, tem como norte os marcos teóricos fixados
no capítulo III, relativos à legitimidade e às formas de
legitimação da justiça constitucional no âmbito de um
137
regime democrático. Evidentemente, as teses elabora
das em países cuja realidade política, social e jurídica
em nada se assemelha à brasileira servirão apenas como
subsídios ou pontos de partida para a avaliação crítica
daquilo que denominei a nova jurisdição constitucional
brasileira . Pretende-se proceder, assim, à assimilação
crítica das teorias estrangeiras, numa saudável antropo
fagia2 75 de suas influências, para adequá-las à realidade
nacional.
138
Capítulo V
139
Não obstante, ao estatuir regras sobre o processo e
julgamento das ações que deflagram a judicatura cons
titucional, o referido diploma legislativo não pode ser
tratado apenas como uma norma processual. Isto sig
nifica que a sua interpretação não pode ser apropriada
pelos conceitos e princípios do Direito Processual Civil
sem que se atente para a especificidade da matéria de
que trata e dos fins a que se destina. A técnica processual
deve servir como instrumento de realização, e não de
frustração, dos superiores objetivos perseguidos pela
jurisdição constitucional. Assim, toda a inteligência da
Lei nº 9 . 868/99 está subordinada antes à Constituição
e ao Direito Constitucional, do que aos domínios do
processo civil.
A análise aqui levada a cabo não se pretende seja um
esquadrinhamento detalhado, do ponto de vista proces
sual, de toda a sistemática traçada na Lei. O propósito,
como já adiantado ao final do capítulo anterior, é o de
avaliar criticamente se e como a referida sistemática pode
contribuir para que a jurisdição constitucional brasileira
cumpra suas funções a contento. Para tanto, será neces
sário lançar mão das premissas teóricas discutidas no
capítulo III deste estudo, no qual se concluiu que a missão
por excelência das Cortes Constitucionais é a defesa dos
direitos fundamentais e das regras do regime democráti
co, mais do que a mera guarda ritualística e asséptica das
regras previstas na Constituição.
É evidente que toda importação de teorias alieníge
nas exige um esforço de adaptação à realidade jurídica,
política e social do país, a fim de que o trabalho sirva
1 40
como um contributo efetivo para o aprimoramento da
instituição da justiça constitucional entre nós. Do con
trário, o discurso até aqui expendido soaria como uma
missa rezada de costas para os fiéis e em latim.
Feitas essas considerações preliminares, passa-se ao
exame das principais inovações e aspectos polêmicos
da Lei nº 9 . 86 8/99 .
O art. 2°, incisos I a IX, d a Lei reproduz o elenco
de legitimados para a propositura da ação direta de
inconstitucionalidade previsto no art. 1 03 da Consti
tuição Federal. Com a redação dada pela Emenda Cons
titucional nº 45 de 20041 o texto constitucional passou
a prever expressamente a legitimidade ativa do Gover
nador e da Câmara Legislativa do Distrito Federal. Não
obstante, a Lei nº 9 . 8 68/99, desde a sua edição1 já fazia
referência a tais autoridades, ex vi art. 2°, incisos IV
e V. Não se tratava propriamente de uma inovação1
uma vez que a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal1 em reverência ao princípio federativo1 já se
havia consolidado no sentido de que a omissão do texto
constitucional em relação aos Poderes Executivo e Le
gislativo do Distrito Federal configurava hipótese de
lacuna e não de silêncio eloquente . Confira-se, neste
sentido, significativo trecho de acórdão da lavra do
Ministro Ilmar Galvão:
141
ral,para o fim de a;uizamento da presente ação
(ação direta de inconstitucionalidade) " 2 7 7
277.RTJ 1 40/4 5 7 .
n º 645-2, rei. Min. limar G alvão. DJU d e 2 1 . 02.92, p . l .693. V.
2 7 8 . ADIN
também ADIN nº 665, rei. Min. Octavio Gallotti. DJU de 24.04 . 92, p . 5 . 376.
1 42
no exercício de competência municipal, não será cabível
a ação, porquanto a Constituição Federal não admite
que o controle abstrato de constitucionalidade, perante
o Supremo Tribunal Federal, sej a exercido contra leis
mumc1pa1s .
Assim sendo, foi adequado e legítimo o acréscimo
dos Poderes Executivo e Legislativo distritais, promo
vido pelo art. 2° da Lei nº 9 . 868/99, no rol dos legiti
mados para a propositura da ação direta de inconstitu
cionalidade. Até porque a intenção inequívoca do cons
tituinte foi a de ampliar, e não a de restringir, o acesso
à jurisdição constitucional abstrata, o que resta com
provado pela alteração do art. 1 03 incisos IV e V, da
1
1 43
placidamente a tese acima1 280 não sem algumas mitiga
ções em determinados pontos.
Uma dessas mitigações consiste no instituto da per
tinência temática . Embora a Constituição não a preveja1
o Supremo Tribunal Federal construiu1 nos últimos
anos1 uma robusta jurisprudência erigindo a pertinência
temática como requisito específico para que determi
nados entes e órgãos possam manejar a ação direta de
inconstitucionalidade. 2 8 1
Entende-se por pertinência temática a exigência de
correlação entre as prerrogativas ou fins institucionais
do órgão ou entidade legitimado para a propositura da
ação direta com aquele ato normativo por meio dela
questionado . 2 8 2 A ideia da pertinência temática surgiu
Tribunal, que, à lei ordinária, não seria dado elidir, ainda quando o preten
desse. "
2 8 2 . Veja-se, assim, ADIN-MC nº 1 096, rei. Min. Celso de Mello, na qual se
assentou que a pertinência temática é "fator determinante da própria legitimi
dade ativa ad causam para instauração do controle nonnativo abstrato. Esse
requisito torna imprescindível, para efeito de acesso ao procedimento de fisca
lização concentrada de constitucionalidade, que se evidencia um nexo de afini
dade entre os objetivos institucionais da entidade que ajuíza a ação direta e o
1 44
como solução para o excesso de ações diretas de in
constitucionalidade propostas por confederações sindi
cais e entidades de classe de âmbito nacional. Da mesma
forma1 tal requisito vem sendo exigido dos Governa
dores de Estado e do Distrito Federal e Mesas de
Assembleias Legislativas e da Câmara Legislativa dis
trital.
Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Fe
deral1 portanto1 existem legitimados plenos, universais
ou incondicionados para a propositura da ação direta1
cuja missão institucional é a defesa da ordem jurídica
como um todo, que estão dispensados da comprovação
da pertinência temática: o Presidente da República1 as
Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados1
o Procurador-Geral da República1 o Conselho Federal
da Ordem dos Advogados do Brasil e os partidos polí
ticos com representação no Congresso Nacional. 283 E
1 45
existem legitimados condicionados - Governadores de
Estado e do Distrito Federal e Mesas de Assembleias
Legislativas e da Câmara Legislativa distrital, confedera
ções sindicais e entidades de classe de âmbito nacional
- dos quais se exige a demonstração do interesse em
agir em cada ação, consubstanciado no requisito da
pertinência temática. Sistematizando o entendimento
do Supremo Tribunal sobre o tema, confira-se esclare
cedor trecho de acórdão da lavra do Min. Celso de
Mello:
1 46
(ou distrital) ou a Mesa das Assembléias Legislativas
dos Estados-Membros (ou da Mesa da Câmara Le
gislativa distrital) " (sem referência às autoridades
distritais no original) . 284
147
atuação em pelo menos nove Estados - número exigido
pela Lei para que o partido político seja considerado
de âmbito nacional. 286 Tal exigência se afigura excessiva
e contrária à razoabilidade1 uma vez que há inúmeros
casos em que a categoria representada pela entidade
de classe1 embora exibindo vulto e importância nacio
nais1 exerce atividades apenas em alguns Estados da
Federação .
Exige-se1 ainda1 cumulativamente1 que as entidades
de classe: (I) sejam formadas por pessoas naturais ou
pessoas jurídicas que componham uma categoria pro
fissional ou econômica diferenciada E (II) componham
uma categoria homogênea. Exigia ainda o STF1 como
3° requisito de legitimação1 que as mesmas não se
configurassem como "associações de associações " . 287
Este último requisito1 todavia1 foi objeto de alteração
jurisprudencial da Suprema Corte. 288 Exige-se das
confederações sindicais1 obrigatoriamente1 o registro
competente junto ao Ministério do Trabalho. 289
Perdeu-se boa oportunidade para uma regulamen
tação mais democrática e menos estreita dos requisitos
a serem preenchidos por tais entidades para que elas
possam se habilitar à propositura da ação direta de
inconstitucionalidade. O argumento ad terrorem da pro
liferação incontrolável de causas não pode servir como
pretexto para frustrar o acesso de grupos organizados1
de elevada representatividade social1 à participação nos
290. A expressão, como se sabe, foi cunhada por Ferdinand Lassalle em sua
célebre conferência de 1 863, publicada em português sob o título A Essência
da Constituição, Editora Liber Juris, 1 988, p. 1 1 : "Os fatores reais de poder
que atuam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa
todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam
ser, em substância, a não ser tal como elas são" (grifos do original) .
1 49
Uma concepção assim equivocada acaba por gerar
distorções processuais com consequências negativas
para o adequado exercício da jurisdição constitucional.
Exemplo disso é a restrição quase integral à incidência
das hipóteses de parcialidade dos julgadores no processo
de controle abstrato. Como não há partes propriamente
ditas1 nem tampouco interesses subj etivos em j ogo1 não
há cogitar de suspeição dos magistrados - proclama o
Pretório Excelso. Outrossim1 impedimento só haverá
na hipótese em que algum dos julgadores houver atuado
no feito que lhe toca julgar como requerente1 requerido1
Procurador-Geral da República ou Advogado-Geral da
União . 291
Esta restrição apriorística à possibilidade de arguição
do impedimento ou suspeição dos juízes do Supremo
Tribunal em sede de fiscalização abstrata prejudica a
independência da Corte1 a transparência dos julgamen
tos e1 a fortiori1 a respeitabilidade de seus vereditos.
1 50
Suponha-se1 por mera hipótese1 que um certo Ministro
haja sido advogado1 ao longo de toda a vida1 de deter
minada empresa privada1 e que haja sido intentada ação
direta de inconstitucionalidade contra uma lei que afeta
direta e gravosamente os interesses daquela empresa.
É intuitivo que o referido Ministro possa ter questionada
a sua imparcialidade, ainda que as alegações do exci
piente não sejam acolhidas. Os membros do Tribunal
- e especialmente aquele Ministro em relação a quem
foi feita a arguição - têm o dever1 ao menos1 de refutar
os argumentos apresentados1 tornando mais democrá
tico e transparente o julgamento.
Por outro lado1 seria razoável que a Lei nº 9 . 868/991
além de permitir expressamente a arguição de parcia
lidade dos julgadores, houvesse instituído uma hipótese
de parcialidade objetiva - impedimento - que seria
extremamente salutar para o aprimoramento da cultura
política brasileira. A medida seria singela mas de es
trondoso efeito moral: o Ministro nomeado por Presi
dente da República ainda no exercício de seu mandato
ficaria impedido de atuar1 como relator ou vogal1 nos
processos de fiscalização abstrata da constitucionalidade
contra leis ou atos normativos envolvendo interesse
direto do Poder Executivo Federal. À Corte1 por sua
formação plenária, caberia decidir, nas hipóteses em
que houvesse dúvida sobre a existência do aludido
interesse direto1 pela incidência ou não do impedi
mento.
Longe de estar-se a perpetrar uma crítica direta
contra a presente ou qualquer pretérita composição do
Supremo Tribunal Federal, o que se propõe é uma
atitude de seriedade para com a Constituição e uma
garantia a mais para os jurisdicionados no contexto de
uma cultura política marcadamente personalista. É per-
151
tinente, a este propósito, a observação arguta e realista
de Luís Roberto Barroso:
292 . Luís Roberto Barroso, Dez anos da Constituição de 1 988 (Foi bom pra
você também7J , Revista de Direito Administrativo nº 2 1 4, 1 998, p. 1 4 .
293 . No Canadá, Japão, Noruega e Dinamarca, os juízes da Corte Constitucio
nal são designados exclusivamente pelo Poder Executivo; nos Estados Unidos
1 52
lege ferenda, além de mais factível, poderia contribuir
significativamente para despersonalizar a escolha dos
juízes da Corte e fortalecer a sua independência.
Os arts. 3° a 9° da Lei nº 9 . 8 68/99 tratam, basica
mente, do procedimento a ser seguido na ação direta
de inconstitucionalidade .
O art. 3° estabelece que a petição inicial da ação
indicará o dispositivo da lei ou ato normativo impug
nado, os fundamentos jurídicos do pedido em relação
a cada uma das impugnações (inciso I), bem como o
pedido com suas especificações (inciso II) . Não pode
o Supremo Tribunal Federal julgar além ou diferente
mente do que foi pedido pelo autor da ação. Com
efeito, não está a Corte autorizada a agir ex officio,
uma vez que não está incluída no rol de legitimados
para a deflagração do controle abstrato da constitucio
nalidade estabelecido no art. 1 03 da Constituição Fe
deral. 294 Hipótese diversa ocorre quando a petição ini-
1 53
cial é silente a respeito dos dispositivos que regulamen
tam a norma legal impugnada. Aqui, por uma razão
lógica, declarada a inconstitucionalidade do supedâneo
legal, devem ser estendidos os efeitos da declaração a
todas as normas que dele decorram, ainda que não
contempladas expressamente na peça vestibular da
ação. 29 5
direta. A demanda não pode atacar apenas um dos atos contidos no complexo
normativo. O sistema de leis vinculadas a determinado tema deve ser questio
nado em sua íntegra. A razão disso reside no fato de a eficácia da declaração
de inconstitucionalidade alcançar tão-somente o ato impugnado e não o com
plexo no qual inserido. Nesse sentido: a ADIN nº 2 . 1 74, rel. Min. Maurício
Corrêa, DJ de 7 . 3 .03; a ADIN nº 1 . 1 87 , rei. Min. Maurício Corrêa, DJ de
30. 5 .9 7; a ADIN nº 2 . 1 33, rei. Min. Ilmar Galvão, DJ de 9.3.00; a ADIN nº
2.45 1 , rel. Min. Celso de Mello, DJ de 1 °.8.0 1 ; a ADIN nº 2 . 972, rei. Min.
Carlos Britto, DJ de 29. 1 0.03; e a ADIN nº 2.992, rel. Min. Eros Grau, DJ
de 1 7. 1 2.04". Ainda no mesmo sentido, v. ADIN nº 2 1 33, rei. Min. Ilmar
Galvão; ADIN nº 1 1 87, rei. Min. Maurício Corrêa: "2. O acolhimento da
impugnação de algumas normas de um sistema (arts. 1 4 e 1 5) , via ação direta,
indissoluvelmente ligadas a outras do mesmo sistema (art. 1 6) , não impugnadas
na mesma ação, impüca em remanescer no texto legal dicção indefinida,
assistemática, imponderável e inconsequente. 3. Impossibilidade do exercício
ex-offício da jurisdição para incluir no objeto da ação outras normas indisso
luvelmente ligadas às impugnadas, mas não suscitadas pelo requerente. 4. Ação
direta não conhecida, ressalvando-se a possibilidade da propositura de nova
ação que impugne todo o sistema" (sem grifos no original) .
29 5 . Cf., nesse sentido, ADIN nº 3 . 645, rei . Min. Ellen Gracie, julgamento em
3 1 . 5 . 06, DJ 1 °.9.06: "Constatada a ocorrência de vício [ . . . ] suficiente a fulminar
a Lei [ . . . ] ora contestada, reconheço a necessidade da declaração de inconsti
tucionalidade consequencial ou por arrastamento de sua respectiva regulamen
tação [ . . . ] . Esta decorrência [ . . ] ocorre quando há relação de dependência de
.
1 54
Quanto ao instrumento do mandato, referido no
parágrafo único do art. 3°, só será necessário quando a
inicial for subscrita por advogado. O Supremo Tribunal
Federal entende que os entes enumerados nos incisos
I a VII do art. 1 03 da Constituição detêm capacidade
postulatória plena para ajuizarem ação direta de incons
titucionalidade, independentemente da constituição de
advogado, e para a prática de todos os demais atos
processuais. 296 Quanto aos partidos políticos, confede
rações sindicais e entidades de classe de âmbito nacio
nal, entende-se que necessitam do patrocínio advoca
tício. 2 9 7
A Corte Constitucional não está vinculada aos fun
damentos jurídicos apontados na petição inicial da ação
direta. Assim, embora rejeitando os fundamentos do
autor1 poderá declarar a inconstitucionalidade da norma
impugnada por razões jurídicas diversas. 298 Não se ad-
1 55
mite, entretanto, que a petição inicial da ação direta
se limite a pedir a declaração da inconstitucionalidade,
com alegações genéricas ou sem apontar os dispositivos
constitucionais supostamente violados, que justifiquem
a postulação. 299 Neste sentido, proclama o art. 4° que
a exordial inepta, não fundamentada e a manifestamen
te improcedente 3 00 serão liminarmente indeferidas, em
decisão monocrática, pelo relator; desta decisão cabe,
como reza o parágrafo único do mesmo art. 4°, agravo
regimental, que será julgado pelo Plenário do Tribu
nal. 3 0 1
1 56
O art. 5° da Lei nº 9 . 868/99 reproduz o art. 1 691
§ l 01 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Fe
deral1 que veda expressamente a desistência da ação
direta de inconstitucionalidade1 à vista de sua natureza
objetiva e de seu caráter indisponível. Com efeito1 não
há interesse individual em j ogo a justificar o pedido de
desistência1 prevalecendo o interesse público de prote
ção da Constituição. Por idêntica razão1 não se admite
a desistência de pedido liminar. 3 0 2 Aliás 1 segundo o
mencionado art. 1 691 § l 01 do Regimento Interno do
Supremo Tribunal Federat ao Procurador-Geral da Re
pública não é dado desistir da ação1 ainda que1 ao final1
seu parecer seja pela constitucionalidade da norma ini
cialmente impugnada. 30 3
O art. 6º1 caput1 determina que o relator solicitará
informações aos órgãos ou às autoridades 30 4 das quais
para prestar informações não acarreta a plena capacidade postulatória dos órgãos
estatais [de] que emanaram os atos normativos impugnados". Assim, " [ . . ] os
.
157
emanou a lei ou ato normativo impugnado1 que deverão
ser prestadas1 consoante o parágrafo único1 no prazo de
trinta dias contados do recebimento do pedido. 305
Os partícipes na elaboração do ato normativo im
pugnado são os réus 306 da ação direta. Assim1 havendo
sancionado o projeto de lei1 responderá como réu o
Chefe do Poder Executivo1 ao lado da Casa Legislativa.
Caso o tenha vetado1 não participará da relação pro
cessual. Em se tratando de ato administrativo norma
tivo1 responderão1 por óbvio1 apenas as autoridades
administrativas responsáveis pela sua edição.
Questão interessante é saber se é possível que o
Presidente da República1 ou qualquer Governador de
Estado ou do Distrito Federal1 havendo sancionado um
305 . O prazo de trinta dias a que se refere o art. 6°, parágrafo único, da Lei
9 .868/99 tem sua contagem suspensa durante o período de recesso do Supremo
Tribunal Federal, conforme ficou entendido na questão de ordem suscitada no
bojo da ADIN nº 1 36, rei . Min . Aldir Passarinho. O fundamento é o art. 1 05,
caput, do regimento interno do STF: " Não correm os prazos nos períodos de
férias e recesso, salvo as hipóteses previstas em lei ou neste Regimento".
306 . Não obstante a nossa utilização do termo "réus", o Supremo Tribunal
Federal entende que não existem propriamente réus nos processos abstratos
de controle de constitucionalidade justamente por ser um processo objetivo.
Nesse sentido, cf. ED-ADIN nº 2.982, rei. Min. Gilmar Mendes: "A ação direta
de inconstitucionalidade configura típico processo objetivo, destinado a elidir a
insegurança jurídica ou o estado de incerteza sobre a legitimidade de lei ou ato
normativo federal . Os eventuais requerentes atuam no interesse de preservação
da segurança jurídica e não na defesa de um interesse próprio. Tem-se um
processo sem partes, no qual existe requerente, mas inexiste requerido. Os
requerentes são titulares da ação de inconstitucionalidade apenas para o efeito
de provocar, ou não, o Supremo Tribunal. Assim, a não identificação de réus
ou partes contrárias na ação direta de inconstitucionalidade apenas demonstra
que se cuida aqui de típico processo objetivo" (grifos nossos) . No mesmo tom,
Reclamação nº 397 MC-QO, rei. Min. Celso de Mello: "o ajuizamento de ação
direta de inconstitucionalidade, perante o Supremo Tribunal Federal, faz ins
taurar processo objetivo, sem partes, no qual inexiste litígio referente a situações
concretas ou individuais" (grifos nossos) .
1 58
determinado projeto de lei1 venha1 posteriormente1 a
ajuizar uma ação direta, sob o argumento de que aquela
lei é inconstitucional.
Ao que parece, em primeira leitura1 não há nenhum
impedimento a que o Presidente da República ou os
Governadores o façam. Em primeiro lugar1 a legitimi
dade desses órgãos para o ajuizamento da ação não é
condicionada de nenhuma forma pela Constituição. As
sim1 não caberia ao intérprete e aplicador da Consti
tuição restringir o que não foi objeto de restrição por
parte do legislador constituinte . Em segundo lugar1 se
o Chefe do Poder Executivo sancionou a lei e entendeu
que estava errado1 é melhor que proponha a ação direta
do que persistir no erro, dando cumprimento a uma
lei inconstitucional.
O Supremo Tribunal Federal j á entendeu que "a
circunstância de o Governador do estado poder ques
tionar1 autonomamente1 a validade jurídica de uma
espécie normativa local em sede de ação direta1 fazendo
instaurar1 por iniciativa própria1 o concernente controle
concentrado de constitucionalidade1 não lhe confere a
prerrogativa de1 uma vez iniciada a fiscalização abstrata
por qualquer dos outros ativamente legitimados - e
constando ele como órgão requerido na ação direta -1
buscar a sua inclusão no pólo ativo. O órgão do Poder
Público que formalmente atue como sujeito passivo no
processo de controle normativo abstrato não dispõe de
legitimidade para requerer a suspensão cautelar do ato
impugnado1 ainda que tenha expressamente reconheci
do a procedência do pedido" . 307
307. ADIN nº 807-2/RS, rei. Min. Celso de Mello, DJU 1 1 .06.93, verbis: ( . . . )
"
1 59
Ora1 esse é um argumento que parece1 à primeira
vista1 muito consistente . Haveria uma incompatibilida
de1 senão processual1 pelo menos lógica1 entre o Chefe
do Executivo sancionar uma lei - e ser portanto réu
na ação direta - e posteriormente pretender ser o seu
autor. Nada obstante1 o próprio Excelso Pretório não
nega a possibilidade da propositura da ação pelo Chefe
do Executivo na hipótese figurada; o que se nega é que
possa1 uma vez proposta a ação por qualquer outro
legitimado1 deslocar-se do pólo passivo para o ativo1
formulando1 por exemplo1 pedido de suspensão cautelar
do ato normativo objurgado.
A solução da Suprema Corte para o caso1 data venia1
não soa coerente . Com efeito1 quem pode o mais pode
o menos. Assim1 se o Chefe do Executivo pode intentar
a ação direta1 como seu autor único e autônomo1 não
parece razoável que lhe seja defeso reconhecer a pro
cedência do pedido formulado por outro ente legitima
do e1 via de conséquência1 que não possa deduzir um
pedido de suspensão cautelar do ato normativo atacado.
A melhor solução para a situação1 que a Lei nº
9 . 8 6 8/99 não cuidou de resolver1 seria aquela prevista
na Lei da ação popular (Lei nº 4 . 7 1 7/641 art. 6º1 § 3°) 1
que faculta à pessoa jurídica de direito público1 uma
vez citada1 ocupar o pólo ativo da demanda1 chancelando
ou mesmo aditando o pedido do autor popular. Pode-se
cogitar de sua aplicação analógica ao processo da ação
direta. Assim1 optando o Chefe do Executivo por po
sicionar-se no pólo ativo da relação processual1 estará
1 60
autorizado a formular todo e qualquer requerimento
que, na qualidade de autor, a Constituição e a Lei lhe
facultam.
O art. 7° da Lei nº 9 . 868/99 veda genericamente,
no seu caput, a intervenção de terceiros no processo
de ação direta de inconstitucionalidade. Trata-se de
mais uma decorrência da objetividade do processo em
questão: não havendo um direito subjetivo ou pretensão
concreta deduzida pelo autor e resistida pelos réus, não
pode haver um interesse jurídico a ensej ar a intervenção
de um terceiro na relação processual. Consolida-se,
assim, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
na matéria 3 08 e complementa-se o art. 1 69, § 2°, do
Regimento Interno da Corte, que veda expressamente
a assistência a qualquer das partes .
O § 1 ° do art. 7° criava a possibilidade de manifes
tação por escrito dos demais legitimados para a propo
situra da ação, referidos no art. 2°, inclusive com a
juntada de documentos reputados úteis para o exame
do caso, dentro do prazo fixado para a prestação de
informações, bem como a apresentação de memoriais .
Tal dispositivo foi vetado a o argumento de que poderia
importar em prejuízo à celeridade processual e de que
a "abertura pretendida pelo preceito" já estaria atendida
pelo § 2° do mesmo artigo.
Ambos os fundamentos apresentados para o veto,
com a vênia devida, são inconsistentes . O primeiro,
porque havia no dispositivo vetado a previsão expressa
de que a manifestação por escrito e eventual juntada
de documentos se fizesse no prazo da prestação de
informações. Já a apresentação de memoriais, como se
3 08 . V., por todos os precedentes, ADIN nº 1 3 50-5, rei . Mi.J1 . Celso de Mello,
DJU de 07 . 08 .96, Seção I, p. 26 666/7
1 61
sabe, não interfere com a marcha processual. O segundo
argumento, a seu turno, também não se sustenta, na
medida em que no § 2° - ao contrário do que sugeria
a redação do § 1 ° - tem-se apenas a previsão de um
poder discricionário do relator de admitir a manifesta
ção de outros órgãos ou entidades, o que fará conside
rando a relevância da matéria e a representatividade
dos postulantes. 3 0 9
Com o § 2° do art. 7º passou-se a admitir expres
samente a participação de órgãos ou entidades (legiti
mados ou não para a propositura da ação direta) , na
qualidade de amicus curiae, 3 1 0 contribuindo para que
a Corte decida as questões constitucionais com pleno
conhecimento de todas as suas implicações ou reper
cussões . 3 1 1 Trata-se de inovação bem inspirada, que se
insere no contexto de abertura da interpretação cons
titucional no país, permitindo que os indivíduos e grupos
sociais participem ativamente das decisões do Supremo
Tribunal Federal que afetem seus interesses.
309 . O veto, afinal, revela seu verdadeiro propósito: "Tendo e m vista o volume
de processos apreciados pelo STF, afigura-se prudente que o relator estabeleça
o grau de abertura, conforme a relevância da matéria e a representatividade
dos postulantes. "
3 1 O . Amicus curiae é o "amigo d a Corte", aquele que lhe presta informações
sobre matéria de direito, objeto da controvérsia . Sua função é chamar a atenção
dos julgadores para alguma matéria que poderia, de outra forma, escapar-lhe
ao conhecimento. Um memorial de amicus curiae é produzido, assim, por
quem não é parte no processo, com vistas a auxiliar a Corte para que esta possa
proferir uma decisão acertada, ou com vistas a sustentar determinada tese
jurídica em defesa de interesses públicos ou privados de terceiros, que serão
indiretamente afetados pelo desfecho da questão. V. Steven H. G ifis, Law
Dictionary, Barron's Educational Series, Inc., 1 975, p. 1 1 / 1 2 .
3 1 1 . Inocêncio Mártires Coelho, As ideias de Peter Haberle e a Abertura da
Interpretação Constitucional no Direito Brasileiro, Revista de Direito Adminis
trativo nº 2 1 1 , 1 997, p. 1 3 2 .
1 62
A disciplina legal da figura do amicus curiae1 de longa
data admitida em outros ordenamentos jurídicos1 3 1 2 já se
encontrava contemplada no Brasil desde 1 9 761 no art. 3 1
da Lei nº 6.3851 de 0 7 . 1 2 . 1 9 761 que admite a intervenção
da Comissão de Valores Mobiliários - CVM em proces
sos intersubjetivos nos quais se discutam questões de
direito societário sujeitas1 no plano administrativo1 à com
petência dessa entidade autárquica federal.
A inovação da Lei nº 9 . 868/991 entretanto1 é dupla:
( 1 º) introduziu-se1 pela vez primeira entre nós1 a figura
do amicus curiae em processo objetivo de controle de
constitucionalidade; (2º) ao contrário do caráter de in
tervenção neutra da CVM 1 fulcrada na Lei n° 6. 3 8 51761
nos processo de ação direta de inconstitucionalidade1 o
órgão ou entidade se habilitará para apresentar a sua visão
da questão constitucional em testilha1 oferecendo à Corte
a sua interpretação1 como partícipe ativo da sociedade
aberta de intérpretes da Constituição. 3 1 3
1 63
O propósito do art. 7°, § 2° da Lei é claramente o de
pluralizar o debate constitucional, permitindo que o Tri
bunal venha a tomar conhecimento, sempre que julgar
relevante, dos elementos informativos e das razões cons
titucionais daqueles que, embora não tenham legitimida
de para deflagrar o processo, sejam destinatários diretos
ou mediatos da decisão a ser proferida. Visa-se, ademais,
a alcançar um patamar mais elevado de legitimidade nas
deliberações do Tribunal Constitucional, que passará for
malmente a ter o dever de apreciar e dar a devida con
sideração às interpretações constitucionais que emanam
dos diversos setores da sociedade. 3 1 4
A decisão de admitir ou não o amicus curiae é da
competência discricionária do relator, a quem caberá
aquilatar, de um lado, a relevância da matéria em dis
cussão, e, de outro lado, a representatividade dos pos
tulantes, para admitir ou não a manifestação do órgão ou
1 64
entidade postulante. Na análise do binômio relevância
representatividade1 deverá o relator levar em conta a
magnitude dos efeitos da decisão a ser proferida nos
setores diretamente afetados ou para a sociedade como
um todo, bem como se o órgão ou entidade postulante
congrega dentre seus afiliados porção significativa (quan
titativa ou qualitativamente) dos membros do(s) grupo (s)
social(is) afetado (s) . Como afirmou o eminente Ministro
Celso de Mello na ADIN nº 2 . 1 30-3 SC1 a intervenção
do amicus curiae1 para legitimar-se, deve apoiar-se em
razões que tornem desejável e útil a sua atuação processual
na causa, em ordem a proporcionar meios que viabilizem
uma adequada resolução do litígio. " 3 1 5
A previsão d a irrecorribilidade da decisão do relator
se aplica, por óbvio, àquelas decisões de conteúdo posi
tivo, pois o dispositivo menciona expressamente apenas
como " despacho irrecorrível" (rectius: trata-se de decisão
interlocutória1 e não de despacho) a decisão que admite
a manifestação do amicus curiae. Por uma interpretação
conforme à Constituição, que prestigie o direito ao con
traditório e à ampla defesa, deve a Suprema Corte dar
ao dispositivo a inteligência mais benéfica aos postulantes,
permitindo-lhes que, por meio de agravo regimental, sub
metam a decisão indeferitória do relator ao Plenário. 31 6
3 1 5 . ADIN nº 2 . 1 30-3 SC, rei. Min. Celso de Mello, DIU 02.02.200 1 , Infor
mativo STF nº 2 1 5 .
3 1 6 . Tal entendimento resulta também de uma interpretação a contrario sensu
do exposto nos ADIN-ED nº 2 . 59 1 , rei. Min. Eros, rei. Min. EROS G RAU,
j . 1 4. 1 2 . 2006, Informativo STF nº 452, 1 1 a 1 5 de dezembro de 2006) : "É
que a Corte já assentou não ter, o amícus curiae, legitimidade para recorrer de
decisões proferidas em processo de ação direta de inconstitucionalidade, senão
apenas para, na condição de requerente, impugnar a decisão que lhe não admita
a intervenção na causa, naqueloutra qualidade" (grifos nossos). No mesmo
sentido, cf. ED-ADIN nº 3 . 1 05, rei. Min. Cezar Peluso.
Em recente precedente da Corte, o Plenário do Supremo Tribunal Federal
1 65
Resta ainda indagar dos poderes processuais reconhe
cidos ao amicus curiae admitido nos processos de ação
direta. Parece evidente que, além da mera apresentação
formal de peças por escrito (que, de resto, a Corte tra
dicionalemnte sempre entendeu cabível, sob a forma de
memoriais fora dos autos) , deve-se-lhe reconhecer o di
reito à sustentação oral nas sessões de julgamento, bem
como a interposição dos recursos cabíveis.
Com relação à sustentação oral, não há no texto da
Lei nº 9 .868/99 qualquer vedação expressa a sua rea
lização pelo patrono do amicus curiae. Com efeito, o
art. 1 O, § 2° prevê apenas que será facultada sustentação
oral aos representantes judiciais do requerente e das
autoridades ou órgãos responsáveis pela expedição do
ato, sem qualquer conteúdo vedatório a que terceiros
possam vir a fazê-lo. Assim, parece evidente que tal
1 66
dispositivo não veda, por exemplo, a manifestação oral
do Procurador-Geral da República ou do Advogado
Geral da União, embora não sejam requerentes ou
representantes judiciais dos requeridos na ação direta.
De igual modo, não veda o dispositivo que os amici
curiae tenham suas razões sustentadas oralmente por
seus advogados nas sessões de julgamento.
Por outro lado, o § 2° do art. 7°, ao contrário do
que fazia o § 1 ° do mesmo art. 7°- que acabou sendo
vetado - não restringe a manifestação do amicus curiae
a peças escritas . De fato, do contraste entre o § 1 ° e
o § 2º contata-se nitidamente que a mens legislatoris
foi a de permitir a manifestação do amicus curiae tanto
pela via escrita como pela via oral.
Por fim, a admissibilidade da sustentação oral me
lhor atende ao sentido teleológico da norma. Pluralizar
o debate constitucional significa permitir que a voz dos
afetados se faça ouvir e receba a devida consideração
do Tribunal e da sociedade como um todo. De fora
parte o risco de que, por excesso de trabalho e falta
de tempo, as manifestações escritas não sejam lidas por
todos os integrantes do Tribunal, há que se destacar a
enorme importância que hoje assume, no âmbito da
jurisdição constitucional concentrada, a transmissão das
sessões de julgamento pela televisão, para todo o país.
Com efeito, faz parte do diálogo constitucional travado
pelo Tribunal Constitucional com a sociedade a apre
sentação oral dos argumentos pelo requerente, reque
ridos e amici curiae, perante a audiência da sociedade
aberta de intérpretes da Constituição, de forma que o
público, destinatário último da decisão, seja informado
das posições e argumentos de todos os envolvidos na
questão. Não faz sentido dar aos julgadores voz perante
a opinião pública e limitar a participação do amicus
curiae às peças escritas, que só serão conhecidas por
aqueles que manusearem os autos do processo.
1 67
Após entendimento inicial em sentido contrário, 3 1 7
o STF reviu sua posição e passou a admitir, por maioria,
a sustentação oral do patrono do amicus curiae. Con
fira-se, pela sua relevância, importante trecho do voto
do eminente Ministro Celso de Mello, verbis:
Não se pode perder de perspectiva que a regra
inscrita no art. 7°, § 2° da Lei nº 9 . 8 6 8/99 que -
3 1 7 . AD!N-MC nº 2 . 32 1 ,
Informativo nº 208, decisão monocrática do então
Presidente do SFT, Min. Carlos Velloso; ADIN-MC (QO) nº 2 . 223, Informa
tivo STF nº 246, decisão por maioria do Plenário, vencido o relator, Min. Marco
Aurélio e os Ministros Nelson Jobim e Celso de Mello.
1 68
dido em passagem na qual põe em destaque o en
tendimento de PETER H ÃBERLE, segundo o qual
o Tribunal "há de desempenhar um papel de inter
mediário ou de mediador entre as diferentes forças
com legitimação no processo constitucional" (p. 498) ,
em ordem a pluralizar, em abordagem que deriva
da abertura material da Constituição, o próprio de
bate em torno da controvérsia constitucional, con
ferindo-se, desse modo, expressão real e efetiva ao
princípio democrático, sob pena de se instaurar, no
âmbito do controle normativo abstrato, um indese
jável deficit" de legitimidade das decisões que o
11
1 69
lética de Direito Processual", vol. 8/3 3 - 3 8 , 2003;
NELSON NERY JR./ROSA MARIA DE ANDRA
DE NERY, " Código de Processo Civil C omentado
e Legislação Extravagante", p. 1 3 88, 7ª ed., 2003,
RT; EDGARD SILVEIRA BUENO FILHO, "Ami
cus Curiae: a democratização do debate nos pro
cessos de controle de constitucionalidade", in "Di
reito Federal", vol. 70/ 1 27-1 3 8 , AJUFE, v.g . ) . 3 1 8
No que diz respeito ao direito de recorrer do amicus
curiae, não há razão para que possa apresentar seus
argumentos, por escrito e oralmente, perante o Tribunal
e, como desdobramento lógico, não possa se insurgir
contra a decisão, por meio dos recursos cabíveis. Pode,
assim, o amicus curíae utilizar-se do agravo regimental
contra decisões interlocutórias do relator, bem como
dos embargos de declaração contra os acórdãos caute
lares e de mérito. 3 1 9 Ademais, no plano do controle
1 70
abstrato estadual, poderá o amicus curiae valer-se dos
recursos especial e extraordinário, conforme seja o caso
de cabimento de um ou outro .
Por fim, cabe dar uma palavra acerca d a oportuni
dade da interveniência do amicus curiae. O art. 7°1 §
1 ° - vetado pelo Chefe do Executivo - dispunha que
os outros legitimados à propositura da ação direta po
deriam se manifestar no prazo assinalado pelo art. 6°
para a prestação das informações pelas autoridades res
ponsáveis pela edição do ato normativo, isto é, 30
(trinta) dias. O art. 7°1 § 2°, a seu turno, estabelece
apenas que o relator poderá admitir o amicus curiae
para se manifestar sobre o objeto da ação, observado
o prazo do parágrafo anterior. Nada obstante o veto ao
§ 1 ° do art. 7º, entendo que o amicus curiae terá 3 0
(trinta) dias para s e manifestar nos autos, contados da
data da publicação da decisão que o admitir no processo.
Por outro lado, não me parece que a habilitação do
amicus curiae nos autos deva se dar dentro do prazo
das informações prestadas pelas autoridades responsá
veis pela edição do ato normativo impugnado. O STF,
no julgamento da ADIN-AgR nº 4 . 07 1 , rel. Min. Me
nezes Direito, 3 2 0 entendeu que a possibilidade de in
tervenção do amicus curiae está limitada à data da
ADIN-ED nº 3.6 1 5, rei. Min. Cármen Lúcia. Tal posicionamento foi confir
mado em recentes julgados do Plenário: ADIN nº 4 . 1 67 ED-AgR, rei. Min.
Joaquim Barbosa, julgado em 2 7 . 2 . 20 1 3 , Informativo 696, 25 de fevereiro a
l 0 de março de 20 1 3; ADIN nº 3.934 ED-AgR, rel.Min. Ricardo Lewandowski,
julgado em 24.02.20 1 1 , DJ de 3 1 .03.201 1 .
3 2 0 . Julgamento em 22 .04. 2009, DJ de 1 5 . 10 . 2009, Informativo 543, de 20
a 24 de abril de 2009 . Pefilhando o mesmo entendimento: ADIN nº 4. 246,
rei . Min . Ayres Britto, julgamento em 10.05.20 1 1 , DJE de 20.05.20 1 1 ; ADIN
nº 4 .067-AgR, rei. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em l 0.03.201 O, Plenário,
DJE de 23.04 . 20 1 0. ADIN nº 4.2 1 4, rei. Min. Dias Toffoli, decisão monocrá
tica, julgamento em 02.03 . 20 1 0, DJE de 09.03 . 2 0 1 0 .
1 71
remessa dos autos à mesa para julgamento. Conside
rou-se que o relator, ao encaminhar o processo para a
pauta, j á teria firmado sua convicção, razão pela qual
os fundamentos trazi d os pelos amici curiae pouco se
riam aproveitados, e dificilmente mudariam sua con
clusão. Além disso, entendeu-se que permitir a inter
venção de terceiros, que já é excepcional, às vésperas
do julgamento poderia causar problemas relativamente
à quantidade de intervenções, bem como à capacidade
de absorver argumentos apresentados e desconhecidos
pelo relator. Por fim, ressaltou-se que a regra processual
teria de ter uma limitação, sob pena de se transformar
o amicus curiae em regente do processo .
Na oportunidade, ficaram vencidos, na preliminar,
os Ministros Cármen Lúcia, Carlos Britto, Celso de
Mello e Gilmar Mendes, Presidente, que admitiam a
intervenção, no estado em que se encontra o processo,
inclusive para o efeito de sustentação oral. Estes salien
tavam que essa intervenção, sob uma perspectiva plu
ralística, conferiria legitimidade às decisões do STF no
exercício da jurisdição constitucional. Observavam, en
tretanto, que seria necessário racionalizar o procedi
mento, haj a vista o concurso de muitos amici curiae
implicar a fragmentação do tempo disponível, com a
brevidade das sustentações orais. Ressaltavam, ainda,
que, tendo em vista o caráter aberto da causa petendi,
a intervenção do amicus curiae, muitas vezes, mesmo
já incluído o feito em pauta, poderia invocar novos
fundamentos, mas isso não impediria que o relator,
julgando necessário, retirasse o feito da pauta para
apreciá-los.
O art. 8º da Lei dispõe que, expirado o prazo das
informações, serão ouvidos sucessivamente, o Advoga
do-Geral da União e o Procurador-Geral da República,
1 72
que deverão se manifestar, cada qual1 no prazo de
quinze dias.
Como se sabe1 o Advogado-Geral da União1 nos
termos do art. 1 031 § 3°1 da Constituição1 tem como
função obrigatória no processo de ação direta a defesa
da constitucionalidade do ato normativo impugnado.
Atua ele1 assim1 como uma espécie de curador da
presunção de constitucionalidade das leis e atos nor
mativos 1 3 2 1 contribuindo1 ademais1 para a formação do
contraditório.
Sem embargo1 o Supremo Tribunal Federal já ad
mitiu expressamente a possibilidade de o Advogado
Geral da União se manifestar pela inconstitucionalidade
da norma questionada. No bojo da ADIN nº 1 . 6 1 61
ficou consignado que " [o] munus a que se refere o
imperativo constitucional (CF1 art. 1 031 § 3°) deve ser
entendido com temperamentos. O Advogado-Geral da
União não está obrigado a defender tese jurídica se
sobre ela esta Corte já fixou entendimento pela sua
inconstitucionalidade. " 322 Nestes casos1 a manifestação
prévia do Supremo1 a quem cabe a guarda da Consti
tuição1 terá derrubado a presunção de constitucionali
dade da norma1 revelando-se absolutamente irracional
e atentatório à supremacia constitucional que o AGU1
ainda assim1 insista na defesa da norma impugnada.
É possível ainda questionar se o AG U 1 para além
destas hipóteses1 estará sempre jungido à defesa da lei
atacada. A resposta parece negativa. Uma interpretação
exclusivamente literal do artigo 1 03 1 § 3 º da CF1 reve
la-se de todo irrazoável e muitas vezes contrária aos
1 73
objetivos da norma. A finalidade da prev1sao de um
curador da presunção da constitucionalidade das leis é
proporcionar um embate de ideias e perspectivas no
processo objetivo de modo a oferecer ao Supremo Tri
bunal Federal o maior número de argumentos disponí
veis para que a questão constitucional sej a analisada
por todos os ângulos. 323
Não se pode olvidar, porém, que a Advocacia-Geral
da União possui estrutura hierarquizada e conexão in
dissociável com a defesa dos interesses das instituições
federais, notadamente suas competências (art. 1 3 1 1
CF) . Assim, quando a lei ou ato questionado em sede
de ADIN conflitar com interesses institucionais da
União, 3 24 ter-se-ia uma posição extremamente delicada
1 74
para o AG U, o qual teria de optar entre a defesa dos
interesses da União, em cumprimento ao disposto no
art. 1 3 1 da Constituição, ou o exercício o munus que
lhe foi conferido pelo §3° do art. 1 03 nos processos
objetivos de inconstitucionalidade. 325
Neste contexto, não há como fugir dos fatos: em
numerosos casos o AGU efetivamente sustentou a in
constitucionalidade da norma impugnada, a despeito da
previsão do art. 1 03, §3º1 da Constituição. 326 Isso de-
políticos, São Paulo: Saraiva, 1 990, pp. 260- 1 , nota 62; e VELOSO, Zeno.
Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. Belo Horizonte: Dei Rey, 3ª
edição, 2003, pp. 90-94. Esta questão não será desenvolvida, mas anote-se que
o Supremo tem precedentes admitindo a possibilidade de, em casos que tais,
não defender a constitucionalidade da norma. Por exemplo: na ADIN nº
3 . 5 99-DF, proposta pelo Presidente da República contra leis federais que
alteravam a remuneração de servidores públicos do Legislativo federal, o Ad
vogado-Geral da União manifestou-se pela procedência da ação, pugnando
consequente declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos atacados. Não
obstante tal postura, os Ministros presentes à sessão sequer comentaram a
postura da AG U . Consignando a postura do AG U nesse mesmo sentido, v.
ADIN nº 3 . 8 1 8-ES.
3 2 5 . Não se ignora que o STF adotou entendimento segundo o qual "não existe
contradição entre o exercício da função normal do Advogado-Geral da União,
fixada no caput do art. 1 3 1 da Carta Magna, e o da defesa da norma ou ato
inquinado, em tese, como inconstitucional, quando funciona como curador espe
cial, por causa do princípio da presunção de sua constitucionalidade" (ADIN
QO 72, rel . Min. Moreira Alves, RTJ 1 3 1 : 470) . No entanto, o que se propugna
é uma reflexão sobre a correção deste entendimento.
3 2 6 . Nesse sentido, vej am-se os acórdãos proferidos no julgamento das ADIN
nº 2.336, rei. Min . Nelson Jobim; ADIN nº 2 . 847, rei. Min. Carlos Velloso;
ADIN nº 2 . 88 1 , rei . Min. Carlos Velloso; ADIN nº 2 .903, rei. Min. Celso de
Mello; ADIN 2 . 988, rei. Min. Cezar Peluso; ADIN nº 2 . 995, rei. Min. Celso
de Mello; ADIN nº 3 .035, rei. Min. Gilmar Mendes; ADIN nº 3 . 1 47, rei. Min.
Carlos Britto; ADlN nº 3 . 1 48, rei. Min. Celso de Mello; ADIN nº 3 . 1 67, rei.
Min. Eros Grau; ADIN nº 3 . 1 89, rei. Min. Celso de Mello; ADIN nº 3.293,
rei. Min. Celso de Mello; ADIN nº 3 . 5 2 5 , rei. Min. G ilmar Mendes; ADI N
nº 3 . 5 8 7, rei . Min. Gilmar Mendes; ADIN n º 3 . 590, rei. Min. Eros Grau, rei.
p/ Acórdão Min. Marco Aurélio; ADIN nº 3.599, rei. Min. G ilmar Mendes;
1 75
monstra, de forma clara, como a interpretação literal
é vetusta e incompatível com a realidade. Mais além.
Pode-se dizer ainda que a intervenção inexoravelmente
vinculada do AG U em tais circunstâncias não é sequer
desejável. O seu aporte argumentativo não contribuiria
para robustecer a contraposição de ideias, mas sim para
mascarar os reais intentos da instituição que integra,
gerando problemas do ponto de vista da previsibilidade,
da coerência e da atuação dos Poderes Públicos.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal pareceu
mover-se para a alteração de sua vetusta jurisprudência
sobre o tema. No bojo da ADIN nº 3 . 9 1 6, rel. Min.
Eros G rau, o Tribunal, por maioria, rejeitou questão
de ordem no sentido de suspender o julgamento do
processo para determinar ao Advogado-Geral da União
apresentasse defesa da lei impugnada, nos termos do
artigo 1 03 , § 3°, da Constituição Federal. 3 2 7 Na opor
tunidade ficaram vencidos os Ministros Marco Aurélio,
que havia suscitado a questão, e Joaquim Barbosa. En
tendiam estes Ministros que a AG U não teria opção
diante do texto claro da Lei Maior, devendo, pois,
inexoravelmente defender o ato normativo impugnado.
A maioria, porém, entendeu que a AG U manifesta-se
pela conveniência da constitucionalidade e não da lei,
sendo-lhe lícito apresentar a sua própria convicção ju
rídica sobre a questão trazida a juízo .
Menos problemática é a posição d o Procurador-Ge
ral da República. Este, por seu turno, elabora seu pa
recer com total autonomia - reflexo, de resto, da
independência funcional reconhecida a todos os mem-
ADIN n° 3 .645, rel . Min. Ellen Gracie; ADIN nº 3 .679, rel. Min. Sepúlveda
Pertence; ADIN nº 3 .8 1 8, rei. Min. Carlos Britto. Em todas elas, os relatores
mencionaram, expressamente, a posição do AGU pela inconstitucionalidade.
3 2 7 . Julgamento em 0 7 . 1 0.09, DJ de 1 9. 1 0.09.
1 76
bros do Ministério Público (CF, art. 1 2 7, § 1 º) -
podendo, inclusive, como já visto, opinar pela impro
cedência do pedido mesmo naquelas ações que houver
ajuizado.
O art. 9° da Lei nº 9 . 868/99 institui saudável e
auspiciosa inovação nos processos de fiscalização abs
trata da constitucionalidade no Brasil. Costuma-se di
zer3 28 - e esta tem sido mesmo a posição do Supremo
Tribunal Federal 329 - que a ação direta não comporta
dilação probatória, à vista de seu caráter estritamente
objetivo . Todavia, a Lei nº 9 . 868/99 desmistifica tal
ideia, prevendo, em seu art. 9°, § 1 º, a possibilidade
de o relator, em caso de necessidade de esclarecimento
de matéria ou circunstância de fato ou de notória in
suficiência das informações existentes nos autos, re
quisitar informações adicionais, designar perito ou co
missão de peritos para que emita parecer sobre a ques
tão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir
depoimentos e pessoas com experiência e autoridade
na matéria. 33 0 Já o § 2° do mesmo artigo abre a possi
bilidade de o relator solicitar informações aos Tribunais
Superiores, aos Tribunais federais e aos Tribunais es
taduais acerca da aplicação da norma impugnada no
âmbito de suas respectivas jurisdições.
1 77
Como relata a exposição de motivos do Projeto de
Lei, nos Estados Unidos, o chamado B randeis-Brief -
1 78
grupos de peritos e autoridades em determinadas maté
rias científicas para esclarecer-se sobre os aspectos em
píricos resultantes da incidência da lei objeto do controle
de constitucionalidade. 3 3 3
Por outro lado, as audiências públicas e a consulta
à jurisprudência dos Tribunais superiores, regionais fe
derais e estaduais poderão servir como instrumentos
que permitirão à Corte Constitucional auscultar as
convicções e interpretações da Constituição formuladas
pelos magistrados do país e pelos diversos segmentos
da cidadania. À sabedoria, sensibilidade e espírito de
mocrático dos juízes do Supremo Tribunal Federal ca
berá fixar o grau adequado de permeabilidade da Corte
a tais influências. De todo modo, a mera possibilidade
de sua manifestação como um fator condicionante das
decisões sobre as questões constitucionais no país j á
representa, por s i só, u m notável avanço.
O Supremo Tribunal Federal em diversas oportuni
dades convocou audiências públicas em processos de
controle concentrado de constitucionalidade. A primei
ra da história do Supremo Tribunal Federal ocorreu no
bojo da ADIN nº 3 . 5 1 0 de relataria do Ministro Carlos
Britto. Tratava-se de ação direta de inconstitucionali
dade, proposta pelo Procurador-Geral da República,
questionando dispositivos da Lei de Biossegurança (Lei
nº 1 1 . 1 05/05) que autorizavam utilização de material
embrionário, em vias de descarte, para fins de pesquisa
e terapia. O Chefe do Ministério Público Federal sus
tentava que os dispositivos impugnados contrariavam
1 79
11 a inviolabilidade do direito à vida, porque o embrião
humano seria vida humana, e faziam ruir fundamento
maior do Estado democrático de direito, que radica na
preservação da dignidade da pessoa humana".
O Ministro relator1 entendendo que a matéria em
questão se revestia de saliente importância1 por suscitar
numerosos questionamentos e múltiplos entendimentos
a respeito da tutela do direito à vida1 determinou a
realização de audiência pública1 a teor do § 1 ° do art.
9° da Lei nº 9 . 868/99. Segundo seu entender1 a au
diência1 " além de subsidiar os Ministros deste Supremo
Tribunal Federal, também possibilitará uma maior par
ticipação da sociedade civil no enfrentamento da con
trovérsia constitucional1 o que certamente legitimará
ainda mais a decisão a ser tomada pelo Plenário desta
nossa colenda Corte. " (despacho publicado no DJ de
0 1 .02 . 2 007) .
Sem embargo da previsão legal para a designação
de audiência pública (§ 1 ° do art. 9° da Lei nº 9 . 868/99) ,
não havia, no âmbito do Supremo Tribunal Federal,
norma do regimento interno dispondo sobre o proce
dimento a ser especificamente observado. Diante dessa
carência normativa1 determinou o Min. Carlos Britto
que se aplicasse como "parâmetro o Regimento Interno
da Câmara dos Deputados1 no qual se encontram dis
positivos que tratam da realização, justamente, de au
diências públicas (arts. 2 5 5 usque 2 5 8 do RI/CD)"
(despacho publicado no DJ de 3 0 . 0 3 . 200 7) . Somente
com a emenda regimental nº 29 de 1 8 de fevereiro de
20091 o parágrafo único do art. 1 54 do Regimento
Interno do Supremo Tribunal Federal passou a prever
o procedimento para as audiências públicas perante a
mais alta Corte do Judiciário brasileiro.
A audiência foi realizada no dia 20 de abril de 2007
no auditório da 1 ª Turma do STF . Foram convidados
1 80
1 7 especialistas1 além dos arrolados pelo Procurador
Geral da República1 que compareceram independente
da expedição de convite . Durante mais de 1 O horas
argumentos técnicos a favor e contra as pesquisas foram
ventilados. A TV Justiça e a Rádio Justiça transmitiram
ao vivo as palestras .
As outras oportunidades em que o Supremo Tribunal
Federal se valeu da convocação de audiência pública
foram em sede de arguições de descumprimento de
preceito fundamental. A Lei nº 9 . 882/991 que rege o
procedimento da ADPF1 contém dispositivo bastante
semelhante ao art. 9°1 § 1 °1 da Lei nº 9 . 8 68/99 . Prevê
o art. 6º1 § 1 °1 da Lei nº 9 . 882/99 que1 "se entender
necessário1 poderá o relator ouvir as partes nos processos
que ensej aram a arguição1 requisitar informações adi
cionais1 designar perito ou comissão de peritos para que
emita parecer sobre a questão, ou ainda1 fixar data
para declarações, em audiência pública1 de pessoas com
experiência e autoridade na matéria" (grifos nossos) .
Na ADPF nº 1 0 1 , rel. Min. Cármen Lúcia, ajuizada
pelo Presidente da República, discutia-se a legitimidade
de decisões judiciais que permitiam a importação de
pneus usados em contrariedade a Portarias do Depar
tamento de Operações de Comércio Exterior - Decex
e da Secretaria de Comércio Exterior - Secex; as
Resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente
- Conama; e os Decretos Federais que1 expressamente1
vedam a importação de bens de consumo usados1 es
pecialmente pneus usados, em reverência ao direito ao
meio ambiente1 garantido pelo art. 2 2 5 da CF/88 .
A Min. Relatora entendeu que1 ante a elevada re
percussão social1 econômica e jurídica da matéria1 bem
como o alto grau de conhecimento técnico demandado
para o deslinde das questões postas perante o Supremo
Tribunal1 era necessária a realização de audiência pú-
181
blica, nos termos do § 1 ° do art. 6° da Lei n. 9 . 8 82/99,
a ocorrer no dia 2 7 de junho de 2008 (despacho pu
blicado no DJ de 20.06.2008) . Estabeleceu-se, ainda,
que, na abertura da audiência pública, o arguente teria
a palavra em primeiro lugar, pelo prazo de 20 minutos.
Na sequência, seria sorteada a ordem dos expositores
dos grupos, cuja manifestação alternaria segundo a tese
defendida. Decidiu-se também que o conteúdo das
apresentações seria transmitido pela TV e Rádio Justiça
e pelas demais transmissoras que assim o requeressem.
Na ADPF nº 54, rel. Min. Marco Aurélio, discutiu-se
a possibilidade de interrupção da gravidez quando cons
tatada a gestação de feto anencéfalo. A ação, ajuizada
pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na S aú
de (CNTS), buscou demonstrar que a antecipação te
rapêutica do parto não consubstancia aborto, pelo que
este envolve a vida extra-uterina em potencial. Argu
mentou-se ainda que impor à mulher o dever de carregar
por nove meses um feto que sabe, com plenitude de
certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia
e frustração, resultando em violência às vertentes da
dignidade humana - a física, a moral e a psicológica
- e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade,
além de colocar em risco a sua saúde.
Reconhecendo a complexidade da matéria e a mul
tiplicidade de questionamentos envolvidos na questão,
o Min. Relator Marco Aurélio determinou a realização
de audiência pública na forma do art. 6°, § 1 º, da Lei
nº 9 . 8 8 2 / 9 9 ( d e s p a c h o p u b l i c a d o n o DJ d e
0 5 . 1 0 . 2004) . As audiências foram realizadas nos dias
26 e 28 de agosto e nos dias 04 e 1 6 de setembro de
2008, contando com participação de 2 5 interessados,
entre especialistas e pessoas com experiência no tema.
O pedido deduzido na ação foi julgado procedente,
declarando-se inconstitucional a interpretação que ti-
1 82
pificava a interrupção da gravidez de feto anencéfalo
como crime de aborto, enquadrável nos artigos 1 2 4,
1 2 6 e 1 2 8, incisos I e II, do Código P enal. 334
Na ADPF nº 1 86, rel. Min. Ricardo Lewandowski,
foi convocada audiência pública para ouvir o depoimen
to de pessoas com experiência e autoridade em matéria
de políticas de ação afirmativa no ensino superior ( des
pacho publicado no DJ de 2 3 .09. 2009) . A ADPF em
questão foi proposta contra atos administrativos que
resultaram na utilização de critérios raciais para pro
gramas de admissão na Universidade de Brasília - UnB .
O Min. relator, considerando a relevância jurídica
da questão, bem como sua alta repercussão social, de
terminou a convocação de audiência pública a ser rea
lizada nos dias 3 a 6 de março de 20 1 0, das 9h às 1 2h,
seguindo o disposto no art. 1 54, III, parágrafo único,
do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Além da expedição de convites a autoridades de des
taque na ordem constitucional brasileira, como o Pre
sidente do Congresso Nacional, o Procurador-Geral da
República e o Advogado-Geral da União, publicou-se
também edital de convocação para que os interessados
pudessem requerer sua participação. O Plenário, após
colher as declarações na audiência pública, julgou im
procedente o pedido formulado, entendendo ser cons
titucional o sistema de reserva de 20% (vinte por cento)
de vagas no processo de seleção para ingresso de estu
dantes com base em critério étnico-racial.
Atualmente, há diversas audiências públicas já rea
lizadas ou que ainda acontecerão em diversos processos
de controle abstrato de constitucionalidade cujo julga-
1 83
mento ainda se encontra pendente. Em maio de 2 0 1 2,
por exemplo, foi realizada audiência pública a pedido
do Ministro Luiz Fux nos autos da AD IN n ° 4 . 1 03, a
qual discute a constitucionalidade da Lei nº 1 1 . 705/08
(a "Lei Seca") , que proíbe a venda de bebidas alcoólicas
à beira de rodovias federais ou em terrenos contíguos
à faixa de domínio com acesso direto à rodovia. O
mesmo se deu na ADIN nº 3 . 93 7, que impugna a Lei
nº 1 2 . 68 4/07, do Estado de S ão Paulo, que proíbe o
uso de produtos materiais ou artefatos que contenham
qualquer tipo de amianto ou asbesto em sua composi
ção. A audiência foi realizada audiência pública em
agosto de 2O1 2 a pedido do Ministro Marco Aurélio.
O Ministro Luiz Fux utilizou-se do instituto ainda
em outras oportunidades. Nas ADIN nº 4 . 679, 4. 7 5 6
e 4 . 7 4 7, foram realizadas audiências públicas e m feve
reiro de 20 1 3 para discutir o marco regulatório da TV
por assinatura no Brasil, em decorrência da edição da
Lei n ° 1 2 . 48 5 / 1 1 , bem como foram realizadas audiên
cias públicas para fossem debatidos temas relacionados
às queimadas em canaviais (RE 5 8 6 . 2 24, em abril de
2 0 1 3) . No mesmo ano, também foram realizadas au
diências convocadas pelo Ministro Dias Toffoli sobre
campos eletromagnéticos de linhas de transmissão de
energia (RE 62 7 . 1 89, em março de 20 1 3) .
Por fim, destaca-se que estão previstas, ainda para
o ano de 2 0 1 3, a realização de audiências públicas sobre
a possibilidade de cumprimento de pena em regime
menos gravoso quando o Estado não dispuser, no sistema
penitenciário, de vaga no regime indicado na condena
ção (RE 64 1 . 3 20, rel. Min. Gilmar Mendes) e acerca
dos pontos de vista econômico, político, social e cultural
concernentes ao sistema de financiamento de campa
nhas eleitorais vigente, a ser analisado na ADIN nº
4 .650, de relataria do Ministro Luiz Fux.
1 84
Os arts . 1 O a 1 2 da Lei nº 9 . 868/99 cuidam da
regulamentação da medida cautelar na ação direta de
inconstitucionalidade, prevista expressamente no art.
1 02, inciso I, alínea "p", da Constituição da República.
O art. 1 0, caput, determina que a cautelar será
concedida por decisão da maioria absoluta dos membros
do Tribunal, respeitado o quorum mínimo de oito Mi
nistros presentes (art. 2 2 ) , após audiência, em cinco
dias? 35 dos órgãos ou autoridades dos quais emanou o
ato. Com a exigência de que a decisão seja tomada por
maioria absoluta - ainda que em sede cautelar -
presta-se reverência ao art. 9 7 da Constituição. Embora
o preceptivo se refira apenas à declaração da inconsti
tucionalidade, o que, numa interpretação restritiva, po
deria levar à inexigibilidade da maioria absoluta para
as decisões cautelares, o legislador ordinário obrou bem,
atentando para a teleologia da norma constitucional e
para a circunstância de que, no mais das vezes, o acórdão
proferido em julgamento ao pedido de medida cautelar
é decisivo e permanece em vigor por vários anos.
Questão relevante é saber se o relator da ação direta
está autorizado a conceder o pleito liminar de forma
monocrática. Embora o texto da Lei nº 9 . 868/99 se
refira ao Plenário da Corte como órgão competente
para a apreciação do pedido, diversos julgados do Su
premo Tribunal Federal 33 6 já admitiram o deferimento
335 . Na ADIN-MC nº 2 . 099, rel. Min. Marco Aurélio, ficou assentado que
" [a] s informações de que cuida o artigo 1 0 da Lei nº 9. 868/99 devem ser
prestadas em cinco dias, prazo que, ultrapassado, viabiliza o exame do pedido
de concessão de liminar " .
33 6 . ADIN-MC nº 4 . 3 0 7 , rel. Min. Cármen Lúcia, decisão monocrática em
02 . 1 0.2009, DJE de 08 . 1 0.2009, referendado pelo Plenário em 1 1 . 1 1 .2009,
DJE de 05 .03.20 10; ADIN-MC nº 4. 1 90, rel. Min. Celso De Mello, decisão
monocrática em 0 1 .07 .2009, DJE de 04.08.2009, referendado pelo Plenário
1 85
monocrático de medida liminar em ações de controle
abstrato de constitucionalidade. O entendimento pare
ce ser razoável à luz do poder geral da cautela inerente
à própria prestação jurisdicional1 sendo justificável (i)
diante de situações de grave risco à ordem constitucional
e (ii) em contextos de especial sobrecarga do Plenário1
nos quais a apreciação do pedido de medida cautelar
poderia ser impedido por problemas de agenda. 337
O § 1 ° do art. 1 O faculta a oitiva do Advogado-Geral
da União e do Procurador-Geral da República1 cada
qual em três dias1 a critério do relator . O § 2° do
mesmo artigo faculta a realização de sustentação oral
no julgamento do pedido de medida cautelar1 o que se
afigura positivo1 dada a importância e a longevidade
que a decisão adquire no contexto da realidade forense
brasileira. O § 3°1 por fim1 dispensa1 em casos de
1 86
excepcional urgência, a audiência dos responsáveis pela
edição do ato normativo impugnado, possibilitando a
concessão da cautelar inaudita altera parte.
Como qualquer medida cautelar, a concessão da
liminar em ação direta de inconstitucionalidade está
sujeita aos requisitos genéricos de plausibilidade da
pretensão (fumus bani iuris) e perigo na demora da
decisão definitiva (periculum in mora) . Rodrigo Lopes
Lourenço colaciona hipóteses em que o Supremo Tri
bunal Federal tem negado a liminar, por ausência de
periculum in mora: a) decurso de longo tempo desde
a edição da norma impugnada; b) risco elevado de
prejuízos caso concedida a liminar, superiores aos de
correntes do seu indeferimento; c) lei inquinada de
inconstitucional é meramente autorizativa ou de eficácia
limitada à ulterior edição de norma regulamentadora. 338
Por fim, resta salientar que, em alguns casos, a Corte
Suprema tem mitigado a exigência do periculum in
mora, substituindo-o pela conveniência administrativa
do deferimento da liminar. Tal entendimento tem ser
vido para evitar que normas teratológicas, editadas há
tempo considerável, permaneçam produzindo efeitos,
com sensível prejuízo para o interesse público. 3 3 9
1 87
Em regra, a concessão da liminar pelo Supremo
Tribunal Federal em sede de ação direta opera efeitos
apenas ex nunc. Todavia, a Corte vem, recentemente,
mitigando tal orientação, já havendo concedido limina
res em ações diretas com efeitos retroativos . 34º Tal é,
precisamente, o que proclama o art. 1 1 , § 1 º, da Lei
nº 9 . 8 68/99, placitando, assim, a jurisprudência conso
lidada sobre a matéria.
O § 2º do referido art. 1 1 , por seu turno, estatui
que a concessão da medida cautelar torna aplicável a
legislação anterior acaso existente, salvo expressa ma
nifestação da Corte em sentido contrário. Esta é, com
efeito, uma consequência lógica e obrigatória da inva
lidade da lei inconstitucional, que se revela inapta à
produção de qualquer efeito válido, inclusive a revoga
ção de outra lei. A doutrina chancela placidamente tal
entendimento. 34 1
3 40 ADIN-MC 1 .434-SP, rei. Min. Celso de Mello, RTJ 1 64/506: "A medida
cautelar, em ação direta de inconstitucionalidade, reveste-se, ordinariamente,
de eficácia ex nunc, operando, portanto, a partir do momento em que o
Supremo Tribunal Federal a defere. Excepcionalmente, no entanto, a medida
cautelar poderá projetar-se com eficácia ex tunc, com repercussão sobre situa
ções pretéritas. A excepcionalidade da eficácia ex tunc impõe que o Supremo
Tribunal Federal expressamente a determine no acórdão concessivo da medida
cautelar. A ausência de determinação expressa importa em outorga de eficácia
ex nunc à suspensão cautelar de aplicabilidade da norma estatal impugnada em
ação direta. Concedida a medida cautelar (que se reveste de caráter temporá
rio) , a eficácia ex nunc (regra geral) tem seu início marcado pela publicação da
ata da sessão de julgamento no Diário de Justiça da União, exceto em casos
excepcionais a serem examinados pelo Presidente do Tribunal, de maneira a
garantir a eficácia da decisão. " No mesmo sentido, cf. ADIN-MC nº 2 . 1 05,
rei. Min. Celso de Mello; ADIN-MC nº 2 . 66 1 , rei . Min. Celso de Mello;
ADIN-MC nº 2 . 5 26, rei. Min. Moreira Alves; ADIN-MC nº 2 . 667, rei . Min.
Celso de Mello; ADIN-MC nº 2 .408, rei. Min. Celso de Mello; ADIN-MC nº
2.458, rel. Min. Ilmar Galvão.
341 . Luís Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição, ed. cit.,
1 88
A tal entendimento doutrinário corresponde, sem
contrastes, a jurisprudência do Supremo Tribunal Fe
deral. Ainda em 1 986, a Suprema Corte, em sessão
plenária, proferiu acórdão unânime em julgamento do
pedido de revogação de medida cautelar formulado nos
autos da Representação de Inconstitucionalidade nº
1 . 3 5 6- 1 , assim ementado, verbis:
1 89
anterior, desde o primeiro momento da concessão da
medida cautelar, até o julgamento final da repre
sentação. " 34 3
343.Idem, p. 6 5 .
344.ADIN n º 652-5/MA, rei. Min. Celso d e Mello, D J U d e 02.04.93. No
mesmo sentido, cf RTJ 1 46/462; RTJ 1 74/58; RTJ 1 0 1 /499; RTJ 1 20/64.
RTJ 1 02/67 1 .
1 90
cionalidade . 345 Eventual ação direta proposta com este
fim estaria fadada à extinção sem julgamento de mérito.
Ora, se nem mesmo em ação direta que fosse ajuizada
com esta finalidade específica a Corte estaria autorizada
a suspender, com alcance erga omnes, a eficácia de
dispositivos da legislação revogada, como admitir pu
desse fazê-lo em outra ação direta, que tem por objeto
questionar a constitucionalidade de outro diploma legal?
Assim, em hipóteses que tais, o Supremo Tribunal
Federal, em coerência com sua jurisprudência, deve
limitar-se a suspender a eficácia da norma impugnada,
deixando para o controle concreto aferir se a legislação
anterior permanece ou não em vigor.
Não obstante o entendimento aqui esposado, com
preensão diversa foi defendida no voto do Ministro
Relator Sepúlveda Pertence, na ADIN nº 2 . 2 5 8, em
que se questiona, dentre outros dispositivos da Lei nº
9 . 868/99, o seu art. 1 1 , §2º. Sobre o efeito repristina
tório em discussão, confira-se trecho do voto, in verbis:
1 91
julgamento de uma ação direta de inconstituciona
lidade, onde, como sucede no sistema brasileiro, um
mesmo tribunal, o STF, cumule as funções de órgão
exclusivo do controle abstrato com o de órgão de
cúpula do sistema difuso. Com efeito, na situação
cogitada, é patente que o afastamento por inconsti
tucionalidade da revivescência da legislação anterior
- tal como sucederia com a declaração incidente de
sua invalidade -, não gerará efeitos equiparáveis
à declaração na via principal da ação direta: basta
considerar que será despida de eficácia retroativa
erga omnes e vinculante para outros efeitos senão os
do veto à sua 'repristinação ' . "
Grau; ADIN nº 3 .022, rel. Min. Joaquim Barbosa; ADIN nº 4.000, rel. Min.
Joaquim Barbosa; ADIN nº 3 . 500, rel. Min. Marco Aurélio.
1 92
da Constitucional nº 03/9 3 . Trata-se1 na feliz expressão
cunhada por Gilmar Ferreira Mendes1 de uma ação
direta de inconstitucionalidade com o sinal trocado. 347
Sua finalidade é a de afastar a insegurança jurídica ou
o estado de incerteza sobre a validade de lei ou ato
normativo federal1 por meio de uma decisão proferida
pelo Supremo Tribunal Federal com efeitos vinculantes
em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao
Poder Executivo (CF, art. 1 02, § 2°) . Julgando proce·
dente o pedido formulado na ação, a Corte Suprema
convola a presunção de constitucionalidade da lei1 que
é relativa (juris tantum) , em presunção absoluta (juris
et de jure) 1 impedindo, daí por diante, que qualquer
outro órgão judicial e a Administração Pública como
um todo deixem de aplicá-la, argumentando com a sua
inconstitucionalidade . 348
Logo após a edição da referida Emenda, inúmeros
juristas publicaram estudos sustentando a inconstitu
cionalidade da nova ação. 349 O Supremo Tribunal Fe-
1 93
deral, no entanto, no julgamento da Ação Declaratória
de Constitucionalidade nº 1 -DF, ao apreciar questão
de ordem, rejeitou tal alegação de inconstitucionalidade.
A decisão foi tomada por ampla maioria, ficando ven
cido, solitariamente, o eminente Ministro Marco Au
rélio. 3 50 Embora a questão da constitucionalidade do
novo instituto tenha ficado prejudicada após o pronun
ciamento do Pretório Excelso, vale conferir o resumo
esclarecedor da controvérsia traçado por Clemerson
Merlin Cleve, que se posiciona no sentido da legitimi
dade constitucional da ação. 3 5 1
O art. 1 3 da Lei n° 9 . 868/99 traz o rol dos legiti
mados ativos à propositura da ação declaratória de
constitucionalidade. Sua redação, no entanto, continua
a reproduzir o antigo art. 1 03, § 4°, CF/88, revogado
pela Emenda Constitucional nº 4 5 de 2004 . Esta, a seu
turno, ampliou tal elenco, estendendo o direito de
propositura a todos os entes previstos no art. 1 03 . Por
consequência, impõe-se um dever de leitura do art. 1 3
da Lei 9. 868/99 à luz do art. 1 03 da CF/ 8 8 . Fica a
ressalva ao leitor desavisado .
O art. 1 4, em seu inciso III, institui um requisito
a mais para a peça vestibular da ação declaratória de
3 50 . ADC-QO nº 1 -DF, rei. Min. Moreira Alves, RTJ 1 5 7/3 7 1 : "Ação decla
ratória de constitucionalidade. Incidente de inconstitucionalidade da Emenda
Constitucional nº 3/93, no tocante à instituição dessa ação. Questão de ordem.
Tramitação da ação declaratória de constitucionalidade. Incidente que se julga
no sentido da constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 3, de 1 993,
no tocante à ação declaratória de constitucionalidade. " Justificando a constitu
cionalidade da ação declaratória de constitucionalidade, sustentou o Min. Se
púlveda Pertence, na ADC-QO nº 1 -DF, que " ( . . . ) tanto se ofende a Consti
tuição aplicando lei inconstitucional quanto negando aplicação, a pretexto de
inconstitucionalidade, à lei que não o seja. Em ambos os casos, fere-se a
supremacia da Constituição " .
3 5 1 . Clemerson Merlin Cleve, o b . cit . , p. 282/290.
1 94
constitucionalidade em relação à ação direta de incons
titucionalidade: a demonstração da existência de con-
trovérsia judicial relevante sobre a aplicação da dispo
sição objeto da ação declaratória.
Antes mesmo da edição da Lei nº 9 . 868/99, o Su
premo Tribunal Federal já manifestara o entendimento
de que é necessária a demonstração da fundada incer
teza sobre a constitucionalidade da lei ou ato normativo
federal, como requisito de cabimento da ação declara
tória de constitucionalidade . 35 2 Tal incerteza deve ser
comprovada pela juntada de sentenças e acórdãos dos
Juízos e Tribunais, de modo a asseverar a controvérsia
jurisprudencial quanto à legitimidade constitucional da
norma que constitui o objeto da ação. 353
Os arts. 1 5 a 20 da Lei se limitam a determinar a
aplicação à ação declaratória de constitucionalidade dos
mesmos ritos previstos para a ação direta de inconstitu
cionalidade. Não cuidou a Lei, como deveria, de estabe
lecer um contraditório no processo da ação declaratória.
1 96
Com relação à possibilidade de concessão de medida
cautelar em ação declaratória, o Supremo Tribunal Fe
deral já se manifestou pelo seu cabimento, inobstante
a inexistência de previsão constitucional expressa -
como existe para a ação direta de inconstitucionalidade
(CF, art. 1 02, I, "p") -, fundando-se, para tanto, no
poder geral de cautela reconhecido a todo Juiz ou
Tribunal. No julgamento do pedido de medida cautelar
na ação declaratória de constitucionalidade nº 4-6 (cujo
objeto era dispositivo da Lei nº 9 .494/9 7 que proibiu,
em determinadas hipóteses, a antecipação da tutela
jurisdicional contra a Fazenda Pública) , a Corte Supre
ma deferiu a liminar, com efeitos ex nunc, para impedir
a concessão de tutelas antecipadas dali em diante, bem
como para sustar os efeitos futuros daquelas anterior
mente concedidas . 355
Já na ADC nº 9, redação para o acórdão Min. Ellen
Gracie (DJ de 06.02. 2002) , o Supremo Tribunal Fe
deral, por maioria de votos, deferiu o pedido cautelar
para suspender, com eficácia ex tunc e com efeito
vinculante, até o final do julgamento da ação, a prolação
de qualquer decisão que tivesse por pressuposto a cons
titucionalidade ou a inconstitucionalidade dos arts. 1 4
a 1 8 da Medida Provisória nº 2 . 1 52/200 1 . Tais dispo-
1 97
sitivos estabeleciam, diante da crise energética que
assolava o país, limites de uso e fornecimento de energia
elétrica, bem como fixavam medidas compulsórias de
redução do consumo, podendo culminar até mesmo
com o corte do seu fornecimento.
Deste modo, o Supremo Tribunal Federal estendeu
às cautelares concedidas em ação declaratória de cons
titucionalidade os efeitos que a Constituição Federal,
em seu art. 1 02, § 2°, reservava às decisões definitivas
de mérito proferidas nessa ação. Tanto assim que a
Corte tem admitido o uso do instrumento da Recla
mação (CF, art. 1 02, I, "l") para a garantia da autoridade
vinculante de medidas cautelares que asseveram, limi
narmente, a constitucionalidade de lei ou ato normativo
federal. 3 5 6
O art. 2 1 da Lei nº 9 . 868/99, 3 5 7 todavia, parece não
356. Nesse sentido, ADC-MC nº 8, rei. Min. Celso de Mello: "O provimento
cautelar deferido, pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de ação declaratória
de constitucionalidade, além de produzir eficácia erga omnes, reveste-se de
efeito vinculante, relativamente ao Poder Executivo e aos demais órgãos do
Poder Judiciário. A eficácia vinculante, que qualifica tal decisão - precisamen
te por derivar do vínculo subordinante que lhe é inerente -, legitima o uso
da reclamação, se e quando a integridade e a autoridade desse j ulgamento forem
desrespeitadas" . A título exemplificativo, cf. Reclamação nº 5 . 758, rei . Min.
Cármen Lúcia, DJU de 07.08.2009; Reclamação nº 2 . 726, rel. Min. Sepúlveda
Pertence, DJU de 03.02 . 2006; Reclamação nº 2 . 0 5 7, rel . Min. Ellen Gracie,
DJU de 20.08 . 2004; Reclamação nº 2.087, rel. Min. Ellen Gracie, DJU de
1 3 .06.2004.
3 5 7 . O art. 2 1 da Lei nº 9 .868/99 é objeto da ADIN nº 2 . 2 5 8, originalmente
de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence, atualmente distribuída ao Ministro
Dias Toffoli. Ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil, a ação afirma que referido dispositivo entra em colisão com o controle
difuso de constitucionalidade, garantido implicitamente na Constituição para
os juízes de primeiro grau e expressamente para os Tribunais (art. 97, CF),
ofende o princípio do juiz natural (art. 5º, XXXV I I, CF) e afronta o disposto
no art. 1 02, I, a, e § 2°. Sem embargo, as supostas violações foram rechaçadas
pelo Ministro relator, que deixou assentado que não há qualquer violação à
1 98
conferir às medidas cautelares concedidas em ação dec
laratória de constitucionalidade efeitos tão amplos
quanto lhes vinha reconhecendo a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal. Com efeito, o dispositivo
legal dispõe que a Corte poderá, pela maioria absoluta
de seus membros, deferir medida cautelar consistente
na determinação de que os juízes e os tribunais sus
pendam o julgamento dos processos que envolvam a
aplicação da lei ou ato normativo objeto da ação dec
laratória até seu julgamento definitivo. O parágrafo
único do art. 2 1 dispõe ainda que o Tribunal deverá
proceder ao julgamento do mérito da ação no prazo de
cento e oitenta dias, sob pena de perda da eficácia da
cautelar liminarmente deferida.
Importa estabelecer a inteligência mais adequada
que se deve extrair do dispositivo em exame: instituiu
ele um único tipo de provimento cautelar suscetível de
ser obtido nas ações declaratórias de constitucionalida
de, consistente na suspensão dos processos que envol
vam a aplicação da norma controvertida? Ou será que
ao utilizar o verbo poder ("O Supremo Tribunal Federal,
garantia do juiz natural (1) porque preceito visa assegurar a eficácia da decisão
futura, num ou noutro sentido, do Supremo Tribunal Federal, que, cuidando-se
de aferir da constitucionalidade, ou não, de lei ou ato normativo, é, por
excelência, o juiz natural da questão; (II) porque - diversamente da antiga
avocatória, com a qual se insiste em tentar assimilá-la -, a norma não desloca
do juiz para o STF o julgamento da causa, mas, apenas, a questão da constitu
cionalidade, que lhe cabe decidir com eficácia para todos e efeito vinculante_
Afirmou-se ainda que sequer para adotar decisão cautelar do Supremo poderá
ser julgada a ação proposta perante o juízo ordinário, porque da decisão de
mérito prolatada pelo STF poderá resultar, afinal, em sentido contrário, a
declaração de inconstitucionalidade da lei. Conclui-se, assim, que a única
solução é suspensão do andamento do feito ou, pelo menos, a suspensão da
decisão que nele se tenha que tomar, num ou noutro sentido, até a decisão de
mérito da ação direta no STF .
1 99
por decisão da maioria absoluta de seus membros, po
derá . . . ) , a Lei nº 9 . 868/99 estaria apenas criando uma
"
200
ações declaratórias de constitucionalidade. Como ex
ceção à regra geral, tal norma constitucional só pode
ser interpretada de forma estrita, e não ampliativa,
como aconselha boa e comezinha regra hermenêutica.
Ao Supremo Tribunal Federal caberá, como sói acon
tecer, a palavra final. De qualquer modo, seja qual for
o entendimento prevalecente, cabe a advertência quan
to à conveniência de que o julgamento do mérito das
ações declaratórias de constitucionalidade sej a célere
- de preferência, realizado sempre com observância
do prazo assinado no parágrafo único do art. 2 1 - de
modo a afastar os resquícios de incerteza e insegurança
jurídicas gerados pela demora demasiada e pelo risco,
sempre possível, de contradição entre a decisão final e
a decisão cautelar. Este, afinal, o grande móvel que
ensejou a criação do instrumento.
Das 3 2 ações declaratórias de constitucionalidade
ajuizadas até maio de 20 1 3 , sete (as de número 4, 5,
8 9, 1 1 , 1 2, 1 8) tiveram pedidos de liminar deferidos .
1
201
Assumiu-se, de uma vez por todas, que as ações
direta de inconstitucionalidade e declaratória de cons
titucionalidade são ações dúplices. Demais disto, ficou
claro que os efeitos das decisões em uma e outra ação
são rigorosamente simétricos. Isto significa que a pro
cedência da ação direta de inconstitucionalidade equi
vale à improcedência da ação declaratória (proclamação
da inconstitucionalidade de determinada lei ou ato nor
mativo ) e que a improcedência da ação direta de in
constitucionalidade equivale à procedência da ação dec
laratória de constitucionalidade (proclamação da cons
titucionalidade de determinada lei ou ato normativo) . 3S9
Tal é o que se contém na dicção precisa e esclarecedora
do art. 24 da Lei nº 9 . 868/99. Os arts. 22, 23, 2 5 , 2 6
e 2 8 , a seu turno, estabelecem rigorosamente a mesma
disciplina para as decisões proferidas tanto em uma
como em outra ação. Resta saber se tal tratamento é
compatível com a sistemática constitucional em vigor .
O art. 2 2 exige um quorum mínimo de oito Ministros
para que a Corte delibere acerca da constitucionalidade
ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. O
dispositivo não exibe qualquer incongruência com a
Constituição, sendo antes norma de organização interna
do Tribunal à qual nenhuma censura pode ser oposta. 360
359. Importa ressalvar, ainda que possa soar como obviedade, que a produção
de efeitos dúplices ou simétricos está condicionada ao exame do mérito. Nesse
sentido, " [o] não conhecimento da ação direta quanto ao item impugnado não
gera, em nenhuma hipótese, a declaração de sua constitucionalidade. Não há
qualquer previsão legal ou constitucional que ampare tal entendimento'' . AgR
Recl. n° 5 . 9 1 4, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ de 1 4.08.2008 .
360. Nesse sentido, dispõe o art. 1 43, parágrafo único do Regimento Interno
do Supremo Tribunal Federal: "O quorum para votação de matéria constitu
cional e para a eleição do Presidente e do Vice-Presidente, dos membros do
Conselho Nacional da Magistratura e do Tribunal Superior Eleitoral é de oito
Ministros" . Norma de idêntico teor já era expressa, muito antes da Lei nº
202
Ao contrário, cuida-se de norma que revela o zelo do
legislador para com o processo de fiscalização abstrata,
que, afinal, pode resultar na anulação ou ratificação de
leis votadas e aprovadas por representantes eleitos pelo
povo. É razoável que se exija uma quantidade mínima
de Ministros envolvidos na discussão em torno da le
gitimidade da lei, a fim de que o resultado do julga
mento reflita a posição do Tribunal como um todo.
Já o art. 2 3 estatui que a declaração da constitucio
nalidade, tal como a declaração de inconstitucionalida
de, só poderá resultar da deliberação da maioria absoluta
dos membros do Supremo Tribunal Federal (pelo menos
seis Ministros) . Quanto à proclamação da inconstitu
cionalidade, nada há que discutir: a previsão legal de
corre de exigência constitucional (CF, art. 9 7) . Mas no
que se refere à proclamação da constitucionalidade -
em relação à qual o texto constitucional é silente -
seria dado ao legislador ordinário exigir idêntico quorum
de aprovação?
A resposta é positiva. Não se pode confundir, quando
se trata do princípio da reserva de plenário, a sua
aplicação ao controle concreto e incidentat com aquela
relativa ao controle abstrato. No controle incidental,
caso o órgão fracionário entenda pela constitucionali
dade da lei, poderá prosseguir no julgamento até o
veredito final. Somente se o órgão considerar plausível
a alegação de inconstitucionalidade é que deverá cindir
o julgamento, alçando o incidente à apreciação do tri
bunal pleno ou órgão especial (CPC, art. 4 8 1 ) .
Em se tratando de declaração de constitucionalidade
em sede abstrata, mesmo inexistindo previsão consti-
203
tucional expressa1 é razoável que a lei processual exija
a anuência da maioria absoluta dos Ministros da Corte
Suprema1 à vista da relevância e da repercussão política
e social da decisão . Assim1 se por um lado a Constituição
não exige o quorum de maioria absoluta para a procla
mação da constitucionalidade1 por outro não inibe que
o legislador o faça. E1 na espécie1 o faz por motivos
justificáveis1 razoáveis e proporcionais à importância
capital da decisão .
O art. 26 da Lei nº 9 . 868/99 361 dispõe que as
decisões em ação direta de inconstitucionalidade ou em
204
ação declaratória de constitucionalidade são irrecorrí
veis1 ressalvado o manejo dos embargos declaratórios1 3 62
não podendo1 igualmente1 ser objeto de ação rescisória.
A vedação ao cabimento de rescisória consagra antiga
jurisprudência da Corte neste sentido. 3 6 3 Por outro lado1
nenhuma censura pode ser feita à vedação legal em tela
do ponto de vista constitucional1 pois é à lei processual
que compete estabelecer as hipóteses de cabimento de
ação rescisória. Por evidente1 na regra prevista no art.
1 021 I1 "j" 1 que confere competência ao Supremo Tri
bunal Federal para julgar a ação rescisória de seus
próprios julgados1 está implícito que tal competência é
exercitável nos termos e condições estabelecidos na lei
processual. 3 64
Nada obstante1 seria mais razoável que a Lei hou
vesse criado algum mecanismo de revisão das decisões
proferidas no controle abstrato1 independentemente do
ajuizamento de ação rescisória. À falta dele1 será possível
reeditar uma demanda direta de inconstitucionalidade
quando o dispositivo da Constituição que serviu de
parâmetro para a decisão anterior houver sido alterado1
seja formalmente1 pela via da reforma constitucional1
205
seja informalmente, pela ocorrência de uma mutação
constitucional. 3 6 5
No que diz respeito à legitimidade recursai, o STF
já assentou entendimento no sentido de que estão pri
mariamente legitimados a recorrer das decisões em
controle abstrato os órgãos e entidades legitimados à
propositura das ações. Assim, mesmo em se tratando
de ente despersonalizado, tem ele legitimidade recursa!.
Tal foi o que a Corte decidiu na ADIN nº 2 . 1 30/SC,
em que afirmou que o Estado-membro não tinha legi
timdade para recorrer de decisão profe rida em ação
direta, recaindo a legitimidade, ao revés, na figura do
Governador do Estado, legitimado à propositura da
medida. 3 66
O art. 28 da Lei nº 9 . 868/99, em seu parágrafo
único, estatui que a declaração de constitucionalidade
ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação
conforme a Constituição e a declaração parcial de in
constitucionalidade sem redução de texto, 367 têm efi-
206
cacia contra todos e efeito vinculante em relação aos
órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública
federal, estadual e municipal.
O § 2° do art. 1 02 da Constituição Federal, intro
duzido pela Emenda Constitucional nº 03/93, dispõe
que as decisões definitivas de mérito proferidas pelo
Supremo Tribunal Federal em ações declaratórias de
constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e
efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder
Judiciário e ao Poder Executivo. E nenhum dispositivo
constitucional confere às decisões proferidas em ações
diretas de inconstitucionalidade semelhantes efeitos .
Assim sendo, poderia a Lei nº 9 . 8 68/99 ter equiparado
os efeitos das decisões proferidas em uma e outra ação?
Parece conveniente, para o esclarecimento da ques
tão, sej a formulada, de início, a seguinte indagação:
diante da redação do art. 1 02 , § 2º, da Constituição,
207
qual o efeito de uma decisão do Supremo Tribunal
Federal que dê pela improcedência do pedido formu
lado em uma ação declaratória de constitucionalidade?
A resposta é de obviedade ululante : a proclamação da
inconstitucionalidade do ato normativo que foi objeto
da ação, com eficácia erga omnes e efeito vinculante
em relação aos órgãos do Poder Judiciário e ao Poder
Executivo. Com efeito, a norma constitucional alude a
decisão definitiva de mérito, pouco importando se o
juízo foi de procedência ou de improcedência.
Por razões de ordem lógica e de coerência sistêmica,
o mesmo raciocínio deve ser aplicado às ações diretas
de inconstitucionalidade. S eria uma inconsistência ló
gica do sistema que se pudesse obter na ação declara
tória, em caso de improcedência, algo insuscetível de
ser obtido na ação direta, quando esta é julgada pro
cedente. Em sendo assim, em caso de procedência do
pedido formulado na ação direta, todos os demais órgãos
do Poder Judiciário e o Poder Executivo ficam impe
didos de aplicar a norma; caso o juízo do Supremo
Tribunal seja pela improcedência da ação direta, pro
clamando, pois, a constitucionalidade da norma, ficam
eles compelidos a aplicá-la.
Portanto, não há qualquer inconstitucionalidade no
art. 28 da Lei nº 9 . 8 68/9 9 . Ao revés, a equiparação
entre os efeitos das decisões proferidas nas ações direta
de inconstitucionalidade e declaratória de constitucio
nalidade era uma conclusão que já podia ser extraída
da própria sistemática constitucional, independente
mente de previsão expressa. O Supremo Tribunal Fe
deral recentemente se pronunciou no sentido da cons
titucionalidade do art. 2 8 , parágrafo único, da Lei nº
9 .868/99, entendendo que a ADC consubstancia uma
208
ADIN com sinal trocado e, tendo ambas caráter dúplice,
seus efeitos são semelhantes . 3 68
Vale salientar que mesmo antes do advento da Lei
nº 9 . 868/99 o Supremo Tribunal Federal já admitia o
uso da Reclamação para assegurar a autoridade de suas
decisões proferidas em ações diretas de inconstitucio
nalidade, desde que intentada por quem foi parte na
ação . 369 Com a inovação introduzida pelo art. 2 8 da Lei
nº 9 . 8 68/99 que, segundo o entendimento aqui
-
209
proferidos em sede de ação direta de inconstituciona
lidade . 37 0
Foi o que ocorreu1 por exemplo1 na apreciação do
pedido de medida cautelar na Reclamação nº 2 . 1 891
apresentada pelo Estado do Mato Grosso do Sul com
fundamento no art. 1 02 1 I1 "1" 1 da Constituição Federal1
combinado com os arts. 1 3 da Lei nº 8.038/90; 1 5 6 e
seguintes do Regimento Interno do Supremo Tribunal
Federal; e 281 parágrafo único1 da Lei nº 9 . 8 68/99 . O
Relator da Reclamação foi o Min. Gilmar Ferreira Men
des1 que assim concluiu sobre o efeito vinculante das
decisões preferidas em sede de ação direta de incons
titucionalidade:
210
posição de vozes autorizadas do Supremo Tribunal
Federal, como a do Ministro Sepúlveda Pertence,
segundo o qual, 'quando cabível em tese a ação
declaratória de constitucionalidade, a mesma força
vinculante haverá de ser atribuída à decisão defini
tiva da ação direta de inconstitucionalidade ' {Re
clamação n. 1 67, despacho, RDA, 206:246 (24 7)) .
Nos termos dessa orientação, a decisão profe rida em
ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou
ato normativo federal haveria de ser dotada de efeito
vinculante, tal como ocorre com aquela profe rida na
ação declaratória de constitucionalidade. Observe
se, ademais, que, se entendermos que o efeito vincu
lante da decisão está intimamente vinculado à pró
pria natureza da jurisdição constitucional em dado
Estado democrático e à função de guardião da Cons
tituição desempenhada pelo Tribunal, temos de ad
mitir, igualmente, que o legislador ordinário não está
impedido de atribuir essa proteção processual espe
cial a outras decisões de controvérsias constitucionais
proferidas pela Corte. Em verdade, o efeito vincu
lante decorre do particular papel político-institucio
nal desempenhado pela Corte ou pelo Tribunal Cons
titucional, que deve zelar pela observância estrita
da Constituição nos processos especiais concebidos
para solver determinadas e específicas controvérsias
constitucionais. Esse foi o entendimento adotado pelo
Supremo Tribunal na ADC 4, ao reconhecer efeito
vinculante à decisão profe rida em sede de cautelar,
a despeito do silêncio do texto constitucional. Não
foi outro o entendimento do legislador infraconstitu
cional ao conferir efeito vinculante às decisões pro
feridas em ação direta de inconstitucionalidade. Por
fim, o Plenário desta Corte, ao julgar Questão de
21 1
Ordem em recurso de agravo regimental na Recla
mação 1 880, rel. Min. Maurício Corrêa, declarou,
por maioria, a constitucionalidade do art. 28, pará
grafo único da Lei Federal nº 9. 868, de 1 999. (. ). .
212
refere-se ao momento da decisão. Alterações poste
riores não são alcançadas (Cf. Christian Pestalozza,
Verfassungsprozessrecht, cit. , p. 3 2 5) . Problema de
inegável relevo diz respeito aos limites objetivos do
efeito vinculante, isto é, à parte da decisão que tem
efeito vinculante para os órgãos constitucionais, tri
bunais e autoridades administrativas. Em suma, in
daga-se, tal como em relação à coisa julgada e à
força de lei, se o efeito vinculante está adstrito à
parte dispositiva da decisão ou se ele se estende
também aos chamados fundamentos determinantes,
ou, ainda, se o efeito vinculante abrange também as
considerações marginais, as coisas ditas de passagem,
isto é, os chamados obiter dieta (Cf. Maunz, in
Maunz, et al. , B VerfGG, cit. , § 3 1 , I, n. 1 6) . En
quanto em relação à coisa julgada e à força de lei
domina a ideia de que elas hão de se limitar à parte
dispositiva da decisão, sustenta o Tribunal Consti
tucional alemão que o efeito vinculante se estende,
igualmente, aos fundamentos determinantes da de
cisão (BVerfGE 1 , 1 4 (3 7) ; 4, 3 1 (3 8) ; 5, 3 4 (3 7) ;
1 9, 3 7 7 (3 92) ; 20, 56 (86) ; 24, 2 89 (2 94) ; 3 3 ,
1 99 (203) ; 40, 88 (93) ; cf. , também, Maunz, dentre
outros, B VerfGG, § 3 1 , I, n. 1 6; Norbert Wischer
mann, Rechtskraft und Bindungswirkung, Berlim,
1 9 79, p. 42) . Segundo esse entendimento, a eficácia
da decisão do Tribunal transcende o caso singular,
de modo que os princípios dimanados da parte dis
positiva e dos fundamentos determinantes sobre a
interpretação da Constituição devem ser observados
por todos os tribunais e autoridades nos casos futuros
(BVerfGE 1 9, 3 77) . Outras correntes doutrinárias
sustentam que, tal como a coisa julgada, o efeito
vinculante limita-se à parte dispositiva da decisão,
213
de modo que, do prisma objetivo, não haveria dis
tinção entre a coisa julgada e o efeito vinculante
(Cf. , sobre o assunto, Norbert Wischermann, Rechts
kraft und Bindungswirkung, cit. , p. 42) . A diferença
entre as duas posições extremadas não é meramente
semântica ou teórica, apresentando profundas con
sequências também no plano prático (subjacente à
discussão sobre a amplitude do efeito vinculante
reside uma questão mais profunda, relativa à própria
ideia de jurisdição constitucional (Verfassungsge
richtsbarkeit - Norbert Wischermann, Rechtskraft
und Bindungswirkung, cit. , p. 43) . Enquanto o en
tendimento esposado pelo Tribunal Constitucional
alemão importa não só na proibição de que se con
trarie a decisão profe rida no caso concreto em toda
a sua dimensão, mas também na obrigação de todos
os órgãos constitucionais de adequar a sua conduta,
nas situações futuras, à orientação dimanada da
decisão (Norbert Wischermann, Rechtskraft und Bi
ndungswirkung, cit. , p. 45) , considera a concepção
que defende uma interpretação restritiva do § 3 1 ,
I, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional que
o efeito vinculante há de ficar limitado à parte
dispositiva da decisão, realçando, assim, a qualidade
judicial da decisão (Norbert Wischermann, Rechts
kraft und Bindungswirkung, cit. , p. 43) . A aproxi
mação dessas duas posições extremadas é feita me
diante o desenvolvimento de orientações mediadoras,
que acabam por fundir elementos das concepções
principais. Assim, propõe Vogel que a coisa julgada
ultrapasse os estritos limites da parte dispositiva,
abrangendo também a 'norma decisória concreta '
(Klaus Vogel, Rechtskraft und Gesetzeskraft, in
B VerfG und GG, cit. , v. 1 , p. 568 (589) . A norma
214
decisória concreta seria aquela 'ideia jurídica sub
jacente à formulação contida na parte dispositiva,
que, concebida de farma geral, permite não só a
decisão do caso concreto, mas também a decisão de
casos semelhantes ' (Klaus Vogel, Rechtskraft und
Gesetzeskraft, in B VerfG und GG, cit. , v. 1 , p. 568
(599) . Por seu lado, sustenta Kriele que a força dos
precedentes, que presumivelmente vincula os Tribu
nais, é reforçada no direito alemão pelo disposto no
§ 3 1 , I, da Lei do Tribunal Constitucional alemão
(Martin Kriele, Theorie der Rechtsgewinnung, 2 . ed. ,
Berlim, 1 976, p. 2 9 1 , 3 1 2 e 3 1 3) . A semelhante
resultado chegam as reflexões de Bachof, segundo o
qual o papel fundamental do Tribunal Constitucional
alemão consiste na extensão de suas decisões aos
casos ou situações paralelas (Otto Bachof, Die Prü
fungs und Verwerfungskompetenz der Verwaltung ge
genüber dem verfassungswidrigen und bundesrechts
widrigen Gesetz. AoR 8 7 (1 962) , p. 25) . Tal como
já anotado, parecia inequívoco o propósito do legis
lador alemão, ao formular o § 3 1 da Lei Orgânica
do Tribunal, de dotar a decisão de uma eficácia
transcendente (Cf. Brun-Otto Bryde, Verfassung
sentwicklung, cit. , p. 420) . É certo, por outro lado,
que a limitação do efeito vinculante à parte dispo
sitiva da decisão tornaria de todo despiciendo esse
instituto, uma vez que ele pouco acrescentaria aos
institutos da coisa julgada e da força de lei. Ademais
tal redução diminuiria significativamente a contri
buição do Tribunal para a preservação e desenvol
vimento da ordem constitucional (Brun-Otto Bryde,
Verfassungsentwicklung, cit., p. 420) . ' ('Controle
Concentrado de Constitucionalidade ', Martins, Ives
Gandra da Silva e Mendes, Gilmar Ferreira. Ed.
215
Saraiva, 200 1 , p . 3 3 8 a 3 4 1) . Assim, adotada a
ideia de que o efeito vinculante alcança os funda
mentos determinantes da decisão, afigura-se neces
sário, nesse primeiro exame, considerar o parâmetro
interpretativo fixado pela Corte na ADIN 1 . 662.
Nos autos da ADIN 1 . 662 esta Corte já se pronun
ciou no sentido de que a previsão de sequestro contida
no § 2° do art. 1 00 da Constituição deve ser inter
pretada necessariamente de modo restritivo. Deci
diu-se, especificamente, que a 1 equiparação da não
inclusão no orçamento das verbas relativas a preca
tórios, ao preterimento do direito de precedência,
cria, na verdade, nova modalidade de sequestro,
além da única prevista na Constituição '. No caso,
verifica-se que já houve inclusão do precatório no
orçamento do Estado. A execução de tal ordem no
prazo, todavia, não ocorreu tendo em vista a ausência
de recursos por parte da autarquia estadual. Ade
mais, tenho por aplicável ao caso o precedente fir
mado pelo Plenário desta Corte na RCL 1 862, sob
a relataria do Min. Maurício Corrêa, cuja ementa
possui o seguinte teor: 'EMENTA: RECLAMAÇÃ O.
GOVERNADOR DO ESTADO: LEGITIMIDADE.
PEDIDO CONTRA ATO FUTURO: INADMISSI
BILIDADE. PRECATÓRIO. VENCIMENTO DO
PRAZO PARA PAGAMENTO: SEQUESTRO DE
VERBAS P ÚBLICAS. IMPOSSIBILIDADE. 1 . Re
clamação. Legitimidade ativa do Governador do Es
tado por ter capacidade postulatória concorrente para
requerer idêntica ação direta. Precedentes. 2 . Não
cabimento da medida contra possível atuação da
autoridade reclamada, supostamente contrária à de
cisão desta Corte. Exigência de prática de ato con
creto. Pedido não conhecido nesta parte. 3 . Venci-
216
menta do prazo para pagamento de precatório. Hi
pótese que não se equipara à preterição de ordem,
sendo ilegítima a determinação de sequestro em tais
situações. 4. O Tribunal decidiu, de forma expressa,
no julgamento de mérito da ADIN 1 662 -SP, que a
previsão de que trata o § 4° do artigo 78 do ADCT
CF/88, na redação dada pela EC 3 0/00, refere- se
exclusivamente aos casos de parcelamento de que
cuida o caput desse dispositivo. Inaplicável, portanto,
aos débitos trabalhistas de natureza alimentícia. 5.
Ratificação da exegese de que a única situação su
ficiente para motivar o sequestro de verbas públicas
destinadas à satisfação de dívidas judiciais alimen
tares é a ocorrência de preterição da ordem de pre
cedência, ausente no caso concreto. Reclamação par
cialmente conhecida e, nesta parte, julgada proce
dente. ' Ante o exposto, sem prejuízo de melhor exame
quando do julgamento do mérito, CONCEDO A
CAUTELAR para determinar a suspensão das ordens
de sequestro pertinentes aos precatórios nºs 1 1 3/98,
5 1/98, 72/98, 7 1 /98, 68/98, 1 2/99, 3 7/99, 1 1 6/99,
69/99, 1 22/99, indicados na inicial e, na eventual
hipótese de já ter ocorrido a execução de ordens de
sequestro, a imediata devolução aos cofres públicos
do Estado dos valores correspondentes, até decisão
final sobre a matéria. Comunique-se mediante 'telex'
e ofício. Requisitem-se as informações. Brasília, 03
de fevereiro de 2 003 . MINISTRO GILMAR MEN
DES Relator" (Rcl 2 1 89, rel. Min. Gilmar Mendes,
DIU 0 7. 02 . 03, p. 62) .
217
eficácia erga omnes e efeito vinculante em relação aos
demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Execu
tivo; 371 (II) cabe Reclamação1 ainda quando ajuizada
por quem não foi parte no processo da ação direta de
inconstitucionalidade1 contra decisões de outros órgãos
do Poder Judiciário que hajam desrespeitado o efeito
vinculante das decisões proferidas em sede de ADIN; 37 Z
218
(III) o efeito vinculante da ADIN não se limita ao
dispositivo da decisão1 mas alcança1 também1 os cha
mados "fundamentos determinantes" . Ficam excluídas1
assim1 do efeito vinculante1 as considerações tecidas in
obiter dicta1 que não constituem fundamento determi
nante da decisão . 3 7 3
No entanto1 o Supremo Tribunal Federal1 no julga
mento do agravo regimental na Reclamação n ° 2 .4 7 5 1
DJ de 02.08.071 entendeu1 por maioria1 que "o efeito
vinculante é para o que foi decidido pela Corte. E o
que foi decidido está no dispositivo do voto do relator 1
fielmente resumido na ementa do acórdão" . Afirmou
o Ministro relator Carlos Velloso que fundamento e
obter dictum são conceitos sinônimos e que1 portanto1
"não integram o dispositivo da decisão" . Buscou-se ainda
destacar trecho do voto do Min. Moreira Alves na ADC
nº 1 -DF:
(. . .)
((
219
a autoridade dessa decisão; e
b) - essa decisão (e isso se restringe ao dispositivo
dela, não abrangendo - como sucede na Alemanha
- os seus fundamentos determinantes, até porque
a Emenda Constitucional nº 3 só atribuiu efeito
vinculante à própria decisão definitiva de mérito) ,
essa decisão, repito, alcança os atos normativos de
igual conteúdo que deu origem a ela mas que não
foi seu objeto, para o fim de, independentemente de
nova ação, serem tidos como constitucionais, adstrita
essa eficácia aos atos normativos emanados dos de
mais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Execu
tivo, uma vez que ela não alcança os atos editados
pelo Poder Legislativo.
( . . ) " (Grifos nossos) .
.
220
dando a entender, assim, que tais institutos são distin
tos. E de fato o são. A interpretação conforme à Cons
tituição constitui mecanismo de interpretação por meio
do qual se excluem as possibilidades interpretativas do
texto normativo que se revelam incompatíveis com a
Constituição, prestigiando-se aquela(s) que se harmo
nizam com a Lei Fundamental. Já a declaração parcial
da inconstitucionalidade sem redução de texto constitui
técnica de controle de constitucionalidade, que pode
decorrer de uma interpretação conforme à Constituição
ou pode ser consequência do reconhecimento da incons
titucionalidade de · determinadas hipóteses de incidência
da norma. No primeiro caso, o texto normativo admite
mais de uma interpretação, sendo que uma ou algumas
delas se revelam inconstitucionais. Já no segundo caso,
o texto admite apenas uma interpretação, mas algumas
hipóteses de incidência da norma são incompatíveis
com a Constituição. Assim, a equiparação feita pela
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não é es
tritamente técnica. Com efeito, pode haver declaração
parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto
que não decorra de uma interpretação conforme e, de
outra forma, é também possível que a interpretação
conforme conduza a Corte, em sede de ação declaratória
de constitucionalidade, a proclamar a constitucionali
dade de um dentre as várias interpretações possíveis
do texto normativo.
Resta, por fim, examinar o art. 2 7 da Lei nº
9 . 868/991 talvez a mais polêmica das inovações intro
duzidas pelo recém-editado diploma legal. 3 74 É esta a
dicção literal do dispositivo:
22 1
11Art. 2 7. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei
ou ato normativo, e tendo em vista razões de segu
rança jurídica ou de excepcional interesse social,
poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de
dois terços de seus membros, restringir os efeitos
daquela declaração ou decidir que ela só tenha efi
cácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro
momento que venha a ser fixado. "
222
das decisões declaratórias (por isso mesmo declara
tórias) da inconstitucionalidade das leis e atos norma
tivos, vinculada à tradição norte-americana. Corolário
lógico do princípio da supremacia da Constituição -
que não se coaduna com o reconhecimento da validade
de uma lei inconstitucional, ainda que por período
limitado de tempo - a doutrina e a jurisprudência
nacionais, majoritariamente, vislumbram no princípio
da nulidade da lei inconstitucional a estatura de verda
deiro princípio constitucional implícito. 3 7 6
Como assinalado por Jorge Miranda, com aguda
sensibilidade, "a fixação dos efeitos da inconstituciona
lidade destina-se a adequá-los às situações da vida, a
ponderar o seu alcance e a mitigar uma excessiva rigidez
que pudesse comportar; destina-se a evitar que, para
fugir a consequências demasiado gravosas da declaração,
o Tribunal Constitucional viesse a não decidir pela
ocorrência de inconstitucionalidade; é uma válvula de
segurança da própria finalidade e da efectividade do
sistema de fiscalização. " 3 7 7 Compartilhando da mesma
ideia, García de Enterría sustenta que, nos modelos,
como o brasileiro, em que a regra geral é o efeito ex
tunc do juízo de inconstitucionalidade, as ponderações
em torno da adoção do efeito ex nunc são complemen
tares e excepcionais, 378 apoiando-se na denúncia do
223
risco de mitigar-se, por imposições pragmáticas decor
rentes da impossibilidade física, social ou política de
desconstituir determinadas situações, o próprio juízo
de censura por violação da Carta Magna - exatamente
em razão das dificuldades de fazer frente ao dogma da
nulidade absoluta da lei inconstitucional. 3 79
O art. 27 da Lei nº 9 . 868/99 guarda estreita seme
lhança com o art. 2 8 2 , nº 4, da Constituição de Portugal,
que parece ter sido a fonte de inspiração imediata do
legislador pátrio. De outro lado, aproxima-se o dispo
sitivo da chamada declaração da inconstitucionalidade
sem a pronúncia da nulidade, incorporada, a partir de
1 970, ao § 3 1 , (2) , 2º e 3° períodos da Lei Orgânica
do Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesver
fassungsgericht) . 380 A Constituição austríaca (após
1 975) confere, em seu art. 1 40, ampla margem de
discrição à Corte Constitucional para modular os efeitos
de suas decisões declaratórias de inconstitucionalidade.
Em outros países que não adotaram em texto consti-
224
tucional ou legal normas semelhantes, a jurisprudência
se encarregou de construí-la. 38 1
Os conceitos e institutos jurídicos são criados para
conformar a realidade; em inúmeras situações, todavia,
os fatos derrotam as normas, obrigando o jurista a
reavaliar suas noções teóricas, de modo a adequá-las às
novas necessidades e aspirações sociais. A flexibilização
dos efeitos temporais da declaração de inconstitucio
nalidade é uma dessas imposições da experiência à
lógica jurídica. Inobstante, como mitigação do princípio
da constitucionalidade em determinado lapso de tempo,
deve ser encarada como medida excepcional - j amais
como regra -, utilizável apenas para a preservação de
outros valores e princípios constitucionais que seriam
colocados em risco pela pronúncia da nulidade da lei
inconstitucional. A aplicação do novo dispositivo está,
assim, necessariamente condicionada pelo princípio da
razoabilidade ou proporcionalidade . 382
Adota-se, aqui, tese sustentada por autores como
Daniel S armento 383 e Christina Aires Correa Lima, 384
225
no sentido de que o principio da nulidade das leis
inconstitucionais pode ser ponderado com outros prin
cípios de igual magnitude, incidentes em determinadas
situações concretas. Tal ponderação, como explica Da
niel S armento, deve ser feita à luz do princípio da
razoabilidade ou proporcionalidade no seu tríplice as
pecto: adequação, necessidade e proporcionalidade em
sentido estrito. 38 5 Confira-se, a propósito, lúcida passa
gem do jovem autor:
226
Vale notar que1 antes mesmo do advento da Lei nº
9 . 8 68/991 o Supremo Tribunal Federal1 adotando em
bora1 como regra1 a declaração da inconstitucionalidade
com efeitos retroativos1 387 já admitiu alguns tempera
mentos. Assim1 a Corte tem asseverado a legitimidade
de atos praticados por servidor público investido na
função pública por força de lei posteriormente declarada
inconstitucional. 388 Outrossim1 na declaração de incons
titucionalidade de leis concessivas de vantagens a seg
mentos do funcionalismo público (especialmente ma
gistrados) 1 o Tribunal adotou o entendimento de que·
"a retribuição declarada inconstitucional não é de ser
devolvida no período de validade inquestionada da lei
declarada inconstitucional - mas tampouco paga após
a declaração de inconstitucionalidade" . 389
Esta última decisão aliás 1 mereceu censura severa
1
227
9 . 8 68/991 por considerar que o princípio constitucional
da irredutibilidade de vencimentos não se prestava a
conferir sustentação à decisão1 uma vez que "os venci
mentos irredutíveis são apenas aqueles licitamente re
cebidos. " 3 90 A crítica dirige-se1 na verdade1 contra o
juízo de ponderação feito no caso concreto1 já que o
peso do princípio da irredutibilidade de vencimentos
não justificaria1 sob a ótica do ilustre autor1 a restrição
imposta ao princípio da nulidade da lei inconstitucional.
Como se vê1 o art. 27 da Lei em comento é uma
novidade apenas em termos1 de vez que a norma por
ele introduzida1 conquanto inédita no Direito positivo
brasileiro1 foi objeto de construção jurisprudencial pelo
Supremo Tribunal Federal. É fundamental1 no entanto1
que a Corte Suprema utilize com parcimônia - como1
de resto1 tem feito até aqui - o dispositivo legal1 sem
se deixar impressionar por argumentos conjunturais e
ad terrorem1 como aqueles fundados em considerações
exclusivamente financeiras ou econômicas. Dado o seu
caráter excepcional1 qualquer limitação de efeitos da
declaração de inconstitucionalidade deve-se ater ao es
tritamente necessário para a salvaguarda dos valores
albergados no art. 2 7 da Lei nº 9 . 868/99. 3 9 1
O Supremo Tribunal Federal, não obstante a pen
dência do julgamento da ADIN nº 2 . 2 5 8 1 rel. Min.
Sepúlveda Pertence, tem utilizado expressamente o art.
2 7 da Lei nº 9 . 8 68/99 na modulação temporal dos
efeitos da declaração de inconstitucionalidade . 3 9 2 A
228
Corte já entendeu, inclusive, ser cabível a oposição de
embargos de declaração com o objetivo exclusivo de se
modularem os efeitos da declaração de inconstitucio
nalidade. 393
Caso paradigmático ocorreu no julgamento da ADIN
nº 4 .029, 394 cujo objeto era a lei federal nº 1 1 . 5 1 6/07,
a qual criou o Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade. A lei fora declarada, de início, in
constitucional pelo Plenário do Supremo Tribunal Fe
deral, em função de ter sido editada a partir de uma
Medida Provisória que não havia sido submetida a uma
229
comissão mista de deputados e senadores antes de sua
conversão em lei, como prevê a Constituição Federal
(art. 62, § 9°) . Naquela oportunidade, o Plenário de
cidiu, aplicando o art. 2 7 da Lei nº 9 . 8 68/99, modular
os efeitos de sua decisão para, em vez de conferir
eficácia ex tunc à declaração de inconstitucionalidade
daquela lei, abrir a possibilidade para que o Congresso
Nacional editasse nova norma, no prazo de 2 anos, para
garantir a continuidade da autarquia.
Ocorre que, logo na sessão seguinte, a Advocacia
Geral da União suscitou questão de ordem dando no
tícia de que todas as medidas provisórias até então
convertidas em lei haviam desrespeitado o mesmo dis
positivo constitucional ( art. 6 2, § 9º) . Receosa de pro
mover um verdadeiro "apagão legislativo" no Brasil, a
Corte entendeu por bem modular os efeitos de sua
decisão, evitando atribuir-lhe eficácia retroativa. O Ple
nário, então, modificou a proclamação do resultado de
julgamento e declarou que somente as novas medidas
provisórias que vierem a ser encaminhadas pelo Poder
Executivo ao Congresso Nacional terão de observar, em
sua tramitação, o rito previsto pela Constituição Federal
em seu artigo 62, §9º.
Resta ainda analisar dois aspectos do novo dispositivo
legal que poderão ensejar controvérsia. Primo: é legítima
a instituição, por lei ordinária, de limitação temporal
aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, já
que, por seu intermédio, se estaria a mitigar o próprio
princípio da supremacia da Constituição? Secando: é
legítima a exigência do quorum qualificado de 2/3 (dois
terços) dos membros da Corte Suprema para que a
referida limitação sej a aprovada, quando o art. 9 7 da
Constituição da República exige o quorum de maioria
absoluta como requisito para a declaração de inconsti
tucionalidade tout court?
230
As respostas a ambas as indagações - apresso-me
em dizê-lo desde logo - afiguram-se afirmativas .
Quanto à primeira questão1 é de se ver que o art.
2 7 da Lei nº 9 . 8 68/99 não será1 em verdade1 o funda
mento das decisões do Supremo Tribunal Federal que
venham a restringir a eficácia temporal da declaração
de inconstitucionalidade de determinadas leis. Seu fun
damento será a proteção de outros valores e princípios
constitucionalmente assegurados - ligados à segurança
jurídica ou a excepcional interesse social - e que seriam
colocados em risco por uma decisão retroativa. Ao assim
decidir1 não estará o Supremo Tribunal sobrepondo
uma lei ordinária - a Lei nº 9 . 868/99- à Constituição1
mas1 diversamente1 estará ponderando valores e princí
pios de mesma hierarquia e igual dignidade constitu
cional. Neste sentido as razões apresentadas pelo Ad
vogado-Geral da União1 Gilmar Ferreira Mendes1 nos
autos da ação direta de inconstitucionalidade nº 2 . 1 541
antes aludida1 elaboradas pelo Consultor da União An
dré Serrão Borges de S ampaio:
232
De resto, vale salientar que, se mesmo à míngua de
previsão legal expressa, o Supremo Tribunal Federal
lançou mão de temperamentos em relação à regra da
eficácia retroativa de suas decisões declaratórias de
inconstitucionalidade, não parece razoável supor que a
Corte considerará inconstitucional dispositivo de lei
que justamente consagra referida prerrogativa. 396
Por fim, no que toca ao quorum qualificado de 2/3
(dois terços) exigido como pressuposto para que a
1
nossos) . No mesmo tom, v. RE-AgR nº 364. 304, voto do Min. Gilmar Mendes,
julgamento em 3 . 1 0.06, DJ de 6. 1 1 .06: (. .. ) sem abandonar a doutrina tradi
"
233
apenas o voto da maioria absoluta dos membros do
tribunal.
Pois bem. Em primeiro lugar1 deve-se atentar para
o fato de que1 gramaticalmente1 proferir uma decisão
declaratória significa1 a fortíorí, reconhecer uma situa
ção preexistente1 com projeção de efeitos no passado .
Assim, ao se referir à declaração da inconstitucionali
dade de lei ou ato normativo do Poder Público1 o art.
97 da Lei Maior visa a alcançar a decisão ordinária,
corriqueira, que proclama a nulidade do ato em decor
rência da incompatibilidade com a Constituição. Milita
também em favor desse entendimento a interpretação
histórica: de fato1 como consagrado na tradição do
Direito brasileiro1 lei inconstitucional é ato nulo1 sendo
retroativa, de conseguinte1 a decisão que a reconhece
como tal. Assim, a mens legislatoris1 na hipótese1 era
no sentido de que o quorum de maioria absoluta era
exigível para a decisão que reconhecia1 com efeitos ex
tunc1 a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo.
Por outro lado, ainda que o texto constitucional,
em sua literalidade1 não contivesse qualquer distinção
entre a decisão declaratória e a anulação de lei incons
titucional com efeitos prospectivos1 não há como negar
que se trata de decisões substancialmente distintas . São
distintas no grau de responsabilidade que exigem da
Corte, tendo em vista a sua repercussão social e política.
Com efeito1 ao reconhecer a inconstitucionalidade de
uma lei1 mas negar, na mesma decisão, que qualquer
pessoa - sej a ela o cidadão, a empresa privada ou o
ente público - possa deduzir pretensão decorrente dos
efeitos já produzidos por tal lei1 o Supremo Tribunal
Federal se coloca em posição sensivelmente mais deli
cada do que se apenas houvesse proclamado a incons
titucionaldiade sem qualquer ressalva quanto aos efeitos
temporais .
234
Como é intuitivo1 a exigência de quorum mais ele
vado guarda uma relação de proporcionalidade com o
grau de responsabilidade e a repercussão social e política
da decisão . Portanto1 como a limitação temporal do
juízo de inconstitucionalidade constitui um plus1 em
termos de responsabilidade1 se comparado com a pura
e simples proclamação da nulidade1 é razoável a exi
gência de um plus no quorum necessário à prolação da
primeira decisão. É de bom alvitre que um consenso
maior sej a exigido dentro da Corte Suprema1 nas hi
póteses de validação dos efeitos pretéritos de uma lei
inconstitucional1 como garantia de que a decisão1 apesar
de sua excepcionalidade1 é adequada1 necessária e con
forme ao interesse público .
235
ser total ou parcial. Será total quando o legislador se
abstenha por completo em empreender a providência
normativa reclamada pela Lei M aior. Será parcial, por
sua vez, quando, inobstante a atuação legislativa, esta
se mostra deficiente à luz daquilo que a constituição
pretende promover, ou exclui do seu âmbito de inci
dência hipótese que deveria ser incluída em respeito
ao postulado da isonomia.
A Constituição de 1 988 não cerrou os olhos à frus
trante trajetória brasileira de inefetividade dos preceitos
constitucionais, prevendo, assim, mecanismos de con
trole contra a omissão normativa do Poder Público. Em
sede abstrata, a ação direta de inconstitucionalidade
por omissão foi criada pelo art. 1 03, § 2º, da Consti
tuição. Sem embargo, a Lei nº 9 . 868/99, na sua redação
original, não dispensou qualquer tratamento a tal me
canismo de controle abstrato, cabendo à doutrina e à
jurisprudência definirem os contornos do regime jurí
dico aplicável. Apenas com a promulgação da Lei nº
1 2 . 063/09, e passados 2 1 anos sem regulamentação
infralegal, criou-se disciplina normativa própria à ação
direta de inconstitucionalidade por omissão, mediante
o acréscimo do Capítulo I I-A à Lei nº 9 . 868/99. Não
obstante isso, pouco se avançou em relação às constata
ções doutrinárias e jurisprudenciais já existentes sobre
o instituto. O que fez o legislador foi coligir entendi
mentos consolidados, sem grandes inovações substan
ciais .
Segundo a estruturação dada pela Lei nº 1 2 .063/09,
o novo Capítulo II-A da Lei 9 . 868/99 passa a ser
articulado em três Seções, que estabelecem, respecti
vamente, os requisitos de admissibilidade e o procedi
mento da ação (Seção I); as regras atinentes à medida
cautelar (Seção II); e a decisão na ação direta de in
constitucionalidade por omissão (Seção I I I) . Conforme
236
estabelece o art. 1 2-E1 aplicam-se ao procedimento da
ação direta de inconstitucionalidade por omissão1 no
que couber1 as disposições relativas à ação direta de
inconstitucionalidade .
O elenco de legitimados à propositura da ação direta
de inconstitucionalidade por omissão é o mesmo em
relação à ação direta de inconstitucionalidade e à ação
declaratória de constitucionalidade1 como prevê o art.
1 2-A. Assim1 aplica-se a mesma lógica relativamente à
pertinência temática e à capacidade postulatória que
vale para a ADIN e para a ADC. A petição inicial1 a
seu turno1 deverá indicar1 além do pedido da ação1 a
sua causa de pedir1 que se configura pela "omissão
inconstitucional total ou parcial quanto ao cumprimento
de dever constitucional de legislar ou quanto à adoção
de providência de índole administrativa" 1 na forma do
art. 1 2-B 1 I. Ao Relator atribui-se o poder de indeferir
liminarmente a petição inepta1 não fundamentada e a
manifestamente improcedente1 decisão da qual caberá
agravo regimental1 segundo prevê o art. l 2-C1 caput e
parágrafo único. Tal como ocorre nas demais ações de
controle abstrato1 por se caracterizarem por processo
objetivo de resguardo da supremacia da Constituição e
não de interesses subjetivos1 não será admitida a desis
tência da ação proposta1 ex vi do art. 1 2-D. Embora
inexistente previsão expressa no Capítulo II-A1 inaugu
rado pela Lei nº 1 2 .063/091 quanto à possibilidade de
admissão de amici curiae e à realização de audiências
públicas1 deve-se entender que são mecanismos possí
veis de serem manej ados à luz do art. 1 2-E c/c arts.
7°1 § 2º1 e 9º1 § 1 °1 da Lei nº 9 . 868/99.
Importante ressaltar que a nova lei faz ressurgir
disposição anteriormente vetada na Lei 9 .868/99 (art.
7°1 § 1 º) . Tal dispositivo concedia aos demais legitima
dos para a propositura da ação direta de inconstitucio-
237
nalidade o direito de manifestação, por escrito, sobre
o objeto da ação, podendo pedir a juntada de docu
mentos reputados úteis para o exame da matéria, no
prazo das informações, bem como apresentar memo
riais. Conforme exposto linhas atrás, os fundamentos
apresentados para o veto são inconsistentes. Com o art.
1 2-E, § 1 º, acrescido pela Lei nº 1 2 .063/09, resgata-se
expressamente tal possibilidade de intervenção dos de
mais legitimados, sem necessidade de admissão do re
lator, como ocorre com as hipóteses de intervenção de
amicus curiae. Dessa forma, é louvável a previsão con
tida no novo dispositivo, que completa a lacuna antes
presente no art. 7°, § 1 º, da Lei nº 9 . 868/9 9 . É de se
ver ainda que tais legitimados devem poder realizar
sustentação oral e eventualmente interpor os recursos
cabíveis . Interpretação diversa serviria de incentivo à
propositura de ação paralela, com o mesmo objeto, o
que traria grandes prejuízos à celeridade e à economia
processual.
Outra novidade da Lei nº 1 2 . 063/09 diz respeito à
participação do Advogado-Geral da União, bem como
do Procurador-Geral da República. O novo procedi
mento atribui ao Relator o poder de solicitar a mani
festação do Advogado-Geral da União (art. 1 2-E, § 2°) .
Vale dizer, o AGU não se manifestará obrigatoriamente
em todos os processos de inconstitucionalidade por
omissão. A razão dessa não obrigatoriedade de partici
pação do AG U está no art. 1 03, § 3 °, da Constituição,
que impõe tal manifestação apenas para defesa de lei
ou ato normativo . Nem sempre haverá ato normativo
para ser defendido, como ocorre nos casos de omissão
total, podendo dispensar a participação do Advogado
Geral da União. Sem embargo, não há por que negar
a possibilidade de manifestação do AG U mesmo nos
casos de suposta omissão total. Poderia o Advogado-
238
Geral da União sustentar a inexistência de omissão
ilegítima do Poder Público, o que de fato contribuiria
ainda mais para a formação dialética do convencimento
do Tribunal em relação à matéria deduzida em juízo .
Ao Procurador-G eral da República1 por sua vez1 é as
segurada manifestação nas ações em que não tenha
figurado como autor (art. 1 2-E, § 3°) , como forma de
evitar uma nova manifestação1 desnecessária em face
da economia processual.
A grande inovação da Lei nº 1 2 .063/09 foi a previsão
expressa do cabimento de medida cautelar na ação
direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 1 2-F) .
Como já adiantado1 a jurisprudência do Supremo Tri
bunal Federal não a admitia nestes processos1 uma vez
que a única consequência jurídica seria a mera comu
nicação formal ao órgão legislativo ou administrativo de
sua mora inconstitucional1 conforme dispõe o § 2°1 art.
1 03, da Constituição. 398 Segundo a nova Lei (art. 1 2-F1
398 . Cf., nesse sentido, ADIN-MC n º 1 .458, rel. Min. Celso d e Mello, D J de
20.09.96: " Inconstitucionalidade por omissão - Descabimento de medida
cautelar - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido
de proclamar incabível a medida liminar nos casos de ação direta de inconsti
tucionalidade por omissão (RTJ 1 33/569, Rel. Min. MARCO AURÉ LIO;
ADIN 267-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO) , eis que não se pode pretender
que mero provimento cautelar antecipe efeitos positivos inalcançáveis pela
própria decisão final emanada do STF. - A procedência da ação direta de
inconstitucionalidade por omissão, importando em reconhecimento judicial do
estado de inércia do Poder Público, confere ao Supremo Tribunal Federal,
unicamente, o poder ele cientificar o legislador inadimplente, para que este
adote as medidas necessárias à concretização do texto constitucional. - Não
assiste ao Supremo Tribunal Federal, contudo, em face dos próprios limites
fixados pela Carta Política em tema de inconstitucionalidade por omissão (CF,
art. 1 03, § 2º) , a prerrogativa ele expedir provimentos normativos com o
objetivo ele suprir a inatividade do órgão legislativo inadimplente" . No mesmo
sentido, ADI N nº 1 . 996, rel. Min. limar G alvão, DJ de 28.02.03: "Ação direta
ele inconstitucionalidade cumulada com ação de inconstitucionalidade por
239
§ 1 º) 1 será possível1 em sede cautelar1 que o Supremo
Tribunal Federal (i) suspenda a aplicação da lei ou do
ato normativo questionado1 no caso de omissão parcial;
(ii) suspenda processos judicia.is ou procedimentos ad
ministrativos em que se discuta o objeto da ação; (iii)
fixe outra providência. À primeira vista1 a possibilidade
de o Supremo Tribunal Federal tomar outra providência
parece atribuir ao órgão de cúpula do Judiciário brasi
leiro grande poder1 inclusive para normatizar1 ainda que
temporariamente1 a lacuna ilegítima existente. A palavra
final quanto à extensão do dispositivo1 no entanto1
caberá ao próprio Tribunal. Espera-se que nesta em
preitada hermenêutica o Supremo Tribunal federal aja
cautelosamente1 sopesando as diversas variáveis em
jogo 1 como os princípios da separação de poderes 1 da
força normativa da constituição1 bem como considera
ções sobre sua legitimidade político-democrática e ca
pacidade institucional para disciplinar questões inicial
mente deixadas ao legislador.
Quanto à decisão em sede de ação direta de incons
titucionalidade por omissão1 o art. 1 2-H basicamente
repete o teor do art. 1 031 § 2°1 da Constituição . Pres
creve que1 declarada a inconstitucionalidade por omis
são1 será dada ciência ao Poder competente para a
adoção das providências necessárias. No caso de omissão
imputável a órgão administrativo1 as providências de
verão ser adotadas no prazo de trinta dias (art. l 2-H1
§ 1 º) 1 tal qual estabelece a parte final do § 2° do art.
1 03 da Constituição, ou em prazo razoável a ser esti
pulado excepcionalmente pelo Tribunal, tendo em vista
240
as circunstâncias específicas do caso e o interesse pú
blico envolvido. Neste último caso1 muito embora a Lei
Maior nada fale sobre prazo superior a trinta dias1 certo
é que circunstâncias que fogem à normalidade podem
impor constrangimentos fáticos à solução da questão
no prazo assinalado pela Constituição. Obrou bem o
legislador1 pois não haveria como fugir da realidade.
Por óbvio1 aplicam-se à decisão na ação direta de
inconstitucionalidade por omissão as disposições quanto
ao quorum de julgamento1 comunicações e publicação
da decisão em ação direta de inconstitucionalidade e
ação declaratória de constitucionalidade (art. 1 2-H1 §
2º) . Assim1 a decisão final será irrecorrível1 ressalvada
a interposição de embargos de declaração1 e não poderá
ser obj eto de ação rescisória (art . 26 da Lei nº
9 . 868/99) . Também o será naturalmente dotada de
eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos
demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração
Pública federal1 estadual e municipal ( art. 281 parágrafo
único1 da Lei nº. 9 . 868/99) .
241
damental, introduzida na Constituição de 1 98 8 e des
locada para o § 1 ° do art. 1 02 pela Emenda Constitu
cional nº 03/93, foi finalmente regulamentada pela Lei
nº 9 . 8 8 2 , de 3 de novembro de 1 99 9 . Sem contar com
toda a produção doutrinária e jurisprudencial já exis
tente sobre a ação direta de inconstitucionalidade e a
ação declaratória de constitucionalidade, os comentários
que se seguem acerca do novo instrumento cingem-se,
por imperiosa prudência, ao que se costuma denominar
como primeiras impressões.
Embora tenha sido anunciado como um instrumento
de proteção dos direitos fundamentais do cidadão, ins
pirado no recurso constitucional alemão40 1 (Lei Funda
mental de Bonn, art. 93, I, 4 e Lei Orgânica do Tribunal
Constitucional Federal, art. 90, 2) e no recurso de
amparo espanhol 4º 2 (Constituição de Espanha, arts. 1 6 1 ,
I e 1 62, I, "b" e Lei Orgânica do Tribunal Constitu
cional, arts. 4 1 e segs .) a verdade é que a arguição
1
242
Público legitimidade para o manej o do instrumento -
acabou reduzida, após o veto presidencial, ao elenco
de legitimados para a propositura da ação direta de
inconstitucionalidade (art. 2°, I) . Ao cidadão resta ape
nas solicitar ao Procurador-Geral da República, median
te representação, nos termos do art. 2°, § 1 º, o ajuiza
mento da medida, previsão que, de resto, é despicienda,
à vista do direito de petição, assegurado no art. 5°,
XXX IV, "a", da Constituição da República. 4 03
O novo remédio vem tornar ainda mais complexo
- talvez mais confuso - o já eclético sistema de
jurisdição constitucional brasileiro. O art. 1 º, caput, da
Lei nº 9 . 8 8 2/99 institui uma arguição autônoma, ver
dadeira ação, por meio da qual se pretenderá evitar ou
reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato
do Poder Público . Tal ação constitucional, como se vê,
poderá ter caráter preventivo ou repressivo.
O conceito de preceito fundamental, que não consta
da Constituição, tampouco na Lei é esclarecido. Ao
que parece, a ideia é conferir ao Supremo Tribunal
Federal uma ampla margem de discricionariedade para
estabelecer o parâmetro constitucional do controle a
ser exercido no âmbito do novo instrumento. 404 S erá
243
necessário que a Corte estabeleça uma hierarquia axio
lógica entre os dispositivos formalmente constitucionais
- já que inexiste hierarquia formal - a fim de que
possa chegar àqueles considerados integrantes do seleto
rol de preceitos fundamentais. De todo modo, como
premissa básica, tem-se que o parâmetro do controle
empreendido na arguição de descumprimento é sensi
velmente mais restrito que aquele da ação direta de
inconstitucionalidade . 40 5 Nesta, o parâmetro é qualquer
norma formalmente constitucional; naquela, somente
as normas da Constituição qualificadas, por sua estatura
axiológica, como preceitos fundamentais. 406
Por outro lado, em sentido inverso, os atos do Poder
Público suscetíveis de controle transcendem, evidente
mente, os atos normativos . Além de atos do Legislativo,
incluem-se no objeto da arguição qualquer ato do Exe
cutivo, do Judiciário, do Ministério Público e dos Tri
bunais de Contas que importem lesão ou ameaça a
preceito fundamental da Constituição. Portanto, se o
244
parâmetro do controle foi restringido1 seu objeto restou
substancialmente ampliado .
Passada uma década desde a edição da Lei nº
9 . 882/991 é possível identificar algumas posições do
Supremo Tribunal Federal quanto aos atos do Poder
Público passíveis de controle em sede de ADPF. Com
efeito1 o STF não admite arguição de descumprimento
de preceito fundamental para questionar: (I) súmulas
de Tribunais1 40 7 ainda que sejam de caráter vinculan
te; 408 (II) atos que já tenham sido revogados; 4 º 9 (III)
245
atos que não estejam prontos e acabados1 mas ainda
sejam suscetíveis de modificação. 4 1 0
Merecem uma nota especial o s atos d e natureza
secundária ou infralegais1 a exemplo dos decretos re
gulamentares1 resoluções1 portarias e instruções norma
tivas . Tais atos não retiram seu fundamento de validade
diretamente da Constituição1 havendo sempre norma
infraconstitucional interposta entre eles e a Lei Maior.
O cabimento de ADPF contra atos de tal natureza ainda
permanece como um ponto pouco claro na jurispru
dência do Supremo Tribunal Federal. Como se sabe1 é
de entendimento no âmbito da Corte Suprema que a
ação direta de inconstitucionalidade não se presta ao
controle de atos normativos secundários. O STF afirma
que1 nestes casos1 a violação à Constituição1 acaso exis
tente1 seria meramente reflexa ou oblíqua. Assim1 cons
tatada a contrariedade ao Texto Maior1 abrem-se duas
possibilidades: (i) verificando-se que a própria lei re
gulamentada viola a Constituição1 deve ser ela o objeto
da ação direta1 e não o ato secundário; de outro modo1
(ii) verificando-se que o ato infralegal exorbitou dos
limites legais1 a hipótese é de ilegalidade1 e não de
inconstitucionalidade1 o que desautoriza a propositura
da ADIN. 41 1
246
Tendo em vista o caráter eminentemente subsidiário
da ADPF (§ 1 ° do art. 4° da Lei nº 9 . 88 8 2/99) , não
haveria qualquer óbice para o seu cabimento quando o
ato questionado é de caráter secundário. Isso porque
o não cabimento de ADIN caracterizaria a inexistência
de outros meios de sanar - de forma eficaz e com o
mesmo alcance dos demais meios existentes no controle
objetivo - a violação constitucional causada pelo ato
do Poder Público. Na jurisprudência do STF, contudo,
a questão não é tão simples.
De certa forma, a Corte Suprema parece reconhecer
tal hipótese de cabimento da ADP F . Nesse sentido,
vale citar a ADPF nº 33, rel. Min. Gilmar Mendes. Na
oportunidade, o STF entendeu cabível e julgou proce
dente a ADPF proposta com o objetivo de impugnar o
art. 34 do Decreto Estadual nº 4 . 307 /86, que aprovara
o Regulamento Econômico-Social do Pará (IDESP) ,
veiculado através da Resolução do Conselho Adminis
trativo nº 8/8 6 . Em direção idêntica, já na ADPF-MC
nº 47, rel. Min. Eros Grau, o STF conheceu da ação e
concedeu a liminar pleiteada para suspender o trâmite
de todos os feitos em curso e dos efeitos de decisões
judiciais ainda não transitadas em julgado, que versem
sobre a aplicação do art. 2° do Decreto nº 4 . 726/87
do estado do Pará, que cria Tabela Especial de Venci
mentos e S alários destinada a remunerar os ocupantes
de cargos e funções-de-emprego privativos de titulares
de cursos superiores ou habilitação legal equivalente do
extinto Departamento de Estradas e Rodagem do Es
tado-membro.
ADIN nº 2 .626, rei. Min. Ellen Gracie, DJ de 05 .03. 2004; ADIN nº 3 . 1 32,
rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 09.06. 2006.
247
Nestes julgados1 porém1 não houve qualquer mani
festação expressa e inequívoca acerca do cabimento de
ADPF contra ato do Poder Público de natureza secun
dária. Aliás, para tornar mais problemática a identifi
cação do entendimento do STF sobre a matéria1 no
Agravo Regimental na ADPF nº 931 rel. Min. Ricardo
Lewandowski1 a Corte1 por maioria1 negou provimento
ao recurso que questionava a decisão monocrática do
relator que negara seguimento à arguição. Dentre outros
fundamentos invocados1 foi expressamente indicado o
caráter secundário do ato normativo impugnado - o
Decreto presidencial nº 5 . 5 9 7 /2005 -1 o que inviabi
lizaria "o acesso à via do controle normativo abstrato
em sede de arguição de descumprimento de preceito
fundamental" . 4 1 2
Há1 todavia1 equívoco nesta compreensão do objeto
da arguição de descumprimento de preceito fundamen-
248
tal. Se, por um lado, é certo que tanto a ADPF 4 1 3 como
a ADI são espécies de controle abstrato de constitu
cionalidade, por outro, não há por que simplesmente
sujeitá-las às mesmas regras quanto ao seu cabimento.
A Lei nº 9 . 882/99 foi clara ao determinar o caráter
subsidiário da ADPF justamente para suprir eventuais
lacunas que o controle abstrato demonstre possuir. Com
efeito, abre-se, pela via da ADPF, a possibilidade de o
STF apreciar graves violações à ordem constitucional
brasileira, as quais, não fosse o papel colmatador da
arguição, permaneceriam imunes a um controle de ta
manha extensão .
A par da arguição autônoma, instituiu a Lei, no
inciso I do parágrafo único de seu art. 1 º, uma arguição
incidental, cabível quando for relevante o fundamento
da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo
federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores
à Constituição. Ao contrário da arguição autônoma, que
tem natureza jurídica de ação, a arguição incidental é,
na verdade, um incidente processual. 4 14 Com efeito,
infere-se do art. 1 º, parágrafo único, I, da Lei nº
9 . 88 2/99 que pressuposto do cabimento desta arguição
é a existência de uma controvérsia constitucional já
instaurada (leia-se: um processo no qual as partes con
tendam em torno da constitucionalidade de determi
nada lei) acerca de lei ou ato normativo federal, estadual
ou municipaC incluídos os anteriores à Constituição.
Como explicita Gilmar Ferreira Mendes, o novo
instituto "permite a antecipação de decisões sobre con-
249
trovérsias constitucionais relevantes1 evitando que elas
venham a ter um desfecho definitivo após longos anos1
quando muitas situações já se consolidaram ao arrepio
da interpretação autêntica do Supremo Tribunal Fede
ral. " 41 5 Manoel Gonçalves Ferreira Filho1 no entanto1
desvenda o verdadeiro desiderato do novel instrumento:
250
da ampla defesa, como se verá) e o veto presidencial
ao dispositivo que conferia legitimidade ao cidadão para
utilizar-se da arguição, dão ao novo instrumento um
perfil autoritário, com ares, ou ao menos pretensão, de
se convolar em uma avocatória rediviva.
É de se ver que, nos termos do art. 1 O, § 3°, da Lei
nº 9 . 88 2/99, as decisões proferidas tanto na arguição
autônoma como na incidental têm eficácia erga omnes
e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do
Poder Público. Assim, julgada a ação e fixados o modo
e as condições de interpretação e aplicação do preceito
fundamental (art. 1 01 caput) 1 o acórdão proferido pelo
Supremo Tribunal Federal na arguição de descumpri
mento alcança os mesmos efeitos de uma decisão pro
ferida em ação direta de inconstitucionalidade. 4 1 8
É de fato salutar que s e possam alçar a o controle
concentrado da Corte Suprema normas municipais e
normas anteriores à Constituição, como dispõe textual
mente o art. 1 °1 parágrafo único1 I1 da Lei nº 9 . 8 82/9 9 .
Como o art. 1 021 I1 " a " , d a Constituição Federal não
se refere a leis e atos normativos municipais, não é
viável a fiscalização abstrata de sua constitucionalidade
251
na sede da ação direta, nem se poderia cogitar de inserir
tal previsão na Lei nº 9 . 868/991 sob pena de inconsti
tucionalidade . Não se afigura, entretanto, qualquer in
constitucionalidade na previsão constante da Lei nº
9 . 882/991 de vez que, quanto à arguição de descum
primento de preceito fundamental, o art. 1 021 § 1 º, da
Lei maior delegou integralmente ao legislador ordinário
a definição de seus contornos e de seu objeto . 4 1 9
Faz-se mister, todavia, ponderar que a Lei nº
9 . 882/99 não conferiu legitimidade aos Prefeitos Mu
nicipais, nem tampouco às Mesas de Câmaras Munici
pais ou a qualquer entidade pública ou privada de
âmbito municipal, para manejarem o novo instrumento.
Resta saber a quem interessará deflagrar, via arguição
de descumprimento de preceito fundamental, a juris
dição da Suprema Corte para o exercício do controle
de constitucionalidade de leis e atos normativos muni
cipais . Espera-se que a Lei nº 9 . 882/99 não tenha criado
- como diria Barbosa Moreira - um sino sem ba
dalo. 420
O procedimento da arguição de descumprimento -
tanto a autônoma como a incidental - mereceu disci
plina semelhante àquela prevista na Lei nº 9 . 868/99
para as ações de fiscalização abstrata da constituciona-
252
lidade . Destacam-se1 por sua peculiaridade1 três aspec
tos do procedimento da arguição de descumprimento:
(I) a subsidiariedade como requisito de cabimento da
medida ( art. 4°1 § 1 º) ; (II) a possibilidade de concessão
de liminar para a suspensão de processos em andamento
ou de qualquer outra medida que guarde relação com
a matéria objeto da arguição (art. 5°1 § 3°) ; (III) ausência
de previsão de participação dos litigantes do processo
do qual se origina a arguição incidental.
A regra da subsidiariedade1 no que se refere à ar
guição de descumprimento de preceito fundamental1
está prevista no art. 4°1 § 1 °1 da Lei nº 9 . 882/99 nos
seguintes termos:
253
a ação direta de inconstitucionalidade ou de constitu
cionalidade, ou, ainda, a ação direta por omissão, não
será admissível a arguição de descumprimento. Em
sentido contrário, não sendo admitida a utilização de
ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitu
cionalidade, isto é, não se verificando a existência de
meio apto para solver a controvérsia constitucional re
levante de farma ampla, geral e imediata, há de se
entender possível a utilização da arguição de descum
primento de preceito fundamental " . 422
Note-se que as considerações do hoje Ministro Gil
mar Ferreira Mendes parecem prevalecer no Supremo
Tribunal Federal. Ao relatar a arguição de descumpri
mento nº 1 7, o Ministro Celso de Mello assim afirmou:
"A mera possibilidade de utilização de outros meios
processuais, contudo, não basta, só por si, para jus
tificar a invocação do princípio da subsidiariedade1
pois, para que esse postulado possa legitimamente
incidir - impedindo, desse modo, o acesso imediato
à arguição de descumprimento de preceito funda
mental - revela-se essencial que os instrumentos
disponíveis mostrem-se capazes de neutralizar, de
maneira eficaz1 a situação de lesividade que se busca
obstar com o ajuizamento desse writ constitucio-
nal " . 423
Está-se de acordo com o entendimento acima espo
sado, no sentido de que a mera existência de processos
ordinários e recursos extraordinários não deva excluir,
aprioristicamente, a utilização do novo remédio, uma
vez que sua disciplina - sobretudo após o veto presi-
422. Idem, p . 3.
423. ADPF 1 7, rel. Min. Celso de Mello, DJU de 2 8 .09. 0 1 , p. 64.
254
dencial ao inciso II do art. 2° tem perfil marcada
-
424 . No mesmo sentido, cf. ADPF nº 74, rel. Min. Celso de Mello, decisão
monocrática, DJ de 0 1 .02.07: "É claro que a mera possibilidade de utilização
de outros meios processuais não basta, só por si, para justificar a invocação do
princípio da subsidiariedade, pois, para que esse postulado possa legitimamente
incidir, revelar-se-á essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se aptos
a sanar, de modo eficaz, a situação de lesividade. Isso significa, portanto, que
o princípio da subsidiariedade não pode - e não deve - ser invocado para
impedir o exercício da ação constitucional de arguição de descumprimento de
preceito fundamental, eis que esse instrumento está vocacionado a viabilizar,
numa dimensão estritamente objetiva, a realização jurisdicional de direitos
básicos, de valores essenciais e de preceitos fundamentais contemplados no
texto da Constituição da República. Se assim não se entendesse, a indevida
aplicação do princípio da subsidiariedade poderia afetar a utilização dessa
relevantíssima ação de índole constitucional, o que representaria, em última
análise, a inaceitável frustração do sistema de proteção, instituído na Carta
Política, de valores essenciais, de preceitos fundamentais e de direitos básicos,
com grave comprometimento da própria efetividade da Constituição" (grifos
nossos) . Devem ser registradas também as observações do Min. Gilmar Men
des, em decisão monocrática na ADPF nº 76, DJ de 20.02.06: "Não se pode
admitir que a existência de processos ordinários e recursos extraordinários deva
excluir, a priori, a utilização da arguição de descumprimento de preceito
fundamental. Até porque o instituto assume, entre nós, feição marcadamente
objetiva. Nessas hipóteses, ante a inexistência de processo de índole objetiva,
apto a solver, de uma vez por todas, a controvérsia constitucional, afigurar-se-ia
integralmente aplicável a arguição de descumprimento de preceito fundamen
tal. É que as ações originárias e o próprio recurso extraordinário não parecem,
as mais das vezes, capazes de resolver a controvérsia constitucional de forma
geral, definitiva e imediata. A necessidade de interposição de um sem número
de recursos extraordinários idênticos poderá, em verdade, constituir-se em
ameaça ao livre funcionamento do STF e das próprias Cortes ordinárias" .
255
cias ordinárias . É preciso que esta competência seja
exercida somente nos casos relevantes e no momento
oportuno. Caso contrário1 o Tribunal Constitucional
deixará de ser o intérprete último para se converter em
intérprete único da Constituição1 transformando-se
numa instância autoritária e deslegitimada de poder.
Hipótese interessante encontrava-se em julgamento
perante o Supremo Tribunal Federat agitada na argui
ção de descumprimento de preceito fundamental nº 41
ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista contra
a Medida Provisória nº 2 . 0 1 9/20001 que fixou valor do
salário mínimo. A alegação do autor era de inconstitu
cionalidade por omissão 1 tendo em vista que o valor
fixado não atenderia de forma integral às necessidades
do trabalhador constitucionalmente previstas . Os Mi
nistros Octavio G allotti (relator) 1 Nelson Jobim1 M au
rício Corrêa1 Sydney S anches e Moreira Alves votaram
pelo descabimento da ação1 tendo em vista a existência
de outro meio para sanar a alegada lesão: a ação direta
de inconstitucionalidade por omissão. Pelo cabimento
da medida votaram os Ministros Celso de Mello1 Marco
Aurélio1 Sepúlveda Pertence1 Ilmar Galvão e Carlos
Velloso1 sob o fundamento de que a ação existente -
a ação de inconstitucionalidade por omissão - não
seria1 em princípio1 meio eficaz para sanar a lesão . 42 5
O empate foi afastado pelo voto do Ministro Néri da
Silveira1 que concluiu pela admissibilidade da ação .
Com razão a segunda corrente1 tendo em conta que o
provimento jurisdicional suscetível de ser proferido na
ação direta de inconstitucionalidade por omissão é1
256
apenas1 a notificação da autoridade responsável acerca
de sua mora (CF1 art. 1 03 1 § 2°) 1 não se traduzindo
em medida apta a satisfazer concretamente o direito
previsto na Constituição e cuj o exercício se encontra
inviabilizado pela ausência de norma regulamentadora.
A ADPF em questão1 porém1 restou prejudicada tendo
em vista a conversão em lei da Medida Provisória ques
tionada. 426
A segunda questão sobre a qual cabe tecer comen
tários refere-se à possibilidade de concessão de liminar
na arguição de descumprimento1 prevista no art. 5°1 §
3°1 da Lei nº 9 . 8 82/99. O dispositivo estatui que a
liminar poderá consistir na determinação de que juízes
e tribunais suspendam o andamento de processo ou os
efeitos de decisões judiciais1 ou de qualquer outra me
dida que apresente relação com a matéria objeto da
arguição de descumprimento de preceito fundamental1
salvo se decorrentes da coisa julgada.
A norma guarda semelhança com o art. 2 1 da Lei
nº 9 . 8 68/991 relativo à possibilidade de concessão de
medida cautelar em ação declaratória de constitucio
nalidade . Tal possibilidade1 é oportuno lembrar1 mesmo
antes do advento da Lei nº 9 . 868/991 foi placitada pelo
Supremo Tribunal Federal1 como já visto1 no julgamento
das ações declaratórias de constitucionalidade nºs 4-61
5/DF e 8/DF1 fundando-se1 para tanto1 no poder geral
de cautela1 reconhecido a qualquer juiz ou tribunal.
O dispositivo não exibe1 em princípio1 qualquer
inconstitucionalidade. 427 S eria conveniente1 entretanto 1
257
que a Lei nº 9 . 882/99 contivesse dispositivo idêntico
ao parágrafo único do art. 2 1 da Lei nº 9 . 868/99, que
prevê a caducidade da liminar caso o mérito da ação
não sej a julgado em cento e oitenta dias .
Apesar de ainda não ter sido julgado o mérito da
maioria das arguições já propostas, por encontrar-se em
curso ação direta de inconstitucionalalidade questio
nando a validade da Lei nº 9 . 8 82/99, tem-se notícia de
corajosa decisão monocrática, da lavra do Min. Maurício
Corrêa. Ao analisar uma arguição de descumprimento
com pedido de concessão de medida liminar obj etivando
a suspensão imediata da eficácia dos artigos 3 5 3 a 360
do Regimento Interno do Tribunal de Justiça de Alagoas
e, em decorrência, que fosse determinado o sobresta
mento das reclamações e sustadas as decisões profe ridas
com base nos dispositivos, o Ministro assim entendeu:
258
quência, ordeno seja sustado o andamento de todas
as reclamações ora em tramitação naquela Corte e
demais decisões que envolvam a aplicação dos pre
ceitos ora suspensos e que não tenham ainda tran
sitado em julgado, até o julgamento final desta ar
guição . " 428
259
de, por si só, não aparenta violação à garantia; todavia,
seu julgamento pela Corte Suprema, sem que as partes
diretamente afetadas possam apresentar razões, realizar
sustentação oral e suscitar qualquer outro incidente
necessário à defesa de seu interesse, configura, à evi
dência, .afronta ao devido processo legal e aos princípios
do contraditório e ampla defesa.
Considero oportuno encerrar este capítulo com pas
sagem significativa do artigo dos acadêmicos Pedro Lou
la e Teresa Melo, que, com entusiasmo, mas mantendo
os olhos na realidade, sintetizam o que se espera do
novo instituto:
260
Capítulo VI
261
jurídico brasileiro, também os Poderes Executivo e
Legislativo desempenham papel importante na defesa
da supremacia constitucional.
Portanto, e logo de plano, é preciso desmitificar a
ideia de que ao Poder Judiciário esteja reservado um
monopólio sobre o controle da constitucionalidade. Na
verdade, todos os Poderes devem reverência à Consti
tuição e, mais ainda, têm o dever de impedir, dentro
de seu elenco de competências, qualquer atentado à
Lei Fundamental. Os Poderes Executivo e Legislativo
não são, assim, meros sujeitos passivos do controle da
constitucionalidade, exercendo também, no âmbito de
suas atribuições e responsabilidades, o poder-dever de
atuar como sujeito ativo na preservação dos princípios
e regras constitucionais . O princípio, portanto, é não
descumprir a Constituição e não permitir que se a
descumpra.
No contexto de uma sociedade aberta de intérpretes
da Constituição, às autoridades públicas deve ser asse
gurado um amplo espaço de expressão e participação
na revelação e definição dos significados constitucionais
prevalecentes . Tal participação não se dá, entretanto,
apenas no âmbito do processo formal de fiscalização da
constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Fe
deral.
Destacam-se, neste capítulo, duas vertentes de atua
ção, por assim dizer, heterodoxa dos Poderes Executivo
e Legislativo na guarda da Constituição.
A primeira vertente, exercida em sede legislativa,
consiste na participação do Chefe do Poder Executivo
no processo de elaboração das leis. Tal participação se
dá através do exercício do poder de veto pelo Presidente
da República, Governadores de Estados e Prefeitos dos
Municípios, dentro de cada unidade da Federação. O
veto, como se verá, pode ter como fundamento, a par
262
da contrariedade ao interesse público1 a inconstitucio
nalidade do proj eto de lei em tramitação perante o
Poder Legislativo.
A segunda vertente é aquela empreendida em sede
administrativa1 no âmbito interno do próprio Poder
Executivo. Trata-se da possibilidade1 reconhecida ao
Chefe do Poder Executivo1 de negar aplicação a uma
lei que lhe pareça inconstitucional. Negativa de aplica
ção por decisão autoexecutória1 independente de qual
quer pronunciamento prévio do Poder Judiciário1 a
partir da simples constatação desta incompatibilidade
da lei com a Constituição1 mas sujeita sempre1 por
provocação de qualquer interessado1 ao reexame ju
dicial.
Passa-se1 a seguir1 ao exame em separado de cada
uma dessas vertentes de atuação1 buscando-se demons
trar sua relevância não apenas para a higidez da Cons
tituição1 como também para a lisura e bom funciona
mento do regime democrático.
263
caso não mantido o veto, o projeto é enviado ao Pre
sidente da República para promulgação.
Na teoria geral do veto é ainda predominante o
entendimento, tanto em sede doutrinária como juris
prudencial1 de que o veto é insindicável, devido à sua
natureza de ato estritamente político. 43 0 Em notável
trabalho monográfico, verdadeira referência no tema1 43 1
José Alfredo de Oliveira Baracho dá notícia da posição
majoritária. Confira-se, a propósito, significativo trecho
de acórdão do Colendo Supremo Tribunal Federal acer..,
ca da questão1 in verbis:
430 . Para um estudo aprofundado dos atos políticos, sua origem e natureza, v.
Carlos Roberto de Siqueira Castro, O Devido Processo Legal e a Razoabilidade
das Leis na Nova Constituição do Brasil, Editora Forense, 1 989, p. 245/26 5 .
431 . José Alfredo d e Oliveira Baracho, Teoria Geral do Veto, in Revista de
Informação Legislativa nº 83, jul./set. 1 984, p. 2 1 4.
432 . Representação nº 1 .065- 1 , Revista de Direito Administrativo nº 1 46,
out./dez. 1 98 1 , p. 200.
433 . José Alfredo de Oliveira Baracho, As Atribuições Constitucionais do Poder
Executivo, Revista de Direito Administrativo nº 3 1 , p. 4/5.
264
São as duas Câmaras do Congresso Nacional, em
sessão conjunta, conforme dispõe o art. 70, § 3 ° (. . .)
Antes de exaurida esta instância não é oportuna a
apreciação do veto. " 434
265
O veto por este fundamento constitui, assim, um
ato estritamente político. E esta expressão é aqui utili
zada como um conceito jurídico, definido como aquele
ato cujo conteúdo de mérito é tal que o !orna insus
cetível de reexame pelo Poder Judiciário. E o caso das
decisões políticas fundamentais, que dizem respeito à
oportunidade e à conveniência administrativas, por isto
mesmo reservadas apenas aos agentes políticos que
exercem mandato popular.
Deste modo, quando o Chefe do Poder Executivo
veta um projeto de lei por considerá-lo contrário ao
interesse público, está praticando um ato estritamente
político, que, como tal, não é suscetível de controle
judicial. O mesmo sempre se entendeu, como afirmado
linhas atrás, em relação ao veto sob o argumento de
inconstitucionalidade.
A questão que se apresenta é a seguinte: existe
identidade entre as naturezas jurídicas de um veto
aposto por contrariedade ao interesse público e um
veto fundado em inconstitucionalidade? Parece razoável
que esses dois atos se equiparem?
O veto por contrariedade ao interesse público é sim
um ato estritamente político, dado o seu conceito vago,
o seu caráter subjetivo e a sua finalidade de resguardo da
governabilidade. Mas se o Chefe do Poder Executivo veta
um projeto de lei por considerá-lo inconstitucional e
apresenta as razões por que o faz - e a Constituição, em
seu art. 66, § 1 º, determina que remeta essas razões em
48 horas ao Presidente do Senado Federal -, este não é
mais um ato estritamente político. Trata-se, ao revés, de
um veto jurídico-constitucional, motivado pela descon
formidade entre o projeto de lei e a Constituição. 436
43 6 . Clemerson Merlin Cleve, ob. cit, p. 74; Zeno Veloso, Controle Jurisdicio
nal de Constitucionalidade, Editora Dei Rey, 2000, p. 3 1 2 .
266
Com efeito, ao motivar o veto por inconstituciona
lidade, o Chefe do Executivo está vinculando o seu ato
a determinados motivos, que devem ser verdadeiros e
consistentes . É possível traçar, aqui, uma analogia com
o princípio dos motivos determinantes, tomado por em
préstimo ao Direito Administrativo.
O Chefe do Executivo poderia não ter motivado o
seu veto com o argumento de inconstitucionalidade,
hipótese em que estaria a praticar um ato estritamente
político. Todavia, havendo adotado como motivo de
terminante do ato a inconstitucionalidade do projeto
de lei, vinculou-o a tal motivo, daí decorrendo a sua
sindicabilidade.
A tese de que o veto por inconstitucionalidade não
é um ato estritamente político foi assim sustentada,
com percuciência, por Gilmar Ferreira Mendes:
267
a apreciação do veto pela Casa Legislativa não se
inspira exatamente em razões de legitimidade. A
ausência de maioria qualificada fundada em razões
meramente políticas implicará a manutenção do veto
ainda que lastreado em uma razão de inconstitucio
nalidade absolutamente despropositada.
A indagação que subsiste diz respeito à possibilidade
de que se pudesse judicializar a questão constitucio
nal, tendo em vista a aferição da legitimidade ou
não do fundamento invocado.
Em um sistema de rígida vinculação à Constituição,
parece plausível admitir, pelo menos, que a maioria
que garantiu a aprovação da lei deveria ter a pos
sibilidade de instaurar tal controvérsia. Quanto ao
instrumento processual adequado, deve-se mencionar
que o Supremo Tribunal Federal tem admitido a
utilização do mandado de segurança em situações
típicas de conflito entre órgãos. " 4 3 7
268
termos do art. 66, § 4°, da Constituição, o quorum de
maioria absoluta, em sessão conjunta do Congresso
Nacional. Entretanto, supondo que o veto sej a infun
dado, ensej ou ele urna fraude ao devido processo legis
lativo estabelecido na Constituição, a saber: exigiu-se,
sob um pseudofundamento de inconstitucionalidade, o
quorum de maioria absoluta para aprovar urna lei ordi
nária, quando seria necessário apenas o quorum de
maioria simples.
Os defensores da tese oposta poderiam alegar que
se o Chefe do Poder Executivo pode vetar por contra
riedade ao interesse público - e tal veto não ensej aria
nenhuma consequência no âmbito do Judiciário - evi
dentemente que o veto por inconstitucionalidade tam
bém não pode ensejar, senão que bastaria ao Chefe do
Poder Executivo apontar sempre corno razão do seu
veto, a par da inconstitucionalidade, a contrariedade ao
interesse público.
Pois bem. A questão aqui se desloca de certo modo
do controle da constitucionalidade para a seara da res
ponsabilidade política. Caso o Chefe do Poder Execu
tivo entenda que o projeto de lei é contrário ao interesse
público, deve assumir o ônus político de sua decisão,
suscetível de ser alterada apenas por outro ato político
- do Poder Legislativo - que é a rejeição do veto,
pelo quorum de maioria absoluta. O que não se deve
admitir é que o veto possa ter por fundamento urna
alegada inconstitucionalidade, à evidência inexistente,
funcionando corno urna espécie de pretexto para que
o Chefe do Poder Executivo possa eximir-se de suas
responsabilidades políticas .
A tese aqui esposada é a seguinte: a maioria parla
mentar que aprovou o projeto de lei e que entenda que
o veto por inconstitucionalidade não é fundado, tem o
direito de instaurar a controvérsia perante o Poder
2 69
Judiciário e de obter um pronunciamento que anule
aquele veto. E que permita, enfim, que aquele projeto
se converta em lei.
O remédio judicial apropriado poderia ser o man
dado de segurança, tendo em vista que a jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal o tem admitido como
instrumento para a solução de conflitos entre Poderes
e defesa de prerrogativas de funções. 438 A admissibili
dade de um tal controle prévio de constitucionalidade,
exercido sobre o veto jurídico-constitucional, reveste-se
de grande importância para a garantia da lisura do
procedimento democrático, na medida em que impede
a subversão das regras do devido processo legislativo
pelo Poder Executivo .
438 . Hely Lopes Meirelles, Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil
Pública, Mandado de Injunção, Habeas Data. Editora Malheiros, 1 990, p.
1 6/ 1 7 .
2 70
normas jurídicas e comprometimento dos princípios
consagrados na Carta Magna .
. Esta concepção baseava-se no argumento de que a
interpretação, ou antes, a observância da Constituição
não é monopólio do Poder Judiciário. A este cabe, como
já dito e reafirmado, dar a última palavra, não só na
interpretação da Constituição como na fixação da in
teligência de qualquer norma jurídica. No desempenho
de sua função administrativa, entretanto, também o
Poder Executivo interpreta e aplica a Constituição.
Assim, ao verificar uma incompatibilidade entre nor
mas de diferente hierarquia que se apliquem à mesma
situação fática, deve o Poder Executivo optar por cum
prir a norma hierarquicamente superior. Tal decisão é
autoexecutória, só merecendo ser revista se o órgão
competente do Poder Judiciário, provocado por algum
interessado, vier a decidir em sentido diverso .
E m valioso estudo sobre o tema, o Professor Luís
Roberto Barroso compendia os mais diversos pronun
ciamentos doutrinários e jurisprudenciais que chance
lam a tese acima. 439 Arrisco-me a citar, entre tantos:
Lucio Bittencourt, 440 Miguel Reale, 441 Themistocles
Brandão Cavalcanti, 44 2 Vicente Ráo, 443 José Frederico
439 . Luís Roberto Barroso, Norma Incompatível com a Constituição. Não Apli
cação pelo Poder Executivo, independentemente de pronunciamento judicial.
Legitimidade, Revista de Direito Administrativo nº 1 8 1 - 1 82, p. 387 e segs . ,
1 990.
440 . Lucio Bittencourt, ob. cit., p . 9 1 , nota 3 .
441 . Miguel Reale, Parecer publicado no D O E d e S ã o Paulo d e 1 9 .03.63, apud
RTJ 96/496, 499.
442 . Themistocles Brandão Cavalcanti, Revista Arquivos do Ministério da Jus
tiça, ano XXIII, nº 95, p. 4 7/49.
443 . Vicente Ráo, Folha de S. Paulo, 20.03.63, apud Revista Arquivos do
Ministério da Justiça, ano XXIII, nº 9 5 , p . 6 1 .
271
Marques, 4 44 Carlos Maximiliano, 4 4 5 Caio Tácito, 44 6 Ro
naldo Poletti, 447 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, 4 48
Alexandre de Moraes 449 e Clemerson Merlin Cleve. 45 º
Não obstante, com o advento da Constituição de
1 988, alguns juristas passaram a questionar a tese, sob
o argumento de que, a partir de então, o Presidente
da República e os Governadores passaram a ter legiti
midade para deflagrar o controle concentrado da cons
titucionalidade perante o Poder Judiciário, não mais se
justificando o descumprimento autoexecutório de lei
considerada inconstitucional.
Destaquem-se nesta linha, com especial ênfase, os
trabalhos de Humberto Ribeiro Soares, 4 51 Zeno Velo
so, 45 2 Ruy Carlos de Barros Monteiro, 453 e Alexandre
Camanho de Assis . 454
Embora sem adotar postura conclusiva, Gilmar Fer-
2 72
reira Mendes tende igualmente a esposar igual enten
dimento. Confira-se o trecho a seguir, de sua lavra:
2 73
de leis aprovadas pela Assembleia Legislativa1 mas que
houvessem sido vetadas sob o fundamento de incons
titucionalidade por vício de iniciativa. Em passagem
eloquente de seu voto1 consignou o eminente Ministro
relator:
4 5 7 . RTJ 96/508.
2 74
sua Chefia - e isso mesmo tem sido questionado
com o alargamento da legitimação ativa na ação
direta de inconstitucionalidade -, podem tão-só de
terminar aos seus órgãos subordinados que deixem
de aplicar administrativamente as leis ou atos com
força de lei que considerem inconstitucionais. " 4 5 8
2 75
um ato inválido ab ovo, inapto à produção de qualquer
efeito válido. Logo, nenhuma consequência pode decorrer
de seu descumprimento. Outrossim, o cumprimento da
lei reputada inconstitucional acarretaria a prática de um
crime de responsabilidade ainda mais grave: a violação da
própria Constituição. É o próprio art. 85 da Lei Maior
que o diz de modo inequívoco: " S ão crimes de respon
sabilidade os atos do Presidente da República que aten-
. tem contra a Constituição Federal" .
Assim, não está o Poder Executivo autorizado e ,
muito menos, obrigado a lavar as mãos diante de um
ato normativo que se lhe afigure inconstitucional, com
pactuando com a violação da Lei Maior. Vale destacar
que mesmo após o advento da Carta de 1 98 8 a juris
prudência tem reafirmado a tese aqui esposada. Con
fira-se, v.g. 1 acórdão do Superior Tribunal de Justiça,
do ano de 1 993, assim ementado:
"Lei inconstitucional - Poder Executivo - Negativa
de eficácia. O Poder Executivo deve negar execução
a ato normativo que lhe pareça inconstitucional. " 459
Argumento interessantíssimo, em abono da tese aqui
sustentada, é oferecido por Clemerson Merlin Cleve .
Confira-se o teor de seu raciocínio que, pela clareza e
argúcia, merece transcrição literal:
"( . . . ) à medida que o Chefe do Executivo Federal
e os Chefes dos Executivos estaduais dispõem de
legitimidade para a propositura de ação direta com
pedido de liminar seria o caso de perquirir se ainda
1
459 . REsp nº 23.22 1 /92, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU de
08 . 1 1 . 1 993.
2 76
lei ou ato normativo. S im, porque antes a titulari
dade da ação direta residia unicamente nas mãos do
Procurador-Geral da República. Não mais, agora,
todavia.
Eventual resposta negativa poderia ter fundamento
em relação ao Presidente da República ou aos Go
vernadores de Estado. Não o teria, porém, diante
de outros órgãos como os Tribunais de Contas, por
exemplo. E não o teria, finalmente, quanto aos Pre
feitos Municipais, que não dispõem de legitimidade
para a impugnação, por via de ação direta, de leis
federais e, em geral, das leis estaduais . Alcançar-se-ia
com esse raciocínio evidente paradoxo: em relação
a algumas leis federais ou estaduais, os Prefeitos
Municipais gozariam de posição mais vantajosa que
o Presidente da República e os Governadores de
Estado. Imagine-se a hipótese de lei federal dispondo
sobre norma geral em determinada matéria (tribu
tária ou urbanística, por exemplo) .
Ostentando o ato legislativo norma viciada, o Pre
sidente da República somente poderia recusar-se a
cumpri-la caso antes tivesse obtido liminar. No caso
do prefeito, porque não pode obter liminar em sede
de ação direta, ficaria autorizado a recusar, desde
logo, seu cumprimento.
Deve, portanto, o STF nessa questão manter seu
entendimento, mesmo no contexto da Constituição
de 1 988, inclusive porque, nesta, como nas preté
ritas, todos os Poderes da República estão vinculados
ao cumprimento da Constituição (art. 23, 1, CF) e,
então, ao processo contínuo de otimização de sua
normatividade. " 460
2 77
De parte todos os argumentos acima alinhados, após
a edição da Emenda Constitucional nº 03, de 1 7 de
março de 1 993, nenhuma dúvida resta quanto ao po
der-dever do Executivo de negar aplicação a lei consi
derada inconstitucional, havendo a tese sido acolhida,
de forma explícita, em nosso direito constitucional po
sitivo.
É que a Emenda Constitucional nº 03/93 , dentre
outras inovações, instituiu no direito constitucional bra
sileiro a figura da ação declaratória de constitucionali
dade . Tal instituto, simetricamente à ação direta de
inconstitucionalidade, tem por escopo propiciar a pro
lação de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que
afirme, com eficácia erga omnes, a constitucionalidade
de determinada lei ou ato normativo. Por tal decisão,
a presunção de constitucionalidade da lei, que é relativa,
torna-se absoluta, impedindo a sua inobservância, sob
o argumento de inconstitucionalidade, por quem quer
que seja, inclusive pelos demais órgãos do Poder Judi
ciário.
Tem-se, assim, que a finalidade da ação declaratória
de constitucionalidade é impedir a não aplicação de
uma lei, inclusive pelos demais órgãos do Poder Judi
ciário, sob a alegação de vício de inconstitucionalidade .
Ocorre que, na redação da EC nº 03/93, há uma
referência expressa ao Poder Executivo, ao lado do
Poder Judiciário, como destinatário da decisão. Confi
ra-se a dicção do § 2º do art. 1 02 da Constituição, com
a redação da EC nº 03/93 :
11
§ 2° As decisões definitivas de mérito1 proferidas
pelo Supremo Tribunal Federal1 nas ações declara
tórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo
federal1 produzirão eficácia contra todos e efeito
2 78
vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder
Judiciário e ao Poder Executivo. "
2 79
É possível concluir, portanto, que a tese aqui sus
tentada mereceu consagração tanto em nível constitu
cional como infraconstitucional.
Por medida de segurança jurídica, entretanto, tal
prerrogativa deve ser reservada, com exclusividade, ao
Chefe do Executivo, sendo vedado a qualquer outro
servidor dos quadros da Administração Pública que,
sponte sua, denegue cumprimento à lei. 461
Por outro lado, a decisão da Chefia do Poder Exe
cutivo estará sempre sujeita a ulterior reexame pelo
Poder Judiciário, o que poderá dar-se tanto em sede
de controle concreto, como no âmbito da fiscalização
abstrata. À Administração Pública caberá alegar em sua
defesa que o descumprimento da lei deveu-se à sua
incompatibilidade com a Constituição. Caso o argu
mento sej a acolhido, a conduta da Administração estará
sendo, a fortiori, validada pelo Poder Judiciário. Pro
clamada, ao revés, a constitucionalidade da lei até então
enjeitada, fica o Chefe do Executivo à mercê dos pro
cedimentos constitucionais e legais tendentes à sua
responsabilização político-administrativa. Com efeito,
ao optar por simplesmente negar aplicação à lei, ao
invés de ajuizar uma ação direta de inconstitucionali
dade - caso cabível - o agente político o faz por sua
conta e risco, submetendo-se aos ônus daí decorrentes .
280
Capítulo VI I
Síntese conclusiva
281
As ideias desenvolvidas ao longo do trabalho podem
ser reconduzidas, em apertada síntese, às proposições
objetivas que se seguem:
1 . O Estado Democrático de Direito é a síntese
histórica de duas ideias originariamente antagônicas:
democracia e constitucionalismo. Com efeito, enquanto
a ideia de democracia se funda na soberania popular,
o constitucionalismo tem sua origem ligada à noção de
limitação do poder. A democracia constitucional, con
quanto proclamada neste final de século como regime
de governo ideat vive sob o influxo de uma tensão
latente entre a vontade majoritária e a vontade superior
expressa na Constituição.
2. A supremacia da Constituição e a jurisdição cons
titucional são mecanismos pelos quais determinados
princípios e direitos, considerados inalienáveis pelo po
der constituinte originário, são subtraídos da esfera
decisória ordinária dos agentes políticos eleitos pelo
povo, ficando protegidos pelos instrumentos de controle
de constitucionalidade das leis e atos do Poder Público .
3 . A jurisdição constitucional é, portanto, uma ins
tância de poder contramaj oritário, no sentido de que
sua função é mesmo a de anular determinados atos
votados e aprovados, maj oritariamente, por repre
sentantes eleitos . Nada obstante, entende-se, hodier
namente, que os princípios e direitos fundamentais,
constitucionalmente assegurados, são, em verdade,
condições estruturantes e essenciais ao bom funciona
mento do próprio regime democrático; assim, quando
a justiça constitucional anula leis ofensivas a tais prin
cípios ou direitos, sua intervenção se dá a favor, e não
contra a democracia. Esta a fonte maior de legitimidade
da jurisdição constitucional.
4 . Por outro lado, para que a Corte Constitucional
não se torne uma instância autoritária de poder -
282
compondo um governo de juízes - que dita1 de forma
monolítica1 as interpretações oficiais a serem dadas aos
diversos dispositivos da Constituição1 é mister fomentar
a ideia de cidadania constitucional1 de forma a criar
uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição.
Todos têm o direito de participar ativamente do pro
cesso de revelação e definição da interpretação consti
tucional prevalecente1 cabendo ao Tribunal Constitu
cional funcionar como instância última - mas não única
- de tal processo. A maior ou menor autoridade da
Corte Constitucional depende1 necessariamente1 de sua
capacidade de estabelecer este diálogo com a sociedade
e de gerar consenso1 intelectual e moral1 em torno de
suas decisões.
5. A Constituição de 1 98 8 estabeleceu um novo
paradigma em matéria de jurisdição constitucional no
Brasil. Pode-se afirmar que a desmonopolização do aces
so direto ao Supremo Tribunal Federal1 com a ampliação
e democratização do elenco de legitimados para a pro
positura da ação direta de inconstitucionalidade1 gerou
um salutar crescimento da jurisprudência da Corte so
bre o tema do controle de constitucionalidade1 o que
indica uma maior preocupação da sociedade brasileira
com o respeito aos princípios e direitos estabelecidos
na Constituição.
6 . A recém-editada Lei nº 9 . 868/99, que dispõe
sobre o processo e julgamento da ação direta de in
constitucionalidade e da ação declaratória de constitu
cionalidade1 organizou satisfatoriamente o complexo
sistema de fiscalização abstrata da constitucionalidade
existente no Brasil. Ademais1 a nova Lei sinaliza com
uma maior abertura no processo de interpretação cons
titucional1 ao admitir expressamente a manifestação de
outros órgãos ou entidades1 além das partes formais1
no processo de controle abstrato, de acordo com a sua
2 83
representatividade e a relevância da matéria em discus
são, bem como a possibilidade de os juízes da Corte
socorrerem-se, para a formação de sua convicção, dos
conhecimentos técnicos de peritos e de depoimentos
de pessoas com experiência e autoridade no tema em
debate, mediante realização de audiências públicas. Um
passo significativo na caminhada pela democratização
do processo constitucional brasileiro.
7 . Como não há avanço linear1 senão que em todo
progresso há retrocessos, a também recente Lei nº
9 . 8 82/99, que regulamentou a até então misteriosa
arguição de descumprimento de preceito fundamental,
não tem os mesmos méritos . Com efeito, sob o pretexto
de criar uma ação constitucional que permitiria o acesso
direto do cidadão à Corte Suprema para a defesa de
direitos fundamentais (sob inspiração do recurso cons
titucional alemão e do recurso de amparo espanhol) , a
nova Lei acabou por instituir um instrumento de cali
bragem da jurisdição constitucional difusa, que tenderá
a reduzir substancialmente a livre formação da convic
ção dos magistrados ordinários acerca das grandes ques
tões constitucionais. Convém que o Supremo Tribunal
Federal se utilize deste novo remédio com prudência
e parcimônia, a fim de não asfixiar, de forma prematura,
a formação livre e espontânea da convicção dos juízes
nas instâncias ordinárias . É preciso que esta competên
cia sej a exercida somente nos casos relevantes e no
momento oportuno. Caso contrário, o Tribunal Cons
titucional deixará de ser o intérprete último para se
converter em intérprete único da Constituição, trans
formando-se numa instância autoritária e deslegitimada
de poder.
8 . O veto por inconstitucionalidade não se caracte
riza como ato estritamente político praticado pelo Che
fe do Poder Executivo. Ao contrário, trata-se de ato
284
sindicável, passível de ser impugnado, perante o Poder
Judiciário, por qualquer integrante da maioria parla
mentar que aprovou o projeto de lei. Tal controle prévio
de constitucionalidade afigura-se essencial para o res
guardo da lisura do devido processo legislativo.
9 . O Poder Executivo, por intermédio de sua Chefia,
tem o poder-dever de negar aplicação, no âmbito de
suas atribuições, a leis ou atos normativos que se lhe
afigurem incompatíveis com a Constituição, inde
pendentemente de autorização prévia do Poder Judi
ciário. Tal entendimento, consagrado até o advento da
Constituição de 1 988, sofreu críticas por parte de alguns
juristas a partir de então, tendo em vista a possibilidade,
criada pelo novo ordenamento constitucional, de ajui
zamento de ação direta de inconstitucionalidade pelo
Presidente da República e Governadores de Estados.
A Emenda Constitucional nº 03/93, no entanto, ao
instituir a ação declaratória de constitucionalidade,
chancelou, implicitamente, a tese da possibilidade do
descumprimento da lei inconstitucional pelo Poder Exe
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titutional Law. Harvard Law Review nº 73, 1 9 59.
298
Lei nº 9 . 8 68,
de 1 0 de novembro de 1 9 99
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu
sanciono a seguinte Lei:
CAP Í TULO 1
Da ação direta de inconstitucionalidade e da
ação declaratória de constitucionalidade
2 99
CAP Í TULO II
Da ação direta de inconstitucionalidade
Seção I
Da Admissibilidade e do Procedimento da
Ação Direta de Inconstitucionalidade
3 00
Art. 4° A petição inicial inepta1 não fundamentada
e a manifestamente improcedente serão liminarmente
indeferidas pelo relator.
Parágrafo único. Cabe agravo da decisão que inde
ferir a petição inicial.
Art. 5° Proposta a ação direta1 não se admitirá
desistência .
Parágrafo único. (VETADO)
Art. 6° O relator pedirá informações aos órgãos ou
às autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo
impugnado.
Parágrafo único. As informações serão prestadas no
prazo de trinta dias contado do recebimento do pedido.
Art. 7° Não se admitirá intervenção de terceiros no
processo de ação direta de inconstitucionalidade.
§ 1 º (VETADO)
§ 2° O relator1 considerando a relevância da matéria
e a representatividade dos postulantes, poderá1 por
despacho irrecorrívet admitir1 observado o prazo fixado
no parágrafo anterior1 a manifestação de outros órgãos
ou entidades.
Art. 8° Decorrido o prazo das informações1 serão
ouvidos1 sucessivamente1 o Advogado-Geral da União
e o Procurador-Geral da República1 que deverão ma
nifestar-se, cada qual1 no prazo de quinze dias.
Art. 9° Vencidos os prazos do artigo anterior1 o
relator lançará o relatório1 com cópia a todos os Minis
tros1 e pedirá dia para julgamento.
§ 1 ° Em caso de necessidade de esclarecimento de
matéria ou circunstância de fato ou de notória insufi
ciência das informações existentes nos autos1 poderá o
relator requisitar informações adicionais, designar perito
ou comissão de peritos para que emita parecer sobre
a questão1 ou fixar data para, em audiência pública1
ouvir depoimentos de pessoas com experiência e auto
ridade na matéria.
301
§ 2º O relator poderá, ainda, solicitar informações
aos Tribunais Superiores, aos Tribunais federais e aos
Tribunais estaduais acerca da aplicação da norma im
pugnada no âmbito de sua jurisdição.
§ 3° As informações, perícias e audiências a que se
referem os parágrafos anteriores serão realizadas no
prazo de trinta dias, contado da solicitação do relator.
Seção II
Da Medida Cautelar em Ação Direta
de Inconstitucionalidade
3 02
devendo solicitar as informações à autoridade da qual
tiver emanado o ato, observando-se, no que couber, o
procedimento estabelecido na Seção 1 deste Capítulo.
§ 1 ° A medida cautelar, dotada de eficácia contra
todos, será concedida com efeito ex nunc, salvo se o
Tribunal entender que deva conceder-lhe eficácia re
troativa.
§ 2º A concessão da medida cautelar torna aplicável
a legislação anterior acaso existente, salvo expressa ma
nifestação em sentido contrário.
Art. 1 2 . Havendo pedido de medida cautelar, o
relator, em face da relevância da matéria e de seu
especial significado para a ordem social e a segurança
jurídica, poderá, após a prestação das informações, no
prazo de dez dias, e a manifestação do Advogado-Geral
da União e do Procurador-Geral da República, suces
sivamente, no prazo de cinco dias, submeter o processo
diretamente ao Tribunal, que terá a faculdade de julgar
definitivamente a ação.
Capítulo II-A
(Incluído pela Lei nº 1 2 .063, de 2009)
Seção 1
(Incluído pela Lei nº 1 2 .063, de 2009)
Da Admissibilidade e do Procedimento da
Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
3 03
da ação direta de inconstitucionalidade e da ação decla
ratória de constitucionalidade. (Incluído pela Lei nº
1 2 .063, de 2009) .
Art. 1 2-B. A petição indicará: (Incluído pela Lei n°
1 2 .063, de 2009) .
I - a omissão inconstitucional total ou parcial quan
to ao cumprimento de dever constitucional de legislar
ou quanto à adoção de providência de índole adminis
trativa; (Incluído pela Lei nº 1 2 .063, de 2009) .
I I - o pedido, com suas especificações. (Incluído
pela Lei nº 1 2 .063, de 2009) .
Parágrafo único . A petição inicial, acompanhada de
instrumento de procuração, se for o caso, será apresen
tada em 2 (duas) vias, devendo conter cópias dos do
cumentos necessários para comprovar a alegação de
omissão. (Incluído pela Lei nº 1 2 .063, de 2009) .
Art. 1 2-C. A petição inicial inepta, não fundamen
tada, e a manifestamente improcedente serão liminar
mente indeferidas pelo relator. (Incluído pela Lei nº
1 2 .063, de 2009) .
Parágrafo único. Cabe àgravo da decisão que inde
ferir a petição inicial. (Incluído pela Lei n° 1 2 . 063, de
2009) .
Art. 1 2-D. Proposta a ação direta de inconstitucio
nalidade por omissão, não se admitirá desistência. (In
cluído pela Lei nº 1 2 . 063, de 2 009) .
Art. 1 2-E. Aplicam-se ao procedimento da ação
direta de inconstitucionalidade por omissão, no que
couber, as disposições constantes da Seção I do Capítulo
II desta Lei. (Incluído pela Lei nº 1 2 .063, de 2009) .
§ 1 ° Os demais titulares referidos no art. 2° desta
Lei poderão manifestar-se, por escrito, sobre o objeto
da ação e pedir a juntada de documentos reputados
úteis para o exame da matéria, no prazo das informa-
304
ções1 bem como apresentar memoriais. (Incluído pela
Lei nº 1 2 .0631 de 2009) .
§ 2º O relator poderá solicitar a manifestação do
Advogado-Geral da União1 que deverá ser encaminhada
no prazo de 1 5 (quinze) dias. (Incluído pela Lei nº
1 2.0631 de 2009) .
§ 3° O Procurador-Geral da República1 nas ações
em que não for autor1 terá vista do processo1 por 1 5
(quinze) dias1 após o decurso do prazo para informações.
(Incluído pela Lei nº 1 2 .0631 de 2009) .
Seção II
(Incluído pela Lei nº 1 2 .0631 de 2009) .
305
§ 2° O relator, julgando indispensável, ouvira o
Procurador-Geral da República, no prazo de 3 (três)
dias. (Incluído pela Lei nº 1 2 .063, de 2009) .
§ 3° No julgamento do pedido de medida cautelar,
será facultada sustentação oral aos representantes judi
ciais do requerente e das autoridades ou órgãos respon
sáveis pela omissão inconstitucional, na forma estabe
lecida no Regimento do Tribunal. (Incluído pela Lei nº
1 2.063, de 2009) .
Art. 1 2-G . Concedida a medida cautelar, o Supremo
Tribunal Federal fará publicar, em seção especial do
Diário Oficial da União e do Diário da Justiça da União,
a parte dispositiva da decisão no prazo de 1 O (dez)
dias, devendo solicitar as informações à autoridade ou
ao órgão responsável pela omissão inconstitucional, ob
servando-se, no que couber, o procedimento estabele
cido na S eção I do Capítulo II desta Lei . (Incluído pela
Lei nº 1 2 .063, de 2009) .
Seção III
(Incluído pela Lei nº 1 2 .063, de 2009)
3 06
excepcionalmente pelo Tribunal, tendo em vista as
circunstâncias específicas do caso e o interesse público
envolvido. (Incluído pela Lei nº 1 2 .063, de 2009) .
§ 2° Aplica-se à decisão da ação direta de inconsti
tucionalidade por omissão, no que couber, o disposto
no Capítulo IV desta Lei. (Incluído pela Lei nº 1 2 .063,
de 2009) .
Seção 1
Da Admissibilidade e do Procedimento da
Ação Declaratória de Constitucionalidade
307
necessanos para comprovar a procedência do pedido
de declaração de constitucionalidade.
Art. 1 5 . A petição inicial inepta, não fundamentada
e a manifestamente improcedente serão liminarmente
indeferidas pelo relator.
Parágrafo único. Cabe agravo da decisão que inde
ferir a petição inicial.
Art. 1 6 . Proposta a ação declaratória, não se admitirá
desistência.
Art. 1 7 . (VETADO)
Art. 1 8 . Não se admitirá intervenção de terceiros
no processo de ação declaratória de constitucionalidade.
§ l º (VETADO)
§ 2° (VETADO)
Art. 1 9. Decorrido o prazo do artigo anterior, será
aberta vista ao Procurador-Geral da República, que
deverá pronunciar-se no prazo de quinze dias .
Art. 20. Vencido o prazo do artigo anterior, o relator
lançará o relatório, com cópia a todos os Ministros, e
pedirá dia para julgamento.
§ 1 ° Em caso de necessidade de esclarecimento de
matéria ou circunstância de fato ou de notória insufi
ciência das informações existentes nos autos, poderá o
relator requisitar informações adicionais, designar perito
ou comissão de peritos para que emita parecer sobre
a questão ou fixar data para, em audiência pública,
ouvir depoimentos de pessoas com experiência e auto
ridade na matéria.
§ 2° O relator poderá solicitar, ainda, informações
aos Tribunais Superiores, aos Tribunais federais e aos
Tribunais estaduais acerca da aplicação da norma ques
tionada no âmbito de sua jurisdição.
§ 3 ° As informações, perícias e audiências a que se
referem os parágrafos anteriores serão realizadas no
prazo de trinta dias, contado da solicitação do relator.
3 08
Seção II
Da Medida Cautelar em Ação Declaratória
de Constitucionalidade
CAP Í TULO IV
Da decisão na ação direta de inconstitucionalidade
e na ação declaratória de constitucionalidade
3 09
Parágrafo único. S e não for · alcançada a maioria
necessária à declaração de constitucionalidade ou de
inconstitu- cionalidade, estando ausentes Ministros em
número que possa influir no julgamento, este será sus
penso a fim de aguardar-se o comparecimento dos
Ministros ausentes, até que se atinja o número neces
sário para prolação da decisão num ou noutro sentido.
Art. 2 4 . Proclamada a constitucionalidade, julgar
se-á improcedente a ação direta ou procedente eventual
ação declaratória; e, proclamada a inconstitucionalida
de, julgar-se-á procedente a ação direta ou improce
dente eventual ação declaratória.
Art. 25. Julgada a ação, far-se-á a comunicação à
autoridade ou ao órgão responsável pela expedição do
ato.
Art. 2 6 . A decisão que declara a constitucionalidade
ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo
em ação direta ou em ação declaratória é irrecorrível,
ressalvada a interposição de embargos declaratórios, não
podendo, igualmente, ser objeto de ação rescisória.
Art. 2 7 . Ao declarar a inconstitucionalidade de lei
ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança
jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o
Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços
de seus membros, restringir os efeitos daquela decla
ração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de
seu trânsito em julgado ou de outro momento que
venha a ser fixado.
Art. 2 8 . Dentro do prazo de dez dias após o trânsito
em julgado da decisão, o Supremo Tribunal Federal
fará publicar em seção especial do Diário da Justiça e
do Diário Oficial da União a parte dispositiva do acór
dão.
Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade
ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação
310
conforme a Constituição e a declaração parcial de in
constitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia
contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos
do Poder Judiciário e à Administração Pública federal1
estadual e municipal.
CAP Í TULO V
Das disposições gerais e finais
"Art.482 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
311
Art. 30. O art. 8° da Lei nº 8 . 1 8 5 , de 1 4 de maio
de 1 99 1 , passa a vigorar acrescido dos seguintes dispo
sitivos:
"Art. 8° · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · ·
I - ..........................................................................
312
de medida para tornar efetiva norma da Lei Orgânica
do Distrito Federal, a decisão será comunicada ao
Poder competente para adoção das providências ne
cessárias, e, tratando-se de órgão administrativo,
para fazê-lo em trinta dias;
III - somente pelo voto da maioria absoluta de
seus membros ou de seu órgão especial, poderá o
Tribunal de Justiça declarar a inconstitucionalidade
de lei ou de ato normativo do Distrito Federal ou
suspender a sua vigência em decisão de medida
cautelar.
313
Lei nº 9 . 882,
de 3 de dezembro de 1 9 99
314
estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Cons
tituição;
II- (VETADO)
Art. 2° Podem propor arguição de descumprimento
de preceito fundamental:
I- os legitimados para a ação direta de inconsti
tucionalidade;
II- (VETADO)
§ 1 ° Na hipótese do inciso I I, faculta-se ao interes
sado, mediante representação, solicitar a propositura
de arguição de descumprimento de preceito fundamen
tal ao Procurador-Geral da República, que, examinando
os fundamentos jurídicos do pedido, decidirá do cabi
mento do seu ingresso em juízo.
§ 2º (VETADO)
Art. 3° A petição inicial deverá conter:
I - a indicação do preceito fundamental que se
considera violado;
II- a indicação do ato questionado;
III- a prova da violação do preceito fundamental;
IV - o pedido, com suas especificações;
V - se for o caso, a comprovação da existência de
controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do pre
ceito fundamental que se considera violado.
Parágrafo único. A petição inicial, acompanhada de
instrumento de mandato, se for o caso, será apresentada
em duas vias, devendo conter cópias do ato questionado
e dos documentos necessários para comprovar a impug
nação.
Art. 4 ° A petição inicial será indeferida liminarmen
te, pelo relator, quando não for o caso de arguição de
descumprimento de preceito fundamental, faltar algum
dos requisitos prescritos nesta Lei ou for inepta.
315
§ 1 ° Não será admitida arguição de descumprimento
de preceito fundamental quando houver qualquer outro
meio eficaz de sanar a lesividade.
§ 2° Da decisão de indeferimento da petição inicial
caberá agravo, no prazo de cinco dias.
Art. 5° O Supremo Tribunal Federal, por decisão
da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir
pedido de medida liminar na arguição de descumpri
mento de preceito fundamental.
§ 1 ° Em caso de extrema urgência ou perigo de
lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá
o relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal
Pleno.
§ 2° O relator poderá ouvir os órgãos ou autoridades
responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advo
gado-Geral da União ou o Procurador-Geral da Repú
blica, no prazo comum de cinco dias.
§ 3° A liminar poderá consistir na determinação de
que juízes e tribunais suspendam o andamento de pro
cesso ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer
outra medida que apresente relação com a matéria
obj eto da arguição de descumprimento de preceito
fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada.
§ 4° (VETADO)
Art. 6° Apreciado o pedido de liminar, o relator
solicitará as informações às autoridades responsáveis
pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias.
§ 1 ° Se entender necessário, poderá o relator ouvir
as partes nos processos que ensej aram a arguição, re
quisitar informações adicionais, designar perito ou co
missão de peritos para que emita parecer sobre a ques
tão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência
pública, de pessoas com experiência e autoridade na
matéria.
316
§ 2° Poderão ser autorizadas, a critério do relator,
sustentação oral e juntada de memoriais, por requeri
mento dos interessados no processo.
Art. 7º Decorrido o prazo das informações, o relator
lançará o relatório, com cópia a todos os ministros, e
pedirá dia para julgamento.
Parágrafo único. O Ministério Público, nas arguições
que não houver formulado, terá vista do processo1 por
cinco dias1 após o decurso do prazo para informações.
Art. 8° A decisão sobre a arguição de descumpri
mento de preceito fundamental somente será tomada
se presentes na sessão pelo menos dois terços dos
Ministros.
§ 1 º (VETADO)
§ 2º (VETADO)
Art. 9º (VETADO)
Art. 1 O. Julgada a ação1 far-se-á comunicação às
autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos
questionados, fixando-se as condições e o modo de
interpretação e aplicação do preceito fundamental.
§ 1 ° O presidente do Tribunal determinará o ime
diato cumprimento da decisão, lavrando-se o acórdão
posteriormente.
§ 2° Dentro do prazo de dez dias contado a partir
do trânsito em julgado da decisão1 sua parte dispositiva
será publicada em seção especial do Diário da Justiça
e do Diário Oficial da União.
§ 3° A decisão terá eficácia contra todos e efeito
vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder
Público .
Art. 1 1 . Ao declarar a inconstitucionalidade d e lei
ou ato normativo1 no processo de arguição de descum
primento de preceito fundamental, e tendo em vista
razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse
social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria
31 7
de dois terços de seus membros, restringir os efeitos
daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia
a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento
que venha a ser fixado.
Art. 1 2 . A decisão que julgar procedente ou impro
cedente o pedido em arguição de descumprimento de
preceito fundamental é irrecorrível, não podendo ser
objeto de ação rescisória.
Art. 1 3 . Caberá reclamação contra o descumprimen
to da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal,
na forma do seu Regimento Interno .
Art. 1 4 . Esta Lei entra em vigor na data de sua
publicação.
Brasília, 3 de dezembro de 1 999; 1 7 8º da Inde
pendência e 1 1 1 ° da República.
FERNANDO H ENRIQUE CARDOSO
José Carlos Dias
Dispositivos vetados
Art. 1 º . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Parágrafo único . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
1 - · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · ·
318
§ 2° Contra o indeferimento do pedido, caberá
representação ao Supremo Tribunal Federal, no prazo
de 5 (cinco) dias, que será processada e julgada na
forma estabelecida no Regimento Interno do Supremo
Tribunal Federal.
Art. 5° . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
§ 4° S e necessário para evitar lesão à ordem cons
titucional ou dano irreparável ao processo de produção
da norma jurídica, o Supremo Tribunal Federal poderá,
na forma do caput, ordenar a suspensão do ato impug
nado ou do processo legislativo a que se refira, ou ainda
da promulgação ou publicação do ato legislativo dele
decorrente.
Art. 8° . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
§ 1 ° Considerar-se-á procedente ou improcedente
a arguição se num ou noutro sentido se tiverem mani
festado pelo menos dois terços dos Ministros.
§ 2º Se não for alcançada a maioria necessária ao
julgamento da arguição, estando ausentes Ministros em
número que possa unfluir no julgamento, este será
suspenso a fim de aguardar-se sessão plenária na qual
se atinja o quorum mínimo de votos .
Art. 9° Julgando procedente a arguição, o Tribunal
cassará o ato ou decisão exorbitante e, conforme o caso,
anulará os atos processuais legislativos subsequentes,
suspenderá os efeitos do ato ou da norma jurídica
decorrente do processo legislativo impugnado, ou de
terminará medida adequada à preservação do preceito
fundamental decorrente da Constituição.
319