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Obras Musicais e Cultura Midiatica Da Sa PDF
Obras Musicais e Cultura Midiatica Da Sa PDF
midiática: da sala de
concerto à publicidade
audiovisual
RAPHAEL FERNANDES LOPES FARIAS1
RESUMO:
ABSTRACT:
Raphael Fernandes Lopes Farias
This article analyzes how the use of concert music in audiovisual ad-
vertising generates a multi-faceted form of musical appreciation and
listening and creates different meanings for musical works, as well as
the displacement of the work through different cultural niches and
directs it with the more varied musical imagery and media resources
for the creation of symbols in the social imaginary of the consuming.
As a tool of analysis, apply studies in sonology and sound landscape,
semiotics and the theory of communication and culture
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muitas proximidades entre o filme e o comercial televisivo, mas é
inegável a diferença no intuito da mensagem em ambas, o tempo de
duração e as relações sonoras, portanto, que acabam gerando pecu-
liaridades em cada situação.
A música utilizada na publicidade levanta uma série de questões,
por exemplo, acerca dos modos de escuta, da descontextualização,
da recriação, da simbologia. Muito do que se escuta hoje, musical-
mente falando, é involuntário. Da mesma forma que o cidadão que
está na rua ou em um shopping é surpreendido ou bombardeado
por músicas em anúncios, rádios institucionais etc, o telespectador
recebe propagandas inúmeras e ouve músicas sem estar procurando
por uma experiência auditiva. Entra em contato com obras musicais
e sons que já estão completamente atrelados ao consumo de algo ou
embalam o comportamento consumista.
Entre o ano de 2016 e o começo de 2017, o autor deste texto pode
verificar ao menos sete comerciais veiculados amplamente na televi-
são aberta no Brasil que fizeram uso de obras músicas de concerto.
Foram marcas de carro, produtos alimentícios como café e choco-
late, perfume, tempero e lojas. Para o carro, usou-se a Abertura da
ópera William Tell, de Gioachino Rossini, e a Cavalgada das Valquírias,
trecho da ópera A Valquíria, de Richard Wagner; Para o café, o Can
Can da Opereta Orpheu no inferno, de Jacques Offenbach; O chocolate
foi anunciado ao som de No salão do rei da montanha, da Suíte Peer
Gynt, obra de Edward Grieg. O perfume tentou cheirar à fina ópera
de Giacomo Puccini, por meio da audição de Mio Bambino Caro; para
temperar a comida, escuta-se Dança Macabra, de Camile Saint-Saëns;
e o Rondó Alla turca, parte final de uma sonata de Mozart, embala o
anúncio de uma loja de móveis e decoração. Quanto ao arranjo das
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ferência, bem como perceber os processos ressignificação e desloca-
mento sofrido pelas obras quando veiculadas em peças publicitárias.
Para tanto, faz uso de estudos sobre modos de escuta e evolução
dos meios de gravação e reprodução, bem como das possibilidades de
recortes e adaptações musicais apresentados por autores como Fer-
nando H. Iazzetta (2009); a paisagem sonora e o uso da música como
ambiência – moozak - de Shaffer (2011), o conceito de transferência
aplicado à música por Edson Zampronha (2006; 2013) e as relações
entre som e imagem nas mídias audiovisuais, abordados por autores
como Michel Chion (2008). Serão levadas em conta reflexões como
as de T. Adorno (1986) e W. Benjamin (2012) sobre a indústria cultu-
ral, a recepção e percepção da escuta e a reprodutibilidade técnica,
e as análises culturais de Garcia-Canclini (2006), a fim de estabelecer
relações e efeitos socioculturais do tema. Serão ainda confrontados
estudos sobre cultura das mídias de autoras como L. Santella (2012) e
H. Valente (1999); além de outros autores que reforçam esse diálogo.
O texto transita, sobretudo, por áreas como Música, Artes e Comu-
nicação, além de emprestar conceitos da Publicidade e da semiótica.
como Erik Satie, na virada do século XIX para o XX. Há ainda linhas de
pensamento que admitem a música como código independente, outras
que consideram impossível desvinculá-la de outros sistemas simbólicos.
Obras musicais, em sua grande maioria, foram pensadas para se-
rem tocadas na sala de concerto ou em ambientes fechados; câmaras,
igrejas, salões e, mais recentemente, estúdios. A escuta foi pensada
para ocorrer de forma direta, isto é, performance-público ou ainda
mais recentemente, por meio de gravação ou transmissão televisual.
Tendo em vista que a maior parte da História da música ocorre antes
da invenção das mídias de gravação e reprodução, cria-se um para-
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doxo quando nos deparamos com seu uso em “recortado” nos mais
variados tipos de produção audiovisual, por exemplo, campanhas pu-
blicitárias e comerciais: primeiramente, o deslocamento proporciona-
do pelas mídias de gravação e reprodução, que retiram a obra de seu
ambiente de escuta idealizado e anulam parte do processo da perfor-
mance (IAZZETA, 2009). Por conseguinte, uma peça publicitária coloca
a música em um contexto de deslocamento duplo, ou seja, a modifi-
cação do ambiente de escuta, natural do meio midiático e o direcio-
namento proposital da mensagem, intrínseco à mensagem comercial.
A mensagem publicitária, por natureza, preza pelo convencimento,
dessa maneira, todos os meios empregados em um comercial devem se
harmonizar para realizar essa tarefa. Rebouças (2010) afirma que toda
linguagem publicitária “utiliza procedimentos tradicionais como: poesia,
música, teatro, imagem familiar”. Todos esses procedimentos possuem
um mesmo objetivo em comum, o de “convencer e persuadir o receptor”.
A música então surge como elemento colaborativo e essencial nesse pro-
cesso, entretanto, obras musicais trazem uma bagagem cultural consigo,
levando simbologias difusas a um comercial, sendo devolvidas a públi-
co, por vezes, com alguma ressignificação, havendo um possível choque
simbólico. Elevando isso a outro patamar, a publicidade se apropria da
obra e da possibilidade da reprodução técnica e, direcionando a obra
para uma mensagem tipicamente persuasiva, faz usos, cria estereótipos,
reforça conceitos e manipula hábitos culturais por meio da música.
Outro fato relevante é a presença de obras de concerto em comer-
ciais. Em uma breve observação, foi possível perceber algumas relações
e tipos de uso. Alguns comerciais usam a obra como trilha constante e
representativa da mensagem; outros comerciais apresentam uma trilha
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rência, em contraponto com produtos “bons” que tem como trilha a mú-
sica [pop]ular, os hits, ou alusões musicais a estes “gêneros” da moda.
Por exemplo, As Quatro Estações, de Antônio Vivaldi2 aparecem em
inúmeras peças publicitárias comerciais, desde carros a cosméticos.
Foram usadas para reforçar conceitos de produtos comerciais e per-
petuar marcas. Com a Chopsticks Waltz3, de Euphemia Allen, ocorre
um fenômeno em que a obra passa a representar um produto de for-
ma a perder sua identidade. A melodia recebe letras carregadas de
conceitos atribuídos ao produto e a obra sofre inúmeras adaptações.
O deslocamento é tal, que existe até um funk fazendo alusão ao pro-
duto e utilizando a melodia da obra.
Sobre a reinterpretação das obras, é possível levantar uma série de
questões. Uma vez veiculada como trilha publicitária e ouvida numa si-
tuação particular, recuperaria seu sentido quando de volta ao contexto
original de concerto? As várias alterações estruturais, usos e recortes
que uma música pode sofrer para se adequar ao contexto pretendido
corroboram até que ponto e como para a perda da obra no tempo-es-
paço da cultura das mídias? Conforme Iazzeta (2009, op. cit. p. 41):
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entre público-obra. Além das mudanças e recortes feitos nas próprias
obras a fim de uma adequação à ideia da veiculação comercial.
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cas, cita despreocupadamente fatos fora de contexto;
retoma o que haviam feito Magritte, e Duchamp, mas
para públicos massivos. Alguns trabalhos aproveitam a
versatilidade do vídeo para gerar obras breves, ainda
que densas e sistemáticas: Fotoromanza, de Antonioni,
Thriller, John Landis, All Night Long, de Bob Rafelson,
por exemplo. Mas na maioria dos casos toda a ação é
dada em fragmentos, não pede que nos concentremos,
que busquemos uma continuidade. Não há história da
qual falar, nem sequer importa a história da arte ou da
mídia; saqueiam-se imagens de todas as partes, em
qualquer ordem (GARCÍA-CANCLINI, 2006, p. 305).
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possíveis saques. Eles foram os primeiros ‘vendedores de ideias’. E
convenciam os cidadãos pela performance da voz.”
No entanto, a partir da invenção de meios de gravação e repro-
dução sonoros, a música sofre a possibilidade do deslocamento e
da difusão em massa, o que contribui muito para o uso publicitá-
rio. Além disso, com o avanço dessas tecnologias, tornou-se possível
a fusão da música com imagens e a dita “sociedade de consumo”
(BURKE; BRIGGS, 2006), criada pela expansão industrial passa a ser
bombardeada pela publicidade, que a todo o momento tenta ven-
der os mais variados produtos. Nesse sentido, a música surge como
ferramenta agregadora no processo de convencimento do consumi-
dor. A música pode levar a um reconhecimento, uma identificação
com um produto; pode, criar a ambiência que o elaborador da peça
publicitária deseja alcançar; pode agregar valores e símbolos a um
produto; pode criar – chamados jingles - e ou adaptar melodias para
facilitar a memorização; entre outras possibilidades.
O deslocamento da música para o ambiente doméstico (IAZZETTA,
2009) levou consigo a publicidade audiovisual, por meio do rádio pri-
meiro e depois pela televisão. A televisão, mídia que entra na casa e
no cotidiano das pessoas a partir dos anos 50 do século XX, levanta
uma série de questões e traz consigo, uma série de novos usos da mú-
sica e modificações nos modos de escuta: todos atrelados à imagem.
Os pregões e os jingles puderam então ser transmitidos em mas-
sa. E mais, obras musicais dos mais diversos gêneros puderam ser
difundidas como parte de mensagens publicitárias, sendo ampla-
mente difundidas, o que para alguns gêneros, principalmente na
música popular, levando em conta a questão comercial – tendo em
vista, por exemplo, considerações sobre Música Popular de Adorno
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sugere Baitello, “Porque o homem teria rompido com a sua origem
primata? Temos duas razões: uma funcional e uma estética. A razão
da melhor comunicabilidade do auditivo, da voz, que não exige o cam-
po visual, e a razão estética: a imitação dos pássaros e talvez outros
vocalizadores” (1997, p.12). Evidencia-se, dessa forma, a importância
do fator sonoro-musical para a comunicação.
O que a publicidade faz é trazer a música, independente de gênero,
para o contexto da repetição, da familiaridade e, por conseguinte, da
memorização, atrelando-a a outros códigos a carregando-a de simbo-
lismos. Segundo Castarède (apud Valente, 1999), o papel da repetição é
comunicar, e para isso faz uso de motivos musicais repetidos e figuras
essências das musicas do mundo inteiro. Mecanismos musicais como
o ritmo, acompanhamentos, cadências, são usados para criar uma
ambiência que favoreça ao ouvinte a memorização da mensagem e,
consequentemente, o não esquecimento do produto ou da empresa.
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associação escuta a música clássica original em um con-
certo, pode chegar a pensar que um compositor do sécu-
lo XVIII ou XIX está citando a música de uma publicidade
do século XXI. E mesmo quando o ouvinte é consciente
de que a obra que escuta no concerto é a música original
usada pela publicidade, possivelmente não se livrará da
transferência, podendo haver certa interferência da pu-
blicidade na escuta da obra. (ZAMPRONHA 2013, p. 14).
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uma obra musical, por outro, constrói sistemas musicais por meio de
sonoridades que atendam a sua necessidade: divulgar e persuadir.
Para se chegar a esse fim, é preciso construir uma relação bastante
harmônica e peculiar em cada peça publicitária veiculada nas mí-
dias audiovisuais para que, ao elaborar uma mensagem persuasiva
impregnada de outros sentidos e símbolos culturais, não ocorram
choques simbólicos e ruídos de comunicação, tendo em vista que
a publicidade se dirige à massa, mas esta última é composta por
indivíduos com bagagens culturais múltiplas e relações de reconhe-
cimento e afeto, inclusive com a questão musical.
Seguindo esse raciocínio, ao fazerem uso de músicas de domínio
público e ao mesmo tempo, celebrizadas, fica evidente o apelo à me-
mória e aos símbolos culturais compartilhados por povos e socieda-
des, de maneiras como: 1) As músicas suscitam uma afetividade e um
simbolismo no público e, por já serem conhecidas, facilitam a lem-
brança de um produto que pode ter seu jingle cantarolado de pronto;
2) Ao fazer uso de estribilhos das obras musicais mais presentes no
repertório de concerto, cria-se um elo de memória, tradição e repro-
dução ao passo que se perpetua essa mesma música no imaginário
coletivo; 3) Modifica-se timbres, coloca-se os atores da peça publi-
citária para produzir parte da música ouvida, acrescenta-se trechos
musicais externos a obra, enfim, uma série de recortes e colagens
com a obra a fim de criar uma descontração e uma aproximação com
o público, abrindo maior caminho para uma recepção afetiva.
Em outra análise, ainda que não haja um conhecimento profundo
da maioria do público das origens precisas das obras e seus reais
sentidos estéticos, há o conhecimento de um tipo de performance,
de um espaço performático, que leva em conta onde, quem, como e
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peças publicitárias e as mais variadas produções – e aos usos frag-
mentados que por vezes essas produções fazem de obras musicais.
É preciso, então, atentar para a música como linguagem in-
dependente sendo extremamente atual e importante analisar o
que se tem feito com a escuta, e com todo o potencial semânti-
co do discurso musical: quais informações latentes ele carrega.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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GARCÍA-CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas: estratégias para entrar
e sair da modernidade. 4ª Ed. São Paulo: EDUSP, 2006.
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REFERENCIAS AUDIOVISUAIS
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TERREMOTO. Direção: Rodrigo Saavedra. JWT Brasil. Campanha pu-
blicitária do Café Pilão, 2014. Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=9yoeajpwkik>. Acesso em 13 de jun de 2017.
NOTAS
4. Schafer assim enuncia o conceito de esquizofonia: “(Do grego schizo = partido e pho-
ne = voz) – empreguei este termo (...) referindo-me à separação entre o som original e
sua reprodução eletroacústica. Os sons originais são ligados aos mecanismos que os
produzem. Os sons reproduzidos por meios eletroacústicos são cópias e podem ser
representados em outros tempos e lugares”. (SCHAFER, 2011, op. cit. p 364).
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