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O SONHO TRANSDISCIPLINAR

The Transdisciplinary Dream

El Sueño Transdiciplinario

Artigo Especial
Hilton Japiassu*1 Special Article
Artículo Especial
1
O presente trabalho foi encomendado no ano de 2014, por ocasião de conferência ministrada
pelo Prof. Hilton Japiassu na UFT. Após a conferência, a então gestão da Universidade Federal do Tocantins
instituiu o Prêmio Hilton Japiassu de Excelência em Pesquisa, através de sua Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-
graduação. Em homenagem ao referido professor, a comissão editorial de Desafios decidiu manter o texto original,
tal como foi enviado em sua primeira versão. O Prof. Hilton Japiassu faleceu no Rio de Janeiro, no ano de 2015.

*In memorian

Publicado em 23/09/2016.

O grande desafio lançado ao Pensamento e à Creio que pode ser aplicado ao pensamento o que
Educação neste início de século e milênio é a dizia Péguy da poesia: “quando a poesia está em
contradição entre, de um lado, os problemas cada vez crise, a solução não consiste em decapitar os poetas,
mais globais, interdependentes e planetários, do mas em renovar as fontes de inspiração”. Porque a 3
outro, a persistência de um modo de conhecimento reforma do pensamento, longe de constituir um luxo
ainda privilegiando os saberes fragmentados, intelectual, responde a uma necessidade vital:
parcelados e compartimentados. Donde a necessidade constitui um dos componentes fundamentais para
e a urgência, para uma reforma do Pensamento e da “salvarmos” a humanidade face às forças terríveis
Educação, de valorizarmos os conhecimentos que desencadeou sem ter condições de controlá-las. O
interdisciplinares e promovermos o desenvolvimento, que podemos fazer quando tomamos consciência de
no ensino e na pesquisa, de um espírito propriamente que nossos conhecimentos atuais revelam uma
transdisciplinar. Como abordagem “científica” que tremenda incapacidade de pensar o mundo
pretende ser, mas como abordagem cultural e social globalmente e em suas partes? O que devemos fazer
que é, o Transdisciplinar diz respeito ao que está quando, diante da extraordinária complexidade do
entre as disciplinas, através delas e além de cada uma. mundo atual, constatamos que nosso pensamento se
Seu projeto utópico? Contextualizar e globalizar, isto encontra preso às cegueiras e miopias que
é, ver e avaliar um problema sob todos os seus caracterizam nossas universidades divididas em
ângulos e em todas as suas dimensões, implicando a departamentos sem comunicação? Se nossos
construção de uma visão ao mesmo tempo trans- espíritos permanecerem dominados por um modo
cultural e trans-histórica permitindo-nos compreender mutilado e abstrato de conhecer, pela incapacidade de
o mundo atual em sua complexidade e o ser humano apreender as realidades em sua complexidade e em
em suas ambigüidades e contradições. sua globalidade; e se o pensamento filosófico
continuar se desviando do mundo em vez de enfrentá-

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lo para compreendê-lo, então, nossa inteligência a barbárie do Pensamento; a complexidade, a
passa a viver na miopia ou na cegueira. Uma tradição civilização das Idéias” (Morin).
de pensamento bastante enraizada em nossa cultura Hoje há um interesse crescente pela
tem nos ensinado a conhecer o mundo por “idéias interdisciplinaridade. Motivado por diversas razões,
claras e distintas”, obrigando-nos a reduzir o entre as quais as que se vinculam a uma análise
complexo ao simples, a separar o que é unido, pedagógica e à redefinição de uma política
unificar o que é múltiplo, eliminar tudo o que fornece educacional. Paradoxalmente, nunca se recusou tanto
desordens e contradições em nosso entendimento. e de boa fé suas exigências. O interdisciplinar possui
Ora, como nos vem alertando E. Morin, o problema um sentido bastante preciso: exprime tanto uma
crucial em nosso tempo é o da necessidade de um constatação (a fragmentação das disciplinas) e uma
pensamento capaz de enfrentar o desafio da recusa (abandonar certa tradição ou mentalidade)
complexidade do real, quer dizer, de apreender as quanto um remédio (formulação desejada de um mito
ligações, interações e implicações mútuas, os unificador) para esse esfacelamento. Desde seu
fenômenos multidimensionais, as realidades ao surgimento, vem sendo animado por uma tensão entre
mesmo tempo solidárias e conflitivaa democracia: a aspiração a um saber não-fragmentado e o
sistema que alimenta antagonismos e, ao mesmo reconhecimento da abertura, inacabamento e
tempo, os regula) incompletude de cada disciplina. Muita gente toma
Já no século XVII, Pascal, ao formular este consciência de que os objetos de pesquisa revelam-se
imperativo de pensamento que precisamos introduzir tão complexos que só podem ser tratados por uma
em todo o nosso ensino, desde o primário, dava-nos a abordagem interdisciplinar. Não basta mais o simples 4
seguinte orientação: “considero impossível conhecer encontro ou justaposição das disciplinas. Torna-se
as partes se não conheço o todo e impossível imprescindível eliminar as fronteiras entre as
conhecer o todo se não conheço particularmente as problemáticas e os modos de expressão para que se
partes”. E acrescenta: “É mais belo saber algo de tudo instaure uma comunicação fecunda. Precisamos
do que saber tudo de alguma coisa. Eis a verdadeira substituir o paradigma que nos obriga a conhecer por
universalidade”. Queria dizer: se quisermos dominar disjunção e redução pelo paradigma que nos permite
um objeto, não podemos confiar no conhecimento conhecer por distinção e conjunção.
fragmentado nem na apreensão holística. Precisamos Tem-se tornado preocupante o estado lamentável
romper com o velho dogma reducionista de de esfacelamento do saber. Por toda parte surge a
explicação pelo elementar e considerar os sistemas exigência de se instaurar pelo menos um diálogo
complexos, onde as partes e o todo se inter-fecundam ecumênico entre as disciplinas científicas. Porque
e se inter-organizam. Porque o conhecimento deve ninguém mais parece entender ninguém. Mas essa
efetuar, não só um movimento dialético entre o nível exigência apenas revela a situação patológica em que
local e o global, mas de retroação do global sobre o se encontra nosso saber. A especialização sem limites
particular. Ao mesmo tempo em que precisa culminou numa fragmentação crescente do horizonte
contextualizar o singular, o pensamento deve epistemológico. Chegamos a um ponto em que o
concretizar o global, quer dizer, relacioná-lo com especialista se reduziu ao indivíduo que, à custa de
suas partes. Não nos esqueçamos: “a simplificação é saber cada vez mais sobre cada vez menos, terminou
por saber tudo (ou quase tudo) sobre o nada, em

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reação ao generalista que sabe quase nada sobre tudo. ao ostracismo. Os arraigados preconceitos positivistas
Ele é alguém e possui grandes lacunas em sua cultivam uma epistemologia da dissociação do saber.
ignorância. Em 1934, o poeta T.S.Eliot já dizia: Sob esse aspeto, ensina-se um saber bastante alienado
“Onde está a Sabedoria que perdemos no e em processo de cancerização galopante. Seus
conhecimento? E onde está o conhecimento que horizontes epistemológicos são demasiado reduzidos.
perdemos na informação?”. E eu afirmo: o excesso de Ensina-se um saber fragmentado que constitui um
informação, não só desinforma, mas deforma. O risco fator de cegueira intelectual. As escolas estão mais
que correm as novas gerações? Tornarem-se obesas preocupadas com a distribuição de suas fatias de
de informação e anoréxicas de conhecimento. saber (ração intelectual) a alunos que nem mesmo
Ora, um saber em migalhas revela uma parecem ter fome. Este saber mofado, armazenado
inteligência esfacelada. O desenvolvimento da nessas "penitenciárias centrais" da cultura (as
especialização, com todos os seus inegáveis méritos, instituições de ensino), além de ser indigesto e nocivo
dividiu ao infinito o território do saber. Cada à saúde espiritual, passa a ser propriedade de
especialista ocupou, como proprietário privado, seu pequenos mandarinos dominados pelo espírito de
minifúndio de saber onde passou a exercer, ciumenta concorrência e carreirismo.
e autoritariamente, seu mini-poder. Ao destruir a É por isso que o interdisciplinar provoca atitudes
cegueira do especialista, o conhecimento de medo e recusa. Porque constitui uma inovação.
interdisciplinar recusa o caráter territorial do poder Como todo novo, incomoda. Porque questiona o já
pelo saber. Substitui a concepção do poder adquirido, o instituído, o fixado e o aceito. Se não
mesquinho e ciumento do especialista pela concepção questionar, não é novo, mas novidade. O 5
de um poder partilhado. O espírito interdisciplinar conservadorismo acadêmico tem um medo pânico do
pressupõe que reconheçamos: "o coração tem razões novo que põe em questão as estruturas mentais, as
que a Razão desconhece". Possuímos qualidades de representações coletivas estabelecidas, as idéias sobre
coração, entusiasmo e maravilhamento que o mundo, a educação e a boa ordem das coisas. O que
representam as raízes da inteligência. E devemos se encontra em jogo, no fundo, é certa concepção do
renunciar se não ao desejo de dominação pelo saber, saber: o modo de se conceber sua repartição e o
pelo menos à manipulação totalitária do discurso da processo de seu ensino. Porque o interdisciplinar
disciplina. Não podemos dialogar com quem erige em aparece como um princípio novo no processo de
absoluto a causa ou a verdade que defende. O reformulação e racionalização, não só das disciplinas
especialista tenta impor a causa de sua especialidade científicas, mas das estruturas pedagógicas de seu
como se fosse a resposta a todo por quê; ou ensino.
identificar seu discurso com a origem de tudo. Este Lamentamos que em nosso atual sistema
instinto teológico é muito celebrado nas capelas da educacional seja praticamente inexistente a prática
ciência: colóquios, simpósios ou congressos. interdisciplinar. O que existe são encontros
De um modo geral repete-se que o futuro multidisciplinares: frutos mais da imaginação
pertence às pesquisas interdisciplinares. De fato, são criadora e combinatória de alguns sabendo manejar
muito difíceis de ser organizadas. Por causa de conceitos e métodos diversos do que algo
ignorâncias recíprocas por vezes sistemáticas. Em propriamente instituído e institucionalizado. Mesmo
nosso sistema escolar, encontram-se ainda relegadas assim, realizam-se como práticas de indivíduos

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abertos e curiosos, com o sentido da aventura e não papel ridículo de disciplinadores intelectuais,
tendo medo de errar; de indivíduos que não buscam capatazes da inteligência ou revendedores de um
nenhum porto seguro, mas se afirmam e se definem saber-mercadoria sem as técnicas do marketing,
por um solene anti-autoritarismo e um contundente sendo pagos e mal-pagos para responder a questões
anti-dogmatismo. Vejo no dogmatismo de um saber que ninguém lhes coloca. O professor que não cresce,
definitivo, acobertado pela etiqueta "objetivo" ou não estuda não se questiona e não pesquisa deveria
pelo rótulo "verdadeiro" o sintoma de uma ciência ter a dignidade de aposentar-se, mesmo no início de
agônica. A este respeito, faço minhas as palavras de carreira: já é portador de uma paralisia intelectual ou
F. Jacob: "Não é somente o interesse que leva os esclerose precoce. Max Weber nos lembrava: assim
homens a se matarem. Também é o dogmatismo. como o sacerdote rotiniza a mensagem do profeta, o
Nada é tão perigoso quanto a certeza de ter razão. professor rotiniza o discurso do pesquisador, dele
Nada causa tanta destruição quanto a obsessão de fazendo desaparecer o fundamental: o problema, tal
uma verdade considerada como absoluta. Todos os como foi posto pelo criador. Deveria também se
crimes da história são consequência de algum aposentar o que prefere as respostas às questões ou
fanatismo. Todos os massacres foram realizados por ensinar a pesquisar. Tinham razão os estudantes
virtude: em nome da religião verdadeira, do quando escreveram nos muros de Paris (maio 68):
racionalismo legítimo, da política idônea, da “pesquisadores que pesquisam, encontramos:
ideologia justa; em suma, em nome do combate pesquisadores que encontram, procuramos”. Balzac já
contra a verdade do outro, do combate contra Satã". havia profetizado: “Crie e invente, e morrerás
Ora, um saber que não se questiona constitui um perseguido como criminoso; copie e imite, e viverás 6
obstáculo ao avanço dos saberes. A pretensa feliz como um idiota”.
maturidade intelectual, orgulho de tantos sistemas de Ao questionar os conhecimentos adquiridos e os
ensino, constitui um obstáculo entre outros. A famosa métodos aplicados, não só o interdisciplinar promove
cabeça bem-feita, arrumada, estruturada, organizada e a união do ensino e da pesquisa, mas transforma as
objetiva, não passa de uma cabeça mal-feita, fechada, escolas: de um lugar de transmissão ou reprodução de
produto de escola, modelagem e manipulação. Trata- um saber pré-fabricado, num lugar onde se produz
se de uma cabeça que precisa urgentemente ser re- coletiva e criticamente um saber novo.
feita. O espírito interdisciplinar ajuda a se refazer Contrariamente ao sistema clássico de ensino, que se
essas cabeças mal-feitas, pois cultiva o desejo do instala num esplêndido isolamento e institui um saber
enriquecimento por enfoques novos e o gosto pela pasteurizado, com um sistema hierárquico mais ou
combinação das perspectivas; ademais, alimenta a menos autoritário, o sistema interdisciplinar viria
vontade de ultrapassar os caminhos batidos e os superar o corte escola/sociedade, escola/vida. Sem
saberes adquiridos. Não nascemos com cabeças falarmos da instauração de uma nova relação entre
"desocupadas", mas inacabadas. A escola e a educadores e educandos.
sociedade pretendem ocupá-las pela instrução e pela Mas é ilusório pensar que uma lei ou medidas
linguagem, pela pedagogia entupitiva. Donde a administrativas possam colocar um paradeiro a
necessidade de se psicanalisar os educadores a fim de hábitos tão arraigados e a estruturas mentais
que se tornem agentes que despertem, provoquem, solidamente estabelecidas. Donde a necessidade de se
questionem e se questionem, e não se reduzam ao criar instituições dotadas de estruturas flexíveis,

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capazes de absorver conteúdos novos e integrar-se em a ingressar nessa aventura deveria preencher os
função dos verdadeiros problemas. E de adotar seguintes pré-requisitos:
métodos fundados, não em táticas e estratégias de  ter a coragem de fazer a seguinte prece:
distribuição dos conhecimentos estocados, mas no `”Pai, Fome nossa de cada dia nos daí hoje"
exercício de aptidões intelectuais e de faculdades  ter a coragem de devolver, à sua razão, sua
psicológicas voltadas para a busca do novo. Mas nada função turbulenta e agressiva
será feito de durável se não estiver fundado na adesão  ter a coragem de, no domínio do pensamento,
apaixonada de alguns e em experiências inovadoras fazer da imprudência um método
desempenhando o papel de catalisadores e núcleos de  saber colocar questões (não só buscar
inovação. Mas como o interdisciplinar constitui um respostas) e não ousar "pensar antes de
fator de transformação capaz de restituir vida às estudar"
nossas esclerosadas instituições de ensino, alguns  estar consciente de que ninguém se educa
obstáculos precisam ser superados: com idéias alheias
 a situação adquirida dos "mandarinatos" no  ter a coragem de sempre fornecer à sua razão
ensino e na pesquisa (inclusive na razões para mudar
administração; cargos ocupados pelos  não cultivar o gosto pelo "porto seguro" ou
medíocres); pela certeza do sistema, porque nosso
 o peso da rotina e a rigidez das estruturas conhecimento nasce da dúvida e se alimenta
mentais; de incertezas
 a inveja dos conformismos e 7
 não fazer concessões ao Saber, etc.
conservadorismos em relação às idéias novas Numa época de conservadorismo como a nossa,
que seduzem (ódio fraterno); precisamos ter a coragem de, a) opor-nos a ela; b) ter
 o positivismo anacrônico que, preso a um uma visão crítica do neoliberalismo; c) não ter medo
ensino bastante dogmático, encontra-se à de organizar nossa esperança e de resgatar as utopias,
míngua de fundamentação teórica; pois o capitalismo mercantiliza tudo. Só um espírito
 a mentalidade esclerosada de um aprendizado conservador prefere repetir a ter que refletir.
por acumulação; Precisamos abandonar essa monotonia espiritual e
 o enfeudamento das instituições fazer da Razão uma realidade incompleta jamais
("departamentalização"); devendo repousar na tradição. É desta maneira que se
 o carreirismo buscado sem competência; torna jovem e incisiva, passando a aceitar e viver o
 a ausência de crítica dos saberes adquiridos, princípio segundo o qual "nada é fixo para aquele que
etc. alternadamente pensa e sonha": precisamos de
Todavia, o interdisciplinar não pode ser praticado pensadores que saibam sonhar e de sonhadores que
sem o cumprimento de certas exigências: a criação de saibam pensar. Porque nosso conhecimento deve
uma nova inteligência e de uma razão aberta capazes aparecer como a reforma de uma ilusão e uma
de formar uma nova espécie de cientistas e retificação continuada. Claro que navegar é preciso. E
educadores, utilizando uma nova pedagogia e viver, muito mais preciso ainda. Mas se não
ousando pensar de outra forma. Por isso, o candidato navegarmos com uma bússola na mão e um sonho na

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cabeça, ficaremos condenados à rotina do sexo, da recomposição dos diferentes segmentos de nossos
droga e do credit card. E o ideal de vida proposto à atuais conhecimentos.
juventude (viciada em divertimento) passará a ser É por isso que as pesquisas transdisciplinares
apresentado como o mais compulsivo consumismo e tendem a se apoiar nas diferentes atividades, não só
vivido no mais vazio niilismo. Os projetos de das ciências, mas das artes, da poesia, da filosofia, da
autonomia individual sofrem um eclipse quase total. teologia e do pensamento simbólico. A partir do
Em grande parte, causado pela onda crescente das momento em que a explosão e a especialização dos
privatizações, da despolitização e do individualismo saberes parecem ter totalmente fragmentado nosso
avassalador. Um sintoma concomitante: a atrofia da conhecimento; em que as racionalidades científica e
imaginação política e o empobrecimento intelectual filosófica, a poesia e a experiência mística pareciam
de nossas lideranças. Sócrates já dizia: não posso estar irremediavelmente separadas, surge todo um
deixar de filosofar, pois uma vida sem exame não movimento de reglobalização e de tentativas de
merece ser vivida. reunificação dos conhecimentos. Não com o objetivo
Aceitar uma Razão aberta implica admitir, como de produzir um novo sincretismo, mas de buscar
racionalmente necessária, sua "desdivinização". Só novos pontos de vista a partir dos quais podemos
uma razão absoluta, fechada e auto-suficiente é tão torná-los interativos e espaços de pensamento
intolerante que não consegue dialogar com o suscetíveis de revelar uma unidade profunda, embora
irracional e o supra-racional. Por isso, a respeitando as inegáveis diferenças. Por isso, diante
transformação de nossa sociedade é inseparável do da crise de nosso saber, aquilo de que mais
auto-ultrapassamento da Razão. O que estou precisamos não é de slogans ou de palavras de ordem, 8
querendo dizer é que o sonho transdisciplinar não mas de outro modo de pensar, de outra
somente nos ajuda a desmontar metodicamente o inteligibilidade indo do Mesmo ao Outro sem
velho edifício da razão fechada, fonte de "verdades" suprimir a Diferença. E como o projeto da Filosofia
acabadas e absolutas, de visões dogmáticas e não é mais o de nos tornar mestres e possuidores da
moralistas do mundo que alimentam os renascentes natureza, mas o de nos abrir a todas as luzes
integrismos e fundamentalismos, mas a nos precisamos sempre de mais luz a fim de conferirmos
libertarmos do medo, inclusive do medo de nossos um sentido a tudo e ao todo da condição humana.
próprios desejos. Claro que os verdadeiros Topos Enfim, embora necessária nos primeiros séculos da
(lugar) do Transdisciplinar ainda não existem em ciência ocidental, parece não fazer mais sentido a
nenhum mapa-mundi do saber. É um lugar disjunção radical entre ciência e ética, uma vez que se
inteiramente u-tópico: transcende nossos tornam desafiadores os problemas éticos e políticos
conhecimentos. Por vezes aparece como o resultado colocados pelas ciências contemporâneas: uma nova
de um desejo de tipo sentimental ou filosófico, deontologia científica se impõe após as armas
ideológico ou social, poético ou espiritual. Tendo nucleares, a descoberta do DNA, da inseminação
como fonte paradoxal o sonho de compreensão dos artificial, da clonagem, da manipulação das células
resultados gerais das ciências, aparece como a tronco, etc. E na busca dessa deontologia, creio ser
exigência de uma necessidade histórica: não só de fundamental “A contribuição da teologia moral cristã
uma reconciliação entre o Sujeito e o Objeto, entre o numa sociedade plura e global”.
homem exterior e o interior, mas de uma tentativa de

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Mas atenção! Sem os filósofos, os expertocratas, os saberes filosóficos, artísticos e religiosos
por mais competentes que sejam, ficariam constituem os melhores laboratórios a partir dos quais
embaraçados para responder à questão do programa podemos contemplar a experiência humana em sua
kantiano: “O que devo fazer”? Se o Cosmos grego foi totalidade. Porque a Filosofia, as Artes e a Religião
liquidado pela ciência moderna, e se a Natureza não são as antenas do Saber. A Ciência chega sempre
pode mais ser considerada um modelo harmonioso atrasada para responder, racional e objetivamente, às
permitindo-nos decifrar as finalidades morais, questões colocadas por essas instâncias. Mas uma
compete à filosofia moral, política e social responder coisa é certa: nos dias de hoje, o Filósofo ou o
a essa questão: como devo me comportar com justiça Teólogo que não tiver uma sólida cultura científica, é
em relação aos outros? Não nos esqueçamos de que portador de um câncer incurável!

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