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Palavrórios e rabugices Ilan Brenman

Vim, vi, cliquei


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ILAN BRENMAN

O ano é de 2047, e o pequeno João, 3 anos, pede à mãe: “Mostra de novo quando
eu apareci...”. A mãe levanta a manga da blusa e toca numa pulseira roxa e, no
mesmo instante, aparece uma tela translúcida na frente dos dois. João
rapidamente localiza uma imagem dentro de um quadrado e, com um sorriso no
rosto, clica o ar. Então, começa a passar um filme de um espermatozoide
ganhando a corrida da vida e mergulhando no grande prêmio, o óvulo! “Sou eu,
sou eu”, grita o menino. “Sim, você apareceu na nossa vida nesse instante”, diz a
mãe, emocionada.

João não se contenta só com aquela cena, quer mais e mais. Os filmes são
intermináveis, todas as fases da gestação, o parto, a amamentação, arrotos,
balbucios, papinhas, palavras, engatinhadas, penico, etc. O menino não aguenta e,
depois de duas horas, adormece; ele precisaria ficar uma semana inteira acordado
para ver toda a sua vida longa de 3 anos.

Esse exercício de futurologia nasceu de uma percepção cada vez maior de como
estamos registrando tudo! Andamos sempre com uma máquina fotográfica ou um
celular no bolso, prontos para capturar a vida.

Nossos filhos nunca foram tão registrados, gravados, arquivados, twitados,


facebookados. Começamos a ver o mundo através de um mediador, uma tela de
poucas polegadas que grava, mas não sente. Registramos com intuito de postar,
isto é, não vivemos verdadeiramente o que captamos, queremos capturar para os
outros verem, com isso não nos damos conta da nossa cegueira infligida.
Preocupamo-nos com o foco, o som, o enquadramento, o zoom... e não com o
sujeito que está sendo registrado.

Sim, tenho máquina digital, celular que tira fotos, mas sempre procuro me
controlar quando experimento emoções na minha vida para não sair capturando
imagens. Quero aproveitar a sensação de ver minhas filhas dançando nas festas
juninas, quero usar meus olhos para ver um pôr do sol multicolorido no rio Negro!
Por que capturar tudo? Por que não deixar buracos no registro que fazemos dos
nossos filhos? Por que temos de inundá-los com memórias digitais? O
esquecimento é uma dádiva divina, é tão importante esquecer como lembrar.
Nossa sociedade é paradoxal, quer se lembrar de tudo filmando tudo, ao mesmo
tempo se esquece de coisas fundamentais: brincar com os filhos, sensibilizar-se
com as injustiças, brigar por um mundo menos violento, etc.

Há alguns anos, visitando a igreja de São Marcos, em Veneza, descobri no teto


uma sequência de iluminuras contando a história bíblica de José e seu manto
colorido. Fiquei fascinado com aquilo, as pinturas colocavam roupas medievais
nessa antiga história do velho testamento. Chamei minha esposa para compartilhar
minha descoberta e comecei a contar pra ela a narrativa daquele homem que
acreditava como ninguém no poder dos sonhos. Depois de alguns instantes, um
pequeno grupo se juntou a nós, observavam que eu apontava para o teto e falava.
Não deu outra, miraram suas máquinas, começaram a disparar flashes e foram
embora. Sempre tive a curiosidade de saber o que aquelas pessoas falariam
quando vissem essas fotos nos seus computadores.

Da próxima vez que seus filhos estiverem realizando algo que toque você,
emocione, filme um pouco, mas deixe um bom tempo para seus olhos, seu corpo
inteiro, apreciar a maravilha da experiência real, memorize-a na sua retina, grave
no seu coração. Posso afirmar que não há tecnologia na face da Terra que
transmitirá o que o você acabou de verdadeiramente capturar.

Ilan Brenman doutor em educação e um dos


principais escritores de literatura infantil do
Brasil, é pai de Lis, 7 anos, e Iris, 5. E-mail:
crescer@ilan.com.br

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