Você está na página 1de 60

1

2
Quem aqui vos escreve sou eu, o
Bryan, escritor do WOH! Falaram- equipe:
me que como essa edição da Projeto
Redação era especial sobre minha Redação: Gustavo Martins,
série, acharam melhor então eu Bryan Dias, Eirea, Mooner,
escrever a introdução. Adorei a Victor Biancardine,Matheus
ideia. de Souza
Primeiramente quero agradecer Colaboradores: TAXD,
a todos que votaram na enquete, Hanzo, LukPla60, Emanuel R.
sendo pro WOH ou não; o que Marques
importa foi ter votado e participado. Diagramação: Aero
Quero agradecer aos comentários Artifinalismo: Aero
sobre minha entrevista, agradeço
Edição: Gabriel "the gabs"
a todos de coração mesmo,
obrigado pelo apoio dado e tudo
mais. Espero corresponder a tal
expectativa.
E por último e não menos
importante, agradecer a Projeto
Redação que abriu as portas para eu
publicar o WOH! , muito obrigado
mesmo.
Enfim, nessa edição teremos uma Contato:
estreia dupla, de uma série e um
novo autor de contos, além de um
projetoredacao@gmail.com
episódio duplo de WOH!
Espero que gostem dessa edição
tão especial não só pra mim, mas
para todos da Projeto Redação que
trabalharam com muito empenho
para produzi-la pra vocês. Boa-Leitura.

3
Sumário
Apresentação . ................................................................. 3

Sumário ........................................................................... 4

Entrevista ........................................................................ 5
História Bem Montada . ................................................ 5

Sagas ............................................................................. 9
Chantel Capítulo 7 ........................................................ 9
World of Humans Capítulos 8 e 9 . .............................. 17
Guerreiros Predestinados Capítulo 6 .......................... 24
Dis Irae Capítulo 6 ....................................................... 29
Manual para Iniciantes no Inferno Capítulo 2 ............ 34
Madise Ruf Golum ..................................................... 38

Contos e Crônicas ........................................................ 45


Pingente de Ouro ......................................................... 46
Raios de um Certo Tempo . .......................................... 51
O Velho e o Sonho ....................................................... 52

4
ENTREVISTA
História Bem Montada x Efeitos Visuais
por Bryan Dias
essencial para colocarmos em
prática na hora de criar uma
história/roteiro.
Há muitos que duvidem
da importância de uma
história bem montada,
bem articulada. Há quem
"Mataram o pai da Joana e ela
prefira um jogo com ótimos
sai para se vingar e evitar
a dominação mundial"
efeitos visuais e gráficos
de tirar o fôlego. É, mas

Q uem nunca jogou algum ninguém melhor do que


jogo e parou para um Administrador de uma
refletir... ”Meu Deus! Como a comunidade reconhecida,
história está HORRÍVEL! Não que acolhe mais de 3000
tem história praticamente!”. membros para poder nos
E essa pergunta se faz resolver esse mistério, mais
cada vez mais presente no caso são dois Adm’s, da
nas pessoas que são Santuário RPG Maker Luko
pertencentes ao Mundo dos e Nader, uma comunidade
RPG’s, ou das comunidades voltada para a criação de
voltadas ao desenvolvimento jogos através de engines
amador de games, no qual como o RPG Maker, ORpg,
75% dos jogos, mostra assim VBGore, etc.
um roteiro confuso e muitas
vezes sem nexo.
Como solucionar isso?Uma Equipe Projeto Redação:
das medidas que devem Olá Luko e Nader,
ser tomadas é a prática da primeiramente quero
leitura, se especializando agradecer a presença de
cada vez mais numa vocês aqui e o fato de terem
determinada área para depois aceitado participarem dessa
ir abrangendo conforme o entrevista. Então vamos às
tempo passa, ou se preferir, perguntas, por favor. Para
uma certa abrangência no vocês, qual a importância
total logo nas primeiras para um jogo de um roteiro
leituras. muito bem feito?
Fora isso tem o quesito treino
também, que é um ponto Nader: Pra mim tem jogos

5
E jogos. Determinados E o fato de poucas pessoas
jogos não precisam de ligarem para os roteiros, qual
roteiros muito complexos, é a fonte do problema na
outros casos já ficam mais opinião de vocês, a educação
interessantes bem complexos nas escolas a respeito da
(como investigações). Em escrita ou leitura ou a falta
geral eu acho que nem de compromisso de algumas
muito simples nem muito comunidades de suporte na
complexos caem bem aos parte da escrita, não dando a
jogos deixando-os bem devida atenção a esse ponto?
agradáveis.
Nader: Acho que é influência
Luko: Cada caso é um. de MMORPG's que você só
Alguns jogos necessitam de tem que upar e upar e têm
um ótimo roteiro para que todos aqueles gráficos 3D
haja algum tipo de emoção que impressionam muita
ao jogar, e para que o gente e tal. As pessoas se
mesmo não fique previsível prendem a isso e esquecem
ou monótono (complexo, outras partes como roteiro e
bem bolado, cheio de sonoplastia, por exemplo.
reviravoltas...
bem, depende Luko: Se você
de cada jogo). for prestar
Já outros atenção, o
realmente não desinteresse
precisam ter começa mesmo
um roteiro por é nas próprias
trás, que é o escolas.
caso de jogos De todas as
com objetivo matérias,
LineAge 2
mais fixos português
(alguns puzzles, ou e gramática
esportivos). sempre esteve entre os
Roteiro é vitalmente últimos quando se fala em
importante sim em boa preocupação por parte dos
parte dos casos, mas mais alunos, o máximo que as
importante ainda é que o escolas faziam (ou ainda
criador consiga enxergar as fazem) para incentivar era
necessidades do próprio jogo. obrigar o aluno (literalmente)
a ler um livro (escolhido
Equipe Projeto Redação: aleatoriamente..só pode)

6
uma vez por mês. jogo ou livro, não importa),
Para aumentar só falta agora um pouco de
exponencialmente esse incentivo. Tutoriais de escrita
desinteresse, aparecem os e formulação de roteiros
jogos do momento, alguns são bons, mas se tem algo
exemplos eu diria: melhor são as boas bases,
•MMORPG's em geral que pois elas sim vão gerar
o pessoal só joga pra "upar algum interesse.
upar upar pra ficar bom no
pvp"(mesmo que o jogo Equipe Projeto Redação:
tenha uma boa história no Essa é uma pergunta meio
fundo, ela vai ser ignorada... “off”, me disseram que vocês
infelizmente) acompanham a
•Gtas da Revista Projeto
vida (preciso Redação, se tal
comentar? pode afirmação for
sim ter história, verídica, nos
mas quantos ao digam, quais
menos pensam séries vocês
em prestar mais gostaram?
atenção nela?) Quais séries
Se for para Super Mario World vocês acham
ter um culpado, seria que dariam um bom roteiro
primeiro o sistema de para um Jogo feito numa
educação do pais em que plataforma como a do RPG
nós nos encontramos, o Maker?
interesse/foco reduzido das
comunidades nessa área é Nader: temos um mentiroso
apenas conseqüência, pois à solta (risos). Infelizmente
elas tendem a querer atender não sou muito do tipo que lê;
as exigências da "maioria" eu gostaria, mas ainda não
antes de atender os outros. tenho muito esse hábito.
(algo que é automático/ Luko: Bem, vou mentir se
natural em qualquer tipo de falar que acompanho, mas já
grupo online ou não). tive sim a curiosidade de ler
Mas felizmente, os bons algumas séries.
clássicos estarão sempre Dos que eu dei uma
ai para salvar, existem e espiadinha, "Dies Irae" e
sempre existirão inúmeras "Guerreiros Predestinados"
boas histórias para se ver poderiam se transformar em
(dentro de algum filme, ótimos jogos sem dúvida,

7
mas não estou desmerecendo de grande maioria dos
os outros, por exemplo... bons jogos, mas não são
o "World of Humans" não necessariamente a melhor
encaixaria facilmente em um parte. Como havia dito na
projeto, mas não deixa de primeira resposta, cada caso
ser uma série legal. é um.

Equipe Projeto Redação: Equipe Projeto Redação:


Enfim a pergunta do Clímax Bem, chegamos ao final
da entrevista nos diga o que da entrevista, e como
é melhor, uma história bem costumeira tradição, o que
montada, bem articulada vocês querem deixar como
ou um jogo com excelentes mensagem para os leitores
efeitos visuais e gráficos de daqui e também para os
tirar o fôlego? leitores makers que aqui
lêem sobre a importância dos
Nader: Na verdade prefiro roteiros nos jogos?
gameplay. O jogo sendo
divertido, o resto é adicional. Nader: Acho que o que eu
Entre esses dois eu fico com tinha para dizer já foi dito
os gráficos, que é o que eu nas outras respostas. Bom,
estou mais próximo de saber obrigado pela oportunidade,
melhorar/fazer bem. Mas é espero que alguém tire
aquela velha história que tem proveito dessas palavras
que ser tudo equilibrado e acima.
tal.
LuKo: Alguma mensagem?
LuKo: Gráficos pra mim, sim, apenas as sábias
estão em último lugar, na palavras de um grande
prática servem apenas de filósofo moderno: "Busquem
capa mesmo. (Ora, Mario conhecimento"(Ora...já disse
world e Donkey kong pra muita coisa ali acima, e
mim dá de 1000 a 0 em também não sou muito bom
muito jogo novo por ai... para escolher as palavras
sinceramente) ¬¬) No mais, apenas quero
Eu por exemplo, sou fã de agradecer a oportunidade
jogos divertidos ("classicões") dada, foi bem divertido .
e/ou com boa jogabilidade
(Free Action RPG's?).
Claro que uma boa história
sempre está por trás Acesse: http://santuariorpgmaker.com/

8
9
Chantel

Capítulo 7
Uma usuária de plantas?
Essa é realmente uma situação horrível para enfrentar alguém
assim.
As pétalas começam a se movimentar novamente, avançando na
minha direção rapidamente.
Pulo atrás de uma das prateleiras de livros, tentando fugir dessa
primeira investida.
Ao receber o primeiro ataque a estante se desfaz numa explosão
de lascas de madeira e papel picado.
Corro por entre os intermináveis corredores de livros, seguida de
perto pela onda multicolorida e pelo som de madeira se despedaçando.
Paro na frente de uma coluna na qual desenho uma fórmula. A velocidade
em que fiz o símbolo geométrico e a textura áspera da coluna deixam
meu indicador em carne viva.
Mas não posso parar.
É melhor arrebentar um dedo do que ser fatiada.
Viro-me rapidamente e puxo uma das folhas na qual preparei
uma fórmula genérica:
—Queime!
Apoio o papel na palma da minha mão. A magia é iniciada
e chamas envolvem meu braço direito que no mesmo instante está
caminho pela torrente de pétalas.
O cheiro de plantas queimando toma o meu nariz e em
rapidamente estou do outro lado da enxurrada de flores.
Solto o pedaço de papel, agora inútil, no chão e contínuo a correr,
agora em direção à Caroline.
Uma corrente de pelo braço.
Numa avaliação rápida noto diversos cortes por todo o membro.
De um dos ferimentos em especial salta uma quantidade considerável
de sangue. Provavelmente uma veia cortada ou um ferimento mais
profundo.
Mas não posso parar!
10
Chantel
Começo a causar pequenas explosões de mana sob meus pés,
acelerando a velocidade.
Subitamente uma gigantesca quantidade de pétalas vem em
minha direção.
Giro meu corpo para passar por baixo da massa.
Sinto um líquido quente escorrer pelas minhas costas. Minha
visão escurece por um instante e ao recuperá-la vejo outra incursão se
aproximar.
Desenho outra fórmula geométrica no chão e recito o feitiço
de “Sírius” que se forma à minha frente e se projeta contra a massa de
pétalas.
A colisão das pétalas com a estrela de energia cria uma chuva de
pó colorido.
Viro novamente em direção à Caroline e volto a correr enquanto
o som e o calor da explosão se espalham a minha volta junto de uma
chuva de pó colorido.
Aumento a quantidade de energia nas explosões e em um
instante fico cara a cara com meu alvo.
Ela faz uma cara de surpresa. Com certeza não achou que eu
conseguiria escapar daquilo tão rápido.
Tento atingi-la com um soco direto no estômago, porém ela
recua num pulo.
Num movimento rápido ela folheia o livro novamente:
—Vamos ver como se sai agora.
Caroline sorri enquanto um círculo brilhante se forma atrás dela.
Subitamente chão começa a tremer. Linhas começam a surgir no
círculo formando o que parece ser uma fórmula.
Mas é estranho. Até agora ela usou apenas magias de grimório
então por que mudar para fórmulas tão de repente? Isso não faz sentido
algum. Exceto se...
Meu fluxo de pensamento é interrompido pelo som alto do chão
sendo quebrado por diversos tentáculos verdes.
Corro em direção à Caroline antes que as coisas possam me
alcançar.
Poderia alcançá-la num instante se usasse explosões de Mana,
mas se continuar forçando meus canais desse jeito eles acabaram se
rompendo. Melhor guardar para outro momento.

11
Chantel
De trás de mim vem o som de concreto quebrando enquanto
algo se aproxima rapidamente.
Acelero o passo o máximo que posso e minha respiração começa
a arder.
O som do ar sendo rasgado aumenta constantemente. Minha
freqüência cardíaca começa a acelerar acima do esperado. Em breve meu
corpo chegará ao seu limite. Tenho que acabar com isso no próximo
ataque.
Paro de correr e deixo meu corpo ser empurrado pela força
cinética. O vento passa em volta de mim fazendo meus cabelos
esvoaçarem. O efeito visual deve ser incrível.
Fecho os olhos e ouço o algo romper o ar ao lado da minha cabeça
com extrema violência. O impacto sonoro me faz perder o equilíbrio por
um instante e quase torço o tornozelo ao pousar o primeiro pé no chão.
É agora. Respiro o mais fundo que posso e tento limpar minha
mente. Meu outro pé toca o chão.
Flexiono minhas pernas o máximo que posso. Um distante
farfalhar de pétalas chega aos meus ouvidos. O som caótico corre em
minha direção com a fúria de vulcão em erupção.
Toda a energia física do meu corpo se joga nos meus bíceps
femorais.
Por um segundo tudo se aquieta. Meus batimentos cardíacos
se regulam e então abro os olhos. Uma explosão sensitiva atinge meu
cérebro. Invisto em direção à Caroline com toda a minha força.
As pétalas e os tentáculos, que agora consigo identificar como
raízes, vêm em minha direção. Recito um feitiço rápido criando uma
pequena explosão de energia sob mim. Uso a onda de choque para me
atirar por sobre ambas as ofensivas.
Caio de pé sobre as raízes e continuo correndo. A distância entre
eu e ela diminui rapidamente e mesmo daqui consigo ver a raiva nos
olhos dela.
Aumento a velocidade da corrida enquanto recito o nome de um feitiço.
Caroline começa a se afastar lentamente.
Não vai escapar!
Não posso permitir que escape!
Com o que me resta de força salto na direção dela. Com meu
braço esticado agarro-a pelo colarinho. O círculo se desfaz atrás dela e

12
Chantel
ambas caímos no chão e o livro que ela segurava cai ao seu lado. Meu
está rosto tão próximo do dela que nossas respirações, ambas pesadas, se
cruzam. Meus cabelos caem sobre seu rosto fino e bonito. A expressão
de medo e raiva em seus olhos parece o de um coelho pego por uma
raposa. Chega a ser fofo:
—De perto você é bem bonita. — Não sei o que me deu para
dizer isso – Pena que vou ter que te prender.
Ela sorri cansada. Por longos segundos ela apenas fica me
olhando, sorrindo e arfando até que levanta uma mão. Tento segurá-la,
mas meus braços não se mexem. A mão se aproxima de mim lentamente
até tocar meu rosto:
—Você também não é nem um pouco feia.
Mas que situação estúpida. Mesmo assim não consigo segurar a
risada.
Duas mulheres deitadas uma sobre a outra rindo e analisando a
beleza uma da outra. Por sorte meu marido nunca vai ver isso:
—É uma pena que não posso me deixar ser presa. — Ela deixa a
mão que me tocou cair sobre o livro e sorri — Venha, Woruldfrea.
Viro-me para trás sem soltá-la e sinto minha cabeça rodar ao ver o que
ela havia feito.
A luz distorcida forma um enorme círculo negro. Tudo em volta
dele parece desaparecer dentro da escuridão ou se dobrar de maneira
absurda. No fundo de tudo a matriz estrutural do espaço físico se
distorce em volta de si mesma.
Uma fenda espacial. Isso é desesperado demais. Apelar para
magias desse nível é insano!
Olho-a nos olhos. Tudo que há neles é uma arrogância desmedida
e ofensiva. Meu sangue ferve nas veias:
—Que tipo de monstro você chamou? — Grito.
—Veja você mesma. — Ela diz confiante, apontando para a
distorção.
A fenda está muito maior do que da ultima vez que olhei. Ela
já atravessa ambas as paredes laterais do prédio, uma distância muito
superior aos cem metros, e tanto por cima a distância é igual. Um círculo
perfeito e crescente.
Subitamente algo desponta da escuridão rasgando a trama
espacial da fenda. Uma ponta verde, afiada como o bico de uma ave,

13
Chantel
com quase o raio da distorção. Pouco a pouco a ponta se desvencilha do
tecido dimensional. Visualmente lembra um peixe tentando se livrar de
uma rede.
Em poucos segundos a ponta se torna todo um gigantesco bico
escamoso e seco, como o de um réptil.
Um réptil…
Algo dentro da minha cabeça acende. Um réptil gigantesco
trazido através de uma gigantesca distorção espacial.
Não pode ser. A simples idéia de isso ser… aquilo é absurda.
Mas então o que é?
Viro-me para Caroline, que sequer esboça uma reação:
—A Tartaruga do Mundo…?
—Um dos Quatro Grandes. Um monstro entre os monstros. —
Ela sorri arrogantemente — Um daikaiju a quem até os Deuses temem.
Como pretende lidar com isso, Helena?
—Tem noção do que você soltou! — grito com toda minha força.
Um som rouco e absurdamente alto se espalha pelo lugar fazendo
o chão e toda a estrutura tremer como num selvagem terremoto. Enormes
blocos de pedra caem das paredes e do teto, incapazes se suportar as
ondas geradas pelo rugido:
—Se não fizer nada ele acabará saindo completamente. —
Caroline diz isso sorrindo.
—Então esse é seu plano? Usar uma coisa desse nível só para
abrir uma brecha de fuga?
—Exatamente. — Ela diz sem uma nota de medo sequer.
—Isso é mais do que eu consigo agüentar.
Dou um soco no rosto dela com toda a força que tenho. Queria
poder dar mais alguns, mas agora não é o melhor momento.
A ruptura dimensional já atingiu mais de duzentos metros de
diâmetro e metade da cabeça da criatura, idêntica à de uma tartaruga
normal exceto pelo tamanho absurdo e pela aparência rochosa, já
está visível. Provavelmente já devem conseguir vê-la das cidades mais
próximas. Se a Coroa souber disso vou ter problemas.
Se essa coisa entrar completamente aqui não vai ter nada que
eu possa fazer. Só tem uma coisa que eu posso fazer e espero ter Mana
suficiente para fazê-la. Não pretendia usar isso, mas não me restam
muitas opções:

14
Chantel
—Inicializando código primário. — As linhas do código escritas
ao redor dos meus braços começam a brilhar com a carga de Mana. —
Geração de fórmula iniciada.
Tento limpar minha mente enquanto as centenas de fórmulas se
formam ao meu redor num globo brilhante. O Mana ao meu redor se
condensa ao ponto de se tornar líquido. Sinto-me dentro de uma bolha
d’água:
—Que tipo de magia é essa? — A surpresa na voz de Caroline
chega a ser deliciosa.
—Isso é meu ultimo recurso. — Respondo rapidamente —
Liberação dos limitadores iniciada. — Meu corpo começa a formigar
— Liberação terminada. Criação de fórmulas secundárias Terminada.
— As centenas de pequenas fórmulas formam um círculo em volta do
globo. — Processos iniciais terminados. Entrando em fase de espera.
O Mana em volta do globo começa a se condensar e ser sugado
para dentro das fórmulas. Todo o meu corpo fica paralisado pelo excesso
de uso dos canais de Mana. Já havia forçado minhas pernas ao limite e
esse novo esforço vai muito além do ideal. Mas é o único jeito.
Em alguns segundos todas as fórmulas adquirem o brilho azul
que natural da sobrecarga de energia. Todo o processo está terminado.
Hora de disparar:
—Processos terminados! — Respiro fundo. Se aquilo não
bastasse nada bastaria. Meu ultimo recurso, uma magia de nível S com
poder suficiente para devastar toda uma cidade — Komm, Susser Tod!
Todas as fórmulas tornam-se pretas e toda a luz à minha volta
passa a ser sugada para dentro do globo dobrando-se num efeito parecido
com o criado pela fenda. À minha volta uma ofuscante luz branca toma
conta de tudo. Não há uma sombra sequer, apenas o brilho quente e
cegante. Então acontece. Um pequeno ponto negro se forma à minha
frente e toda a luz é sugada para dentro. Em um segundo o ponto quase
invisível toma toda a frente do globo. Logo depois tudo à minha volta é
tomado pela luz negra que distorce todo o ambiente.
O recuo causado pela força esmagadora do disparo faz todo o
tecido espaço-temporal do local se distorcer. A imagem parece a de uma
teia de aranha sendo puxada pelo centro criando um funil.
O efeito permanece crescente por vários segundos até começa a
colapsar, restaurando lentamente o espaço-tempo à sua forma natural.

15
Chantel
Junto à distorção se esvaem também o globo, todas as fórmulas e até a
última gota de Mana do meu corpo. Ao meu redor tudo que resta é um
gigantesco cômodo cujas paredes, chão e teto mais parecem um tecido
dobrado e repuxado do que as estruturas sólidas que um dia foram.
Cada músculo, nervo, veia e canal em mim tremem freneticamente
pela tensão absurda exercida sobre eles. Meu corpo se recusa a responder
aos meus comandos então permaneço caída no chão, incapaz de fazer
um movimento sequer.
Minha visão, completamente ofuscada pelas luzes, se recupera
lentamente. Porém consigo enxergar o suficiente para ver a colossal
fenda se fechar enquanto a imensa cabeça da Tartaruga do Mundo recua,
permitindo à trama espacial retornar ao seu estado de normalidade.
Em alguns segundos a luz volta ao normal. Olho para trás e
não encontro Caroline. Ela realmente se aproveitou dessa confusão para
fugir. Tudo que me resta agora é ver como Paul está e chamar o pessoal
do instituto. Pelo visto teremos bastante pesquisa a fazer aqui.
Subitamente todo o lugar começa a se desfazer como um
castelo cartas. Tudo isso não passava de uma gigantesca magia! Mesmo
completamente esgotada não consigo me evitar rir insanamente:
—Mas que grande filha de uma puta é você, Caroline.

16
17
world of humans

Capítulo 8
Passos sutis, porém apressados ecoavam sobre
um piso de mármore branco morto. Em meio à escuridão
total deste ambiente, estes passos rumavam para o sentido no qual
era orientado por um som vindo de um notebook que aumentava sua
frequência conforme se aproximavam do local desejado.
Estes passos pertenciam ao João, a Larissa, ao Leonardo,
Fernando e a Kimberly. Mas não pertenciam ao Thiago.
“Kimberly, o que aconteceu?” Perguntou Larissa que parou
subitamente ao sentir pelo seu braço que estava entrelaçado ao dela que
a menina parara de andar.
Uma lágrima escorria no rosto de Kimberly.
“Eu vou voltar... O Thiago precisa de nós... Ele precisa de nós.”
Disse Kimberly num tom quase sem forças, num tom extremamente
fraco e baixo.
“Não Kimberly, ele decidiu que fosse assim. Foi o seu desejo!
Vamos, temos que ir embora e acabar com isso de uma vez por todas!”
Disse João pegando no braço de Kimberly com razoável força e rumando
para o local que emitia um som cada vez mais rápido.
“Isso Kimberly, vamos.” Disse Larissa concordando com João.
“Não! , EU vou atrás de Thiago , nem que seja sozinha. Preciso
ajudá-lo! Não me interessam vocês nem desvendar essa tal Juanes...Eu
só preciso ver se Thiago está bem.” Concretizou Kimberly com palavras
ditas com muita força e se desvencilhando do braço de João e rumando
para o sentido oposto.
“Pare Kimberly! Você vai se perder. Necessitamos do maior
número de pessoas vivas!” Gritou João com a garota.
“Então, vou salvar o Thiago! Será um a mais.”
“Eu vou com ela.” Disse Leonardo colocando sua mão no ombro
de Kimberly e rumando para o mesmo sentido que a garota já estava
indo.
“Então vão! Vamos combinar de nos encontrarmos no topo

18
world of humans
deste edifício.” Concordou João
“Ok!” Respondeu Leonardo.
Não se conseguia enxergar um palmo diante do nariz. Estava
muito escuro, e Leonardo segurava a mão de Kimberly.
“Porque você decidiu vir comigo Leonardo?”
“Não posso deixar uma dama como você sozinha em um lugar
desses, não é mesmo?” Disse Leonardo empunhando suas duas AR-
15, uma em cada mão e colocando sua mala nas costas. “Eu vou à
frente, segure-se em mim, a partir de agora, estamos em um território
desconhecido, segure suas armas Kimberly.”
“Pode deixar Leo, já estou segurando-as.” Disse Kimberly
empunhando uma clássica 12 inglesa e uma AK-47.
Os dois foram na mesma direção durante quase trinta segundos
em passos curtos, até que um barulho forte veio na direção dos garotos.
“Calma Kimberly, eu cuido disso.” Disse Leonardo repousando
uma de suas armas no chão e colocando a mão na sua mala e tateou até
tirar uma pistola, dessa vez era um sinalizador.
Ele foi para trás da menina e mirou um pouco para o alto mais
em direção frontal, numa trajetória balística perfeita e atirou.
Uma luz vermelha fortíssima fez-se presente inundando todo o
ambiente, e revelou uma daquelas criaturas modificadas logo na frente
de Kimberly, com a boca aberta preparando um forte grito, que teve
como concorrente o grito da menina de medo e de susto.
Com o susto da menina, Leo descarregou quase um pente de
bala no rosto do meta-humano , que a cada tiro emitia um gemido de
dor , até que na última bala ele caiu no chão , inerte.
“Meu deus, eles já estão aqui dentro.” Disse Leonardo
recarregando sua arma e colocando sua outra AR-15 na mala, ficando
somente com o sinalizador e com a outra AR-15 em punho.
“Como eles entraram então?... Quer dizer que o Thiago?... Vamos
Leo, rápido!” Disse Kimberly já meio afobada passando o antebraço no
rosto enxugando um princípio de lágrimas.
Ao andarem mais 20 segundos à frente, se depararam com uma
parede, que só dava passagem para o lado esquerdo deles. Ao contornarem
essa parede Leonardo, que vinha tateando todo o caminho, tateou algo
extremamente frio.
O garoto recuou alguns passos protegendo a garota e com o

19
world of humans
sinalizador atirou no chão mais ou menos no lugar o qual tateou aquela
coisa.
A luz vermelha fez-se presente novamente, e os garotos puderam
ver os já conhecidos meta-humanos, porém dessa vez eram seis.
“CORRE!” gritou Leonardo para Kimberly, que recuavam
correndo e ao mesmo tempo atiravam em tais criaturas. Porém conforme
atiravam mais, as criaturas começavam a andar mais rápido em direção a
eles.
Ao chegarem ao local o qual saíram, eles começaram a voltar a
passos curtos, até que Kimberly, que estava atrás de Leo, encostou-se a
outra superfície fria e parou.
“Leo... Atira outro sinalizador.” Sussurrou Kimberly para o
garoto.
Outra luz vermelha fez-se presente, e os garotos puderam ver
como estava à situação.
Cinco daquelas criaturas estavam a três passos dos garotos, e,
para piorar tudo, três passos atrás de Kimberly se encontravam mais dois
desses monstros e o efeito do sinalizador ia acabando.
“Atira outro sinalizador para os lados.” Sussurrou Kimberly no
pé do ouvido de Leo.
Com movimentos rápidos, Leo atirou para os dois lados e um no
chão.
Com isso as criaturas já tomavam pose para o ataque. A luz
vermelha estava se esvaindo, até que quando ela cessou de uma vez por
todas, profundos gritos de dor ecoavam por todo o ambiente.

20
world of humans

Capítulo 9
Fernando sempre foi amigo de Leonardo. Não
há como duvidar que com a partida do garoto com a Kimberly, ele
ficou meio receoso, com medo do que poderia acontecer com o amigo.
Desde crianças os dois eram melhores amigos. Freqüentaram as
mesmas escolas, moravam na mesma cidade, e só se separaram quando
Leonardo decidiu ir para o exército, e o outro ficou na mesma cidade,
Belo Horizonte, trabalhando de balconista em uma mercearia. Os dois
só se encontraram após esse “evento”, quando Leonardo fazia uma busca
de reconhecimento de área buscando uma base segura e registrando os
estragos, quando encontrou Fernando, João e Larissa, os três perdidos
vagando pela Santa Ifigênia.

Mas agora já era tarde para isso. Fernando rumava com João e
Larissa atrás do som que era emitido pelo notebook.
“Meu Deus! Nunca chegaremos ao tal local!” Resmungou Larissa
já aflita com a situação de impotência perante a sua localização.
“Olha, estamos pertos” Disse João com base no som do notebook
que apitava freneticamente para o local a frente deles.
A frente dos garotos estava uma parede, que João ao tatear, sentiu
ser de pedra, meio diferente das outras por quais passavam.
“Vamos quebrá-la.” Disse Fernando pondo a mão em sua mala e
retirando uma pistola americana e uma granada alemã. “Recuem galera,
vamos explodir essa parede.”
O garoto recuou seis passos e ficou à frente de João que abraçava
e tampava os ouvidos de Larissa. Um forte barulho veio e dois gritos de
dores foram seguidos.
O primeiro veio ao longe, não sabiam de quem exatamente.
E o segundo veio de Fernando, que ao jogar a granada na parede, ele
exagerou na força e ela recuou um pouco e atingiu o garoto, que acabou
perdendo o pé esquerdo com a explosão.
O sangue foi jorrando por entre suas roupas, e vários gritos de
dores fizeram-se presentes. Com movimentos rápidos, João rasgou a
21
world of humans
blusa de Fernando e cobriu os ferimentos do garoto, que caído no chão,
regurgitava de dor segurando a perna lesada.
“Calma Fernando, você vai sair dessa, agüente firme, o importante
agora é chegarmos ao local, vamos!” Disse João.
“Ok, va-vamos.” Gemeu o garoto que foi se levantando muito
forçadamente aos poucos e indo se apoiando em João e na Larissa.
Os garotos entraram no salão, e o notebook que estava sob
posse de João ainda, apitava freneticamente para frente, e os garotos
ao olharem o notebook, avistaram uma bola verde, parecido com uma
bússola, que os orientava para o local desejado.
Os garotos seguiram as dicas para chegarem ao local. Viraram
à esquerda, depois à direita, seguiram reto por 20 segundos e viraram
novamente à esquerda; durante todo o caminho, Fernando gemia de
dores, porém não reclamava em nenhum dos trechos, até que chegaram
ao local desejado, e o garoto caía ao chão, levando a mão em sua perna
esquerda.
“Chegamos.” Apontou a frente deles João, que pegara o
sinalizador que estava em sua mala, já que o de Fernando ficou para trás,
assim como sua mala.
Ao atirar na sua frente, uma luz azul iluminou o ambiente.
Estavam sob uma porta de ferro. João abriu-a. Atrás dela tinha outra
porta, só que muito mais moderna, com uma entrada estranha, que
parecia ser a de um notebook.
“E agora João?” Perguntou Larissa já afobada.
“Vou inserir o notebook aqui, a entrada parece bater com o
formato dele, quem sabe...” Disse João fechando ele e o direcionando
para o buraco na porta.
João estava quase pondo o computador lá, enquanto passos fortes
ficaram cada vez mais presentes no local, que cada vez que eram ouvidos,
faziam tremer o restante da estrutura do local.
Com movimentos rápidos, João colocou o notebook na abertura,
e um grito de dor foi ouvido muito perto deles. A porta abriu.
“Entre rápido Larissa.” Disse João pegando no braço da menina
e colocando-a para dentro do lugar.
João pegou seu sinalizador logo após de deixar Larissa na porta
e atirou dentro da porta e para fora atirou três vezes, no local onde os
gritos faziam-se presentes, assim como os passos.

22
world of humans
Os garotos viram três meta-humanos, só que um pouco maiores
que o normal, esses com um machado cada um na mão, que corriam na
direção dos meninos.
“Venha comigo Fernando.” Disse João segurando Fernando que
resistiu a ajuda do amigo.
“Deixe-me aqui, vou acabar com eles, caso contrário estes nos
seguirão pelo caminho.” Falou fracamente Fernando pondo sua mão na
mala e retirando um cinto com seis granadas alemãs.
“Tem certeza disso Fernando?” Perguntou a menina que já sem
a sua mala e sem a mala de João que ela colocou lá dentro e agora ficara
junto com eles.
“Sim Larissa.” Respondeu agora num tom mais forte o garoto
caído no chão, que agora pegava sua AR-15 e mirava para o local no
qual uma fraca luz azul iluminava a vinda meio lenta dos meta-humanos
que estavam cada vez mais perto deles. “Vão logo! Vou explodir tudo
aqui!” Disse Fernando agora com sua arma em punho e começou a atirar
nas criaturas, que como resposta voltaram a correr, e um deles atirou
um machado, na direção da garota, que com movimentos rápidos, João
pode empurrou a garota e o machado arrancou o braço de Fernando, que
gritou ainda mais de dor.
Um surto de adrenalina correu pelo corpo dos jovens. João pegou
Larissa no colo que estava desmaiada e correu para a porta. Fernando
levantou com muito esforço, quase morto, retirou os pinos da granada e
descarregou o restante de sua munição nas criaturas.
“Agora já era. Boa sorte pra vocês!” Foram as últimas palavras de
Fernando, que foi ao encontro das bestas e uma grande explosão foi-se
feita, seguida de um barulho muito forte e ensurdecedor.

---

Não muito longe dali, outro grito foi-se dado.


“Thiago!” Gritou em êxtase Kimberly, abraçando o garoto.

23
24
guerreiros predestinados
“Há poucos dias, eu encontrei um Cavaleiro inconsciente perto da
Montanha Amir, ele deve ter tentado escalá-la, mas caiu, então cuidei
dele e lhe forneci frutas e comida, além de um par de Adagas de Madeira,
mas agora ele está frente a frente com um Dragão de duas cabeças”.

capítulo 6
O Dragão pousa exataPela manhã, Hércules e Tarim
seguem para a fronteira Oeste da Vila I, onde se encontra o forte de
Samir.
Tarim está equipado com Peitoral Superior de Madeira, Cinto
e Botas de Couro, um Par de Adagas e um Par de Bumerangues de
Madeira, os itens de madeira foram forjados por ele mesmo com madeira
das árvores da Floresta Amir. Hércules está com um Bracelete Direito
de Prata, Cinto de Couro, Botas de Prata, Espada de Aço, Escudo de
Bronze e um Par de Adagas de Madeira.
Chegando no forte feito de grandes toras de madeira
verticalmente, Hércules grita:
- Samir, eu retornei com as armas, quero que me treine.
- Mestre, – Diz Tarim – este forte é espetacular, as toras de
madeira são gigantescas, quem o fez tem de ser detentor de uma grande
habilidade de forja de madeira.
- Sim, Samir é um Bárbaro poderosíssimo.
- Já o aguardava Cavaleiro – diz Samir do alto de uma tora de
sua fortaleza – fiquei sabendo ontem que havia retornado.
Samir pula até o chão, o salto foi de uns 4 metros, mas ele cai em
pé:
- Vejo que já possui melhores partes de sua armadura, e possui
até um Escudeiro, isso é bom, está no caminho certo, possui algum
dinheiro?
- Sim, 50 moedas de Bronze e 5 de Prata.
- Há uma mina na fronteira Norte da Vila I, quase saindo da
cidade, cave e encontrará me-tais, leve-os ao ferreiro com o dinheiro e
forje um Peitoral Superior para a sua armadura, será útil para o treino,
retorne amanhã com seu Escudeiro e eu iniciarei o treino, para os dois,
25
guerreiros predestinados
mas lembrem-se, se vocês morrerem, a responsabilidade e escolha é de
vocês.
Hércules e Tarim passam o dia cavando, e encontram apenas
Aço e Bronze, eles levam o metal para o ferreiro da cidade, que faz um
Peitoral Superior de Bronze para Hércules e uma Es-pada de Aço para
Tarim a pedido de Hércules, de uns 75 Centímetros, o serviço fica em
35 Moe-das de Bronze e as 5 de prata:
- Mestre – diz Tarim – tem certeza de que não ficou caro esta
espada para mim?
- Relaxa Tarim, você precisará mais do que armas de Madeira se
deseja sobreviver ás cria-turas que existem neste estranho mundo.
- É que não quero dar trabalho, os Guerreiros deste mundo
tratam com mais severidade seus Ajudantes, geralmente os ajudantes se
viram para conseguir armas e proteções.
Hércules olha para Tarim e sorri:
- Acontece que não sou deste mundo, lembra?
Pela manhã antes do sol nascer, eles retornam ao forte da fronteira
oeste, e são recebidos por Samir que os leva a um tipo de colina, cheio de
rochas:
- Na hora em que o sol nascer, vocês começarão a carregar aquelas
rochas, grandes e pe-quenas, até o topo da colina, deve ser uns 30 metros
de distância inclinada, isso fortalecerá vocês, se não conseguirem levar
todas, grandes e pequenas até o por do sol, estão fora do meu treino.
- Mestre Samir – diz Hércules – não sei se teremos força para
levantar as maiores.
- Hércules; vou explicar a você porque acredito que Tarim já
deve saber o que vou dizer. Neste mundo, não usamos só os músculos,
usamos a energia interior que cada ser tem dentro de si, no seu mundo
chamam de ki, aqui chamamos de força interior, quanto maior a sua
força interior maior as possibilidades físicas, mentais e até o uso da
magia será possível, pense nisso e assim será mais fácil se concentrar
no esforço físico, você se surpreenderá com o que podemos fazer nesta
dimensão. Lembrem-se, até o por do sol.
Samir se retira e deixa os dois, poucos minutos e o sol nasce.
Hércules e Tarim começam levando as menores:
- Mestre, – diz Tarim – não conseguiremos, são muitas.
- Então vamos correr, Tarim.

26
guerreiros predestinados
- Correr?
- Sim! Só assim conseguiremos.
- Mas mestre, não será fácil.
- Ninguém disse que ser Guerreiro seria fácil.
Depois de um tempo, sobram só as maiores, o sol já está a meio
dia:
- Tarim, preste atenção – Diz Hércules – agora, temos que
levantar as pedras juntos, cada um de nós segura em um lado, levantamos
no mesmo tempo, corremos juntos e soltamos lá no alto, certo?
- Mestre, meus braços doem, eu já não os sinto direito.
- Eu também não Tarim, mas você não disse que queria ser
útil para o planeta? É o único jeito, ou ficamos mais fortes, ou não
conseguiremos nossos objetivos.
O tempo vai passando e Hércules e Tarim vão trabalhando duro,
eles só pararam uma vez, por uns 30 minutos para comer algo.
Nas últimas e maiores pedras, Tarim e Hércules vão rolando e
empurrando as pedras com braços e ombros, por fim, o sol começa a se
por.
Só falta uma e eles estão correndo contra o tempo, eles chegam
exatamente 5 minutos com a última pedra no topo, eles sentam exaustos.
Cinco minutos depois, exatamente no por do sol Samir chega:
- Vejo que vocês conseguiram, assim ficarão mais fortes, vão
dormir e retornem amanhã.
- Mestre Samir; – diz Hércules – você tinha razão, neste mundo
somos um pouco mais for-tes, obrigado.
Samir olha para Hércules sério e frio, mas Hércules sorri, mesmo
exausto:
- Até amanhã, Cavaleiro – diz Samir – e cuide do seu Ajudante.
Hércules olha e Tarim está dormindo, exausto, Hércules pega seu
ajudante no colo e o leva para casa, coloca-o na cama. Hércules come
umas frutas e deita, ele está exausto, mas consegue pensar em voltar pra
casa, ele quer terminar logo o treino, salvar as crianças, Heymore; ouvir
o propósito dos predestinados, ele acha que provavelmente recusará a
missão, só a ouvirá devido à promessa que fez a Samir. Por fim ele pega
no sono.
No meio da madrugada, Tarim acorda assustado:
- Nós conseguimos? – ele pensa – eu apaguei, estava exausto...

27
guerreiros predestinados
Tarim sai para dar uma volta, é lua cheia, à noite até que está
meio clara, ele diz:
- Não sei se devo continuar tentando ser um Escudeiro
Predestinado, acho que ainda sou novo demais, com certeza meu mestre
Hércules me trouxe pra casa. Se fosse outro guer-reiro me deixaria lá
até eu acordar e vir, ou nem me deixaria mais ser Escudeiro. Talvez eu
devesse...
- Deixar de falar tanta besteira – Diz um homem saindo de uma
névoa verde – escute o que você está falando Tarim; isso não faz sentido.
Lembre-se de que desde que você fez o forte na Floresta Amir, todas as
crianças que ajudei a sair das Colinas de Hércule, tiveram abrigo, você é
talentoso, vai se dar bem como Escudeiro.
- Leão Verde? – Tarim reconhece o guerreiro – O que faz aqui?
Sabe que não pode ficar muito aqui, é perigoso para você.
Leão Verde é aquele Cavaleiro que ajudou Hércules a vencer o Lobo.
- Eu não pude deixar de vir, ouça Tarim, Hércules tem um
destino a cumprir, e ele precisará de nós para ajudá-lo e protege-lo, por
isso, não fique chateado por receber cortesias dele, lembre-se que o Povo
das Folhas é conhecido pela gentileza, e não tanto pelos guerreiros que
forma, não somos o Povo do Fogo. E Hércules é do Povo das Folhas
mais do que do Planeta Terra, é natural dele ser assim.
- Eu não sei se estou pronto Leão.
- Eu sei que você está se preparando, se desistir aqui, nunca
estará pronto; por favor, o destino de Terak está nas mãos dos Guerreiros
Predestinados, nós temos que ajudar Hércules a se tornar um Guerreiro,
e você também deve se tornar um Guerreiro Tarim.
Leão Verde some na neblina verde, deixando uma folha no local
onde sumiu, Tarim volta a dormir pensando em tudo o que ouviu de
Leão Verde.

“Hércules passará no segundo dia de treino de Samir? Tarim continuará


a ajudá-lo após ouvir meus conselhos? Quanto tempo durará o treino?”.

28
29
Dies Irae

Capítulo 6
A jovem saiu correndo. Como o avanço deles era lento,
ele teve tempo de pegar o arco que estava ao lado dele e preparar a flecha.
Ele sorriu, ao se lembrar que já esteve em uma situação similar. Mas
entre lobos e mortos-vivos havia uma grande diferença. Ele disparou
a primeira flecha no peito da criatura mais próxima. O morto-vivo
recuou com o impacto, mas depois continuou avançando. Ele disparou
novamente. Dessa vez a flecha cravou no abdômen, mas o resultado foi
o mesmo. Como eles já estavam bem perto, ele sacou de sua espada.
Ele recuou. Pouco sabia sobre essas criaturas, todavia, uma dessas
poucas coisas é que não é nada animadora a idéia de ser cercado por um
grupo desses seres. Enquanto pensava no que faria, ele viu uma flecha
acertando a cabeça de um, e o tombando. Era Avenel, mal conseguindo
se manter de pé, mas ainda assim, com a pontaria impecável.
- Ora, tão fácil assim?
Aldebarand foi o próximo a chegar, já em investida. Mal
teve tempo de ouvir Firleu o advertindo a não se deixar ser atingido.
Aldebarand com seu machado, e Firleu com sua espada, ambos
decapitaram cada um seu oponente. Avenel disparou outra flecha
certeira, e Melien chegou, disparando sua besta no último ainda de pé.
- Já? Simples assim?
- Não se decepcione, Melian. Teremos uma batalha bem mais
árdua quando pegarmos o grimório! Imagine a cara do rei Baderon! Ele
ficará louco!
- Aldebarand também quer lutar mais.
- Não acredito que direi isso, mas Avenel tem razão. A maior
batalha ainda está por vir, então não é sequer prudente ansiarmos por
desafios. Assim como não é prudente permanecermos aqui por mais
tempo. Alguém dentre vocês notou a semelhança entre nossas duas
batalhas aqui?
- Ambos eram mortos-vivos. Tanto os “homens” quanto o
dragão. Provavelmente são obra de algum necromante. Será que...?
Não, seria óbvio demais... Mas... Seriam obra de Baderon? Não sei o
30
Dies Irae
caminho da magia que ele segue, mas seria bem apropriado da parte
dele o estudo da magia dos mortos. Conheci alguns magos assim. Nem
todos eram malignos, mas a maior parte era. E estamos bem próximos
da fronteira entre os reinos... Não haveria proteção mais incansável, leal
e... Descartável.
- É uma boa teoria, mas não podemos ter certeza. Caso seja
verdade, poderemos nos deparar com outros durante o caminho. Mas
não pretendo ficar por aqui e perguntar. Vamos levantar acampamento,
o sol está para nascer. Depois descansamos.
Todos arrumaram as coisas. Sem os cavalos, era bem mais lento
e difícil. Aldebarand levou a maior parte do peso, seguido de Firleu.
Avenel era o menos dotado de força, e ainda estava ferido, por isso levava
uma carga menor. Melian quase foi poupada, mas não se permitiu andar
livremente enquanto os outros trabalhavam duro, por isso também teve
sua carga para levar.
Estavam já todos cansados, andando sob o sol alto. Era possível
notar que todos já haviam perdido suas forças. Muita coisa fora deixada
para trás. Firleu notou que Melian quase desfalecia, mas foi afastado ao
tentar ajudá-la. Ele notou que ela estava tentando provar que era mais
do que uma mulher fraca, provavelmente, ainda estava magoada com as
palavras do general Roderick.
Até que Avenel avista um bosque. Apesar de todos estarem
receosos de entrarem no meio de mais árvores, a idéia de se abrigarem
nas sombras das árvores era tentadora demais para se resistir. Apenas
isso foi o bastante para dar mais força ao grupo, que conseguiu alcançar
o lugar, que parecia bem mais seguro que a floresta. A ausência da
atmosfera sombria os ajudou a relaxar.
Avenel, com toda a sua capacidade de direção em florestas,
assumiu momentaneamente a direção do grupo, e acabou os levando
até uma espécie de clareira, com um lago ao centro. Dentro da clareira,
também havia uma ou outra árvore, mas bem mais escassas que no resto
do bosque. Assim que chegaram, todos beberam um pouco das águas
do lago e se lançaram ao chão e se deixaram ficar por alguns instantes,
recuperando o fôlego e as energias.
Firleu foi o primeiro a se levantar. Ele sozinho começou a
montar o acampamento, mas logo todos estavam empenhados junto
com ele. Assim que tudo estava pronto, Avenel decidiu procurar algo

31
Dies Irae
que pudessem comer.
- Aldebarand. Você é um exímio caçador. Gostaria de ir comigo
me ajudar?
- Aldebarand ajuda moço do arco!
Melian decidiu ir à procura de alguns galhos para fazerem uma
fogueira: já que eles trariam carne, seria no mínimo repulsivo comermo-
la crua.
- Alteza, sugiro que fique aqui, cuidando do acampamento.
Firleu acatou a sugestão apesar de, com a sua enorme capacidade
inata de compreender as pessoas, sabia que a única intenção dela era
fazê-lo descansar um pouco. Ainda assim, ele manteve guarda. Não
demorou mais do que alguns minutos e ela estava de volta. Ela chegou,
pôs a pilha de gravetos em um canto, se sentou ao lado dele e recostou a
cabeça em seu ombro, segurando sua mão.
- É melhor esperar que cheguem para depois acendermos a
fogueira. Assim não desperdiçaremos lenha. Acho que deve descansar
um pouco. Passou a noite em claro. Eu cuido do acampamento por ora.
Acho muito bonita a sua atitude de assumir todas as responsabilidades,
de se esforçar por completo, sem tirar vantagem de sua posição. Mas não
exija demais de si mesmo. Durma um pouco.
- Eu quero aproveitar esse momento e ficar ao seu lado.
- Então ao menos se deite.
Firleu se deitou, apoiando a cabeça no colo de Melian, que
estava ajoelhada no chão. Ela ficou um tempo passando os dedos pelos
fios claríssimos do cabelo dele, e admirando aqueles olhos de cor tão
rara. Firleu observou radiante que os olhos dela voltaram a brilhar.
- Eu não quero que isso acabe, meu amado.
- E não irá. Quero que entenda que estarei ao seu lado para
sempre. Eu a amo, e quero que seja minha... Minha esposa. Quero
provar a você que não a deixarei nunca.
- Firleu, entendo o que quer dizer. Eu o amo, e também quero
ser sua esposa. Fico imaginando se não sobrevivermos a isso... Jamais
nos casaríamos... Nessas horas me pego pensando... O que nos definiria
como casados? As palavras de um homem? Por favor, não me entenda
mal. Mas tenho certeza de que Deus aprovaria... Uma união com amor...
E abençoaria, mesmo sem ninguém precisar falar por ele. Não é?
Ele se sentou e olhou para ela...

32
Dies Irae
- Ah, Melian...
E foi nesse instante que Deus olhou para eles e os abençoou,
estando assim unidos para sempre, como marido e mulher aos olhos
D’ele.

33
34
MANUAL PARA INICIANTES NO INFERNO

Capítulo 2
Sid estava pura e simplesmente ferrado. Estava rodeado
de pessoas que não conhecia, não gostava, e provavelmente odiaria se
tivesse a chance. Ele não tinha escapatória, e provavelmente morreria
ali, sem comida, abrigo, amor ou misericórdia. Não havia esperança. Não
havia nada agora, exceto ele, e aquele monstro. Aquele terrível, horrível
monstro.
— Bem-vindo ao DERINF! — O monstro sorriu
monstruosamente, como se tivesse acabado de devorar um coelho
suculento.
— Obrigado, eu… — Pausou, aterrorizado. O monstro à sua
frente, vestindo um uniforme do Governo Infernal, começou a cantarolar
de alegria. Sua forma era inominável, e poderia ser descrita apenas por
uma mente não mais sã. Com um movimento sorrateiro, Sid lhe passou
o formulário.
— Ah, sim. Formulário de Causa de Morte. Mas… Você não
preencheu a causa.
— Sim, eu quero saber qual foi a causa.
— Estou falando, Sid — a fada Bob interveio —, foi estupro.
— Pelo amor de Deus! — Gritou, irritado — O que há com
você e estupro?!
— Eu gosto de estupro. — O silêncio dominou a sala.
— Senhor… — A Abominação quebrou o silêncio, provavelmente
estuprando-o com seus numerosos tentáculos no processo — Você tem
que preencher um formulário de Requisição de Causa de Morte caso
queira saber sua causa de morte.
— Mas eu não sei minha causa de morte. O formulário de
Requisição de Causa de Morte pede para informar a causa!
— Sinto, senhor, mas não posso te ajudar além disso. Mas aqui,
fique com um boneco do Diabo. — Entregou-lhe uma coisa escura, negra,
que parecia absorver a própria luz da sala. Ele o guardou descontente no
bolso da jaqueta, e foi sentar-se num dos bancos de espera, desconsolado.
— Diabo! — Reclamou ao Bob — Não tenho mais nada. Perdi
35
MANUAL PARA INICIANTES NO INFERNO
o amor da minha vida, o dinheiro que tinha, e agora nem posso saber
como eu morri!
— Sem querer interromper, mas… O que porra é amor? — Bob
estava sentado em sua cadeira, quase como se estivesse deitado. Estava
ainda de ressaca, e não tinha vergonha em mostrá-lo.
— Ah… Bem, sabe o que é sexo, certo?
— Não.
— Vou começar por isso, então. Sexo é quando duas pessoas
proporcionam prazer uma à outra, até que cheguem ao clímax. Muitas
vezes, o macho da relação chega ao clímax antes da fêmea.
— E se forem dois machos? Ou duas fêmeas?
— Bem… Aí eu não sei. Mas você está me tirando do ponto! —
Reclamou.
— Pois bem, continue.
— Enfim. Amor é quando o desejo de fazer sexo com alguém,
ou transar, como chamam, se torna menos forte, mas é substituído por
um desejo extremamente forte de ficar perto da pessoa. Amor é isso: É
querer ficar perto.
Nota: Sinto-me no dever de avisá-los, leitores, que isso que Sid
narrou não é amor. Amor é quando o sexo deixa de ser divertido, porém
você continua com a mesma pessoa, por medo de não conseguir mais
sexo com outras pessoas.
— Vamos sair daqui, Bob. Não quero mais ver papéis, não se não
forem me ajudar a descobrir como morri.
— Sabe, tem algo que pode funcionar…
— Tem?! O quê? — Começou a sacudir Bob com força.
— Bem, você pode pedir ao Diabo por sua causa. Ele sabe a de
todos.
— Incrível! Vamos até ele agora!
— Ok, mas devo te avisar: A viagem será perigosa, e você poderá
descobrir, no final, aquilo que preferiria jamais saber… — Bob alertou,
sua voz agourenta.
— Por que essa voz engraçada?
— Ah. Bem… Não sei. Parecia o certo a fazer.
— Certo. Bem, aonde o Diabo mora?
— No fim do Inferno.
— E isso é…?

36
MANUAL PARA INICIANTES NO INFERNO
— Bem longe.
— Ah. Bem, não vamos desperdiçar tempo, então. Vamos até
ele!
E então eles começaram a ir até ele, embora preferissem voar
até ele, ou até mesmo rolar até ele: A jornada à pé era bem longa,
chata, tortuosa, e cheia daqueles caranguejos feios e dentuços também
conhecidos como aves desdentadas. Não que aves tenham dentes, claro.
Apenas uma fração delas os têm, e ainda assim, tais “Dentes” são mais
parecidos com bicos. De qualquer forma, eles começaram a jornada.

37
38
Madise Ruf Golum

Capítulo 1
Certo dia, num sarau literário promovido por um engenhoso
nobre que havia ganhado algumas medalhas em algum lugar, quando
procurava sugestões de presentes para meu pequeno Ren Netti, tive
contato, pela primeira vez, com a lenda do Cavaleiro M******. Era um
belo dia de sol, os pássaros estavam alegres e barulhentos, as nuvens
estavam entediantes e monótonas. Os detalhes daquele dia fatídico
estavam tão abundantes e expressivos, como sempre essas realizações
literárias costumam apresentar (em cores sortidas), que meu estado de
torpor só foi realmente quebrado com as palavras mágicas do anfitrião:
“Senhores... Hoje tenho um caso extremamente interessante...”
Rapidamente vi-me ser transportado a uma sala fidalga, com
cadeiras de madeira bem trabalhadas e alguns quadros em borrões
artísticos pregados na parede do outro lado da sala, junto com príncipes
e princesas ostentando seus bolores iridescentes. Quando as coisas
nitidizaram-se um pouco mais, eu pude ver claramente meu nobre
colega levantado com um considerável amontoado de folhas em sua
mão esquerda, meio amassadas e sujas de cousas mil. Ele usava um
cavanhaque inexpressivo que ganhava um volume exponencial a cada
visita que eu lhe fazia, dominando sua face seca e chupada, e como se
o quadro não fosse o suficiente para seu possuidor, ele fazia questão de
usar um robe pesado e desnecessário de pele de zebra ou leão, com sua
costura mal feita e mal realizada, sendo que assim eu podia ver sem
muitas dificuldades as reentrâncias fisiológicas do mesmo, em tons
carmesins gotejantes naquele piso xadrezado.
“O que tem nesses papeis?”, perguntou uma princesa que um dia
havia sido sensual e voluptuosa na medida certa.
“Tenho um caso que me tirou noites de sono, minha cara... Uma
história surpreendente e até hoje tida como mística, como um verdadeiro
milagre...”

Os papeis que se encontravam na mão de meu nobre colega

39
Madise Ruf Golum
foram a fonte primária para a empresa difícil e dura que foi recriar a
história deste Cavaleiro. Tive o auxílio de vários outros livros, mas
nenhum deles foi de tamanha importância, ajudando-me apenas na
parte que toca a geografia dos locais ou então a estrutura bem como
costumes, reinados e derivados dos locais citadinos ou rurais que o
Cavaleiro passou. Talvez seja de bom tom citar o livro Cavaleiros sem
Rumo que fala, em três linhas rápidas e efêmeras como abrir a janela
num dia calorento, de nosso nobre Cavaleiro de forma superficial
e indevida, conclamando-o de “o grande servo de Deus”. Os autores
de antigamente gostavam desses pequenos trocadilhos, dando um ar
amistoso à vida de suas pobres personagens-experiência.
Uma visita ao Museu de Armas também foi interessante
deveras, visto que lá consegui encontrar fragmentos da lança que muito
provavelmente nosso cavaleiro despedaçou quando descobriu o covil
daqueles seres terríveis que só o criador da humanidade pôde derruir – e
criar uma colônia de férias aquática.

A história do Cavaleiro M******, advindo do Reino de


G******, começa propriamente quando mesmo é expropriado. Segundo
os papeis de meu nobre colega, após uma longa conversa com o Rei, o
Cavaleiro sai do reino com suas armas e seu pangaré dolorido. Nada
disso pude confirmar com presteza, mas acabei por abocanhar uma
versão de que o Cavaleiro foi antes conversar com a Rainha, entalada em
sua cama de núpcias fantasmagóricas, e após esse derradeiro encontro,
tivemos de fato a conversa com o Rei.
Tais aspectos acabam por se mostrar irrelevantes e irrisórios, pois
o que realmente necessitamos saber é de algumas informações prévias
antes de começarmos realmente narrar a aventura do Cavaleiro.
A primeira delas é que o Rei era conhecido, e ainda o é, em
seus reinos, como uma pessoa bondosa, de bom coração, que protege
os pobres e consegue manter-se firme e forte sem ter que apelar para
o poderio bélico. A política de boa vizinhança inaugurada pelo Rei
perdurou durante muito tempo, e alguns estudiosos costumam citar
o redondo cento e cinquenta, enquanto outros dizem que isso acaba
sendo perfeitamente contestável, se considerarmos a terrível invasão de
quatro soldados inimigos na casa de duas camponesas solteironas. Toda
essa história é tão bonita e falsa como o quadro do rei que o mostra

40
Madise Ruf Golum
com barba trançada e um cabelo dourado e encaracolado, como se fosse
uma peruca de boneca. A verdade que realmente pude constatar era
que o reino estava em profunda crise econômica e social, e se ondas de
assassinatos e roubos nunca aconteceram, era porque um gatuno tinha
noção do que conseguiria se decidisse tombar para esta vereda: algumas
poucas moedas que logo seriam consumidas ao se comprar um pedaço
duro de pão. O Rei estava enfraquecido fisicamente, com doenças que os
curandeiros protelavam e os padres execravam, e a onda de insatisfação
controlava-se cada vez que o Rei parecia tombar inerte no chão durante
seus discursos dominicais. Uma fragmentação lenta e sorrateira do
reino do Rei, iniciada no leste por uma legião de cavaleiros sem cavalos
e terminada no sul por um batalhão enfurecido bradando suas clavas
ocas e sujas de lama, colocava em xeque o poderio político de nosso
pobre velhinho, sendo velhinho este gordo e meio abobalhado, com um
aspecto inchado e nem um pouco heroico, e onde tínhamos uma barba
trançada como um viking comedor de queijo temos agora uns fiapos
heteromórficos de cabelo facial, sobrepostos numa região rósea imbecil.
A segunda delas é que a Rainha seguia padrões corpóreos
parecidos com os do Rei, com a diferença desta possuir dois belíssimos
e engordurados olhos azuis.
A terceira delas é que as armas bem como a armadura do
Cavaleiro parecem ter tido procedência de seu tetravô distante e
inexistente do ponto de vista bibliográfico. Se os moldes encontrados na
lança do Museu mostrarem-se confiáveis, então provavelmente teremos
um festival de sucata e traças que comem ferro nas sextas-feiras.
É claro que existem outros detalhes e minúcias, como por
exemplo a história do reino ou o nascimento e etc do Cavaleiro, mas
não queremos engrandecer nem espichar o que não precisa sê-lo feito.
Nosso Cavaleiro picou a mula do reino e é disso o que importante por
hora.

Os arredores do Reino de G****** aparentam uma


monotonia irritante e muito bem encontrada nos desenhos infantis.
Talvez seja porque o local realmente seja tudo isso. Continuar a narrar
a viagem de nosso Cavaleiro, como meu nobre colega o fez, sem antes
ditar de forma minuciosa e geográfica os aspectos paisagísticos do que
ele viu e do que ele presenciou é empresa falha. Para tais males, consegui

41
Madise Ruf Golum
um mapa de análises geográficas da região onde o pequeno reino inseria-
se, sendo englobado por uma mancha cinzenta, mas para meu grandioso
pesar, após uma visita aos campos em questão, o que era um conjunto de
árvores agigantadas e soberanas demonstrou-se deveras patético.
O Reino de G****** está, tomando o castelo como referência, na
frente da floresta de coníferas vasta e exuberante do reino vizinho que
meu mapa gentilmente deturpou, e atrás de outro reino que compartilha
do Reino de G****** sua monotonia campestre, mas desfruta como
atrativo o fato de possuir um gigantesco lago que ocupa quase sessenta
porcento de suas terras. É possível que no passado esse lago tenha
extravasado e jogado seus tentáculos dentro do Reino de G******, pois
que em algumas partes temos uma exuberância de flores e panapanãs
um tanto quanto incomum. Esse possível alongamento do lago talvez
seja o responsável também por um pequeno açude solitário no quase
extremo do segundo quadrante do reino.
Aproveitando esta divisão em quadrantes, podemos dizer que no
terceiro quadrante, mais ou menos no meio, o castelo finca-se na terra
pateticamente. No quarto quadrante temos uma tentativa risível de se
criar um campo de caça, mas tudo o que se resultou foi numa marafona
de árvores e arvoredos. O segundo quadrante, com uma vila em sua
quase extremidade, é o ponto de parada de nosso Cavaleiro, mas suas
redondezas apresentam algumas pequenas plantações de uva murchas
e uma criação de gado que nunca engorda, e seus moradores dizem
“xavaleiro”.
O formato meio ondulado do terreno, como se o mesmo fosse
um tapete enrugado, combinado com suas árvores estrategicamente
posicionadas, mas sempre em número escasso, e uma brisa que sempre
alisa a cabeleira da relva, dão ao cenário um tom bastante comum e
arquetípico. Nem mesmo as pequenas gramíneas que crescem e se
entrelaçam e morrem, ficando amarelas e feiosas, quebradiças e frágeis,
tingindo o quadro com algumas gotas etéreas, deixariam que esse
sentimento parasse de azucrinar o interlocutor.
No ponto central do reino, é possível observar-se a torre do
castelo bem como, num pequeno alfinete micro, a torre da igreja do
vilarejo distante. Um serrilhado das árvores natalinas no fundo, querendo
serrar o céu de chuva que aquela floresta sempre oferece, fazendo do céu
um degradê tendendo à monocromia tempestiva. A torre cinzenta com

42
Madise Ruf Golum
um arqueiro fatídico do outro reino, o do lago cristalino em suas bordas
e densamente esverdeado em sua metade abissal, talvez da mesma altura
que a torre do reino presente. Podemos observar também as gramíneas
irem unindo-se até se transformarem numa superfície lisa e homogênea,
mudando de cor com a direção do vento. Até mesmo os pontos cinzentos
ou amarelados destabilizam-se e viram palhetas e tonalidades, sombras
do que podemos observar agora. Os morros planificados sendo cobertos
desta fusão textualística, procedidos pelas escarpas e cordilheiras no
infinito do horizonte, apresentando pontinhos brancos acima de seus
outros inúmeros e desconexos pontinhos pretos e cinzentos: o fator
monocromático agora no plano terrestre, no plano do observador.
No final das contas, tudo naquelas terras tendia a essa binaridade
de cores, e quando tentei fazer uma aquarela em minha sofrível estada de
três dias naquele reino, consegui apenas secar dois tubos quase gêmeos
de tinta.

As anotações de meu nobre colega diziam:


“PRIMEIRA NOITE: Lua cheia, possível chuva, (checar
condições climáticas), o cavaleiro não tem onde dormir ou onde
permanecer. Está cansado de seu primeiro dia de viagem, donde percorreu
os aproximados sessenta quilômetros. Não vê a hora de encontrar uma
cama quentinha, com cobertor e um bom copo d'água para confortá-lo.
Oh! Que terrível os sentimentos deste cavaleiro ao ver apenas que nada
ao seu redor poderia aprazá-lo, e tudo o que ele pode fazer é deitar e
tentar dormir. É nessa hora de desespero, de terrível desespero, que o
cavaleiro avista uma caverna e decide dormir na mesma, ao lado dos
morcegos monstruosos e disformes bem como dos perigos mil que uma
caverna demonstra. (Checar se a caverna exi...).”
Segundo meus estudos e pesquisas, o cavaleiro percorreu oito
quilômetros numa trajetória ziguezagueante e torta, ao invés dos sessenta
magníficos de meu nobre colega. Pude checar também que o Reino de
G****** não possui nenhuma caverna ou princípio de uma mesma, e
segundo meus cálculos, o Cavaleiro deve ter dormido embaixo de uma
árvore de tamanho considerável que hoje apresenta apenas seu tronco
marrom cocô abruptamente findado. Tenho minhas dúvidas em relação
à lua cheia e não acredito que estava realmente chuvoso o tempo.
Em conversa com um camponês que tentava engordar o que não

43
Madise Ruf Golum
podia sê-lo, recebi a informação que no Reino de G******, antigamente,
era muito comum, antes de dormir, a recitação de alguns versos dum
soneto débil e cacofônico:

Noite, noite de luar, minha noite


A brilhar no céu gorducho e grandíloquo,
Tão longínquo que se faz puro afoite...
Oh!, meu ouro negro a se fazer iníquo!

Parece realmente sobrenatural a possibilidade de uma criança


dizer e se felicitar com a palavra grandíloquo ou a breve e gasosa
iníquo. Não se deve confiar muito em camponeses, e por isso deixo essa
passagem magnificamente encerrada: a primeira noite do Cavaleiro, débil
e contenciosa, principiou-se de forma burlesca; mas o que realmente
deu à mesma suas tonalidades gozadas foi o que se seguiu à primeira
tentativa de sono do Cavaleiro bem como o que o mesmo banzou e se
indagou naquela noite de “lua cheia”...

44
45
Raios de um Certo Tempo

Raios de um Certo Tempo


Em um jardim bem iluminado, as diversas cores se
misturavam com os diversos cheiros que ali haviam, onde um homem
estava sentado na grama, cuidando de suas criações.
Ele não pensava em suas preocupações naquele momento, não
pensava que aquilo que fazia era parte de seu trabalho... Ele sentia que
queria ficar lá, cuidando daqueles que agradeciam através de sua beleza
e de seu perfume.
O céu foi escurecendo, com as nuvens claras se misturando entre
si, e criando formas mais densas e obscuras...
E então o homem foi empurrado pela tempestade que estava
vindo, mas este não quis deixar o lugar, porém ficou logo sem saber o
que fazer para protegê-las da agressão dos ventos.
O cheiro do jardim foi misturado com o cheiro dos raios
fortes que vinham em direção ao homem, mas ele ficou em seu lugar,
preocupado com suas criações enquanto seu corpo era molhado por
completo...
Foi então que este viu um raio atingindo o seu mais precioso
bem, junto consigo mesmo.
A escuridão tomou conta do local, o homem estava sentindo
apenas gotas mornas passando por seu corpo.
O barulho dos trovões distantes enfraquecia, enquanto o cheiro
do jardim se fortalecia. O raio que o havia atingido parecia ter sido o
último visível daquele momento.
O silêncio se fez, e o homem, deitado por conta do cansaço, só
era capaz de sentir gotas mornas respingando no chão...
Após o silêncio ter permanecido por um tempo, mais raios
saíram no céu, mas estes não dependiam da forma das nuvens, estes
aqueciam as plantas depois do que tinham passado...
Ao ver tais raios, o homem deixou que este tempo cuidasse por
uns instantes de suas criações, e, então, fechou os olhos...
46
Pingente de Ouro

Pingente de Ouro
Quem olhasse para o telhado daquela casa simples, naquela
cidade próxima a capital da Espanha, veria um homem vestido somente
com sua calça, uma bota e um chapéu, o restante de sua roupa, incluindo
o outro pé da bota e seu florete, estavam amontoados em suas mãos.
Ele corria pelo telhado naquela noite enluarada. Poucos segundos
após o semi-desnudo ganhar o telhado, outro homem saiu pela mesma
janela. Afoito para alcançar o motivo de sua desonra, o outro homem
teve certa dificuldade para subir ao telhado, mas acabou conseguindo,
vendo já sobre o telhado da outra casa o canalha voltando para pegar seu
chapéu que caira de sua cabeça, deixando a amostra seu cabelo castanho
despenteado.
- Volte aqui se for homem! Seu miserável! – Disse o homem que
acabara de subir no telhado de sua própria casa.
Colocou rapidamente o chapéu na cabeça e, fingindo não ouvir
ao galhudo, deu meia volta e continuou sua fuga nada silenciosa pelos
telhados da vizinhança. Com a gritaria e toda a barulheira feita, as
pessoas começaram a sair e logo avistaram o semi-desnudo e seu caçador
pulando por sobre as casas. E então todos entenderam o que aquilo
significava. Don Miguel de Apoinar, dono da vinícola, havia ganho
um presente especial de sua mulher, apêndices córneos para guarnecer
sua fronte. O problema era que Don Miguel acabara de colocar dois
faroletes pendurados em seu novo adorno, avisando a todos sobre eles.
Vincente corria por sobre os telhados segurando suas coisas da
melhor maneira possível, no entanto, na pressa de sair do quarto de
Micaela antes que seu marido, Don Miguel, os encontrasse acabou não
conseguindo afivelar seu cinto, o que dificultava a corrida por sobre os
telhados carregando suas coisas e segurando seu chapéu, ocasionando
algumas quedas de sua calça durante o percurso. Assim não demorou
nada até que Don Miguel, mesmo sendo mais velho, alcança-se Vincente,
que não teve escolha a não ser largar suas coisas no telhado e sacar seu
florete, enquanto tentava afivelar seu cinto.
47
Pingente de Ouro
- Seu bastardo! – esbravejou Don Miguel – Vais sentir o sabor
de minha espada!
- Don Miguel, isso é realmente necessário? – perguntou Vincente
enquanto terminava de afivelar seu cinto.
O pobre desonrado respondeu a pergunta do jovem garanhão
atacando-o sem pestanejar com seu florete, que foi defendido. Vincente
tentou contra atacar, mas seu pé descalço escorregou no limo que se
formou nas telhas velhas da casa, facilitando a vida do marido traído
que desferiu mais um ataque.O florete de Don Miguel passou raspando
o pescoço de Vincente, não fosse pelo escorregão sua cabeça estaria
rolando junto com seu chapéu telhado abaixo. O jovem firmou seu
pé novamente e contra-atacou, obrigando o dono da vinícola a recuar
alguns centímetros. A troca de golpes passou a ser constante.
Lá de baixo uma senhora e seu marido assistiam a batalha sobre
os telhados juntos a pequena aglomeração que se formava na praça. O
burburinho era geral, muitos julgavam Micaela, a jovem e voluptuosa
mulher de Don Miguel, enquanto as más línguas dos malandros da
cidade reclamavam não serem eles a esquentarem a cama da senhora
Apoinar.
- Aquele não é Vincente? – perguntou baixinho a senhora que
assistia ao combate da praça a outra mulher da vizinhança.
- Como sabes se ele esta de costas? – retrucou seu marido que
havia ouvido a pergunta de sua esposa a vizinha.
A mulher enrubesceu e não respondeu, nem mesmo precisava
depois de a cor vermelha tomar-lhe a face. Seu marido então correu para
dentro casa, ela sabia o que ele ia fazer e por isso correu para dentro atrás
de seu marido. A vizinha ficou olhando incrédula para a cena disse para
si mesma:
- Ah, Vincente! Você me paga, até com a tonta da Carlota tu hás
desposado!
Micaela olhava pela janela de seu quarto, enrolada no lençol
ainda quente, testemunha de seu adultério, e via, algumas casas a frente,
seu marido lutando contra seu amante que brigava não só contra o
florete de Don Miguel, mas também contra o próprio telhado que lhe
aplicava rasteiras a cada segundo da batalha.
A essa altura, praticamente toda a vizinhança já estava
48
Pingente de Ouro
acompanhando o duelo sobre os telhados a luz do luar e da fogueira
que ardia no centro da praça. Alguns esbravejavam que deveriam subir e
ajudar Don Miguel, mas eram imediatamente desencorajados por outros
que diziam ser uma questão de honra, e que o dono da vinícola deveria
lutar sozinho. Vincente já estava com cortes nos braços e abdômen.
A falta do outro pé da bota o estava deixando em clara desvantagem
naquele telhado escorregadio e não havia a menor possibilidade de
calçá-la ali, no meio do duelo. O jeito era tentar acabar logo com o
combate ou ele seria morto, ou por Don Miguel de Apoinar, ou pelo
telhado traiçoeiro. O jovem garanhão aproveitou uma pequena brecha
nos ataques de seu inimigo e trouxe junto a sua boca o pingente que
carregava há muitos anos pendurado em seu pescoço, beijando-o. Esse
pingente de ouro era uma adaga encravada em uma máscara de teatro
veneziana, era o símbolo de Lothur, deus da trapaça e dos trapaceiros.
O dono da vinícola avançou com toda sua fúria sobre Vincente,
imaginando que seu ato havia sido de puro desdém. O jovem quase foi
ao chão pela enésima vez, mas conseguiu manter o equilíbrio, voltando
ao combate, e conseguindo pela primeira vez acertar o marido de sua
amante no combate, cortando-lhe o braço. Imediatamente a manga
branca da camisa de Don Miguel ficou avermelhada.
O tilintar do metal das espadas atraia agora pessoas de vários
locais próximos da cidade e não mais somente os vizinhos, até mesmo
um homem que carregava feno em uma carriola parara para assistir ao
duelo nas alturas. E nesse momento o marido de Carlota retornava do
interior de sua casa, carregando com sigo sua carabina extremamente
brilhante naquela noite.
- Pare com isso, Esteban! Meu marido, tu hás entendido tudo
errado!
- Calada mulher! – ordenou Esteban – vou acabar logo com isso.
Esteban mirou com sua carabina as costas de Vincente, que alheio
a presença do outro contemplado no consorcio dos chifres, continuava
sua batalha contra o marido enfurecido de Micaela. Ele então puxou o
gatilho. No entanto, um milésimo de segundo antes de Esteban puxar o
gatilho da carabina, o equilíbrio de Vincente foi vencido pela insistência
do telhado e ele escorreu telhado abaixo, levando junto consigo para o
chão suas coisas que haviam caído sobre o telhado no inicio do combate.

49
Pingente de Ouro
Caiu do segundo andar da casa direto para dentro da carroça cheia de
feno. Don Miguel não teve a mesma sorte. O tiro da carabina acertou-o
em cheio, atravessando seu coração, terminando de parti-lo ao meio.
Caiu rolando do telhado direto para o chão de paralelepípedos das ruas
de Salamanca.
O povo assistiu a queda sem acreditar no que acabavam de ver,
enquanto ouviam os gritos desesperados de Micaela de Apoinar, a mais
nova viúva de Salamanca, e os gritos de mais uma dúzia de jovens da
cidade. Esteban recarregava sua carabina, era o único que se mexia na
multidão. Vincente levantou a cabeça de dentro do feno, seu chapéu
estava torto em sua cabeça e cheio de novos adornos na cor palha, e a
primeira coisa que viu foi a cano da carabina tão próximo de sua cara
quanto à espada de Don Miguel nunca chegara a estar.
- Saia da carroça seu maldito. – Ordenou Esteban.
Não tendo escolha ele juntou suas poucas coisas que estavam
sobre o feno e saiu da carroça. Em uma mão seu florete sujo com o
sangue do dono da vinícola, na outra um pé de bota, uma camisa, um
colete e uma capa.
- Ajoelhe-se e faça sua ultima oração, seu bastardo!
O jovem semi-desnudo ajoelhou-se e soltou suas coisas ao lado de
seu corpo cansado da batalha, da fuga e do esporte que vinha praticando
a tarde toda com a viúva do finado Miguel de Apoinar. Entregue a seu
destino, Vincente beijou novamente seu pingente e agradeceu:
- Obrigado meu senhor, pelas vezes que me livrastes, mas acho
que dessa vez eu devo ter abusado. – e olhou nos olhos de seu algoz.
Esteban puxou o gatilho, uma, duas vezes, e nenhum som saiu
da carabina. O povo olho espantado para a lustrosa arma de fogo recém
adquirida pelo marido de Carlota, que olhava incrédulo para a arma.
Vincente, mais do que depressa estava novamente de pé, com todas as
suas coisas em mãos, e sem nem mesmo pensar no que faria, correu em
direção a carroça de feno subiu por ela na casa em que havia iniciado a
batalha contra Don Miguel e em poucos segundos estava novamente no
telhado calçando o segundo pé de sua bota.
Esteban mirou novamente, dessa vez a carabina disparou, jogando
para o alto a telha onde o jovem havia se apoiado para levantar. Com
o novo disparo, Vincente saiu em disparada pelos telhados, voltando
50
Pingente de Ouro
apenas para pegar seu chapéu que caira durante a arrancada. Passou por
sobre o telhado da casa de Micaela e parou por alguns segundos.
- Nos vemos em breve Micaela, eu lhe mando um bilhete para
nos encontrarmos.
Um novo disparo passou zunindo pela orelha de Vincente, que
sem mais delongas voltou a correr por sobre as casas, nem sequer ouvindo
a resposta da jovem viúva. Com um sorriso no rosto foi sumindo além
dos telhados de Salamanca, beijando seu pingente de ouro, símbolo de
Lothur.
Micaela aguardou seu amante por muitas noites encostada à
janela. Vincente nunca escreveu um único bilhete dos que prometera a
suas amantes.

51
O Velho e o sonho

O Velho e o Sonho
Ti Júlio era um daqueles velhinhos simpáticos
que toda a vila conhecia e gostava de cumprimentar.
Às sete da manhã já estava a pé, com a cabeça encaminhada
para o café que ficava ao fundo da rua, ansioso pelo néctar matinal que
o ia despertar. Desde que a sua mulher falecera, e já lá iam uns bons dez
anos, nunca mais o ti Júlio voltara a ser o mesmo. Assim, como maior
consolo, tinha o copo de vinho que lhe matava a fome e a alma logo
pela manhã. O seu cão, um puro-sangue rafeiro, era a única criatura que
sempre acompanhava as caminhadas do velho onde quer que este fosse.
Longe iam os tempos em que o ti Júlio conseguia deslocar-se
sem a dependência de uma rígida bengala.
Quanto à sua verdadeira idade, um dos maiores enigmas da vila,
dado que todos sabiam da vida uns dos outros, ninguém a conhecia
exactamente. Especulava-se que no início do século já ele mastigava
daquele duro pão caseiro, tão abundante na época.
Não lhe eram conhecidos filhos, pelo menos legítimos, apesar de
correr fama de que nos tempos de juventude ele tinha sido um grande
conquistador de mulheres. Os poucos, ainda vivos, que o conheciam
dessa época, especulavam mesmo que ele deixara família num qualquer
país europeu – é que o ti Júlio tinha sido dos poucos portugueses a
combater na Segunda Guerra Mundial (há mesmo quem diga que foi
espião inglês).
Quando interpelado acerca destes assuntos, o ti Júlio respondia
franzindo a testa e acabando de enrolar o seu cigarro: - Antes tivesse
sido assim e hoje teria alguém que tomasse conta de mim!
É que ele vivia sozinho na sua casa, que devia ter também a sua
idade devido ao aspecto gasto que apresentava. No entanto, era uma
bonita habitação que todos os vizinhos acabavam por visitar, pelo menos
uma vez por mês. Não lhe faltavam visitas, visto ser bastante querido
pela população e, além disso, ele havia sido bafejado à nascença com
o dom da adivinhação. Desta forma, as pessoas gostavam de conviver
52
O Velho e o sonho
com ele e receber os seus conselhos. Não era propriamente um bruxo ou
feiticeiro, era apenas um homem que gostava de ajudar os outros e era
bem acolhido nesta sua posição.
Apesar de toda a admiração e carinho que a vila tinha por ele,
o ti Júlio não escondia aquela solidão de quem vive sozinho a contar os
minutos que passam à espera que chegue o seu. Era de facto penoso vê-
lo a caminhar pela rua, com o cigarro a queimar-lhe os lábios, a observar
os jovens casais que passeavam adormecidos, ludibriados pela risonha
inocência da juventude, longe de se imaginarem flácidos e curvados. -
Como é ingrata a vida! - murmurava o ti Júlio para aqueles que estivessem
ao seu lado.
Mas era das crianças que ele gostava mais. Tinham um forte
efeito de alegria no rosto do velho, quase como se lhe nascesse uma
alma nova. E como elas adoravam também estar junto daquele homem,
que quase sempre andava com os bolsos cheios daquelas guloseimas que
tanto significado têm para as crianças. Havia mesmo algumas que lhe
chamavam “pai natal”, facto que só o deixava ainda mais feliz.
Por falar em Natal… essa sim, era uma, se não a maior, das
festividades que o deixavam extremamente triste. É certo que, todos
os anos, ele o passava em casa do único irmão, mais novo, onde reinava
também o apreço pelo velho homem. Mas não era a mesma coisa, sentia-
se uma espécie de obrigação para a família. – Se ao menos a minha
mulher ainda fosse viva… - dizia ele com um nostálgico tom vocal que
por vezes lhe avermelhava os olhos.
E assim tinham decorrido os últimos Natais do ti Júlio. No início
de cada novo ano ele deixava a casa do irmão e voltava ao seu plácido
recanto de saudade. Não havia nada a fazer, era a vida. Antes isso do que
acabar num lar rodeado de desconhecidos.
Passado uma semana do início de cada mês de Janeiro, os
habitantes da vila, e mesmo alguns de fora, acorriam à sua casa para que
ele, através da sua arte, lhes ditasse conselhos para o novo ano.
De bom grado o ti Júlio recebia todas as pessoas em casa, sem
nenhum tipo de exclusões, pois para ele todas as criaturas deviam ser
tratadas de igual modo. Nos tempos idos da guerra e mais tarde no auge
do fascismo nacional, também ele havia experimentado a amargura da
fome e, assim sendo, não era de estranhar a afluência de pobres que o

53
O Velho e o sonho
visitavam. Mas os mais afortunados também não dispensavam a habitual
procura ao velho sábio. Certa vez, até um membro da monarquia
portuguesa o procurou.
Por vezes, as expectativas das pessoas eram infrutíferas, mas o ti
Júlio avisava-as imediata e antecipadamente de que podia não conseguir
ver alguma coisa. A sua honestidade não lhe permitia trair a confiança
das pessoas com historiazinhas ridículas, como tantos falsários fazem.
As certezas também não existiam, ou seja, o velho ancião não incutia
fatalidades do destino às manipuláveis mentes dos ouvintes. Talvez não
fossem mentes manipuláveis, apenas curiosos com excesso de confiança.
Mas não, nunca o ti Júlio dissertara certezas, deixava-se apenas ficar por
prólogos de suposição.
Aspecto a salientar, é o facto de o ti Júlio, apesar de não ser
um homem rico, também não cobrar dinheiro aos seus procuradores.
Aceitava por vezes as oferendas que alguém insistia em lhe deixar.
A reforma que o alimentava advinha de uma profissão na função
pública, ou qualquer um desses empregos a que o Estado chama públicos.
Devido à escassez de informações acerca do passado profissional do
homem, é impossível dizer com exactidão qual era o tipo de trabalho.
Como humano que era também tinha os seus defeitos, mas dada
a irrelevância dos ditos, não existe qualquer interesse em expressá-los.

Certa manhã,o ti Júlio não obedeceu à tradição de companheirismo


que o conduzia diariamente ao matinal copo. Isto poderia ser uma
atitude extremamente banal numa outra pessoa qualquer, mas todos na
vila conheciam a veemência com que o velho aderia ao ritual. Tanto que,
pelas nove da manhã, todo o café - ou “tasca”, como lhe queiram chamar
-, se questionava sobre o que lhe teria acontecido.
Em dez anos de fidelidade, ele nunca havia faltado a uma manhã
de líquida alvorada.
- O raio do velho está-nos a falhar! – dizia o dono do
estabelecimento para a desdentada matilha que ornamentava as mesas.
- Se calhar morreu e não nos disse nada! – retorquia um outro
velho, despoletando com esta afirmação uma onda de gargalhadas e
tosse por todos os convivas.

54
O Velho e o sonho
Mas estas e outras expressões não conseguiam esconder a
geral preocupação que aumentava a cada minuto que passava, sem que
houvesse notícias do ti Júlio. Era preciso que alguém se levantasse para
ir desvendar o enigma. Não esqueçamos que este “levantar” está a ser
referido a uma comunidade de pessoas bastante idosas que já não têm a
dinâmica de outrora.
Imediatamente, o João ofereceu-se para a tarefa. João era também
bastante idoso e conhecia o ti Júlio há largos anos, daí o forte laço de
amizade que o levou a tomar a iniciativa.
Levantou-se da cadeira onde estava sentado e rumou à casa do ti
Júlio, deixando a promessa de trazer novidades. Eram ainda quinhentos
metros de distância, que se multiplicavam em tempo devido às lentas
passadas, o que permitia ao velho João magicar as possíveis causas do
atraso do amigo.
É claro que nestes momentos o pessimismo é quem seduz mais
rapidamente a imaginação.
Quando finalmente chegou junto da casa reparou que as janelas
ainda não estavam abertas, aumentando assim o seu temor em relação à
saúde do companheiro. Bateu à porta, energicamente, ao mesmo tempo
que clamava o nome de Júlio em voz alta. Ninguém o atendia e, então,
ao passar a mão pela maçaneta da porta principal, percebeu que esta
estava aberta. Este facto deixava-o um pouco mais calmo, pois se a porta
estava aberta isso significava que alguém tinha entrado ou saído.
Entrou desta forma pela casa dentro e foi deparar com o
amigo Júlio, muito pensativamente, sentado no sofá da sala. O silêncio
ambientava o ar respirável.
- Então Júlio? Estou farto de bater à porta e chamar, e tu aqui
sentado não me ouvias? Sentes-te bem? – Perguntava o intrigado João.
-Não te preocupes João, está tudo bem. Quis apenas ficar aqui
sozinho a pensar. Desculpa se não te fui abrir a porta.
- Estávamos todos preocupados contigo. O pessoal estranhou
não teres ido beber hoje de manhã, pensámos até que algo de mal te
tivesse acontecido. De certeza que estás bem?
- Sabes João, tive um sonho. Um estranho sonho do qual não me
lembro, mas tenho a certeza de que é desgraça. – disse o pensativo Júlio
com um olhar assustado e ao mesmo tempo distante.
55
O Velho e o sonho
- Lá estás tu outra vez! És um velho maluco que não tem mais
nada que fazer. Anda mas é beber um copo que estão todos à nossa
espera.
- Mas João conhecia bem os dons do amigo. Estas palavras eram
proferidas apenas para impedir o iminente pânico.
Mas o ti Júlio continuava a insistir na sinistralidade profética da
sua visão nocturna. Só após terem passado quinze minutos de diálogo e
insistência é que o eremita se resolveu a sair de casa.
Ao vê-los chegar, os ocupantes do café respiraram de alívio e
após o preocupado curto interrogatório a que sujeitaram o ti Júlio, tudo
voltou ao normal.
Os dias decorreram normalmente, o velhote nunca mais se
atrasou, mas ao seu amigo João continuava a confidenciar a repetição do
mesmo sonho. Pelo menos, três vezes por semana, ele era apoquentado
com o visionamento indecifrável da estranha mensagem.
Assim se passou um mês, durante o qual o enigmático sonho
aumentara de intensidade. Não existiam dúvidas algumas acerca do mau
presságio que ele tentava transmitir, no entanto eram precisos dados
mais específicos quanto à sua descrição.
Este fato deixava em inúmeras ocasiões o ti Júlio completamente
alheado às conversas que decorriam à sua volta, mas tudo continuava a
seguir o seu rumo habitual, o mesmo desenlace rotineiro.

Era domingo e o ti Júlio, como era habitual todos os sétimos


dias, foi descansar para junto da lagoa, onde além de proceder às suas
passeatas reflexivas podia também encontrar e conviver com algumas
das pessoas da vila, nomeadamente as crianças que se iam banhar ao
local. Era uma lagoa limpa e brilhante sob as tardes de sol, circundada
por um pequeno parque que lhe trazia um verde de vida.
Várias famílias aproveitavam aquela amostra de paraíso para
fazerem piqueniques. O ti Júlio, querido como era por todos, lá ia
distribuindo os seus “bons dias, como está” pelos sucessivos grupos que
lhe acenavam. Era do conhecimento de toda a população da vila que o
ti Júlio não gostava que lhe falassem em assuntos relacionados com os
seus dons de previsão durante estes seus passeios dominicais.

56
Mas este domingo tinha algo de enigmático, algo que lhe
causara, ao levantar nessa manhã, um forte arrepio. O sonho que tanto
o atormentava, apenas lhe deixava visões de uma pouco clara desgraça.
Talvez a morte de alguém, mas era impossível lembrar-se de mais
pormenores do sombrio sono. Ele olhava, caminhava, pensava e cada
vez mais sentia um estranho aperto de inexplicável. Quase ignorou a
passagem do pequeno Afonso, que era um dos miúdos por quem ele
tinha predilecção.
- Bom dia ti Júlio! – Interpelou o petiz.
- Ah! Bom dia Afonso! – Respondeu após alguns segundos de
hesitação.
- Quer vir nadar? A água está morna!
- Ao fazer a pergunta, o pequeno Afonso sabia que a resposta
seria negativa, mas era apenas um modo de meter conversa com o afável
velho. Afonso era uma criança inteligente, facto que talvez levasse o
idoso sábio a apreciar as conversas que tinha com o miúdo. Era órfão
desde os dois meses, visto os pais terem morrido de acidente há dez anos.
Vivia agora com a avó, uma simpática senhora que o ti Júlio conhecia
há bastantes anos. Não havia dúvidas de que aquela era uma criança
especial; Afonso não o procurava para pedir doces, como as outras
crianças, ou conselhos como os adultos. Tentava apenas saber mais, e
quem melhor para lhe ensinar senão o paciente Júlio? Havia mesmo
quem afirmasse que aquele pequeno ia ser o sucessor do ti Júlio.
Em seguida, o ti Júlio voltou a concentrar-se nos seus
pensamentos, ignorando novamente o que o rodeava. Ele precisava de
respostas, de pistas que o pudessem conduzir a alguma conclusão.
Aproveitou para se sentar num banco de jardim, no qual construiu
um dos seus engenhosos cigarros, e pôs-se a analisar minuciosamente
as inconsciências e manias das pessoas à sua volta. À medida que o
amortalhado cigarro decrescia na cremação do seu véu, ele deixava-se
atrair pelos franzires de testa de uma mulher, que conversava no banco
ao lado com outra, e também pelo rítmico bater de pé de um homem
que estava sentado do outro lado.
Assim passaram alguns minutos de serena tranquilidade, em que
o canto dos pássaros ajudou a sonorizar a harmonia vigente.
Começou então o velho a reparar na tumultuosa confusão que se
57
gerava alguns metros à sua frente.
Ouviam-se algumas vozes exaltadas que rompiam o antecessor
silêncio. Não havia dúvidas de que algo estranho estava a acontecer e,
movido pela curiosidade, o velho levantou-se para tentar compreender
qual o motivo da inquietação.
Alguns pedidos de ajuda começaram a ecoar do núcleo da obscura
concentração populacional. Eram a prova de que algum problema estava
a acontecer e, assim sendo, o ti Júlio achou-se na obrigação de ir verificar
a ocorrência.
Cruzou-se então com uma jovem, que corria desenfreadamente
com uns longos cabelos soltos que soluçavam ao vento, a pedir ajuda a
todos quantos encontrava pelo seu percurso.
Da sua boca apenas se ouvia:
- Acudam que ele está-se a afogar! Venham! Depressa!
Estas palavras deixaram na cabeça de Júlio uma inesperada
preocupação. Era preciso que ele chegasse rapidamente ao local da
sinistralidade.
Em poucos segundos completou a sua empenhada viagem e
furou pela incontrolável multidão. Olhou para o centro da lagoa e sofreu
o estridente choque que é sentido ao deparar com uma situação deste
tipo. Era o pequeno Afonso que estava dentro de água a pedir ajuda.
Ele tinha nadado até à parte mais funda da lagoa e agora não conseguia
voltar devido ao cansaço, estava-se a afogar. O pânico rodeava a lagoa
na voz das pessoas que observavam e pediam ajuda. Não havia ninguém
dentro de água nesse momento, uma estranha coincidência do destino.
Era preciso que alguém o fosse buscar rapidamente, pois ele estava cada
vez mais aflito.
Assim que viu Afonso pedir ajuda, o velho homem percebeu
que os seus atormentados pesadelos anunciavam a morte da criança.
A mesma criança que ainda há pouco lhe tinha falado. Se ele tivesse
decifrado o sonho mais cedo talvez tivesse conseguido impedir a trágica
consumação. Mas não. Era tarde.
De certa forma, o ti Júlio sentia-se responsável pelo
acontecimento. Só havia uma única hipótese, tentar salvar o miúdo do
seu fatídico destino.

58
Num gesto repentino, que só a possessão pela coragem consegue,
e antes que alguém desferisse um salto de salvação, o velhote lançou-se
à água e nadou em direcção ao órfão. Foram segundos de espanto e
apatia, pois ninguém esperava ver o corpo gasto do velho a desbravar tão
fervorosamente as águas.
O som das braçadas a chocar na água provocava uma desesperante
distensão de tempo na mente do ti Júlio.
Alcançou finalmente o assustado menino, que movimentava
desesperadamente os braços em todas as direcções, e tentou puxá-lo
para terra. Antes de alcançarem as margens da lagoa, e tendo em conta
o pânico da criança, os dois ainda ficaram submersos por duas vezes.
Quando finalmente chegaram a terra firme, todos correram a
ajudá-los. O pequeno tossia. O velho morria, mas feliz. O seu sonho não
tinha previsto a morte de Afonso, mas sim a sua.

Hoje, dez anos passados sobre o enterrar do ti Júlio, um jovem


rapaz de nome Afonso é procurado pelos mesmos fiéis do falecido
homem. Dizem que o rapaz tem dons de adivinhação.

59
60

Você também pode gostar