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O desmatamento é cultural?
Renata Lacerda
11/12/2019
Link: https://www.deviante.com.br/noticias/o-desmatamento-e-cultural/
Choques de culturas
Conversando com gringos, você já ouviu que brasileiro adora um cafezinho? Já
ouviu reclamarem do nosso “jeitinho” de pagar um cafezinho pro policial ou pro
flanelinha? Ou que só falamos no diminutivo? E aquele seu colega de trabalho carioca te
irrita quando marca reuniões importantíssimas às 8h, mas chega às 9h sem nem se
desculpar – ou culpa o previsível trânsito de todo dia? Aquele amigo paulista te deixa
louca toda vez que fala “meu”?
Você já se surpreendeu quando sua bisavó, como a minha saudosa bisa, te contou
que teve que aprender a ler sozinha porque na época dela só os homens seguiam na escola?
Ou quando te contaram que seus bisavós negros foram escravizados? E se te contassem
que sua bisavó indígena foi “pega no laço pelo bivô branco”?
familiar (“por que vivemos assim?”) e a familiarização do que era estranho (“como o
Outro vive?”). É a tal da alteridade.
Os efeitos dessa disputa de definições da realidade, por sua vez, dependem do jogo
de forças existente em cada sociedade em determinado momento, ou seja, da força relativa
de cada jogador em disputa, como o sociólogo Norbert Elias (1897-1990) argumentou.
Isto é, a força de um time de futebol depende da força de seus adversários, é relacional.
E, como sabemos, o placar pode mudar nos minutos finais do segundo tempo (!)
Eis que, em pleno 2019, frente a dados governamentais [3] que enterraram
qualquer justificativa que negue o aumento das taxas de desmatamento ilegal ou que
responsabilize “ONGs ambientalistas”, o presidente Jair Bolsonaro afirmou: por serem
culturais, as queimadas e o desmatamento nunca vão acabar. Se lutamos para acabar com
a cultura do estupro e a desigualdade que a atravessa, não podemos acabar ou ao menos
modificar essa tal “cultura do desmatamento”?
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Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo
de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade
desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.
Bertolt Brecht (1898-1956)
Fica a dica de indireta pro colega carioca que chega atrasado. Por sinal, sou
carioca, porém pontual ;)
Notas
[1] Segundo levantamento da revista Piauí acerca dos dados de 2018 do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública: “Dos estupros contra mulheres com 20 anos ou mais, 5 a
cada 10 ocorreram na residência da vítima. Na faixa etária de 0 a 19 anos, de
cada 10 estupros, 6 ocorreram em casa.”.
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[2] Penso no resgate histórico de Angela Davis ao mostrar que nos Estados Unidos o
estupro contra brancas era (ou ainda é) não só criminalizado, mas atribuído
sistematicamente aos homens negros (sem provas, mas com convicção), que estariam
supostamente infringindo o que seria “propriedade” dos homens brancos. Por outro lado,
não eram criminalizados nem mesmo questionados publicamente os estupros cotidianos
de mulheres negras pelos homens brancos.
[3] Me refiro aos dados do Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na
Amazônia Legal por Satélite) divulgados dia 18 de novembro para o período de agosto
de 2018 a julho de 2019. O Prodes é realizado pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais), subordinado ao MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e
Comunicações).