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Renata Lacerda
15/05/2019
Link: https://www.deviante.com.br/noticias/chocolates-dificeis-de-engolir-o-projeto-de-
destruicao-da-educacao-ciencia-e-tecnologia-no-brasil/
E por que o MEC fez isso? No vídeo com o presidente, o ministro Nestlé explicou:
nós, brasileiras e brasileiros, temos que ser menos gulosos. Precisamos esperar para
comer os 3,5 chocolates depois de setembro de 2019, ou da aprovação da Reforma da
Previdência. Só que, como Bolsonaro e Weintraub demonstraram de forma didática, os
3,5% (ou 30%) foram comidos bem na nossa frente.
O que é público vai pro privado. E nisso todos os ministérios citados andam juntos
no desmonte programado, embora aparentemente caótico, da educação, ciência e
tecnologia do país. Fora que Weintraub tentou aliviar a pressão dizendo que quem
mandou apertar os cintos foi Paulo Guedes (ME), que teria exigido cortes em todas as
pastas para atender ao teto de gastos.
O MCTIC de Marcos Pontes não ficou de fora: perdeu 41,9% dos cerca de R$
5,079 bilhões previstos para o ministério. Enquanto o corte do MEC levou ao bloqueio
de bolsas “ociosas” da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes), o corte do MCTIC afetou projetos de pesquisa financiados pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Financiadora de
Estudos e Projetos (Finep).
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Antes que atirem laranjas, é importante lembrar que esses cortes na educação e
ciência não vêm de hoje. Na verdade, passamos a ver esses orçamentos minguarem desde
o ajuste fiscal do fim do governo de Dilma Rousseff, o que se aprofundou com Michel
Temer. De 2014 a 2016, o orçamento do MEC teve redução de 4,18%. De 2016 a 2018
despencou 7,92%.
Frente a tudo isso, vamos responder algumas das chakotas que a gente vem
ouvindo contra a educação pública e a pesquisa científica.
#1 “As universidades públicas têm que dizer como gastam nosso dinheiro”
Elas já divulgam seus gastos e ações em seus sites e no Portal da Transparência
do governo federal ou de governos estaduais, de modo a seguir a Lei de Acesso à
Informação 12.527/ 2011, sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff.
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aprovados na Chamada Universal 2018 (que totalizava R$200 milhões), as quais ainda
não haviam sido implementadas.
Em 2014, a proporção dos estudantes sem renda familiar ou com renda bruta
familiar de até 3 salários mínimospassou a ser de 51% de todos os estudantes. Mas se
considerarmos a renda familiar per capitade até 1,5 salário mínimo, que é o requisito
para os Programas de Assistências Estudantil das IFES, 66% de graduandos precisam de
assistência, o que se acentua nas regiões Nordeste e Norte. Com relação à questão racial,
de 2003 para cá, os brancos deixaram de ser quase 60% dos estudantes para serem cerca
de 45%, enquanto os pretos e pardos passaram de 34,20% para 47,57% do total de
estudantes.
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São essas as pessoas mais afetadas pelos cortes na educação. As que vieram dos
“sertões”, das margens e periferias. Que finalmente tiveram a chance de ingressar nas
universidades e que ousaram trazer o sonho de ascensão social para suas famílias, como
a repórter Nayara Felizardo descreveu de forma comovente.
As ações afirmativas, que tornaram o sonho possível para tanta gente, incomodam
muito. Basta ver o projeto de lei 470/2019 que tramita na Alerj (Assembleia Legislativa
do Estado do Rio de Janeiro) contra as cotas raciais em instituições públicas estaduais de
ensino superior (como uma das pioneiras em ações afirmativas para negros e indígenas
no Brasil, a UERJ). O PL foi protocolado pelo deputado estadual Rodrigo Amorim:
E se, além disso, a gente lembrasse que já pagamos pela universidade pública
através dos impostos? E se imaginássemos a probabilidade de que isso gere a priorização
de estudantes de renda mais alta, o que vai justamente levar a uma universidade de
privilegiados, indo na contramão da diversificação via ações afirmativas? E se
mostrássemos com os dados da Andifes que os estudantes hoje em sua maioria não têm
condição de pagar nada e que, na verdade, precisam de auxílio permanência? E se
mencionarmos que as mensalidades das universidades privadas americanas cobrem
menos de 20% do custo total da instituição, o que não seria diferente nas universidades
públicas brasileiras?
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“Em comparação com outros países somos meros vira-latas”. Será? Nossas 20
melhores universidades públicasestão no ranking mundial. A USP está em 77º
lugar numa lista de 1000 universidades. Não tem nenhuma universidade privada brasileira
nesse ranking. De acordo com a BBC, o “Brasil está entre os 15 países com maior número
de estudos científicos no mundo, e 95% da pesquisa é realizada em universidades
públicas”. Como se não bastasse, são elas que lideram os pedidos de patentes no país.
Também diz muito o fato do Colégio Pedro II, única instituição de educação
básica do país ligada diretamente ao MEC, ter sofrido um corte de 36,37% da verba de
custeio prevista para 2019. Dias depois, nosso vereador Carlos Bolsonaro cometeu mais
um Tweet e disse que o CP II teria “péssimos resultados acadêmicos”. Como contra-
argumentou a estudante da UFF Roberta Trancoso no AntiCast 388, dos 14 campi do CP
II, que atendem 13 mil alunos da educação infantil ao ensino médio, 5 estão na frente do
Colégio Militar do Rio de Janeiro no ranking estadual de notas no ENEM. Este, exaltado
pelo presidente Jair Bolsonaro pelo suposto sucesso nas avaliações da educação básica, se
encontra na 86ª posição.
Nada disso comprova que as escolas públicas estão de boas. Mas mostra que o
problema não está no fato de serem públicas (ou civis). Isso reforça o argumento de que
para melhorar esse quadro, precisam de mais investimentos. E, obviamente, é necessária
a valorização de professoras e professores, inclusive através do incentivo à sua formação
continuada – e não sua criminalização via CPIs ou filmagens em salas de aula (já viram
o maravilhoso vídeo do Porta dos Fundos?). Isto é, precisamos daquela boa e velha
complementariedade entre universidade e ensino básico.
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De todo modo, as próprias empresas não costumam ir atrás de pesquisa que “gera
produtos inovadores”, conforme afirmou em 2016 o engenheiro metalúrgico Fernando
José Gomes Landgraf, então diretor do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas). O
timing da ciência não é o mesmo do mercado, por isso este muitas vezes não se interessa
em investir em pesquisa. Como a deputada federal Margarida Salomão (PT/MG)
defendeu recentemente na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e
Informática da Câmara dos Deputados, a pesquisa e publicações científicas são
fundamentais para a inovação tecnológica. Esse é o caso do touchscreen de celulares e
tablets, criado graças a uma tese de doutorado defendida na universidade pública de
Delaware, EUA .
Last but not least, cabe destacar pros fãs dos EUA que lá o governo federal é
responsável por cerca de 60% do investimento em pesquisa nas universidades públicas e
privadas. Emendando na próxima chacota, nos Estados Unidos 90% das crianças estudam
em escola pública, quase como em Cuba.
Dito isto, o problema não é termos universidades e escolas privadas, mas sim o
desmonte programado do ensino público que vem caminhando junto com essa bandeira
de privatização. E o problema é sobretudo o modelo de educação que Paulo Guedes, sua
irmã Elizabeth e seus acionistas querem impor ao país. Ao invés de escolas e
universidades, querem o domínio de empresas de ensino básico e superior, que possuem
fins lucrativos (diferente das PUCs e da Mackenzie), cujo grande exemplo é a Kroton.
O sinal dos novos tempos vem com a coincidência do corte das instituições
públicas de ensino ter se dado junto com a aceleração de 70% do credenciamento de novas
universidades, incluindo cursos de ensino a distância (EAD), até porque “dez entre dez
deputados que vão ao MEC querem uma faculdade privada na cidade deles”. Para quem
se matricula nessas faculdades lucrativas, resta saber que empregador vai aceitá-los
depois, como Lucas Tasquetto, que pesquisa há anos a privatização do ensino superior no
Brasil, indaga no citado Chutando a Escada. Ou ainda, que conselho profissional vai
reconhecê-los?
Sobre todo esse ataque à minha praia de conhecimento, só sei sentir. E contemplar
uma tirinha fantástica da quadrinista e doutora em sociologia e antropologia, Rachel
Paterman Brasil.
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Como o ministro Nestlé tem muita coragem, porque noção não tem, sobrou até
para as áreas que considera darem “retorno imediato”, como hospitais. Segundo o Valor
Econômico, apesar de ter preservado as dotações destinadas a quase todos os hospitais
universitários, foram atingidos pelos cortes do MEC: o Complexo Hospitalar e de Saúde
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (perdeu R$ 3,5 milhões); o Hospital
Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados (perdeu R$ 20 milhões); o
Hospital Universitário Gaffree e Guinle (perdeu $ 18,5 milhões); e o Hospital
Universitário da Fundação Universidade Federal do Piauí (perdeu R$ 7 milhões).
Muitos estão sendo os impactos desses cortes. Foram inviabilizadas até mesmo
pesquisas que tinham por objetivo prevenir doenças e vícios.