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Música, alimentos e outras composições do drama

mítico: reflexões sobre A origem dos modos à mesa


LUIS FERNANDO PEREIRA (in memorian)1

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A leitura do terceiro volume da tetralogia sensações quando executados em palcos e con-
Mitológicas de Claude Lévi-Strauss traz um textos diferentes. Lévi-Strauss já chama a aten-
certo ar de familiaridade que não se deve, tão ção para que músicos como Wagner codificam
somente, ao retorno a temas aparentemente suas mensagens a partir da ordem dada nos re-
já tratados ao longo dos dois volumes ante- latos míticos (Lévi-Strauss, 2004, p. 50). A ori-
riores, O cru e o cozido e Do mel às cinzas. gem dos modos à mesa fornece mais pistas sobre
Música e mitos acionam, naqueles que as es- tais conexões, apreendidas no âmbito do sen-
cutam, estruturas mentais comuns, já anun- sível, inconsciente, que só após um incipiente
ciava, por isso, o esforço presente em tratar exercício estruturalista foi possível rascunhar e
as relações internas e intra-mitos como partes apresentar nesse ensaio.
de uma obra musical, mais especificamente, Apesar de ser o terceiro volume da série
a tetralogia O anel do Nibelungo, de Richard Mitológicas, o que pressuporia a necessidade
Wagner (Lévi-Strauss, 2004, p. 47). Talvez, da leitura prévia dos dois anteriores, A origem
por isso, tal como o compositor alemão, mas dos modos à mesa pode servir perfeitamente
numa escala infinitamente menor, pode-se como introdutória à extensa análise dos mi-
apreender intuitivamente um esquema co- tos de Lévi-Strauss, como o próprio chama a
mum às obras de ambos (Lévi-Strauss, 1983, atenção (Lévi-Strauss, 2006, p. 9). Aliás, esse
p. 321). Assim, como neófito tanto na discus- terceiro volume se configura como o mais di-
são aprofundada sobre o estruturalismo lévi- dático, com longos trechos nos quais o autor
straussiano quanto sobre a música, a partir de se propõe a apresentar e discutir métodos e ar-
reações intuitivas às obras, é que arrisco este gumentos.
ensaio. Assim como qualquer uma das partes de O
Além da admiração reconhecida (Lévi- anel do Nibelungo pode ser ouvida por um neó-
Strauss, 2004, p. 35) e das alusões mais óbvias, fito, sem grandes problemas. Mas, certamente,
referentes à divisão das principais obras de am- a leitura (ou a audição) será diferente se seguir
bos em quatro partes e dos conteúdos míticos, uma ordem ou outra, uma vez que os temas
há, ainda, conexões quanto à forma pela qual não simplesmente se repetem, mas vão se tor-
temas, utilizando o vocabulário emprestado da nando cada vez mais complexos. O desenvolvi-
produção musical ao longo da obra, são traba- mento de temas, na análise estruturalista ou na
lhados, sofrem variações e transmitem novas música, pode ser entendido como

1. N. dos E.: Esta resenha foi produzida por nosso colega Luis Fernando Pereira, falecido em novembro de 2008, sob
o estímulo do Projeto Resenhas. A decisão de publicar a resenha na seção de homenagem a Lévi-Strauss foi tomada
pouco antes de seu falecimento, e foi acompanhada da solicitação de uma pequena ampliação para o desenvolvi-
mento da comparação entre Wagner e Lévi-Strauss, a qual Luis infelizmente não teve tempo de fazer. Publicamos a
versão recebida com o mínimo de interferências.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-348, 2008


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rodear um motivo simples de motivos mais am- a chave pela qual se compreende as mensagens
plos e mais complexos ou inscrever no interior dos mitos. Lévi-Strauss ressalta que é tal qual
do motivo inicial motivos mais miúdos e deta- ocorre com o microscópio ótico, dependendo
lhados; ou ainda modular em tonalidades dife- unicamente da escolha entre várias ampliações
rentes (Lévi-Strauss, 1983, p. 247). (Lévi-Strauss, 2004); cada ampliação do mito
propondo um novo problema a partir de uma
Tanto Sigfried quanto A origem dos modos perspectiva diferente, o que abre possibilidades
à mesa, as terceiras partes das tetralogias de quase infinitas, mesmo quando os mitos per-
Wagner e de Lévi-Strauss, apresentam o que tencem a alguns grupos de oposições aparente-
poderíamos chamar de adensamento de re- mente fechados e restritos:
lações a partir do desenvolvimento de temas.
Após apresentados os principais motivos e te- [...] encarados sob outras perspectivas, eles
mas nas respectivas aberturas (O ouro do Reno permanecem desdobrados num hiper-espaço
e O cru e o cozido) e seqüências (A valquíria e em que aparecem também outros mitos, cujas
Do mel às cinzas), às quais podemos retornar propriedades a análise acima não esgota (Lévi-
ou iniciar de forma mais ou menos aleatória Strauss, 2006, p. 93).
(Lévi-Strauss, 2006, p. 10), nos defrontamos
com outras possibilidades, ou outras varia- Apresentar a culinária como o grande tema
ções do mesmo tema. Lévi-Strauss afirma que foi uma possibilidade de foco, a partir da cons-
nada impede o início da leitura pelo terceiro tatação de que se trata de uma linguagem na
volume, de longe, e anunciado, o mais didá- qual se articulam questões sobre a passagem da
tico dos quatro. O próprio autor ressalta isso natureza à cultura, já que responde às exigên-
na introdução: o livro forma um todo, passível cias do corpo, e revela experiências profundas
de ser lido isoladamente. No máximo, seria ne- no que tange à comida, às formas de comer, os
cessário reler o mito amazônico M354, em Do temperos e a memória, por isso é determinada
mel às cinzas, que serve como referência para pela forma como cada homem se insere no uni-
os trabalhos desenvolvidos no livro; ele seria o verso, percebido de modo integral (Lévi-Strauss,
M1 de A origem.... A idéia de destacar essa li- 2006, p. 443). A comida se revela como uma
berdade na leitura parece ter ligação direta com possibilidade privilegiada para pensar relações.
a composição mitológica e a própria música: Os mitos sobre culinária nunca tratam apenas
estes livros, músicas, e mitos são organizados da culinária e nem a culinária fala apenas de si.
de forma homóloga: ao público ouvinte ou ao As relações que se estabelecem pelos mitos li-
leitor é permitido começar de onde melhor lhe gados à culinária podem, além das articulações
aprouver. mais explícitas, outras que indiquem a mais di-
Isso é interessante ressaltar: o fato do mito versa gama de relações.
bororo do desaninhador de pássaros ser desig- Em Sigfried, o protagonista homônimo é
nado como M1 ou o mito tukuna ser o M354 um adensamento. Constitui-se de relações in-
não revela uma hierarquia de importâncias ou cestuosas que se tecem em todas e quaisquer
mesmo, problemática abordada em A origem..., relações e que adensam outras várias relações
de empobrecimento. Qualquer mito é passível num quadro cuja complexidade só pode ser en-
de ser o mito de referência, a escolha dependerá tendida pela condução dos temas. Outros per-
do trajeto (Lévi-Strauss, 2006, p. 10) ou mes- sonagens adensam relações entre pólos, como
mo do foco usados, o que também determina o pai dos deuses Wotan, entre céu e terra. Esse

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caráter repetitivo, porém, ao contrário de levar possibilitam cruzamentos possíveis, permane-


à monotonia apontada muitas vezes na obra de cer a mesma entre os dois hemisférios, os mitos
Wagner, apresenta novas possibilidades de en- sul-americanos, trabalhados nos dois primeiros
tendimento dos mitos, essencialmente porque volumes, dão ênfase às oposições espaciais, en-
ao comparar relações não o faz apenas entre quanto os norte-americanos, às oposições tem-
termos de mitos sul-americanos, mas fala das porais.
próprias relações entre os mitos, sul-americanos A categoria tempo surge, então, como um
e norte-americanos; são relações entre relações, meio necessário para tornar manifestas as re-
utilizando novas oposições e propondo novos lações entre outras relações, outrora dadas no
problemas (Lévi-Strauss, 2006, p. 422). espaço. Mitos sobre a origem da culinária,
A repetição de temas e motivos ao longo da abordados em O cru e o cozido, discorrem e
obra musical e dos mitos, longe de apenas re- concebem essencialmente sobre espaços, en-
forçar mensagens, convida a atingir níveis mais quanto os mitos sobre a origem da alternância
profundos de significação (Lévi-Strauss, 1983, dia e noite, ou do sol e da lua, aqueles com
p. 334). Tais variações nascem pela introdu- difusão mais vasta nas Américas (Lévi-Strauss,
ção de códigos diversos (Lévi-Strauss, 2006, p. 2006, p. 81), discorrem sobre espaço e tam-
151), como os sociológicos, anatômicos, geo- bém tempo. Os mitos sobre a viagem de canoa,
gráficos, astronômicos e éticos. A temática da introduzidos pelo mito tukuna M405, “A ca-
oposição cru/cozido permanece neste volume, noa do sol”, por exemplo, colocam a canoa e
mas aprofundada e avançada em espiral, com- a viagem como árbitros, um espacial e outro
pondo uma tripla teoria da digestão: o primei- temporal, entre próximo e distante, oposição
ro Mitológicas trata da ausência e da presença da esta que pode surgir pelos temas propostos das
culinária; o segundo, parte da culinária para in- oposições (entre) incesto/casamento impossí-
vestigar os entornos da culinária, tratando o mel vel, temperamento caseiro/gosto pela aventura
como aquém da cozinha e o tabaco como além. e dia e noite contínuos/absolutos.
Já o terceiro volume se ocupa dos contornos da A canoa, a mulher-rã, as esposas dos astros
culinária, das relações entre natural (digestão) e ou qualquer outro personagem, objeto ou ins-
cultural (modos à mesa) (Lévi-Strauss, 2006, p. trumento colocado no mito, por si, não con-
423, grifos no original). tam; a condição da canoa, da mulher-rã ou
As variações também podem se dar pelo da própria viagem são matérias de reflexão, e
aprofundamento da análise dos mitos, que além não mera representação ou vestígio de uma re-
dos termos, neste volume também opõe dife- mota informação histórica, abordagem à qual
rentes maneiras pelas quais esses termos podem Lévi-Strauss dedica críticas mais contundentes,
se opor entre si (Lévi-Strauss, 2006, p. 171). reforçando a errônea imagem de ser um inimi-
Como em Siegfried, em que as relações entre go da história. Os mitos não têm significados
personagens não representam necessariamente fixos e cristalizados. O próprio M405, sobre
as relações entre os termos, mas entre outras a viagem da canoa, remete às versões tukuna,
relações, a preocupação de A origem dos modos à tsimshian, cree e menomini de M354, sobre as
mesa é ampliada no campo de comparações para esposas animais e a mulher-rã, e ao mito mun-
América do Norte e América Central, uma vez durucu M255, sobre a origem do sol de verão
que essa comparação inclui a dimensão tempo- e do sol de inverno. O motivo do rio aparece
ral à perspectiva sincrônica. Apesar da armação como condutor das tentativas de estabelecer
dos mitos, a forma pela qual oposições básicas o bom equilíbrio, correspondendo à busca de

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mediação entre duração do dia e da noite do mesa, sobre o caçador tukuna Monmaneki que
mito cashinaua M410, à distância convenien- passa por casamentos com fêmeas animais e,
te entre Sol e Lua e aos casamentos próximo e finalmente, com uma mulher do mesmo povo,
afastado de M354, M392, M393 e M394. só é possível atingir níveis mais profundos, ou
Em O anel do Nibelungo, Wagner tende a melhor, desenvolver de outras formas o tema,
fundir personagens e condensar e simplificar quando o comparamos a outros mitos. Uma
as narrativas originais que o inspiraram. Para das mulheres de M354, que se dividia em duas
Lévi-Strauss, Wagner substitui um motivo partes, é explicada pelo mito kalina M130
por outro de forma não-aleatória, a partir de (abordado em Do mel às cinzas), sobre a ori-
elementos que possam cumprir a mesma fun- gem da constelação da Cabeleira de Berenice,
ção (Lévi-Strauss, 1983, p. 328). Ao invés de que, por sua vez, se remete a M28 (abordado
pensarmos em empobrecimento ou perdas, em O cru e o cozido) sobre desmembramentos e
tal processo é enriquecedor e homólogo ao a origem de tríades astronômicas (Lévi-Strauss,
movimento que ocorre nos mitos. N’A origem 2006, p. 29) que pode ser comparado a outros
dos modos..., personagens e objetos compõem sobre os donos da pesca e a viagem de canoa
termos que nunca são fixados anteriormente (M405 e M255) e sobre as coincidências entre
à relação, mas ganham sentido na relação. O ocorrências celestes e zoológicas (M131, M136
postulado, trabalhado exaustivamente ao lon- e M354).
go dos dois primeiros volumes das Mitológicas, A crítica de Lévi-Strauss ao “método his-
ganha um outro tom: uma relação adquire sen- tórico” está na obsessão pela busca de fatos
tido em comparação a outras relações. históricos puros por meio do cálculo da fre-
Se há caracteres comuns reproduzidos em qüência de motivos nos mitos, isolados, com-
mitos de várias partes do mundo, isso não quer parados e localizados no espaço de forma a
dizer que os sentidos são os mesmos. O senti- serem encontrados centros de difusão (Lévi-
do dos mitos tem a ver não com os elementos Strauss, 2006, p. 204). O equívoco, segundo
isolados que o compõem, mas com as formas Lévi-Strauss, estaria em considerar apenas a
como eles se relacionam. Daí a importância do ausência, a presença ou a distribuição geográ-
estudo não simplesmente das unidades, maio- fica dos mitos, desprovidos de significação,
res ou menores, do mito, mas de feixes de re- esquecendo-se que os mitos, assim como as
lações, tais como são organizadas as partituras regras de parentesco, não se limitam a ser algo,
musicais, em várias gradações, da concomitân- mas servem para algo (Lévi-Strauss, 2006, p.
cia do que é conduzido em diferentes claves até 205). Entretanto, como demonstra ao longo
a afinada consonância entre diferentes vozes e de toda A origem dos modos à mesa, realizan-
instrumentos de uma orquestra (Lévi-Strauss, do levantamento minucioso de informações
1970, p. 243). zoológicas, topográficas, cosmológicas, socio-
As relações, portanto, evidenciam que os lógicas e históricas, é indispensável o entendi-
termos colocados nos mitos não são verdades mento do contexto de produção de cada mito
históricas, e é por meio da análise estruturalista para a elaboração da análise estrutural. Assim,
que se torna possível comparar esses mitos, per- como já colocado no primeiro volume das
mitindo vislumbrar as variações e, neste proces- Mitológicas (Lévi-Strauss, 2004, p. 65), Lévi-
so, entender o que antes parecia inexplicável. Strauss demonstra como as diferentes formas
Se é evidente o caráter sociológico de M354, pelas quais os mitos se apresentam são frutos
por exemplo, que abre A origem dos modos à de transformações e traduções, que dependem

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dos lugares, das diferenças de habitat e da in- como esposa grudando, literalmente, no mari-
fluência de outras culturas. do. Ambos os motivos têm valores simétricos,
E para quê serviriam os mitos, para resolver colocando as impossibilidades dos extremos
problemas e buscar o equilíbrio? Não necessa- (extremamente longe/corpo além do normal:
riamente. Os mitos mandan sobre a disputa extremamente perto/corpo aquém do normal).
dos astros M460 e M461: o protagonista deste Não só os mitos citados acima, mas todos os
último se casa com duas moças, uma associa- analisados ao longo de A origem..., tratam, por
da ao milho, outra ao bisão. O que se busca meio de diferentes códigos, dessa mensagem,
não são termos médios entre caça e agricultura, referente à boa distância, entre homens e mu-
guerra e paz. O que os mitos se esforçam em fa- lheres, água e terra, animais e homens, próxi-
zer é provar a impossibilidade de qualquer tipo mos e distantes, inverno e verão, sol e lua. A tal
de conciliação entre formas extremas, assumin- ponto que, após avançada boa parte da obra,
do as contradições. Um modo de vida pura- o autor adverte que apenas um mito (M354)
mente agrícola e pacífico manteria a população havia sido discutido; todos os outros seriam
somente na aldeia, trazendo os riscos da endo- transformações (Lévi-Strauss, 2006, p. 179).
gamia; o abandono da aldeia para a caça ou a Entre América do Sul e América do Norte, no
guerra, levando aos perigos da exogamia (Lévi- entanto, há variações e inversões. Se M326A
Strauss, 2006, p. 285 e 286). Ao contrário do sobre a viagem de canoa trata de uma espécie
motivo da canoa, iniciado em M405, que cria de mediação diacrônica entre pólos, M104, so-
distanciamentos entre pólos, os mitos mandan bre perseguição a nado, trata de uma mediação
pregam como os antagonismos entre os termos sincrônica. Ambos falam sobre como se deve
nunca são vencidos. evitar ficar perto ou longe demais, em eixos
Lévi-Strauss não descarta a relação entre o temporais e em eixos espaciais.
mito e o real. Na verdade, ela é essencial, po- Mas, como o autor demonstra ao longo de
rém, dialética. O que aparece no mito pode ser A origem..., os mitos se transformam, passam
o inverso da realidade. Os mitos não podem de um povo para outro, ganham novas versões;
ser usados como fontes de descrições passadas a eles se acrescentam ou se diminuem detalhes
de vida ou de organização social, pois podem e experiências vividas. Elementos de outros
propor inversões e posições extremas imagina- mitos se misturam e o que era início em uma
das para demonstrar inviabilidades. A oposição versão se torna o final de outra; não há como
entre sol e lua é, como não poderia deixar de determinar um material original do mito que
constar em um texto sobre o autor, boa para sirva como referência. Não é essa a função de
pensar relações, mas existem outros tipos de M1 no primeiro volume das Mitológicas, não é
modelos para pensar outras relações, em asso- essa a função de quaisquer outros mitos.
ciações que nunca são diretas, mas constituem E aí residem os principais argumentos contra
passagens lógicas (Lévi-Strauss, 2006, p. 114), a idéia de que Lévi-Strauss trata de universalis-
dentro de determinados campos de possibili- mos. A universalidade estaria no que ele chama
dades. de “espírito humano” ou “natureza humana”,
Na análise de Lévi-Strauss, mitos aparente- não estruturas prontas, mas sim matrizes de ge-
mente heterogêneos se reduzem a uma única ração comuns a todos os seres humanos, igual-
mensagem, como o caso do homem de pênis mente capazes, portanto de lidar com as coisas.
longo de M354, que pode atingir amantes à Mas essa universalidade representa o ponto de
distância, e a mulher-grampo, que só sabe agir partida, o pressuposto a partir do qual A origem

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dos modos... é dedicada a entender possibilida- que representam uma situação, uma ação, um
des distintas de lidar com os mesmos problemas sentimento, um local ou uma personagem,
ou as mesmas formas de lidar com problemas que podem ser transformados, superpostos e
diversos, sob o signo de temas históricos, geo- somados, constantemente repetidos ao longo
gráficos, zoológicos e ambientais, entre outros. da execução da obra. Seja através das relações
Ou seja, a principal preocupação na obra é en- conjugais ideais, seja pela distância entre dia e
tender as transformações do mito. Por que, por noite, terra e astros, seco e molhado, o que os
exemplo, há mitos nos hemisférios norte e sul mitos estudados parecem colocar como pólos
das Américas que tratam do motivo da cabeça opostos de relações não são, por si, tão impor-
que rola, como M364A e B, mas, a partir de tantes quanto o que transcorre entre eles, re-
certos limites geográficos, tal motivo se separa cuperando outra relação estudada, rio acima e
de outros como o da origem da lua e o do in- rio abaixo.
cesto/celibato observados na Amazônia? O in- Tanto A origem dos modos à mesa quanto
teresse não é analisar semelhanças; aliás, tarefa Siegfried tratam, através de esquemas homólo-
principal é a de provar que mitos que não se gos, dos mesmos temas: as impossibilidades e
assemelham ou cujas semelhanças aparentam inviabilidades apresentadas em posições extre-
ser acidentais surgem dos mesmos princípios mas nos mitos. De forma equivalente aos mi-
e compartilham analogias secretas, apresentam tos mandan, ao longo das quatro óperas, entre
estrutura idêntica, ligando um grupo de trans- assassinatos, intrigas, incestos, temperamen-
formação a outro (Lévi-Strauss, 2006, p. 180). tos impetuosos, ganância e volúpia, qualquer
Daí a impossibilidade da procura de um mito tentativa de conciliar o que é irreconciliável
original e primeiro, já que todo mito é uma está fadada ao fracasso, à impotência, à insen-
transformação de um outro anterior. satez ou à vida breve, tema em comum nos
Se a obra de Wagner criou uma nova forma mitos ameríndios dedicados a essa impossí-
musical conhecida como “drama musical” po- vel arbitragem entre próximo e distante. No
deríamos dizer que Claude Lévi-Strauss criou, horizonte do pensamento ameríndio, onde a
ou melhor, ordenou o “drama mítico” na sua multiplicação de diferenças é o “motivo con-
obra Mitológicas. O drama musical wagneriano dutor”, surge então o perigo da estabilização
dispensava duetos, árias ou qualquer outro tipo infértil, o fim do sexo, o fim do conflito, o
de interrupção da seqüência de ações, marcadas fim da alteridade. Ou o perigo de confundir
por diálogos contínuos e integrados musical- significante e significado, palavras e coisas, no
mente. Assim me parece constituir-se também palco do pensamento mítico. Diferentemente
a obra de Lévi-Strauss, colocando em diálogo do pensamento científico, que trabalha com
ininterrupto e incansável partes da obra que, conceitos, este tem como operador de sua re-
desta forma, dão e ampliam as possibilidades organização o significado. A impossibilidade
de significação, com a introdução de pequenas da confusão entre sentidos próprio e figura-
e novas variações. A origem dos modos à mesa do, as coisas e como estas são denominadas,
coloca questões que parecem também compor é expressa em M388 (Lévi-Strauss, 2006, p.
os motivos de O anel do Nibelungo, referentes 69-70): o destino do homem que interpreta
à boa distância, ambas organizadas a partir do erroneamente o sentido do canto das rãs é a
uso de “motivos condutores”, pequenos temas morte.

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Referências bibliográficas sobre a tetralogia. In: _____. O olhar distanciado. Lis-


boa: Edições 70, 1983. p. 313-337.
____. O cru e o cozido (Mitológicas v. 1). São Paulo: Cosac
LÉVISTRAUSS, Claude. A estrutura dos mitos. In:
Naify, 2004. 442p.
_____. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo
____. A origem dos modos à mesa (Mitológicas v. 3). São
Brasileiro, 1970. p. 237-265.
Paulo: Cosac Naify, 2006. 524p.
____. De Chrétien de Troyes a Richard Wagner e nota

autor Luis Fernando Pereira


Mestrando em Ciência Social (Antropologia Social)/USP

Recebida em 31/08/2008
Aceita para publicação em 11/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 293-299, 2008

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