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No. 1
junho 2009
Lira Alli
A Consulta Popular e o Feminismo
Bernadete Monteiro –Minas Gerais
6 Caderno de Debates
O quarto traz reflexões a cerca do diálogo do feminismo e o mar-
xismo com a tática e estratégia da Consulta Popular.
Esperamos que este caderno de debates amplie nossas discussões
para o todo da organização, bem como possibilite irmos afinando
nossas compreensões em torno do caráter tático-estratégico do feminis-
mo e da necessidade de construirmos dentro e fora da Consulta Popular
novas relações entre homens e mulheres como exemplo pedagógico de
uma organização revolucionária, orientada pela liberdade e igualdade.
1. Igualdade e liberdade
A primeira vez que as mulheres se apresentaram na história como
sujeito político, foi no processo da Revolução Francesa. Assim, por
exemplo, em janeiro de 1789, as mulheres do terceiro estado, como
afirma Riot-Sarcey (2002, p. 08) demandam explicitamente “sair da
ignorância” para poder educar suas crianças e exercer um trabalho para
não ser mais reduzidas ao estado de dependente.
Além disso, existe registro da luta das mulheres pelo direito ao alis-
tamento na carreira militar e ter acesso as armas, na defesa da revolu-
ção. Direito até então restrito aos homens, apesar da presença massiva
das mulheres, nas ruas em levante populares contra o poder Real e da
8 Caderno de Debates
Igreja na organização da sociabilidade à época.
Assim durante todo o período de conflitos e consolidação da so-
ciedade moderna, após pelo menos quase cem anos de revoltas e con-
frontos entre o povo e os burgueses, juntamente com os seus aliados
políticos. As mulheres se mantiveram na resistência por isso mesmo,
foram consideradas uma ameaça pela nascente ordem burguesa que,
em 1793, proibiu reunião dos clubes de mulheres.
Ocorre que após conhecerem a experiência da revolução e da polí-
tica as mulheres, dificilmente aceitariam voltar para o domínio do lar,
como cidadãs resignadas. E assim, além de lutarem pela consolidação
do poder popular em contraponto ao poder burguês, que ganhara força
no processo da Revolução Francesa. As mulheres iniciaram uma grande
batalha em torno de seu reconhecimento como sujeito e, portanto com
o direito de participar ativamente da vida pública, no campo do traba-
lho, da educação e da representatividade política.
Sendo assim, em quase meio século, as mulheres realizaram ações
radicais de combate a sua exclusão da soberaneidade popular, inau-
gurada com a sociedade moderna que se propôs a eliminar todo tipo
de desigualdade já que insurge com o lema da igualdade, liberdade e
fraternidade.
Neste contexto eram comuns ações como abaixoassinados, ocupa-
ção de praças, elaboração de manifestos e de declarações públicas que
reivindicavam a igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Como forma de combater a influência dessas ações na sociedade o
regime político dominante aprisionou, executou ou guilhotinou várias
mulheres1. Além de criar medidas que reduziram ainda mais a presença
política destas, como proibição das mulheres falarem nas Assembléias
Revolucionárias e de realizarem manifestações públicas.
O texto a seguir, segundo Riot-Sarcey ( 2002), evidencia os argu-
mentos utilizados para justificar tais proibições:
10 Caderno de Debates
Desse modo até a segunda metade dos anos de 1800 a luta
pela igualdade era o tema central de mobilização das mulheres, que no
geral assumiam as reivindicações pelo direito a educação, ao trabalho e
a igualdade salarial, além dos direitos políticos.
Apesar das mulheres contarem com o apoio do movimento
dos trabalhadores na maioria de suas reivindicações, foi particularmen-
te, com relação ao direito ao trabalho que houve maior resistência.
Inclusive em 1866, no congresso da Internacional dos Trabalhadores
os delegados foram contrários ao trabalho feminino. Esta decisão pro-
vocou reação imediata das mulheres socialistas e de seus aliados que
intensificaram as manifestações e as petições públicas e fundaram a pri-
meira associação feminista, chamada de Liga das Mulheres, em 1868.
Este acirramento de posições perdurou até 1871, quando
emergiu a experiência da Comuna de Paris e as reivindicações pela
igualdade entre os sexos, cedem lugar a causa comum da conquista de
uma sociedade regida pelos interesses da classe trabalhadora.
Neste contexto, as mulheres tiveram grande contribuição nas ações
de boicote, confronto e resistência ao poder dominante, assumindo um
claro compromisso de classe com a luta socialista. Inclusive encontra-
mos registro acerca das petroleiras (GUERIN, 2004, RIOT-SARCEY,
2002) brigada de mulheres, responsável por incendiar vários prédios
públicos, em Paris, nos momentos de confronto mais radical entre os
comunalistas e a guarda nacional, no qual morreram cerca de 20 mil
pessoas, entre elas milhares de mulheres.
Face ao exposto podemos concluir que as feministas chamaram a
atenção para os limites do homem enquanto sujeito universal da his-
tória, destacando os problemas relativos à dimensão do público e do
privado, oriundos desta universalidade.2 Afirmando que a sociedade
não poderia proclamar a igualdade se permanecesse a dualidade do pú-
blico e do privado e, conseguentemente, a desigualdade entre homens
e mulheres.
2. Para Fraisse (1998: 11), as manifestações de mulheres neste período se distinguem
das dos séculos anteriores quando: “ a disputa é levada à praça pública e toma a forma
de um debate democrático: converte-se, pela primeira vez, na forma explícita de uma
questão política.”
3. Miguel (2000) aborda este processo no artigo: Los feminismos a través de la historia.
Disponível em: http://creatividadfeminista.org/artículos/feminismo,2000.
12 Caderno de Debates
o sufrágio universal possibilitaria o acesso das mulheres ao parlamento
e por consequinte abriria a possibilidade de mudança no conjunto das
leis e instituições. A luta sufragista também possibilitaria uma ampla
aliança entre as mulheres, unificando posições políticas diferente.
A reivindicação pelo direito ao sufrágio mobilizou as mulheres por
sete décadas em diferentes países e regiões do mundo. De início, tanto
nos Estados Unidos quanto em alguns países da Europa, as sufragistas
tinha como estratégia a busca de apoio parlamentar a partir de uma
ampla mobilização popular. Assim, o movimento chegou a envolver
milhões de mulheres e realizou inúmeras ações de grande envergadura
social. Esta estratégia é abandonada nos inícios do século XX, quando
parte das organizações sufragistas passam a adotar ações mais radi-
cais e são duramente reprimidas pelo Estado, segundo Alves e Pitanguy
(1991).
No Brasil, em particular o movimento sufragista não ocorreu
com esse caráter de mobilização popular, mas, como em outros países,
ocupou por muito tempo o cenário político, a partir de seus atos e mo-
bilizações junto ao Congresso Nacional, bem como, com as inúmeras
publicações de caráter feminista.
Assim, em diferentes épocas e processos as mulheres conquistaram
o sufrágio após anos de confronto e mediante fortes resistências, como
já situamos. Dentre as particularidades deste movimento, sem dúvida,
o seu caráter de massa foi o que mais desafiou as feministas socialistas,
no interior das organizações sindicais, bem como na estrutura dos par-
tidos comunistas. Para justificar a importância da luta das mulheres,
para o processo de transformação radical da sociedade.
Sem dúvida que, o debate em torno desse caráter e de seu papel na
luta revolucionária, mobilizou, articulou e ao mesmo tempo, dividiu a
ação das feministas. No entanto, foi fundamental para a consolidação
do posicionamento político do movimento no sentido de articular a
luta das mulheres com a luta pela emancipação humana.
Isto por quê como já situamos, a entrada das mulheres no mundo
do trabalho enfrentou forte resistência de parte dos trabalhadores que,
dominados pela ideologia patriarcal, consideravam essa presença além
14 Caderno de Debates
esquerda mundial socialista.
Fato que reafirma a necessidade histórica da continuidade da auto-
organização das mulheres nas organizações de esquerda e na luta an-
ticapitalista, como forma de se constituir um campo político no qual
a igualdade entre os sexos e a ruptura radical com as estruturas de
opressão-dominação do capitalismo, caminhem com a mesma intensi-
dade e força política no interior do projeto libertário.
16 Caderno de Debates
Assim, as longas manifestações eram acompanhadas de ações de
fortes questionamentos ao poder do Estado, da família e da Igreja, con-
siderados pontos de sustentação ideológica do capitalismo em todos os
seus mecanismos de dominação e opressão da vida social. Conforme
podemos perceber nas palavras de ordem, da mobilização feminista,
cujo o tema era Nos jamais nos casaremos, realizada em Paris, no ano
de 1971 : A família não será mais nosso horizonte e tumba, Contracep-
ção e abortamento livre e gratuítos, creches gratuítas, por 24 horas. (
PICQ, 1993,p 83).
Ao mesmo tempo, os partidos de esquerda ressistiam a encampar
estas bandeiras e muitas vezes as mulheres eram ridicularizadas em suas
manifestações no interior destas organização. Muitos registros retra-
tam a reação das mulheres que geralmente eram atos com muito humor
e sarcasmo, aliado a uma lição política na qual solicitavam dos compa-
nheiros de partido, uma revolução por inteira.
Durante um bom período este debate perdurou e ainda hoje tem
repercursões políticas. Percebe-se, no entanto, uma maior presença das
demandas das mulheres em programáticas partidárias. Memso que, no
entanto, não tenha se alterado profundamente as estruturas de poder e
de representatividade pública.
Processo que desafia permanentemente, o feminismo a se constituir
numa unidade entre o específico e geral, entre o interesse das mulheres
e a luta por transformação radical da sociedade, entre a luta feminista
e o confronto ao racismo, enfim, o feminismo como um coletivo total.
Definimos esta categoria por considerar que o feminismo ao pos-
suir uma heterogeneidade em sua composição social, constituir-se-á
como sujeito num duplo processo: no reconhecimento da diversidade
e na construção de uma unidade diversa identitária mediante a legiti-
mação das experiências particulares no interior da identidade coletiva
(GURGEL, 2004, p. 64).
Com esta percepção de “coletivo total”, interpretamos como de-
safio do movimento feminista a definição de estratégias que atuem na
busca dos pontos comuns, nas particularidades de cada opressão, con-
tudo, sem perder de vista o horizonte da emancipação humana. Afinal,
apenas com o alcance desta, podemos vivenciar verdadeiramente a li-
18 Caderno de Debates
A partir de meados da década de 1980 houve uma forte inciativa
dos governos, em âmbito continental, e no Brasil em particular, na in-
corporação da categoria das relações sociais de gênero como base ou
como tema tranversal em suas ações ou políticas públicas.
Decorre deste processo a criação, a partir de finais dos anos de
1980, de um conjunto de organismos de controle social e de elabora-
ção de políticas, que passaram a ser mais um espaço de participação
política dos movimentos sociais e das Organizações Não Governamen-
tais- ONG. Estas inclusive, dado o seu perfil técnico e a organização
institucional que contava com um grupo de “profissionais ativistas”
(ALVAREZ, 1998) que possuem vinculação orgânica com os setores
populares, com habilidades e conhecimento acerca de suas demandas e
dificuldades organizativas, cumprem um papel importante na articula-
ção, formulação de denúncias e proposição de políticas.
No Brasil, em particular, a criação de Conselho de Direitos das
Mulheres, das primeiras delegacias especializadas de atendimento a
mulher, a proposta inicial do Programa Integral da Saúde da Mulher,
entre outras, demandaram, em muitos casos, a presença de ativistas
do movimento na institucionalidade governamental. Fato que torna
evidente a complexidade do contexto que o feminismo se deparou.
Este processo evidencia o ponto de tensionamento para o feminismo: a
questão da autonomia.
Como ponto de divergência, a questão da autonomia político-or-
ganizativa do movimento se evidencia na necessidade histórica de se es-
tabelecer canais de interlocução com o Estado, objetivado nas políticas
públicas e ações governamentais. Para alguns grupos feministas, isto
equivale a integrar-se em postos da burocracia do Estado e colaborar
com este na reflexão, proposição e avaliação de ações e teorias acerca
da condição das mulheres na sociedade. Outros, acreditam que essa
“contribuição burocrática” coloca o movimento em uma perspectiva
de subordinação, fragilizando sua autonomia e, por conseguinte, seu
potencial de resistência e contestação frente ao Estado burguês-patriar-
cal4.
4. Maiores leituras sobre esse processo podem ser feitas em Farah (2004), Moraes
20 Caderno de Debates
mulheres e do seu núcleo comum que possibilita a construção de uma
identidade coletiva.
Assim, foi muito rico, neste debate, a presença de um maior número
de mulheres do meio popular no feminismo, que traziam demandas da
imediaticidade da sobrevivência, em um cotidiano de extrema pauperi-
zação e invisibilidade política. Fenômeno este que provocou uma atu-
alização das demandas feministas alimentando seu questionamento da
totalidade da vida social, com a centralidade do confronto ao patriar-
cardo, ao capitalismo e as formas tradicionais do fazer política.
Em nossa opinião, isso ocorre mediante a compreensão, por parte
do feminismo latinoamericano, de que a luta por respostas imediatas,
não são, necessariamente, opostas à perspectiva de emancipação. Ao
contrário, potencialmente, sua radicalização contribui para o processo
de transformação social, ao aprofundar a contradição entre os interes-
ses das mulheres, o papel do Estado e os interesses de classe.
22 Caderno de Debates
se autodesignavam, autônomas, frente as feministas com atuação nas
ONGs. Com isto, podemos afirmar que foram anos difíceis e igualmen-
te contraditórios.
Além do enfrentamento desse conflito interno o feminismo a apar-
tir de suas diversas representações buscou se contrapor a ofensiva
regressivaconservadora, da década de 90, mediante a construção de
amplas articulações entre si e com outrass organizações do campo an-
tiglobalização. Iniciando, um novo momento de internacionalização de
suas demandas.
Neste processo fica cada vez mais evidente, a necessidade de uma
unidade programática que possibilite ações conjunta com amplas re-
percussões no campo da política, da economia e da ideologia. Ações
que, como nos lembra Fraser (2007) consigam interligar lutas em con-
traposição a concentração de riquezas e má distribuição, com aquelas
que reivindicam questões de reconhecimento que presupõem igualmen-
te uma ruptura simbólica radical, na estrutura social.
Para tanto, o feminismo se desafia a ser um sujeito ativo em grande
parte das lutas sociais, estando presente na organização, articulação e
promoção de eventos políticos como o Fórum Social Mundial, a Alian-
ça Social Continental, além de participar de todas as ações continentais
do movimento antiglobalização.
Tal articulação evidencia o acúmulo do feminismo em nossa região,
o seu nível de reconhecimento entre as organizações de esquerda, e,
particularmente o seu papel na reflexão crítica em torno do modelo de
sociedade que orienta, o conjunto desses movimetos que se articulam
hoje, a partir de grande fóruns continentais, regionais e mundiais.
Falquet em suas reflexões em torno dos desafios das feministas,
no interior das organizações populares de resistência ao neoliberalismo
na região latinoamericana, reafirma que existem três questões que nos
servem de guia para apreender o nível de conservadorismo com relação
a questões da mulher, no interior destas:
Qual a divisão sexual do trabalho que os movimentos reprodu-
zem no interior deles mesmos ? Quais são os tipos de família
sobre os quais esses movimentos se apóiam para se constituir e
24 Caderno de Debates
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1. Introdução
A apreensão e elaboração de categorias teóricas que venham con-
tribuir para compreender criticamente a subordinação histórica das
mulheres e, com isso, intervir politicamente para a reversão desta su-
bordinação, tem sido pauta constante no feminismo, especialmente, a
partir de sua segunda onda. O movimento feminista, entretanto, possui,
em seu seio, uma diversidade de perspectivas, tanto no que diz respeito
à dimensão teórica, como política. É dentro desta diversidade, muitas
vezes expressas em posicionamentos antagônicos, que procuraremos
debater categorias centrais para o movimento feminista: gênero e pa-
triarcado.
Assim, objetivamos desenvolver uma breve abordagem histórica
em torno da categoria gênero, do seu surgimento no seio do movimen-
to feminista e de seu desenvolvimento na contemporaneidade, tentando
apreender suas determinações e suas diferentes perspectivas teóricas e,
por que não dizer, políticas. Será feito ainda um resgate da categoria pa-
triarcado, no que tange a sua importância, diferenças e complementari-
dades à categoria gênero. Mais precisamente, examinaremos a proble-
matização existente na relação entre gênero, patriarcado e feminismo,
mediante às perspectivas teóricas marxista e pós-moderna.
26 Caderno de Debates
do século XX, entre as décadas de 1970 e 1980. Seu objetivo advém
da necessidade de desnaturalizar e historicizar as desigualdades entre
homens e mulheres, analisadas, pois, como construções sociais, deter-
minadas pelas e nas relações sociais. Nestes termos, destaca Adriana
Piscitelli sobre a opressão feminina e o surgimento da categoria-gênero:
As hipóteses explicativas sobre as origens da opressão femini-
na foram sendo gradualmente questionadas e abandonadas na
busca de ferramentas conceituais mais apropriadas para desnatu-
ralizar essa opressão. Esse quadro de efervescência intelectual é o
contexto no qual se desenvolve o conceito de gênero2.
28 Caderno de Debates
Foi a partir da definição/concepção desta autora, que o conceito
de gênero “começou a difundir-se com uma força inusitada até esse
momento9 [...], tornando-se uma referência obrigatória na literatura
feminista”10.
Neste ensaio, Gayle Rubin estabelece uma dicotomia na relação
entre sexo/gênero. Gênero seria a construção social do sexo, e o sexo
seria o que é determinado biologicamente, fisiologicamente, portanto
naturalmente. Elabora-se um sistema sexo/gênero, que a autora concei-
tua como “um conjunto de arranjos através dos quais a matéria-prima
biológica do sexo humano e da procriação é modelada pela intervenção
social humana”. Estabelece-se, deste modo, um trânsito entre natureza
e cultura. A natureza fornece “os dados” e estes mostrariam que a “di-
ferença” é, sobretudo, cultural11.
Seguindo ainda o pensamento de Piscitelli, a autora afirma que
para Rubin o “parentesco criaria o gênero”. Diante dessa concepção,
Rubin não estabelece uma ruptura com as bases naturais que se propu-
nha criticar, como destaca Piscitelli dissertando sobre Rubin:
Para Rubin, o parentesco criaria o gênero. [...] no que se refere
às pré-condições necessárias para a operação dos sistemas de ca-
samento, ela considera que o parentesco instaura a diferença, a
oposição, exacerbando, no plano da cultura, as diferenças bioló-
gicas entre os sexos. Os sistemas de parentesco [...] envolveriam
a criação de dois sexos dicotômicos, a partir do sexo biológico,
uma particular divisão sexual do trabalho, provocando a interde-
pendência entre homens e mulheres, e a regulação social da sexu-
alidade [...].Mas se na formulação de Rubin, gênero é concebido
como um imperativo da cultura, que opõe homens e mulheres
através de relações instauradas pelo parentesco, ainda se ancora
em bases naturais12.
era a pessoa ‘acabada’ gendered, homem ou mulher. HARAWAY, Donna: ‘Gender for a
marxist dictionary’, in: Symians Cyborgs and Womem, 1991” (op. cit. p. 17).
9. Op. cit. p.17.
10. Apud Piscitelli, Adriana (2002, p.17).
11. Op. cit. (p.18-19).
12. Butler, Judith (1993, p. 154).
30 Caderno de Debates
Nessa perspectiva, Haraway “aponta como um problema central
que considera inerente aos conceitos de gênero” a:
[...] distinção com o sexo na qual nem o sexo, nem as raízes
epistemológicas da lógica de análise implicada na distinção
e em cada membro deste par, seriam historicizados e rela-
tivizados16.
Assim é que teóricas francesas preferem utilizar o termo “relações
sociais de sexo” para definir papéis e relações entre homens e mulheres
na sociedade, por entenderem o sexo também como socialmente de-
terminado e este ser interpretado e traduzido na experiência e vivência
da sociabilidade. Portanto, o sexo não se inscreve apenas no campo
biológico17.
Compartilha-se aqui desta crítica à naturalização da categoria
sexo, no entanto, de acordo com Saffioti:
[...] o conceito de gênero consegue dar plena conta do caráter
social inclusive do próprio sexo. Enquanto ao trabalhar-se com
gênero já se tem nítido o caráter fundamentalmente social que
lhe é imanente, ao empregarmos a categoria sexo nos fadamos
a sempre sobrenomeá-lo com o termo social. Dessa forma, ao se
falar de gênero, estamos nos referindo necessariamente a relações
sociais18.
20. “[...] as autoras que atuam nos debates contemporâneos de gênero consideram que
trabalham numa abordagem ‘desconstrutivista’, uma vez que olham criticamente para
os supostos sustentados pelas diversas disciplinas, examinando e ‘desmontando’ seus
modos de discurso” (PISCITELLI, 2002, p. 25).
21. “É interressante perceber que as ‘mulheres de cor’ ou ‘do Terceiro Mundo’ também
formulam sérias críticas às contradições colocadas pelas discussões pós-modernas. No
entanto, essas críticas centram-se, sobretudo, no lugar que essas discussões estão ocu-
pando na economia política da construção e difusão do conhecimento. ‘Mulheres de
cor’ e/ou ‘mulheres do Terceiro Mundo’ afirmaram que essas perspectivas, apesar de
chamarem a atenção para as experiências das ‘diferenças’, tendem a apropriar-se delas
através de mecanismos, mais uma vez, excludentes. Bell Hooks, por exemplo, questio-
na não tanto o ‘sentido’ do pós-modernismo, mas a linguagem cifrada em que ele se
expressa: codificada em termos dos interesses de uma audiência que alija as vozes das
pessoas negras, deslocadas, marginalizadas. Intelectuais do ‘Terceiro Mundo’ assinalam
que esses debates marginalizam, mais uma vez, o conhecimento das feministas ‘nativas’,
sufocando outro tipo de aproximação” (PISCITELLI, 2002, p.31).
22. Piscitelli, Adriana (2002, p. 32-33).
23. Moraes, M. (2000, p. 96).
32 Caderno de Debates
diferenças, não propõem uma alternativa ao movimento feminista e
distanciam-se da prática política, produzindo, portanto, uma teoria es-
téril. Nesse sentido, Piscitelli, dissertando sobre os incômodos dessas
abordagens para algumas feministas, afirma:
[...] a desconstrução – que pode desconstruir ad infinitum – ao
não oferecer alternativas ‘positivas’, dificultaria acionar um mo-
vimento. Além de dissolver o sujeito político ‘mulheres’, as pers-
pectivas desconstrutivistas também são acusadas de restabelece-
rem distâncias entre a reflexão teórica e o movimento político.
34 Caderno de Debates
res, que, por sua vez, deve ser vinculada à luta por uma nova sociedade,
uma vez que:
Sob o domínio do capital em qualquer de suas variedades – e não
apenas hoje, mas enquanto os imperativos desse sistema continu-
ar a determinar as formas e os limites da reprodução sociome-
tabólica – a ‘igualdade de mulheres’ não passa de simples falsa
admissão28.
Por outro lado, também tão importante quanto esta linha de análi-
se é reconhecer que da mesma forma que se faz indispensável lutar pelo
socialismo para alcançarmos a emancipação, é termos a consciência
que a superação do capitalismo não garante por si só a conquista da
liberdade e da igualdade entre os gêneros. Com efeito, destaca Antunes:
36 Caderno de Debates
devem ser percebidas. No entanto, dentro desta sociedade, não podem
ser vistas isoladas de suas macrodeterminações, pois, por mais que “o
gênero una as mulheres”, a homossexualidade una gays e lésbicas, a
geração una as(os) idosas(os) ou jovens, etc., a classe irá dividi-las(os)
dentro da ordem do capital.
A classe irá determinar como essas mais variadas expressões de
opressões irão ser vivenciadas por esses sujeitos. Com certeza, de modo
bastante diferenciado entre a classe trabalhadora e a dominante.
Assim, é que uma mulher da classe dominante explora uma mulher
da classe trabalhadora, uma idosa pode explorar outra idosa, uma
negra pode explorar outra negra, um homossexual pode explorar outro
homossexual. Os movimentos sociais devem, portanto, ter como cerne
a luta de classes.
Isso não é contraditório com as lutas ditas “específicas”. Primeiro,
porque dentro da “ordem metabólica do capital” as expressões cultu-
rais não se dão nem se encontram dissociadas de seu metabolismo, mas
dentro de sua ideologia e de sua reprodução com fins voltados a asse-
gurar os interesses da burguesia (claro, via exploração da classe traba-
lhadora); segundo, porque lutar pela extinção das desigualdades, opres-
sões e exploração, enfim, lutar por emancipação plena, liberdade, exige
a defesa de valores libertários − que não cedem espaço para a existência
de preconceitos, discriminações, subordinações − antes, garantem aos
sujeitos sociais o direito da livre expressão de suas subjetividades.
O que se defende não é a neutralização ou anulação das diferenças,
mas a percepção de que o movimento feminista deve convergir para os
aspectos político e social. Do contrário, só se fragmentam e pulverizam
as mulheres, o que não contribui para a luta por elas empreendida.
O “grande equívoco” está em acentuar a ênfase nas “diferenças”,
apenas como construções culturais, não se analisando, numa perspecti-
va de totalidade, que essas expressões culturais têm marcas de classe, ao
denotarem claros interesses da burguesia em perpetuar subordinações e
explorações que a favoreça, seja em mão-de-obra barata e precarizada,
seja na responsabilização das mulheres pela reprodução social.
Destarte, a categoria gênero deve ser percebida para além de uma
38 Caderno de Debates
ticas profundas e consistentes ao não conseguirem pôr “às claras”, as
contradições desta sociedade e o foco das desigualdades. Assim, cri-
ticam a linearidade do gênero, mas a reproduzem ao não analisar os
complexos sociais na dimensão da totalidade.
Além disso, essas análises acabam retrocedendo nos estudos de
gênero ao não abordar aspectos materialistas da história, enfocando os
“símbolos”, as “representações”, caindo no irracionalismo ao limitar-
se no subjetivismo, sem a mínima mediação com as determinações ob-
jetivas da sociedade. Com efeito, afirma Clara Araújo:
Nas análises pós-estruturalistas, sobretudo, a dimensão simbóli-
ca ganha centralidade, e a referência às práticas e relações mate-
riais torna-se opaca. Gênero deixa de ser um conceito meio, isto
é, uma forma de ampliar o olhar e entender a trajetória em torno
da qual a dominação foi se estruturando nas práticas materiais
e na subjetividade humana, para tornar-se um conceito totali-
zador, um modelo próprio e autônomo de análise das relações
de dominação/subordinação, centrado quase exclusivamente na
construção dos significados e símbolos das identidades masculi-
na e feminina. As práticas materiais e as intercessões com outras
clivagens praticamente desaparecem e/ou são bastante secunda-
rizadas. Gênero passa a descrever tudo e a explicar muito pouco,
pois, como conceito, tendeu a ser auto-referido32.
40 Caderno de Debates
exploração de classes, ao insistirem no abstrato, em fragmenta-
ções, diferenças, pluralidade, diversidade, sem nomear poderes e
privilégios de classe35.
42 Caderno de Debates
palavras, esta teoria apreende e formula as mediações40, que se situam
no movimento dialético entre a universalidade – leis tendenciais e gran-
des determinações de um dado complexo social – e a singularidade
– campo da aparência, da imediaticidade/facticidade expressa na vida
cotidiana, espaço em que, “cada fato parece explicar-se a si mesmo,
obedecendo a uma causalidade caótica”41.
A particularidade, compreendida como “campo de mediações”,
“síntese de determinações”, permite ao sujeito “negar” (“superar”) a
aparência, processando “o nível do concreto pensado, penetrando em
um campo de mediações (no qual se entrecruzam vários sistemas de
mediações), sistemas estes que são responsáveis pelas articulações, pas-
sagens e conversões histórico-ontológicas entre os complexos compo-
nentes do real”42.
Seguindo o pensamento de Pontes:
[...] significa que as leis tendenciais, que são capturadas pela
razão na esfera da universalidade, tais como leis de mercado, re-
lações políticas de dominação, como que tomassem vida, se obje-
tivassem e se tornassem presentes na realidade da vida singular
das relações sociais cotidianas, desingularizando-as e tornando
aquilo que era universal em particular, sem perder seu caráter de
universalidade nem tampouco sua dimensão de singularidade43.
44 Caderno de Debates
diretamente, as relações de dominação, opressão e exploração masculi-
nas no controle do corpo e na vida das mulheres. Relações estas ainda
fortemente presentes em nossa sociedade, daí a importância de conside-
rarmos o patriarcado, até porque:
Gênero é um conceito por demais palatável, porque é excessi-
vamente geral, a-histórico, apolítico e pretensamente neutro.
Exatamente em função de sua generalidade excessiva, apresenta
grande grau de extensão, mas baixo nível de compreensão. O
patriarcado ou ordem patriarcal de gênero, ao contrário, como
vem explícito em seu nome, só se aplica a uma fase histórica,
não tendo a pretensão da generalidade nem da neutralidade, e
deixando propositadamente explícito o vetor da dominação-ex-
ploração. Entra-se, assim, no reino da História. Trata-se, pois,
da falocracia, do androcentrismo, da primazia masculina. É, por
conseguinte, um conceito de ordem política47.
46 Caderno de Debates
cado se faz à medida que compreendemos a relação de complementa-
ridade entre ambas as categorias. Nesta perspectiva, destaca Saffioti:
1. a utilidade do conceito de gênero, mesmo porque ele é muito
mais amplo do que o de patriarcado, dando conta dos 250 mil
anos da humanidade;
Referências
ARAÚJO, Clara. Marxismo, feminismo e o enfoque de gênero. In: Revista
Crítica Marxista, nº 11. São Paulo: Boitempo, 2000.
ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaios sobre a afirmação e
negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.
BENOIT, Lelita. Feminismo, gênero e revolução. In: Revista Crítica Marxista,
nº 11. São Paulo: Boitempo, 2000.
CASTRO, Mary Garcia. Marxismo, feminismos e feminismo marxista: mais
que um gênero em tempos neoliberais. In: Revista Crítica Marxista, nº 11. São
Paulo: Boitempo, 2000.
FERREIRA, Verônica Maria. “Fios invisíveis”: O Trabalho de mulheres nas
indústrias de redes de dormir do município de Jaguaruana–CE. Monografia de
conclusão de curso. Fortaleza: UECE, 2002.
HARVEY, David. Condição Pós-moderna. 11ª Edição. São Paulo: Loyola,
2002.
IAMAMOTO, M. V. Trabalho e indivíduo social. São Paulo: Cortez, 2001.
48 Caderno de Debates
Da divisão do trabalho entre os sexos
Daniele Kergoat (CNRS -França)
50 Caderno de Debates
2. Divisão sexual do trabalho e noções alternativas
A divisão sexual do trabalho aparecia como “natural” e portanto
não sociológica; mas na realidade as atitudes, os comportamentos, as
práticas sociais dos homens e das mulheres variam. Essa diferença não
pode ser sempre escamoteada: em particular no terreno do trabalho,
quer se trate de práticas em relação à organização técnica e social do
trabalho ou daquelas em relação aos sindicatos e à reivindicação, tais
diferenças colocam problemas porque tanto a organização do trabalho
quanto a organização sindical devem, num dado momento, levá-las em
consideração, seja para utilizá-las da melhor maneira possível, seja para
compreender certas resistências.
Daí, a questão: não seria um esforço desnecessário falar de divisão
sexual do trabalho?
Não poderíamos utilizar, com igual proveito, as noções já existen-
tes: desigualdade, inferiorização, marginalização, superexploração etc.?
Vejamos, então, como essas noções são utilizadas e o que elas permitem
explicar.
Segundo alguns, as diferenças observadas remetem à natureza par-
ticular do sexo feminino. Assim, as mulheres seriam mais impulsivas,
mais nervosas, mais dóceis, dando menos importância à promoção,
mais meticulosas, menos combativas, mais sensíveis aos problemas fa-
miliares.
Dá-se, pois, às diferenças observadas, o status de atributos perifé-
ricos ao modelo geral, o que só seria correto se o modelo em questão
fosse realmente “geral”, o que não acontece, porque não se trata de um
modelo típico-ideal construído a partir da análise das práticas dos dois
sexos.
A ausência de explicação teórica é, assim, substituída por estere-
ótipos de lastimável simplismo sobre a “natureza feminina”. Nota-se
assim uma continuidade perfeita entre a construção da histeria femi-
nina enquanto objeto nosológico no século XIX e a da submissão fe-
minina à ordem produtiva, hoje (“a adaptação natural das mulheres a
tarefas repetitivas e simples parece mostrar em particular que o proble-
52 Caderno de Debates
Tais soluções são fadadas ao fracasso:
mesmo quando são melhor instruídas, elas permanecem
(com idade e nível de diploma equivalentes) desempregadas
por muito mais tempo que os homens; e quando obtêm fi-
nalmente emprego, é quase sempre com uma qualificação
inferior;
mesmo quando obtêm facilidades com o trabalho de meio-
período, percebe-se rapidamente que o auxílio em questão
só as marginaliza mais (bloqueio da promoção, por exem-
plo) e remete-as rapidamente ao universo doméstico (pela
não-partilha do trabalho doméstico que é provocada pela
sua passagem a meio-período)2
2. Danilele Kergoat efetuou uma pesquisa sobre mulheres que trabalham meio-período
no setor de serviços e na indústria (operárias, vendedoras, assalariadas em escritório
e faxineiras). Um dos resultados dessa pesquisa indica que o trabalho doméstico, par-
tilhado com o marido quando ambos são assalariados em tempo integral, volta a ser
realizado exclusivamente pelas mulheres quando elas trabalham meio período. Cf.Le
travail à temps patiel. La documentation Française, 1984 (N.daT.)
54 Caderno de Debates
ritmo de trabalho (contra respectivamente 16% para os operários qua-
lificados e 18% para os não qualificados); 48,2% repetem sempre uma
mesma série de gestos e de operações (contra 20,7% para os operários
qualificados e 33,5% para os não-qualificados). Isso significa que uma
operária qualificada tem duas vezes mais possibilidades de trabalhar
em linha de montagem que um operário não qualificado e uma vez e
meia mais possibilidades de ter uma remuneração dependente do ritmo
de trabalho e de ter que repetir sempre a mesma série de gestos ou
de operações: a clivagem passa portanto entre homens e mulheres de
classe operária, bem mais do que entre categorias profissionais,
Assim, apenas sobre o plano da organização técnica - plano que
poderíamos supor pouco dependente a priori da ideologia, e mais fa-
cilmente objetivável - aparece claramente que a situação das operárias
é qualitativamente diferente dos operários e não só quantitativamente,
porque as categorias sócio-profissionais tradicionais (“os não qualifi-
cados”, “operários qualificados”...) recobrem tipos de trabalho bem
diferentes segundo se trate de homens ou de mulheres. É por isso que
dizemos que o conceito de superexploração em si só é insuficiente para
dar conta da condição operária feminina.
Vemos assim claramente que as diferenças observadas no tratamen-
to que nossas sociedades reservam aos homens e às mulheres no campo
do trabalho, não têm a ver com um mais ou menos, mas devem ser re-
lacionadas, não a modulações, mas a diferenças, contradições entre os
dois sexos, a relações sociais, em suma.
E, inversamente, se admitirmos que existe uma relação social espe-
cífica entre homens e mulheres, decorreria daí que há necessariamente
práticas sociais diferentes segundo o sexo (assim como o problema da
qualificação, que veremos mais adiante). E dado que se trata de políti-
cas sociais, e não mais de condutas reguladas biologicamente, pode-se
encontrar um princípio de inteligibilidade. Assim, o que era ininteligível
para o sociólogo ou fora do campo de sua disciplina, torna-se objeto
de questionamento.
Concluindo: não se pode raciocinar unicamente em termos de rela-
ções de classe (as mulheres seriam mais vulneráveis que os homens na
56 Caderno de Debates
Nós nos insurgimos contra tais afirmações e o que delas decorre,
a saber:
que bastaria reformar o aparelho de formação, de abrir por
exemplo carreiras masculinas para que as mulheres tenham
meios de adquirir uma formação superior, facilmente negociá-
vel no mercado de trabalho;
que bastaria que as mulheres fossem conscientes do enjeu que
representa a qualificação na relação capital/trabalho para que
lutem... e ganhem nesse domínio.
58 Caderno de Debates
a divisão do trabalho entre os homens e as mulheres faz
parte integrante da divisão social do trabalho. De um ponto
de vista histórico, a estruturação atual da divisão sexual do
trabalho (trabalho assalariado/trabalho doméstico; fábrica,
escritório/família) apareceu simultaneamente com o capita-
lismo, a relação salarial só podendo surgir com a aparição
do trabalho doméstico (deve-se notar de passagem que esta
noção de “trabalho doméstico” , não é nem a-histórica nem
trans-histórica; ao contrário. sua gênese é datada historica-
mente). Do nascimento do capitalismo ao período atual, as
modalidades desta divisão do trabalho entre os sexos, tanto
no assalariamento quanto no trabalho doméstico, evoluem
no tempo de maneira concomitante às relações de produção;
60 Caderno de Debates
Marxismo e feminismo: estratégia e tática
Tatiana Berringer- (São Paulo)
62 Caderno de Debates
governo investem energias que poderiam estar voltadas para formação,
e orientadas na busca de mudanças culturais e ideológicas. Mudanças
que exigem sistemático investimento de longo prazo em atividades de
formação (CASTRO, 2000, p.106). Como nos alerta a socióloga Mary
Garcia Castro uma organização de noto tipo:
Além de exigir enfrentamento com expressões de conservadoris-
mo popular, o que seria o avesso à tônica de ganhar votos, ou
dizer o que o povo quer ouvir- inclusive porque se estaria, ao se
questionar as relações entre homens e mulheres, por exemplo,
quebrando a idéia de unidade aparente no povo e se investindo
na unidade, no povo, como processo, ou seja, “engendrando” a
classe.
Por outro lado, defendo que investir no engendramento de um
feminismo marxista e de um feminismo socialista tem hoje parti-
cular pertinência, quer pela propriedade do marxismo – a insis-
tência em uma saída radical, considerando a falência das fórmu-
las liberais, inclusive no plano de políticas de identidade, para as
mulheres -, quer porque, como há muito defendem as feministas
marxistas e socialistas, não bastaria uma interpretação centrada
apenas no marxismo para dar conta da complexidade das rela-
ções desiguais entre os sexos, as divisões sexuais de trabalho, de
poder e de codificação do prazer, o que pede diálogo guardado os
limites ideológicos, entre distintos feminismos. (2000, p.106-7).
64 Caderno de Debates
cumprindo uma dupla jornada de trabalho, sem abandonar o trabalho
de cuidado da casa e de seus familiares.
Além da dupla jornada, o sistema encontrou no trabalho das mu-
lheres uma forma de aumentar a exploração e extração da mais-valia,
sub-remunerando-as. Mesmo quando as mulheres exercem as mesmas
funções que os homens, estatisticamente têm um salário inferior ao dos
homens. Mesmo que tenham formação, ocupam cargos de meio perío-
do ou que exigem qualificação abaixo daquelas que eles possuem.
No plano econômico, as mulheres seguem sendo a grande maioria
dos pobres do mundo, sem remuneração para o trabalho doméstico,
sem divisão deste com os homens e sem paridade nos trabalhos para
o mercado. A chamada globalização neoliberal ampliou a informaliza-
ção dos trabalhos: trabalhos temporários, terceirizados, precarizados,
sem garantias e direitos. E também em serviços sexuais (prostituição e
pornografia). E aumentou o tráfico de mulheres, compradas e vendidas
internacionalmente para serviços sexuais, domésticos ou até mesmo es-
cravos.
Há uma camada social no Brasil, constituída pela massa de em-
pregadas domésticas: uma parcela considerável das mulheres, respon-
sáveis pelo funcionamento e sustentação das casas, ocupando o papel
das “amas” da Casa Grande, um legado da estrutura colonial de que
não libertamos ainda milhões de mulheres. Os direitos trabalhistas
são ainda flexíveis para esta camada da classe trabalhadora feminina,
muitas trabalham como diaristas, sem vinculo empregatício. Emancipá-
las, reconhecer-lhes os direitos mínimos ligados ao trabalho é parte fun-
damental do projeto popular.
No plano político, nos é relegado um papel secundário pelos sécu-
los em que fomos excluídas da atuação política institucional e também
revolucionária. Além da tardia universalização dos votos. Hoje, por
conta da dupla jornada de trabalho, não nos resta o mesmo tempo
que aos homens para militar e nos formarmos politicamente. E ainda
enfrentamos preconceitos, brincadeiras sexistas, esteriotipadoras e um
padrão de militante que não nos favorece! O mundo da política foi
construído a partir de uma linguagem e símbolos que os homens apren-
66 Caderno de Debates
machistas, oprimem seus filhos e filhas.
Se entendemos que o Estado é um fator de coesão social, cujo papel
é a manutenção e reprodução das relações de classe, cujos aparelhos
repressivos e ideológicos exercem um papel decisivo para a divisão e
reprodução ampliada das classes. Pensar na transformação radical da
sociedade não se limita a mudança do poder de Estado, mas implica
na destruição dos próprios aparelhos de Estado que deverão ser subs-
tituídos. Os aparelhos ideológicos do Estado (escola, igreja, mídia) re-
produzem a opressão patriarcal. É preciso repensar na função e forma
de organização da religião e da família, se queremos garantir que as
mudanças aconteçam profundamente na sociedade.
A classe não se define somente no momento da luta de classes,
enquanto organização política autônoma, com “consciência de classe”,
portadora de uma ideologia proletária revolucionária, “classe para si”,
isso se dá em um momento conjuntural revolucionário quando as clas-
ses se apresentam como forças sociais. Porém a classe é definida pelo
conjunto de relações sociais econômicas, políticas e ideológicas que são
estruturas.
As mulheres têm sido protagonistas na luta contra as transnacio-
nais e por soberania alimentar. Através de uma aliança entre o campo e
a cidade estas pautas projetaram-se internacionalmente lideradas pela
Via Campesina e pela Marcha Mundial de Mulheres. Mas ainda há um
conjunto de pautas especificas da vida das mulheres que são reivindica-
ções que vêm sendo tocadas por entidades e movimentos de mulheres,
com trabalho específico de base, que visa à superação da violência se-
xista e de conquistas democráticas.
E existe um duro caminho a ser percorrido no interior das organi-
zações políticas de esquerda, conforme defende Castro:
[...] a dupla militância, o estar na academia e estar em organiza-
ções políticas mistas, na militância em partidos e organizações de
esquerda e em núcleos autônomos feministas. É uma prática com
custos inclusive no plano pessoal, considerando o encrostamento
cultural do machismo em camaradas e companheiros, ainda que
se assuma na retórica, hoje, nas organizações de esquerda, de
citar gênero e tolerar as cotas para mulheres e os departamentos
Bibliografia
ARAÚJO, Clara. Marxismo, feminismo e enfoque de gênero. Revista Crítica
Marxista. Campinas: Unicamp. Nª11, 2000.
BENOIT, Lelita Oliveira. Feminismo, gênero e revolução. Revista Crítica Mar-
xista. Campinas: Unicamp. Nª11, 2000.
CASTRO, Mary Garcia. Marxismo, feminismos, e feminismo marxista – mais
68 Caderno de Debates
que um gênero em tempos neoliberais. Revista Crítica Marxista. Campinas:
Unicamp. Nª11, 2000.
KERGOAT, Daniele. Da divisão sexual entre os sexos.
POULANTZAS, Nicos. As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janei-
ro: Zahar Editores, 1978.