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CONSULTA POPULAR

CADERNO DE D E B AT E S

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C o n

No. 1

junho 2009

é botando o bloco na rua, caminhando, cantando e


dançando que eu aprendo a ser mulher ...
Consulta Popular
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Índice

A Consulta Popular e o Feminismo


Bernadete Monteiro 5
Feminismo e luta de classe:
a auto-organização das mulheres pela história
Telma Maciel
8
A Relação Orgânica entre Gênero e
Patriarcado na Sociedade Capitalista:
uma análise teórico-crítica
Mirla Cisne
26
Da divisão do trabalho entre os sexos
Daniele Kergoat
49
Marxismo e feminismo: estratégia e tática
Tatiana Berringer 61
8 de março
P isar firme no chão
juntas num mesmo compasso
(mesmo que a harmonia perca o ritmo)
e gritar em alto e bom som
as vozes tantas vezes silenciadas
tomar a avenida!
e colorir a cidade
de roxo, vermelho, lilás,
pintar o céu de azul
pra possibilitar outro amanhecer.
Ousar sem medo:
é botando o bloco na rua,
caminhando, cantando
e dançando
que eu aprendo
a ser mulher.

Lira Alli
A Consulta Popular e o Feminismo
Bernadete Monteiro –Minas Gerais

A História do debate do feminismo dentro da Consulta Popular é


muito recente. E não é por acaso que ele torna-se mais forte e evidente
nesse momento em que nossa organização reafirma seu caráter revolu-
cionário.
Esse debate trás consigo a necessidade da radicalização da luta e do
enfrentamento a esse sistema capitalista e patriarcal.
“A luta feminista não é isolada, é parte da luta de classes, o femi-
nismo deve compor uma unidade com a luta classista. A emanci-
pação das mulheres e dos homens impõe uma ruptura com o sis-
tema capitalista, não apenas na base material da produção, mas
também, no campo dos valores, do modo de vida e da cultura.” *

Para nós mulheres feministas o processo revolucionário tem que


constituir rompimentos com todas as estruturas que sustentam a ex-
ploração e as opressões. As bases desse rompimento são construídas a
partir de agora e devem estar expressas nos debates e ações internas e
externas da Consulta Popular.
“Assim, compreendemos que não podemos construir nossa luta
por liberdade e igualdade numa perspectiva etapista. Uma vez
que o patriarcado, como sistema de dominação e exploração das
mulheres, é anterior ao capitalismo e milenar, está encarnado no
tecido social. Destruí-lo é uma tarefa diária de todas as pesso-
as revolucionárias que devem, desde já, alimentar novos valores,
pautados na igualdade, na solidariedade e na liberdade.”*

Um marco na construção do debate e da ação feminista na Consul-


ta Popular é nossa 3ª Assembléia Nacional, em Belo Horizonte, onde
pela primeira vez as mulheres da Consulta Popular se reúnem para de-
bater o feminismo e a auto-organização. Constitui-se o setor nacional
de mulheres, com diretrizes para a construção de setores nos estados e
da ampliação do debate. Antes deste momento, já haviam em alguns
estados discussões, muitas vezes, fomentado por militantes que estavam

A Consulta Popular e o Feminismo 5


inseridas em movimentos feministas, mas ainda eram localizados.
A realização da 1ª Etapa da Escola da Consulta Popular foi o se-
gundo momento em que as mulheres puderam reunir-se em âmbito na-
cional. Deste espaço saímos com uma avaliação de que pouco tínhamos
caminhado desde a 3ª Assembléia. A maioria dos estados ainda não
tinha setor de mulheres constituído e nem se quer o debate tinha inicia-
do. Então decidimos que iríamos incentivar que as mulheres se reunis-
sem também nas etapas regionais da Escola e assim nos prepararmos
para o nosso I Encontro Nacional das Mulheres da Consulta Popular.
O I Encontro Nacional das Mulheres da Consulta Popular que
aconteceu na Escola Nacional Florestan Fernandes nos dia 06 e 07 de
dezembro de 2008 foi outro grande marco importante em nossa histó-
ria. Ele teve como objetivo afinarmos nossos entendimentos e fortalecer
o debate e ação feminista em nossa organização. Foi um espaço de
grande mística e força para todas nós. No qual reafirmamos as mulhe-
res como sujeitas da construção do processo revolucionário e o femi-
nismo como teoria e ação necessária para a construção do socialismo.
Saímos do encontro com a Carta das Mulheres da Consulta Popular e
importantes definições como a criação efetiva de um setor de mulheres
nacional com representação dos estados e elaboração desse caderno de
debates que agora apresentamos.
Os textos que seguem são frutos dos esforços de companheiras
da Consulta Popular de trazerem algumas temáticas que julgamos im-
portantes no debate do Feminismo: o primeiro traz uma abordagem
histórica de dois conceitos essenciais para apreensão do debate e da
ação feminista: gênero e patriarcado e sua relação com o feminismo,
bem como uma problematização entre as perspectivas marxistas e pós-
modernas.
O segundo é um resgate histórico do feminismo e sua relação com
a luta de classes desde sua primeira expressão como sujeito político das
mulheres até os dias de hoje.
O terceiro é um texto de uma feminista francesa que traz o debate
em torno da divisão sexual do trabalho, categoria indispensável para
compreensão da base material da opressão das mulheres.

6 Caderno de Debates
O quarto traz reflexões a cerca do diálogo do feminismo e o mar-
xismo com a tática e estratégia da Consulta Popular.
Esperamos que este caderno de debates amplie nossas discussões
para o todo da organização, bem como possibilite irmos afinando
nossas compreensões em torno do caráter tático-estratégico do feminis-
mo e da necessidade de construirmos dentro e fora da Consulta Popular
novas relações entre homens e mulheres como exemplo pedagógico de
uma organização revolucionária, orientada pela liberdade e igualdade.

“Ninguém pára nossa LUTA ninguém cala nossa VOZ, mulheres


FEMNISTAS, SOCIALISTAS somos nós!”

Bernadete Esperança Monteiro


Consulta Popular

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Feminismo e luta de classe: a auto-
organização das mulheres pela história
Telma Maciel –Rio Grande do Norte

O Feminismo desde sua primeira expressão, como sujeito político


das mulheres, na França, em 1789, vem se reafirmando como um dos
movimentos sociais que deve ser considerado como elemento impres-
cindível, em qualquer processo de transformação radical das relações
sociais.
Assim, neste texto pretendemos resgatar a história do feminismo
com o recorte no caráter de massa deste movimento, ao mesmo tempo
em que refletimos acerca de suas estratégias e táticas para sua constru-
ção coletiva, na tomada de decisões e encaminhamentos das reivindica-
ções das mulheres.
Frisamos que, assim como outros movimentos sociais, o feminis-
mo tem uma história marcada por ações que orientam no sentido da
ruptura radical estrutural-simbólica com os mecanismos que perpetu-
am as desigualdades sociais. E, juntamente com outras desigualdades,
estruturam os pilares da dominação patriarcal capitalista na contem-
poraneidade.

1. Igualdade e liberdade
A primeira vez que as mulheres se apresentaram na história como
sujeito político, foi no processo da Revolução Francesa. Assim, por
exemplo, em janeiro de 1789, as mulheres do terceiro estado, como
afirma Riot-Sarcey (2002, p. 08) demandam explicitamente “sair da
ignorância” para poder educar suas crianças e exercer um trabalho para
não ser mais reduzidas ao estado de dependente.
Além disso, existe registro da luta das mulheres pelo direito ao alis-
tamento na carreira militar e ter acesso as armas, na defesa da revolu-
ção. Direito até então restrito aos homens, apesar da presença massiva
das mulheres, nas ruas em levante populares contra o poder Real e da

8 Caderno de Debates
Igreja na organização da sociabilidade à época.
Assim durante todo o período de conflitos e consolidação da so-
ciedade moderna, após pelo menos quase cem anos de revoltas e con-
frontos entre o povo e os burgueses, juntamente com os seus aliados
políticos. As mulheres se mantiveram na resistência por isso mesmo,
foram consideradas uma ameaça pela nascente ordem burguesa que,
em 1793, proibiu reunião dos clubes de mulheres.
Ocorre que após conhecerem a experiência da revolução e da polí-
tica as mulheres, dificilmente aceitariam voltar para o domínio do lar,
como cidadãs resignadas. E assim, além de lutarem pela consolidação
do poder popular em contraponto ao poder burguês, que ganhara força
no processo da Revolução Francesa. As mulheres iniciaram uma grande
batalha em torno de seu reconhecimento como sujeito e, portanto com
o direito de participar ativamente da vida pública, no campo do traba-
lho, da educação e da representatividade política.
Sendo assim, em quase meio século, as mulheres realizaram ações
radicais de combate a sua exclusão da soberaneidade popular, inau-
gurada com a sociedade moderna que se propôs a eliminar todo tipo
de desigualdade já que insurge com o lema da igualdade, liberdade e
fraternidade.
Neste contexto eram comuns ações como abaixoassinados, ocupa-
ção de praças, elaboração de manifestos e de declarações públicas que
reivindicavam a igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Como forma de combater a influência dessas ações na sociedade o
regime político dominante aprisionou, executou ou guilhotinou várias
mulheres1. Além de criar medidas que reduziram ainda mais a presença
política destas, como proibição das mulheres falarem nas Assembléias
Revolucionárias e de realizarem manifestações públicas.
O texto a seguir, segundo Riot-Sarcey ( 2002), evidencia os argu-
mentos utilizados para justificar tais proibições:

1. Dentre as mulheres condenadas ou executadas nesse processo destacamos Olympe


de Gouges, Pauline Léon,, entre outras.

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Todos os habitantes de um país devem e gozam de direitos de
cidadãos passivos, todos tem direito a proteção de sua pessoa, de
sua propriedade, de sua liberdade, etc... mas nem todos tem o di-
reito a ser parte ativa da formação do poder público; nem todos
são cidadãos ativos. As mulheres, [...] as crianças, os estrangei-
ros, aqueles que não contribuem em nada para o funcionamento
público não devem, pois influenciar na coisa pública ( p. 20).

Além dessa interdição do direito das mulheres exercerem a política,


o regime burguês reafirmou a hierarquia na família como base para a
organização social, posicionando-se contra o direito ao amor livre e ao
divórcio, reclamado pelas mulheres no processo da Revolução France-
sa. Ao mesmo tempo em que reafirma o poder do homem como chefe
da família, ao qual devem estar subordinado todos os outros membros.
Também data deste período a publicação, em 1843, do livro
União Operária, de Flora Tristan, no qual a autora propõe, mesmo
antes de Marx e Engels, a criação de uma associação internacional de
trabalhadores e trabalhadoras. Sendo, portanto, a primeira socialista a
escrever sobre a indissociabilidade da luta das mulheres com a luta de
classe.
Neste sentido, podemos destacar o seguinte texto do capítu-
lo Porque eu mencionei as mulheres, da referida obra, no qual Tris-
tan (1986) argumenta em torno da igualdade [...] reclamo os direitos
das mulheres, porque estou convencida que todos os males do mundo
provêm da incompreensão que se tem até hoje de que os direitos natu-
rais são imprescindíveis para o ser mulher [...] ( p. 104).
Em seguida defende o engajamento dos operários na luta pela
igualdade entre os sexos, ao afirmar [...] Cabe a vocês, operários, que
são vítimas das desigualdades de fato e das injustiças, cabe a vós esta-
belecer na terra o reino da justiça e da igualdade absoluta entre homens
e mulheres ( 1985, p. 211).
Observa-se, portanto que a luta das mulheres neste período se
dirigia tanto para as estruturas de Estado e parlamento, na reivindica-
ção dos direitos civis e políticos, quanto para as organizações de traba-
lhadores, no sentido do apoio para as suas reivindicações que acima de
tudo reclamavam por igualdade e liberdade para todos e todas.

10 Caderno de Debates
Desse modo até a segunda metade dos anos de 1800 a luta
pela igualdade era o tema central de mobilização das mulheres, que no
geral assumiam as reivindicações pelo direito a educação, ao trabalho e
a igualdade salarial, além dos direitos políticos.
Apesar das mulheres contarem com o apoio do movimento
dos trabalhadores na maioria de suas reivindicações, foi particularmen-
te, com relação ao direito ao trabalho que houve maior resistência.
Inclusive em 1866, no congresso da Internacional dos Trabalhadores
os delegados foram contrários ao trabalho feminino. Esta decisão pro-
vocou reação imediata das mulheres socialistas e de seus aliados que
intensificaram as manifestações e as petições públicas e fundaram a pri-
meira associação feminista, chamada de Liga das Mulheres, em 1868.
Este acirramento de posições perdurou até 1871, quando
emergiu a experiência da Comuna de Paris e as reivindicações pela
igualdade entre os sexos, cedem lugar a causa comum da conquista de
uma sociedade regida pelos interesses da classe trabalhadora.
Neste contexto, as mulheres tiveram grande contribuição nas ações
de boicote, confronto e resistência ao poder dominante, assumindo um
claro compromisso de classe com a luta socialista. Inclusive encontra-
mos registro acerca das petroleiras (GUERIN, 2004, RIOT-SARCEY,
2002) brigada de mulheres, responsável por incendiar vários prédios
públicos, em Paris, nos momentos de confronto mais radical entre os
comunalistas e a guarda nacional, no qual morreram cerca de 20 mil
pessoas, entre elas milhares de mulheres.
Face ao exposto podemos concluir que as feministas chamaram a
atenção para os limites do homem enquanto sujeito universal da his-
tória, destacando os problemas relativos à dimensão do público e do
privado, oriundos desta universalidade.2 Afirmando que a sociedade
não poderia proclamar a igualdade se permanecesse a dualidade do pú-
blico e do privado e, conseguentemente, a desigualdade entre homens
e mulheres.
2. Para Fraisse (1998: 11), as manifestações de mulheres neste período se distinguem
das dos séculos anteriores quando: “ a disputa é levada à praça pública e toma a forma
de um debate democrático: converte-se, pela primeira vez, na forma explícita de uma
questão política.”

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Proclamavam também a igualdade como condição de cidadania
para todos. Elas perguntavam por que o Estado Revolucionário, em
suas leis e normas tornava um dado da natureza, proveniente do nasci-
mento, algo normativo para o acesso à cidadania?
As francesas revolucionárias traziam, assim, pela primeira vez,
para o Estado Moderno, a necessidade de se organizar a diferença de
maneira igualitária, sendo necessária, portanto, a criação de novos va-
lores que estabelecessem uma relação política de igualdade.
Neste curso de pressão e interpelação do discurso e prática dos
revolucionários franceses, as mulheres introduziram uma resignificação
do processo de construção da sociedade moderna, no confrontamento
direto com a lógica patriarcal. Ao mesmo tempo, designam-se como
sujeito e enquanto coletivo político. É neste processo de autodesigna-
ção que se expressa a diversidade de sujeitos3 que constituem a práxis
histórica do feminismo.

2. O feminismo do século XIX: emancipação e luta sufragista


A consolidação do capitalismo e a nascente industrialização provo-
caram um conjunto de alterações de ordem econômica, social e política
que tiveram repercussões na vida das mulheres. No entanto, mesmo
sendo requisitadas como força de trabalho pela nova ordem econômi-
ca, foram inseridas de forma precária em atividades com menos valor
social em comparação com os homens. Além de continuarem excluídas
dos direitos civis e políticos
Por outro lado, as mulheres da classe em ascensão viviam uma re-
alidade adversa. Cada vez mais confinadas ao interior do lar, já que a
ideologia patriarcal definia o homem como o provedor e protetor da
família, as mulheres burguesas passaram acumular críticas à sua situa-
ção de propriedade legal dos homens ( pais, maridos ou irmãos) e a sua
exclusão do direito a educação, ao trabalho remunerado.
A luta sufragista surge neste contexto. As mulheres defendiam que

3. Miguel (2000) aborda este processo no artigo: Los feminismos a través de la historia.
Disponível em: http://creatividadfeminista.org/artículos/feminismo,2000.

12 Caderno de Debates
o sufrágio universal possibilitaria o acesso das mulheres ao parlamento
e por consequinte abriria a possibilidade de mudança no conjunto das
leis e instituições. A luta sufragista também possibilitaria uma ampla
aliança entre as mulheres, unificando posições políticas diferente.
A reivindicação pelo direito ao sufrágio mobilizou as mulheres por
sete décadas em diferentes países e regiões do mundo. De início, tanto
nos Estados Unidos quanto em alguns países da Europa, as sufragistas
tinha como estratégia a busca de apoio parlamentar a partir de uma
ampla mobilização popular. Assim, o movimento chegou a envolver
milhões de mulheres e realizou inúmeras ações de grande envergadura
social. Esta estratégia é abandonada nos inícios do século XX, quando
parte das organizações sufragistas passam a adotar ações mais radi-
cais e são duramente reprimidas pelo Estado, segundo Alves e Pitanguy
(1991).
No Brasil, em particular o movimento sufragista não ocorreu
com esse caráter de mobilização popular, mas, como em outros países,
ocupou por muito tempo o cenário político, a partir de seus atos e mo-
bilizações junto ao Congresso Nacional, bem como, com as inúmeras
publicações de caráter feminista.
Assim, em diferentes épocas e processos as mulheres conquistaram
o sufrágio após anos de confronto e mediante fortes resistências, como
já situamos. Dentre as particularidades deste movimento, sem dúvida,
o seu caráter de massa foi o que mais desafiou as feministas socialistas,
no interior das organizações sindicais, bem como na estrutura dos par-
tidos comunistas. Para justificar a importância da luta das mulheres,
para o processo de transformação radical da sociedade.
Sem dúvida que, o debate em torno desse caráter e de seu papel na
luta revolucionária, mobilizou, articulou e ao mesmo tempo, dividiu a
ação das feministas. No entanto, foi fundamental para a consolidação
do posicionamento político do movimento no sentido de articular a
luta das mulheres com a luta pela emancipação humana.
Isto por quê como já situamos, a entrada das mulheres no mundo
do trabalho enfrentou forte resistência de parte dos trabalhadores que,
dominados pela ideologia patriarcal, consideravam essa presença além

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de uma ameaça aos seus empregos, mas também uma deturpação do
papel tradicional das mulheres que para eles deveria se reduzir ao cui-
dado do lar.
Assim, além desse enfrentamento as mulheres tiveram que desa-
fiar as próprias organizações sindicais para aceitá-las como parte e,
portanto, assumirem suas reivindicações por salários iguais e direitos
políticos.
A agudização da questão social no século XIX aprofunda o
caráter social da opressão das mulheres e contribue para uma maior
aproximação das organizações de mulheres, com a luta socialista. Cul-
minando com a realização de Congressos Internacionais, nos quais se
definiam linhas de atuação política para organização das mulheres nos
partidos comunistas. Foi inclusive, num deste encontros, em 1910, que
foi definido a realização da primeira Jornada Internacional da Mulher
que iniciou a tradição do 08 de março, em nível mundial, segundo al-
gumas pensadoras feministas.
O importante de se destacar neste contexto foi a articulação estra-
tégica entre a luta pela autonomia e autodeterminação das mulheres
com a busca incessante da emancipação humana, frente as forças des-
trutivas do capital. Conforme nos ressalta Mészáros,
[...] estando [...] centrada na questão da igualdade substantiva,
uma grande causa histórica em movimento, sem encontrar saídas
para a sua realização dentro dos limites do sistema do capital. A
causa da emancipação e da igualdade das mulheres envolve os
processos e instituições mais importantes de toda a ordem socio-
metabólica (2002, p. 307).

A experiência do socialismo real, nos países de Leste europeu, evi-


denciou as dificuldades desta articulação, na medida em que as trans-
formação da base produtiva não alteraram as relações de poder e de
desigualdades entre homens e mulheres. Sobre este fato os escritos de
Alexandra Kollontai acerca da emergência de uma nova moral com a
destruição do patriarcado, estrutura de reprodução ideológica do capi-
talismo, é um dos exemplos que podemos destacar dessa difícil incor-
poração das demandas de liberdade e autonomia das mulheres, pela

14 Caderno de Debates
esquerda mundial socialista.
Fato que reafirma a necessidade histórica da continuidade da auto-
organização das mulheres nas organizações de esquerda e na luta an-
ticapitalista, como forma de se constituir um campo político no qual
a igualdade entre os sexos e a ruptura radical com as estruturas de
opressão-dominação do capitalismo, caminhem com a mesma intensi-
dade e força política no interior do projeto libertário.

3- Feminismo e transformação social


Destarte, ao longo de sua história, o movimento feminista vem as-
sumindo temáticas que refletem a heterogeneidade da classe trabalha-
dora, intervindo no campo da dominação das subjetividades
O fato do movimento feminista dar visibilidade a temas como o
questionamento da sexualidade heteronormativa, a reivindicação do
direito ao aborto, a defesa da maternidade como opção, a denúncia da
jornada intensiva de trabalho das mulheres e da educação sexista como
um dos estruturantes da violência contra a mulher, enfim, temas que
publicizam as relações do mundo doméstico. Provocou também resis-
tência dos partidos socialistas à luta específica das mulheres, quando a
maior parte destes argumentavam que o feminismo encampava deman-
das pequenoburguesas e que estas fragmentariam a unidade de classe,
entre os trabalhadores e trabalhadoras.
De certa maneira esse receio, salvo o atrelamento dos temas a refor-
mas burguesas, teve um fundamento histórico. Pois os temas trazidos
pelas feministas se centralizavam na construção cultural da dominação
masculina e expunham os privilégios, as contradições e os mecanismo
de poder que legitimavam no interior da própria classe operária a desi-
gualdade entre os sexos.
Por outro lado,a resistência política a luta especcífica das mulheres,
evidencia a incompreensão histórica do papel estratégico desse sujeito
político na luta socialista. Ao mesmo tempo em que, desafiou e ainda
continua a desafiar as organização de feministas no interior dos par-
tidos de esquerda, no sentido de garantir na leitura da realidade e na
construção do programa estratégico, a compreeensão de que asssim

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como a classe, o gênero e a raça/etnia compõem a ontologia do ser
social.
É pertinente dizer que essas dimensões do ser são apropriadas pelo
sistema de classse, para perpetuar o processo de acumulação, mediante
a exploração da classe trabalhadora, em todas as esferas da vida social,
em particular na esfera do trabalho condição primária do lucro para o
capital.

4- Os intempestivos anos de 1960 e 1970: corpo e sexualidade


na agenda feminista
Neste contexto os anos de 1960, são emblemáticos, principalmente
em alguns países da Europa e nos EUA, nos quais as mulheres junta-
mente com outros segmentos sociais, como estudantes, jovens, inteletu-
ais, operários, artistas, participam de grandes mobilizações populares
que questionaram, primeiramente, todas as formas de autoritarismo,
totalitarismo, colonialismo e ações militarista sob a vida e dignidade
humana.
Ora, vivenciando os processos revolucionários e contrarevolucio-
nários do pós-guerra e suas conseguências conjunturais e ideológicas,
o feminismo além de se somar na denúncia radical do processo inter-
vencionista em curso, em várias realidades como a guerra do vietnã,
a invasão russa em Praga, o aparthaid na África do Sul , entre outras
situações históricas.
O movimento com a forte influência do Segundo Sexo, de Simone
Beauvoir, e sua famosa tese de não se nasce mulher, torna-se mulher,
também recolocou em cena a desnaturalização do papel social da
mulher. Com a centralidade na questão do direito a dispor autonoma-
mente sobre sua própria vida mediane apropriação de seu corpo.
Neste sentido o direito ao aborto, a uma sexualidade livre sem a
determinação heteronormativa, o confronto com o modelo patriarcal
de família e com a invisibilidade jurídica da mulher, a qual após o ca-
samento perderia todos os direitos civis e passaria a depender da au-
torização do marido para qualquer ato, até mesmo o de conseguir um
emprego. São temas de grandes atos do movimento pelo mundo.

16 Caderno de Debates
Assim, as longas manifestações eram acompanhadas de ações de
fortes questionamentos ao poder do Estado, da família e da Igreja, con-
siderados pontos de sustentação ideológica do capitalismo em todos os
seus mecanismos de dominação e opressão da vida social. Conforme
podemos perceber nas palavras de ordem, da mobilização feminista,
cujo o tema era Nos jamais nos casaremos, realizada em Paris, no ano
de 1971 : A família não será mais nosso horizonte e tumba, Contracep-
ção e abortamento livre e gratuítos, creches gratuítas, por 24 horas. (
PICQ, 1993,p 83).
Ao mesmo tempo, os partidos de esquerda ressistiam a encampar
estas bandeiras e muitas vezes as mulheres eram ridicularizadas em suas
manifestações no interior destas organização. Muitos registros retra-
tam a reação das mulheres que geralmente eram atos com muito humor
e sarcasmo, aliado a uma lição política na qual solicitavam dos compa-
nheiros de partido, uma revolução por inteira.
Durante um bom período este debate perdurou e ainda hoje tem
repercursões políticas. Percebe-se, no entanto, uma maior presença das
demandas das mulheres em programáticas partidárias. Memso que, no
entanto, não tenha se alterado profundamente as estruturas de poder e
de representatividade pública.
Processo que desafia permanentemente, o feminismo a se constituir
numa unidade entre o específico e geral, entre o interesse das mulheres
e a luta por transformação radical da sociedade, entre a luta feminista
e o confronto ao racismo, enfim, o feminismo como um coletivo total.
Definimos esta categoria por considerar que o feminismo ao pos-
suir uma heterogeneidade em sua composição social, constituir-se-á
como sujeito num duplo processo: no reconhecimento da diversidade
e na construção de uma unidade diversa identitária mediante a legiti-
mação das experiências particulares no interior da identidade coletiva
(GURGEL, 2004, p. 64).
Com esta percepção de “coletivo total”, interpretamos como de-
safio do movimento feminista a definição de estratégias que atuem na
busca dos pontos comuns, nas particularidades de cada opressão, con-
tudo, sem perder de vista o horizonte da emancipação humana. Afinal,
apenas com o alcance desta, podemos vivenciar verdadeiramente a li-

A Consulta Popular e o Feminismo 17


berdade, objetivo maior do feminismo.
Na América Latina e no Brasil em particular, estes anos estavam
envoltos com a dura realidade das ditaduras militares, pelo continente.
Sendo assim, o movimento feminista se alia a outras forças, pela rede-
mocratização e em algumas ações de questionamento a política econô-
mica do país, como por exemplo, na luta contra a carestia, em finais do
anos de 1970.
Além, é claro, da participação de feministas na luta armada contra
os regimes militares e nas experiência revolucionárias na região como
Cuba, Nicarágua e El Salvador. Neste momento histórico se observa
mais uma vez a retração da defesa dos interesses específicos das mulhe-
res, em nome de uma causa maior, como era a resistência às ditaduras e
a construção do socialismo na região, como já se deu em outras épocas
na história do feminismo.

5. Contraditórios anos de 1980: feminismo, estado e


autonomia das mulheres
Para o feminismo nos países da América Latina, a década de 1980
significou um período de grandes contradições, pois, com o processo de
“redemocratização” dos países, os governos latinoamericanos iniciam
uma ampliação dos espaços de participação política e promovem uma
resignificação do conceito de sociedade civil, segundo Wood (2006) e
Montaño (2002), que lhe abstrai o caráter de arena de luta de interesses
antagônicos entre as classes sociais.
Autoras como Alvarez (1998), Castro (1997), Curiel (1998), de-
marcam este período como um momento de grandes tensionamentos
no interior do feminismo latinoamericano, com rebatimentos na con-
temporaneidade. Isto porque as experiências de uma “redemocratiza-
ção” mediante reformas no Estado que tinham como prioridade segun-
do Farah (2004, p. 50): a descentralização e a participação da sociedade
civil na formulação e na implementação das políticas públicas impul-
sionou os movimentos sociais, entre eles, o feminista a reatualizar sua
crítica frente ao Estado ao mesmo tempo em que refletiam suas estra-
tégias para garantir a visiblidade e o acúmulo de forças do movimento.

18 Caderno de Debates
A partir de meados da década de 1980 houve uma forte inciativa
dos governos, em âmbito continental, e no Brasil em particular, na in-
corporação da categoria das relações sociais de gênero como base ou
como tema tranversal em suas ações ou políticas públicas.
Decorre deste processo a criação, a partir de finais dos anos de
1980, de um conjunto de organismos de controle social e de elabora-
ção de políticas, que passaram a ser mais um espaço de participação
política dos movimentos sociais e das Organizações Não Governamen-
tais- ONG. Estas inclusive, dado o seu perfil técnico e a organização
institucional que contava com um grupo de “profissionais ativistas”
(ALVAREZ, 1998) que possuem vinculação orgânica com os setores
populares, com habilidades e conhecimento acerca de suas demandas e
dificuldades organizativas, cumprem um papel importante na articula-
ção, formulação de denúncias e proposição de políticas.
No Brasil, em particular, a criação de Conselho de Direitos das
Mulheres, das primeiras delegacias especializadas de atendimento a
mulher, a proposta inicial do Programa Integral da Saúde da Mulher,
entre outras, demandaram, em muitos casos, a presença de ativistas
do movimento na institucionalidade governamental. Fato que torna
evidente a complexidade do contexto que o feminismo se deparou.
Este processo evidencia o ponto de tensionamento para o feminismo: a
questão da autonomia.
Como ponto de divergência, a questão da autonomia político-or-
ganizativa do movimento se evidencia na necessidade histórica de se es-
tabelecer canais de interlocução com o Estado, objetivado nas políticas
públicas e ações governamentais. Para alguns grupos feministas, isto
equivale a integrar-se em postos da burocracia do Estado e colaborar
com este na reflexão, proposição e avaliação de ações e teorias acerca
da condição das mulheres na sociedade. Outros, acreditam que essa
“contribuição burocrática” coloca o movimento em uma perspectiva
de subordinação, fragilizando sua autonomia e, por conseguinte, seu
potencial de resistência e contestação frente ao Estado burguês-patriar-
cal4.

4. Maiores leituras sobre esse processo podem ser feitas em Farah (2004), Moraes

A Consulta Popular e o Feminismo 19


Assim, o debate sobre a relação do feminismo com o Estado, vem
se focalizando em algumas questões como o papel do movimento na
reivindicação por políticas públicas, a participação de lideranças nas
estruturais governamentais e a representatividade do movimento na ne-
gociação direta com os órgãos de Estado. Como se evidencia, a essência
dos questionamentos gira em torno da autonomia, princípio ontológico
para o feminismo.
Como elemento demarcatório, a noção de autonomia estabelece
nexos internos que são necessários à constituição de todo sujeito cole-
tivo com múltiplos condicionantes de opressão e discriminação, como
é o caso do feminismo.
O feminismo na América Latina tem teorizado sobre a autonomia
levando em consideração três aspectos:
1. o reconhecimento do sistema patriarcal como estruturante da
opressão e dominação da mulher;
2. a autodeterminação das mulheres como condição ontológica do
feminismo como sujeito coletivo
3. a emancipação humana como princípio constitutivo do ser po-
lítico feminista.
Nesse sentido, o termo autonomia assume diversas perspectivas
que refletem, primeiramente, o nível de envolvimento do feminismo
com o contexto social no qual se realiza a sua ação militante como mo-
vimento de transformações das relações socias, em sua totalidade, con-
frontando diretamente, portanto, com o sistema patriarcal-capiatlista.
Nos anos de 1980, discutia-se, nos fóruns do movimento na Amé-
rica Latina, a autonomia com referência à dupla militância de feminis-
tas com atuação no movimento e em partidos políticos de esquerda,
centro-esquerda e nas lutas clandestinas5. A principalidade teórica do
debate se centrava nos riscos do hegemonismo das direções partidárias
no interior do movimento feminista.
O questionamento em torno da autonomia também se desenvolveu
em torno do reconhecimento das diferentes opressões vivenciadas pelas
(1985) Alvarez (2000), Godinho (2000).
5. Sobre este fenômeno podemos encontrar uma leitura em FERREIRA, Elizabeth F.
Xavier. Mulheres, militância e memória. RJ: Fundação Carlos Chagas, 1996.

20 Caderno de Debates
mulheres e do seu núcleo comum que possibilita a construção de uma
identidade coletiva.
Assim, foi muito rico, neste debate, a presença de um maior número
de mulheres do meio popular no feminismo, que traziam demandas da
imediaticidade da sobrevivência, em um cotidiano de extrema pauperi-
zação e invisibilidade política. Fenômeno este que provocou uma atu-
alização das demandas feministas alimentando seu questionamento da
totalidade da vida social, com a centralidade do confronto ao patriar-
cardo, ao capitalismo e as formas tradicionais do fazer política.
Em nossa opinião, isso ocorre mediante a compreensão, por parte
do feminismo latinoamericano, de que a luta por respostas imediatas,
não são, necessariamente, opostas à perspectiva de emancipação. Ao
contrário, potencialmente, sua radicalização contribui para o processo
de transformação social, ao aprofundar a contradição entre os interes-
ses das mulheres, o papel do Estado e os interesses de classe.

6. Anos de 1990: o desafio da transnacionalização das lutas


A última década do século XX, em meio a ofensiva neoliberal e
as contra-reformas no Estado – na qual se privilegia a redução de in-
vestimentos em políticas sociais de cunho redistributivas e, ao mesmo
tempo, concebe-se ações que transferem para a sociedade civil a respon-
sabilidade com o atendimento de demandas sociais, não garantidas por
meio das políticas públicas –, representou, para os movimentos sociais
e, em particular para feminismo, um período de grandes mudanças em
sua identidade organizativa.
Ao mesmo tempo, a revolução tecnológica e organizacional que
marca os anos 1990 implicou em uma mudança na divisão do trabalho
e na relação centro-periferia. Estas mudanças, combinadas ao processo
de financeirização do capital e ao neoliberalismo, são as grandes de-
terminações das principais transformações ocorridas na relação entre
Estado, políticas sociais e movimentos sociais, na atualidade.
Assumindo a desregulamentação do Estado, no tocante a sua in-
tervenção na economia, bem como a desresponsabilização para com
as políticas públicas, de caráter universal, o neoliberalismo se impõem

A Consulta Popular e o Feminismo 21


como força econômica mundial. No plano político, segundo Hayek,
citado por Anderson (2000, p.10), era imperativo para a hegemonia
neoliberal, o controle e a fragmentação do potencial reivindicativo dos
movimentos sociais.
Para tanto, o Estado vai engendrar novos mecanismos não só de
exploração para a reprodução direta do capital, mas também, de uma
ideologia reprodutora de valores e comportamentos não conflitantes
com o status quo, mediante um “envolvimento manipulatório” mais
complexo, por exemplo, de parcela dos movimentos sociais a partir do
financiamento de suas ações, mediante a figura jurídica das Organiza-
ções Nãogovernamentais.
Como síntese dessas alterações no “conteúdo” das lutas sociais,
destacamos que esta realidade, além de configurar uma confusão entre
o conceito de sociedade civil e terceiro setor, evidencia pelo menos uma
problemática que é um processo acentuado e progressivo de “despoli-
tização e esvaziamento das organizações populares e suas demandas
sociais, agora intermediadas pela ONG” (MONTAÑO, 2002, p. 274).
Ellen Wood (2003) nos alerta para os atuais rumos da esquerda e
de sua relação com o capitalismo na contemporaneidade. Para a autora,
a esquerda vem se redefinindo na perspectiva de criar espaços no inte-
rior do capitalismo e não mais enfrenta o desafio direto da contestação
ao capital, perdendo de vista, portanto, o horizonte da emancipação
humana.
Nesta perspectiva, a institucionalização dos movimentos sociais em
ONGs de forma subordinada aos interesses e exigências dos organis-
mos internacionais e do grande capital significa, pois, um retrocesso em
relação o poder de resistência da classe trabalhadora.
O feminismo, em particular, acompanhou essa tendência hegemô-
nica, já iniciada na década passada, no processo de redemocratização.
E passou por vários dilemas internos, ao se deparar com um grande
números de ONGs, em substituição aos antigos grupo feministas.
Tais dilemas foram tão intensos que durante quase uma década os
Encontro feministas latinoamericanos, não conseguiram sair com uma
síntese política, em virtude dos confrontos permanntes entre as que

22 Caderno de Debates
se autodesignavam, autônomas, frente as feministas com atuação nas
ONGs. Com isto, podemos afirmar que foram anos difíceis e igualmen-
te contraditórios.
Além do enfrentamento desse conflito interno o feminismo a apar-
tir de suas diversas representações buscou se contrapor a ofensiva
regressivaconservadora, da década de 90, mediante a construção de
amplas articulações entre si e com outrass organizações do campo an-
tiglobalização. Iniciando, um novo momento de internacionalização de
suas demandas.
Neste processo fica cada vez mais evidente, a necessidade de uma
unidade programática que possibilite ações conjunta com amplas re-
percussões no campo da política, da economia e da ideologia. Ações
que, como nos lembra Fraser (2007) consigam interligar lutas em con-
traposição a concentração de riquezas e má distribuição, com aquelas
que reivindicam questões de reconhecimento que presupõem igualmen-
te uma ruptura simbólica radical, na estrutura social.
Para tanto, o feminismo se desafia a ser um sujeito ativo em grande
parte das lutas sociais, estando presente na organização, articulação e
promoção de eventos políticos como o Fórum Social Mundial, a Alian-
ça Social Continental, além de participar de todas as ações continentais
do movimento antiglobalização.
Tal articulação evidencia o acúmulo do feminismo em nossa região,
o seu nível de reconhecimento entre as organizações de esquerda, e,
particularmente o seu papel na reflexão crítica em torno do modelo de
sociedade que orienta, o conjunto desses movimetos que se articulam
hoje, a partir de grande fóruns continentais, regionais e mundiais.
Falquet em suas reflexões em torno dos desafios das feministas,
no interior das organizações populares de resistência ao neoliberalismo
na região latinoamericana, reafirma que existem três questões que nos
servem de guia para apreender o nível de conservadorismo com relação
a questões da mulher, no interior destas:
Qual a divisão sexual do trabalho que os movimentos reprodu-
zem no interior deles mesmos  ? Quais são os tipos de família
sobre os quais esses movimentos se apóiam para se constituir e

A Consulta Popular e o Feminismo 23


quais os modelos de família estruturam os seus projetos de socie-
dade. E, para os ligados explicitamente à defesa ou a promoção
desta ou daquela cultura[...] : em que medida esta cultura é favo-
rável as mulheres ? (2008, p.04).

Dessa forma podemos considerar que que a sociedade de igualda-


de preconizada pelo feminismo em suas origens, ainda coloca como
desafio para esse movimento na atualidade, a conquista de alianças
políticas que possibilitem a revolução por inteiro, como afirma a Carta
de Guararema, em 2008:
Não podemos construir nossa luta por liberdade e igualdade
numa perspectiva etapista. Essa luta ocorre em um processo que
exige muitos enfrentamentos no sentido de repensarmos nossos
valores e modo de vida. Não podemos esperar que uma revo-
lução socialista, restrita a luta de classe, possibilite a igualdade
em todas as relações sociais [ ...]. Assim da mesma forma que o
ser humano é uno e indivisível, a luta também deve ser e, como
tal, deve contemplar todas as particularidades dos sujeitos que a
compõem. (Carta Nacional das Mulheres da Consulta Popular,
2008, P.01).

Em síntese retomamos a afirmação de que para o feminismo a luta


deve responder a elementos de mudanças internas, com a construção
de uma organização política com horizontalidade, na qual cada sujeito
consiga desenvolver sua maior potencialidade que é a representação
direta.
Deve, portanto, empreeender-se na contrução de espaços amplos
de articulação e lutas políticas que consigam mobilizar cada uma das
mulheres mediante o reconhecimento de sua particularidade de ser, de
uma determinada experiência de vida que envolve classe, raça, geração,
sexualidade, afetividade entre outras questões.
Determinações estas que, como nos ensina os manuscristos econô-
micos e filosóficos, de Marx e Engles, deve ser situadas como nexos in-
ternos da condição de opressão/dominação das mulheres, constituindo-
se como forças mobilizadoras da revolução que como já falamos dever
ser por inteira.

24 Caderno de Debates
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Federal de Santa Catarina. Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Centro de
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A Consulta Popular e o Feminismo 25


A Relação Orgânica entre Gênero
e Patriarcado na Sociedade Capitalista:
uma análise teórico-crítica
Mirla Cisne –Rio de Janeiro

1. Introdução
A apreensão e elaboração de categorias teóricas que venham con-
tribuir para compreender criticamente a subordinação histórica das
mulheres e, com isso, intervir politicamente para a reversão desta su-
bordinação, tem sido pauta constante no feminismo, especialmente, a
partir de sua segunda onda. O movimento feminista, entretanto, possui,
em seu seio, uma diversidade de perspectivas, tanto no que diz respeito
à dimensão teórica, como política. É dentro desta diversidade, muitas
vezes expressas em posicionamentos antagônicos, que procuraremos
debater categorias centrais para o movimento feminista: gênero e pa-
triarcado.
Assim, objetivamos desenvolver uma breve abordagem histórica
em torno da categoria gênero, do seu surgimento no seio do movimen-
to feminista e de seu desenvolvimento na contemporaneidade, tentando
apreender suas determinações e suas diferentes perspectivas teóricas e,
por que não dizer, políticas. Será feito ainda um resgate da categoria pa-
triarcado, no que tange a sua importância, diferenças e complementari-
dades à categoria gênero. Mais precisamente, examinaremos a proble-
matização existente na relação entre gênero, patriarcado e feminismo,
mediante às perspectivas teóricas marxista e pós-moderna.

2. Contextualização histórica das abordagens teóricas em


torno da categoria-gênero1
Os estudos de gênero surgem inseridos no movimento feminis-
ta, principalmente sob a influência de feministas acadêmicas, no final

1. Piscitelli, Adriana (2002, p. 16).

26 Caderno de Debates
do século XX, entre as décadas de 1970 e 1980. Seu objetivo advém
da necessidade de desnaturalizar e historicizar as desigualdades entre
homens e mulheres, analisadas, pois, como construções sociais, deter-
minadas pelas e nas relações sociais. Nestes termos, destaca Adriana
Piscitelli sobre a opressão feminina e o surgimento da categoria-gênero:
As hipóteses explicativas sobre as origens da opressão femini-
na foram sendo gradualmente questionadas e abandonadas na
busca de ferramentas conceituais mais apropriadas para desnatu-
ralizar essa opressão. Esse quadro de efervescência intelectual é o
contexto no qual se desenvolve o conceito de gênero2.

Cabe ressaltar que, apesar das intenções a priori serem bastante


positivas e importantes para as mulheres, o contexto de surgimento do
conceito gênero é marcado por riscos de retrocessos3 para o movimento
feminista, ao enfatizar as relações de poder em detrimento da busca das
causas da dominação/exploração, devido aos paradigmas ou à “crise
dos paradigmas” a partir da década de 1980.
O conceito de gênero veio também no sentido de analisar de
maneira relacional a subordinação da mulher ao homem, ou seja,
os estudos sobre as mulheres não deveriam apenas limitar-se à ca-
tegoria “mulher”, mas esta deve sempre ser analisada de forma re-
lacional ao “homem”. Nesse sentido, a categoria mulher, de acordo
com Piscitelli: “passou a ser quase execrada por uma geração para a
qual o binômio feminismo/’mulher’ parece ter se tornado símbolo de
enfoques ultrapassados”4.
Essa nova geração de feministas rejeita “a possibilidade de se com-
preender o feminino num mundo puramente feminino, pois o feminino
se define em relação ao masculino (o contrato sócio-simbólico entre os
sexos)”5.
Além de ser uma categoria de análise e relacional, Heleieth Saffioti
(2004) ainda acrescenta que a categoria gênero é também “histórica”e
2. Os riscos e retrocessos acima referidos, que serão objeto de análise detalhada mais
adiante, são delineados especialmente em razão da influência da teoria pós-moderna.
3. Piscitelli (2002, p. 7).
4. Machado (apud FERREIRA, 2002, p. 23).
5. Saffioti, Heleieth (2004, p. 45).

A Consulta Popular e o Feminismo 27


“ontológica” e como tal, data do início da humanidade, há cerca de
250 a 300 mil anos. Assim, desde que existem homens e mulheres e en-
quanto estes e estas existirem, existiram e existirão relações de gênero
– reside nisto o caráter ontológico desta categoria – sejam pautadas
em desigualdades ou igualdades, dependendo das condições históricas
presentes6.
Enquanto categoria histórica, o gênero pode ser concebido em
várias instâncias: como aparelho semiótico (LAURETIS, 1987);
como símbolos culturais evocadores de representações, conceitos
normativos como grade de interpretação de significados, organi-
zações e instituições sociais, identidade subjetiva (SCOTT, 1988);
como divisões e atribuições assimétricas de características e po-
tencialidades (FLAX, 1987); como, numa certa instância, uma
gramática sexual, regulando não apenas relações homem-mulher,
mas também relações homem-homem e relações mulher-mulher7.

Apesar da diversidade demonstrada acima, a concepção de gênero


como a construção social do masculino e do feminino, imprime, “ainda
que limitado”, um relativo “consenso” entre as feministas.
Desde o seu surgimento e no decorrer de seu desenvolvimento,
ainda em curso, o conceito de gênero, foi/é dotado de diversas pers-
pectivas. Diversidade esta, provocada tanto pelas polêmicas teóricas e
políticas no interior das ciências humanas e exatas, quanto por ser uma
categoria que possui um estudo relativamente recente.
De acordo com Piscitelli, apesar de já ser utilizado, o conceito de
gênero possui um marco no pensamento feminista: a publicação de um
ensaio de Gayle Rubin, “O Tráfico das Mulheres: Notas sobre a Econo-
mia Política do Sexo”8.
6. Saffioti, H.; Almeida (1995).
7. “RUBIN, Gayle: ‘The traffic in Women: Notes on the ‘Political Economy of Sex’ IN:
REITER, Rayna: Toward na Anthropology of Women. Monthly Review Press, New
York, 1975” (PISCITELLI, Adriana, 2002, p.17).
8. “O conceito gênero foi aplicado à diferença sexual pela primeira vez em linhas de
pesquisa desenvolvidas por psicólogos estadunidenses. O termo identidade de gênero
foi introduzido pelo psicanalista Robert Stoller em 1963, no Congresso Psicanalítico
de Estocolmo. Stoller formulava o conceito da seguinte maneira: o sexo estava relacio-
nado com a biologia (hormônios, genes, sistema nervoso, morfologia) e o gênero com
a cultura (psicologia, sociologia). O produto do trabalho da cultura sobre a biologia

28 Caderno de Debates
Foi a partir da definição/concepção desta autora, que o conceito
de gênero “começou a difundir-se com uma força inusitada até esse
momento9 [...], tornando-se uma referência obrigatória na literatura
feminista”10.
Neste ensaio, Gayle Rubin estabelece uma dicotomia na relação
entre sexo/gênero. Gênero seria a construção social do sexo, e o sexo
seria o que é determinado biologicamente, fisiologicamente, portanto
naturalmente. Elabora-se um sistema sexo/gênero, que a autora concei-
tua como “um conjunto de arranjos através dos quais a matéria-prima
biológica do sexo humano e da procriação é modelada pela intervenção
social humana”. Estabelece-se, deste modo, um trânsito entre natureza
e cultura. A natureza fornece “os dados” e estes mostrariam que a “di-
ferença” é, sobretudo, cultural11.
Seguindo ainda o pensamento de Piscitelli, a autora afirma que
para Rubin o “parentesco criaria o gênero”. Diante dessa concepção,
Rubin não estabelece uma ruptura com as bases naturais que se propu-
nha criticar, como destaca Piscitelli dissertando sobre Rubin:
Para Rubin, o parentesco criaria o gênero. [...] no que se refere
às pré-condições necessárias para a operação dos sistemas de ca-
samento, ela considera que o parentesco instaura a diferença, a
oposição, exacerbando, no plano da cultura, as diferenças bioló-
gicas entre os sexos. Os sistemas de parentesco [...] envolveriam
a criação de dois sexos dicotômicos, a partir do sexo biológico,
uma particular divisão sexual do trabalho, provocando a interde-
pendência entre homens e mulheres, e a regulação social da sexu-
alidade [...].Mas se na formulação de Rubin, gênero é concebido
como um imperativo da cultura, que opõe homens e mulheres
através de relações instauradas pelo parentesco, ainda se ancora
em bases naturais12.

era a pessoa ‘acabada’ gendered, homem ou mulher. HARAWAY, Donna: ‘Gender for a
marxist dictionary’, in: Symians Cyborgs and Womem, 1991” (op. cit. p. 17).
9. Op. cit. p.17.
10. Apud Piscitelli, Adriana (2002, p.17).
11. Op. cit. (p.18-19).
12. Butler, Judith (1993, p. 154).

A Consulta Popular e o Feminismo 29


É diante dessa análise de permanência das bases naturais nos estu-
dos de gênero, no estabelecimento de sistemas duais (sexo-gênero, na-
tureza/cultura), como explicações universais, que irão emergir críticas
ao pensamento desenvolvido por Gayle Rubin, desencadeadas a partir
da década de 1990.
Assim, esta década é marcada por variadas discussões em torno da
categoria gênero. Umas defensoras da substituição da categoria; outras,
de uma reformulação, sem abandonar os princípios da noção de gênero.
Judith Butler irá criticar a dicotomia sexo/gênero, passando a his-
toricizar também a categoria sexo, como algo idealizado e “forçosa-
mente materializado através do tempo”. Neste sentido, a autora desta-
ca sobre sexo: “Ele não é um simples fato ou a condição estática de um
corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias materializam
o ‘sexo’ e produzem essa materialização através de uma reiteração for-
çada destas normas”13.
Assim, sexo não pode ser compreendido como apenas um “dado
corporal sobre o qual o construto do gênero é artificialmente impos-
to, mas como uma norma cultural que governa a materialização dos
corpos”14. Nesse sentido, gênero, para Butler,
[...] não deveria ser pensado como simples inscrição cultural
de significado sobre um sexo que é considerado como ‘dado’.
Gênero deveria designar o aparelho de produção, o meio dis-
cursivo/cultural através do qual a natureza sexuada ou o sexo
‘natural’ são produzidos e estabelecidos como pré-discursivos15.

Donna Haraway, bióloga e historiadora da ciência, também com-


partilha dessa crítica à categoria-gênero, alertando que a categoria-gê-
nero não contempla a historicidade necessária para a categoria sexo, o
que implica idéias perigosas relacionadas com identidades essenciais de
mulher e homem. Isso se dá à medida que se insiste no caráter de cons-
trução social do gênero, em detrimento da historicização da natureza
e do sexo.

13. Op. cit. (p. 155)


14. Apud Piscitelli (2002, p. 28).
15. Apud Piscitelli (2002, p. 24).

30 Caderno de Debates
Nessa perspectiva, Haraway “aponta como um problema central
que considera inerente aos conceitos de gênero” a:
[...] distinção com o sexo na qual nem o sexo, nem as raízes
epistemológicas da lógica de análise implicada na distinção
e em cada membro deste par, seriam historicizados e rela-
tivizados16.
Assim é que teóricas francesas preferem utilizar o termo “relações
sociais de sexo” para definir papéis e relações entre homens e mulheres
na sociedade, por entenderem o sexo também como socialmente de-
terminado e este ser interpretado e traduzido na experiência e vivência
da sociabilidade. Portanto, o sexo não se inscreve apenas no campo
biológico17.
Compartilha-se aqui desta crítica à naturalização da categoria
sexo, no entanto, de acordo com Saffioti:
[...] o conceito de gênero consegue dar plena conta do caráter
social inclusive do próprio sexo. Enquanto ao trabalhar-se com
gênero já se tem nítido o caráter fundamentalmente social que
lhe é imanente, ao empregarmos a categoria sexo nos fadamos
a sempre sobrenomeá-lo com o termo social. Dessa forma, ao se
falar de gênero, estamos nos referindo necessariamente a relações
sociais18.

Ainda em suas considerações sobre gênero, Saffioti afirma que “o


ser humano deve ser visto como uma totalidade, na medida em que
é uno e indivisível” (2004, p. 110). Com este pensamento, a autora
também contribui para ratificarmos a crítica à dicotomia sexo/gênero.
Não podemos, portanto, interpretar gênero como uma categoria exclu-
sivamente social, pois o corpo também desempenha funções importan-
tes na construção social, como também sofre influências sociais e, por
este motivo, não pode estar isolado da construção sócio-histórica. 19

16. Ferreira, Verônica (2002).


17. Apud Ferreira (2002, p. 21).
18. Haraway, Donna (apud PISCITELLI, 2002, p. 25).
19. Saffioti (2004, p. 125).

A Consulta Popular e o Feminismo 31


2.1.1. Análise teórico-crítica da categoria-gênero
O conceito gênero necessita de uma análise crítica não apenas pela
dualidade que induz no “binômio” sexo/gênero, obscurecendo o ca-
ráter histórico de categorias como sexo e corpo, mas, principalmente,
por tendenciar a uma “identidade global (e central)”, subordinando e
obscurecendo outras categorias – classe, raça, nacionalidade20.
Para Saffioti, entretanto, na qualidade de feminista marxista, há
uma unidade dialética entre as subestruturas básicas de poder da so-
ciedade capitalista: classe, gênero, raça/etnia, na qual estas catego-
rias estão organicamente intergradas. Neste sentido a autora afirma:
“o importante é analisar estas contradições na condição de fundidas
ou enoveladas ou laçadas em um nó. [...] No nó [...] a dinâmica de
cada uma condiciona-se a nova realidade, presidida por uma lógica
contraditória”21.
Esta crítica marxista realizada sobre as teorias da pós-modernida-
de, dentre elas as abordagens desconstrutivistas22 e pós-estruturalistas,
também coincide, de acordo com Piscitelli, com a reivindicação de mu-
lheres negras, do “Terceiro Mundo” e lésbicas23.
As abordagens desconstrutivistas enfatizam “exageradamente” as

20. “[...] as autoras que atuam nos debates contemporâneos de gênero consideram que
trabalham numa abordagem ‘desconstrutivista’, uma vez que olham criticamente para
os supostos sustentados pelas diversas disciplinas, examinando e ‘desmontando’ seus
modos de discurso” (PISCITELLI, 2002, p. 25).
21. “É interressante perceber que as ‘mulheres de cor’ ou ‘do Terceiro Mundo’ também
formulam sérias críticas às contradições colocadas pelas discussões pós-modernas. No
entanto, essas críticas centram-se, sobretudo, no lugar que essas discussões estão ocu-
pando na economia política da construção e difusão do conhecimento. ‘Mulheres de
cor’ e/ou ‘mulheres do Terceiro Mundo’ afirmaram que essas perspectivas, apesar de
chamarem a atenção para as experiências das ‘diferenças’, tendem a apropriar-se delas
através de mecanismos, mais uma vez, excludentes. Bell Hooks, por exemplo, questio-
na não tanto o ‘sentido’ do pós-modernismo, mas a linguagem cifrada em que ele se
expressa: codificada em termos dos interesses de uma audiência que alija as vozes das
pessoas negras, deslocadas, marginalizadas. Intelectuais do ‘Terceiro Mundo’ assinalam
que esses debates marginalizam, mais uma vez, o conhecimento das feministas ‘nativas’,
sufocando outro tipo de aproximação” (PISCITELLI, 2002, p.31).
22. Piscitelli, Adriana (2002, p. 32-33).
23. Moraes, M. (2000, p. 96).

32 Caderno de Debates
diferenças, não propõem uma alternativa ao movimento feminista e
distanciam-se da prática política, produzindo, portanto, uma teoria es-
téril. Nesse sentido, Piscitelli, dissertando sobre os incômodos dessas
abordagens para algumas feministas, afirma:
[...] a desconstrução – que pode desconstruir ad infinitum – ao
não oferecer alternativas ‘positivas’, dificultaria acionar um mo-
vimento. Além de dissolver o sujeito político ‘mulheres’, as pers-
pectivas desconstrutivistas também são acusadas de restabelece-
rem distâncias entre a reflexão teórica e o movimento político.

[...] Na atualidade, dizem, as perspectivas teóricas lhes resultam


‘pouco úteis’, inacessíveis, esotéricas, de difícil compreensão, ex-
cessivamente destacadas da prática e conduzindo a uma parali-
sia24.

Aponta-se, ainda, um outro problema relacionado a essas abor-


dagens “desconstrutivistas” de gênero. Este problema refere-se ao
fato de terem possibilitado a abertura de linhas de pesquisa e reflexão
sobre gênero, não tendo como centro as mulheres. Com efeito, afirma
Moraes: “Atualmente, temos menos estudos sobre a mulher e mais
estudos de gênero que podem se referir aos homens – ou ao ‘gênero
masculino’ – como bem revelam os trabalhos sobre ‘masculinidades’ e
‘paternidades’”25.
Não se fazem por desmerecer aqui os estudos sobre masculinida-
de, sobre gays e lésbicas, reconhece-se a importância e a necessidade
deles para o despertar de novos valores (libertários) que se ponham em
oposição ao conservadorismo desta sociedade opressora. O problema
é a expansão destas discussões em detrimento do debate específico da
condição da mulher nesta sociedade.
Destaca-se ainda essa preocupação, uma vez que muitas “femi-
nistas” estão voltando seus estudos e sua militância para essas “novas
abordagens”, quando a realidade das condições de vida das mulheres
trabalhadoras ainda permanece enormemente precarizada. E, apesar
dessa precariedade, muitas não percebem sua condição de mulher, su-

24. Apud (GEHLEN 1998, p. 426).


25. Mészáros, I. (2002, p. 303)

A Consulta Popular e o Feminismo 33


bordinada e explorada nesta sociedade, o que contraria a enorme ne-
cessidade de organização dessas mulheres para lutarem por uma nova
ordem societária.
Há uma falsa e vulgar idéia de que as mulheres já atingiram um pa-
tamar de eqüidade com os homens, “se libertaram”, “adquiriram inde-
pendência”, “já ocupam grande parte do mercado de trabalho”, enfim,
“já temos uma nova mulher”. Esses pensamentos, que infelizmente vêm
crescendo na sociedade, contribuem para a argumentação de que agora
só se precisa de “um novo homem”, o que justificaria a necessidade de
se trabalhar muito mais a masculinidade. Ressalta-se novamente que
a masculinidade é importante de ser discutida/trabalhada. Mas é papel
do movimento feminista? É papel das mulheres organizar os homens,
enquanto muitas mulheres não têm consciência de sua condição social
e ainda minguam nesse modelo de sociedade com as duplas e triplas
jornadas de trabalho, com os mais variados tipos de violência, com os
salários mais baixos, etc.?
São as mulheres trabalhadoras, de baixa renda, as mais atingidas
por este modelo econômico e cultural da sociedade, como demonstra
Gehlen ao analisar o pensamento de Ostegaard:
As mulheres de baixa renda estão envolvidas em múltiplas difi-
culdades, são oprimidas pelo sistema e pelo homem. Sofrem dis-
criminação quanto ao sexo e classe social, sua jornada de traba-
lho é superior à dos homens, vivem no limite de suas necessidades
básicas, nutrição, educação e saúde26.

Não é à toa, pois, um fenômeno conhecido como “feminização da


pobreza”. Como demonstra Mészáros: “[...] em 1994 as mulheres cons-
tituíam 70 por cento dos pobres do mundo, não é em absoluto surpre-
endente. Devido às determinações causais por trás desses números, a
situação das mulheres tende a piorar no futuro previsível”27.
O autor demonstra que esse “fenômeno” não é natural, muito pelo
contrário, há “determinações causais”, e devido a elas, deve-se perceber
a importância de uma prática feminista voltada para a luta das mulhe-

26. Mészáros, I. (2002, p. 301).


27. Piscitelli (2002, p. 30).

34 Caderno de Debates
res, que, por sua vez, deve ser vinculada à luta por uma nova sociedade,
uma vez que:
Sob o domínio do capital em qualquer de suas variedades – e não
apenas hoje, mas enquanto os imperativos desse sistema continu-
ar a determinar as formas e os limites da reprodução sociome-
tabólica – a ‘igualdade de mulheres’ não passa de simples falsa
admissão28.

Por outro lado, também tão importante quanto esta linha de análi-
se é reconhecer que da mesma forma que se faz indispensável lutar pelo
socialismo para alcançarmos a emancipação, é termos a consciência
que a superação do capitalismo não garante por si só a conquista da
liberdade e da igualdade entre os gêneros. Com efeito, destaca Antunes:

O fim da sociedade de classes não significa direta e indiretamen-


te o fim da opressão de gênero. Claro que o fim das formas de
opressão de classe, se gerador de uma forma societal socialmen-
te livre, autodeterminada e emancipada, possibilitará o apareci-
mento de condições histórico-sociais nunca anteriormente vistas,
capazes de oferecer condicionantes sociais igualitários que permi-
tam a verdadeira existência de subjetividades diferenciadas, livres
e autônomas (1999, p. 110).

As formulações desconstrutivistas não perceberam a necessidade e/


ou não priorizaram uma luta pautada na perspectiva socialista e, ainda,
contribuem para a despolitização e falta de mobilização política, o que
tem provocado reações negativas, como demonstra Piscitelli:
[...] a incompatibilidade entre essas abordagens e a prática políti-
ca feminista – ‘gênero sem mulheres?’ – mostram questionamen-
tos à ‘despolitização’ da pesquisa acadêmica e um acirramento
nas tensões entre produção teórica e mobilização política29.

Essas reações fazem despertar uma inquietação: como uma catego-


ria surge em busca de explicar a subordinação da mulher na sociedade,
objetivando a superação desta condição, e acaba, muitas vezes, tirando
a centralidade da mulher em suas abordagens?
28. Apud (PISCITELLI, 2002, p. 8).
29. Moraes, M. L. (2000, p. 95-96).

A Consulta Popular e o Feminismo 35


É nesse sentido, que a categoria “mulher”, como sujeito político
coletivo do movimento feminista, volta a ser defendido. Não no sentido
de um “retorno”, de acordo com Linda Nicholson, “uma vez que as
novas formulações não estariam contaminadas pelo ‘fundacionalismo
biológico’”30.
O problema desencadeado pelas novas abordagens dos “estudos
de gênero” é, pois, um distanciamento entre as discussões teóricas e a
luta das mulheres, o que já demonstra como essas “teorias” são vazias
de sentido, uma vez que a teoria não pode desvincular-se da prática,
mas dela emergir e a ela retornar como “resposta” às demandas con-
cretas do real. Cai-se, portanto, num “academicismo”. Os “estudos de
gênero” referenciados pela pós-modernidade acabaram por imputar
uma dicotomia, como demonstra Moraes:
[...] a área temática que hoje chamamos de ‘estudos de gênero’
foi antecedida historicamente pelos ‘estudos sobre a mulher’,
comprovando a passagem gradativa do movimento social para
a esfera acadêmica. Os ‘estudos sobre a mulher’ dominaram nos
anos em que a militância feminista estava nas ruas, ao passo que
os ‘estudos de gênero’ denotam a entrada acadêmica de uma
certa ‘perspectiva de análise’. Não se trata mais de denunciar a
opressão da mulher, mas de entender, teoricamente, a dimensão
‘sexista’ de nosso conhecimento e os riscos das generalizações31.

No debate crítico, surge o consenso de que as perspectivas des-


construtivistas – que têm monopolizado o discurso teórico feminista,
apagando as vozes de outras correntes –, sublinham exageradamente
as diferenças, reagindo ainda aos primeiros momentos do feminismo.
As participantes na discussão teriam interesse numa teoria que infor-
masse as práticas feministas, que colaborasse para gerar e sustentar os
movimentos de mulheres. Ao desenvolver, por exemplo, perspectivas
que oferecessem meios para reconhecer essas diferenças e, ao mesmo
tempo, formar uma nova base para a solidariedade entre as mulheres.
É certo que o gênero não possui apenas sexo, mas possuiu raça,
etnia, orientação sexual, idade, etc. Essas diferenças e especificidades
30. Araújo, C. (2000, p. 69).
31. Harvey, D. (2002, p. 51; grifamos).

36 Caderno de Debates
devem ser percebidas. No entanto, dentro desta sociedade, não podem
ser vistas isoladas de suas macrodeterminações, pois, por mais que “o
gênero una as mulheres”, a homossexualidade una gays e lésbicas, a
geração una as(os) idosas(os) ou jovens, etc., a classe irá dividi-las(os)
dentro da ordem do capital.
A classe irá determinar como essas mais variadas expressões de
opressões irão ser vivenciadas por esses sujeitos. Com certeza, de modo
bastante diferenciado entre a classe trabalhadora e a dominante.
Assim, é que uma mulher da classe dominante explora uma mulher
da classe trabalhadora, uma idosa pode explorar outra idosa, uma
negra pode explorar outra negra, um homossexual pode explorar outro
homossexual. Os movimentos sociais devem, portanto, ter como cerne
a luta de classes.
Isso não é contraditório com as lutas ditas “específicas”. Primeiro,
porque dentro da “ordem metabólica do capital” as expressões cultu-
rais não se dão nem se encontram dissociadas de seu metabolismo, mas
dentro de sua ideologia e de sua reprodução com fins voltados a asse-
gurar os interesses da burguesia (claro, via exploração da classe traba-
lhadora); segundo, porque lutar pela extinção das desigualdades, opres-
sões e exploração, enfim, lutar por emancipação plena, liberdade, exige
a defesa de valores libertários − que não cedem espaço para a existência
de preconceitos, discriminações, subordinações − antes, garantem aos
sujeitos sociais o direito da livre expressão de suas subjetividades.
O que se defende não é a neutralização ou anulação das diferenças,
mas a percepção de que o movimento feminista deve convergir para os
aspectos político e social. Do contrário, só se fragmentam e pulverizam
as mulheres, o que não contribui para a luta por elas empreendida.
O “grande equívoco” está em acentuar a ênfase nas “diferenças”,
apenas como construções culturais, não se analisando, numa perspecti-
va de totalidade, que essas expressões culturais têm marcas de classe, ao
denotarem claros interesses da burguesia em perpetuar subordinações e
explorações que a favoreça, seja em mão-de-obra barata e precarizada,
seja na responsabilização das mulheres pela reprodução social.
Destarte, a categoria gênero deve ser percebida para além de uma

A Consulta Popular e o Feminismo 37


construção cultural, uma vez que a cultura não é natural. Não só o
gênero deve ser historiado, mas também a cultura e a sociedade. Não
de forma isolada, mas inter-relacionadas, analisando as autodetermina-
ções. Afinal, a cultura é determinada nas e pelas relações sociais, não
de forma linear, homogênea ou fragmentada em exacerbações de dife-
renças, mas dentro das contradições que determinam a produção e a
reprodução desta sociedade.
Em outras palavras, é necessário analisar gênero no bojo da con-
tradição entre capital e trabalho e das forças sociais conflitantes das
classes fundamentais que determinam essa contradição. Sendo a con-
tradição o foco das desigualdades sociais, e o conflito a luta entre as
classes sociais (o que determina o movimento da sociedade, ou como
diria Marx: “o motor da história”), faz-se imprescindível relacionar a
luta das mulheres como um movimento legítimo contra as desigualda-
des, na e com a luta da classe trabalhadora.
Nesse sentido, o ponto a unir as mulheres deve ser a identidade de
classe, uma vez que é da contradição de classe que emergem as desigual-
dades, opressões e explorações que marcam a vida das mulheres traba-
lhadoras. E porque, fundamentalmente, a verdadeira emancipação das
mulheres só pode ser alcançada com a ruptura com o modo de pro-
dução capitalista, conforme será visto adiante. Portanto, não se pode
analisar gênero isoladamente das determinações econômico-sociais.
Assim, os questionamentos teóricos à categoria gênero, que a priori
parecem bastante pertinentes, reproduzem os principais equívocos das
análises que criticam, pois é necessário não apenas historicizar todas as
categorias sociais, no sentido de perceber que são construções sociais,
mas relacioná-las, analisando suas determinações. Enfim, particularizá-
las. Do contrário, limita-se a análises empobrecidas, focalizadas, frag-
mentadas e fragmentárias do real.
As abordagens desconstrutivistas/pós-estruturalistas/pós-modernas
mesmo criticando gênero e sua “identidade global”, não relacionam
essa categoria com as de classe, raça, etnia, geração a partir da contra-
dição fundante das mais diversas expressões das desigualdades sociais:
a contradição capital e trabalho. Não se configuram, portanto, em crí-

38 Caderno de Debates
ticas profundas e consistentes ao não conseguirem pôr “às claras”, as
contradições desta sociedade e o foco das desigualdades. Assim, cri-
ticam a linearidade do gênero, mas a reproduzem ao não analisar os
complexos sociais na dimensão da totalidade.
Além disso, essas análises acabam retrocedendo nos estudos de
gênero ao não abordar aspectos materialistas da história, enfocando os
“símbolos”, as “representações”, caindo no irracionalismo ao limitar-
se no subjetivismo, sem a mínima mediação com as determinações ob-
jetivas da sociedade. Com efeito, afirma Clara Araújo:
Nas análises pós-estruturalistas, sobretudo, a dimensão simbóli-
ca ganha centralidade, e a referência às práticas e relações mate-
riais torna-se opaca. Gênero deixa de ser um conceito meio, isto
é, uma forma de ampliar o olhar e entender a trajetória em torno
da qual a dominação foi se estruturando nas práticas materiais
e na subjetividade humana, para tornar-se um conceito totali-
zador, um modelo próprio e autônomo de análise das relações
de dominação/subordinação, centrado quase exclusivamente na
construção dos significados e símbolos das identidades masculi-
na e feminina. As práticas materiais e as intercessões com outras
clivagens praticamente desaparecem e/ou são bastante secunda-
rizadas. Gênero passa a descrever tudo e a explicar muito pouco,
pois, como conceito, tendeu a ser auto-referido32.

Desta maneira, percebe-se que essas abordagem se distanciam ou


não dão a devida importância para as determinações macrosociais que
se encontram diretamante relacionadas com a subordinação das mu-
lheres. Nesta perspectiva, é imprescindível perceber que, discutir cul-
tura despertando novos valores, embora libertários, por mais que seja
importante, é insuficiente para a conquista da liberdade e da igualdade
substantiva.
Nesta linha analítica, David Harvey, analisando a influência de
Foucault sobre os movimentos sociais surgidos na década de 1960, faz
a seguinte afirmação:
É clara a crença de Foucault no fato de ser somente através de
tal ataque multifacetado e pluralista às práticas localizadas de
repressão que qualquer desafio global ao capitalismo poderia ser
32. Apud (IAMAMOTO, 2001, p. 38).

A Consulta Popular e o Feminismo 39


feito sem produzir todas as múltiplas repressões desse sistema
numa nova forma. Suas idéias atraem os vários movimentos so-
ciais surgidos nos anos 60 (grupos feministas, gays, étnicos e re-
ligiosos, autonomistas regionais, etc.), bem como os desiludidos
com as práticas do comunismo e com as políticas dos partidos
comunistas. Mas deixam aberta, em especial diante da rejeição
deliberada de qualquer teoria holística do capitalismo, a questão
do caminho pelo qual essas lutas localizadas poderiam compor
um ataque progressivo, e não regressivo, às formas centrais de
exploração e repressão capitalista. As lutas localizadas do tipo
que Foucault parece encorajar em geral não tiveram o efeito de
desafiar o capitalismo, embora ele possa responder com razão
que somente batalhas movidas de maneira a contestar todas as
formas de discurso de poder poderiam ter esse resultado33.

Contrário ao subjetivismo e ao focalismo, Marx concebe a “essên-


cia humana”, indissociável da noção de indivíduo social, expressa nas
Teses sobre Feuerbach. Nelas, consta que “a essência humana não é
algo abstrato, interior a cada indivíduo isolado. É, em sua realidade, o
conjunto das relações sociais”34.
Dessa forma, questiona-se: como avançar em estudos condizentes
com uma prática política consistente se não há mediação com as con-
dições e determinações concretas da realidade? Assim, é impossível a
construção de novas relações humanas. Afinal, não se buscam as múlti-
plas determinações que envolvem o fenômeno, perseguem-se apenas os
“símbolos” e as “representações”.
Mary Garcia Castro, analisando as tendências pós-estruturalistas e
pós-modernistas no feminismo, afirma que:
[...] elas não se propõem identificar agências e sujeitos de mudan-
ças. Inclusive, algumas vertentes rejeitam a centralidade proposta
no marxismo para a classe proletárias [sic] e projetos de revo-
luções sociais, não pretendendo ir além de crítica textualizadas
e, muitas vezes, não contextualizadas. Por outro lado, podem
dar margem a posturas cínicas de descomprometimento com a
barbárie do capitalismo atual, via uma postura blasé, de indi-
ferença e distanciamento, ou por ocultamento de contradições,

33. Castro, M. (2000, p. 102).


34. Apud (apud BENOIT, 2000, p.76).

40 Caderno de Debates
exploração de classes, ao insistirem no abstrato, em fragmenta-
ções, diferenças, pluralidade, diversidade, sem nomear poderes e
privilégios de classe35.

O pensamento marxista é pautado exatamente no contrário da


negação da materialidade, pois é por intermédio desta que se desenvol-
ve a vida social, política e intelectual, como afirma Karl Marx:
O modo de produção da vida material domina, em geral, o desen-
volvimento da vida social, política e intelectual. Não é a consci-
ência dos homens que determina a sua existência, ao contrário, é
a sua existência social que determina sua consciência36.

Carol Stabile tece uma crítica às(aos) autoras(es) “pós”, propondo


uma outra “via” de análise, “na contramão do deslumbramento ‘pós’
com o esgarçamento social e a indefinição de sujeitos e projetos”. Com
efeito, afirma Stabile:
Mais do que considerarmos a fragmentação e a proliferação de
identidades como sintoma de fracasso do marxismo ou como
causa para otimismo político, devemos considerar como a globa-
lização do capitalismo, como um sistema mundial e mudanças no
fluxo de capitais, de fato produziu tais efeitos e suas relações com
a segmentação de mercados, individualismo e mercantilização de
estilos de vida e das culturas e discutir estratégias de oposição a
tais processos37.

As críticas da teoria pós-moderna ao marxismo são, além de incon-


sistentes, incoerentes. Como afirmar que o marxismo é totalizador, não
permitindo apreender questões da subjetividade, limitando-se a objeti-
vidade? Focaliza-se uma falsa dicotomia que não é de responsabilidade
da teoria marxista, mas da falta de conhecimento desta por parte da
pós-modernidade. Nesse sentido, esclarece Ivete Simionato acerca da
perspectiva pós-moderna:
Essa perspectiva parece, no entanto, focalizar o debate em torno
da falsa polêmica entre objetividade e subjetividade, economicis-
mo e politicismo. Cabe lembrar, contudo, que no debate marxista

35. Apud (CASTRO, 2000, p. 103).


36. Simionato, I. (1999, p. 85-86).
37. Araújo, C. (2000, p. 70).

A Consulta Popular e o Feminismo 41


a compreensão da objetividade histórica não se reduz ao campo
da produção, na medida em que este também abarca a reprodu-
ção das relações sociais entre os homens, as quais, se abordadas
de um ponto de vista histórico-ontológico, não deixam de incluir
os processos singulares dos sujeitos sociais, mas nunca desvincu-
lados da historicidade que os fundamenta38.

A abordagem pós-estruturalista é que produz a totalização con-


ceitual de gênero, ao desvinculá-la das análises de outras esferas que a
determinam, como será visto no item ”Gênero: uma mediação de classe
no bojo da velha ‘questão social’”.
A preocupação aqui sobre essas “novas abordagens” centra-se na
grande expansão da apropriação e difusão dos estudos de gênero. Este
fato limita a efetivação de um projeto societário emancipador, uma vez
que estas vertentes, além dos retrocessos teóricos de cunho conserva-
dor, de distanciamento e fragmentação da realidade, vêm pulverizando
e também fragmentando a classe trabalhadora. Isto se dá mediante a
ênfase exacerbada na “diversidade”, no subjetivismo, na negação da-
existência das classes sociais etc., favorecendo, conseqüentemente, ao
capital. Como afirma Clara Araújo:
Um projeto emancipatório da humanidade necessita pensar prio-
ridades na ação política, sem perder de vista como as diversas
clivagens que perpassam as relações sociais podem ser simulta-
neamente trabalhadas, em suas dimensões próprias e inter-rela-
cionadas39.

A teoria social crítica, ao contrário das visões equivocadas e pobres


de conhecimento da realidade, não exclui as questões relacionadas às
ditas “minorias”, apenas não dissocia, não fragmenta a realidade, arti-
cula o micro com o macro, percebendo e analisando as relações, inter-
relações e autodeterminações entre os complexos sociais. Em outras

38. “A categoria de mediação tanto possui a dimensão ontológica quanto reflexiva. É


ontológica porque está presente em qualquer realidade independente do conhecimento
do sujeito; é reflexiva porque a razão, para ultrapassar o plano da imediaticidade (apa-
rência) em busca da essência, necessita construir intelectualmente mediações para re-
construir o próprio movimento do objeto” (PONTES, R., 2000, p.41, grifos do autor).
39. Pontes, R. (2000, p. 41, grifos do autor).

42 Caderno de Debates
palavras, esta teoria apreende e formula as mediações40, que se situam
no movimento dialético entre a universalidade – leis tendenciais e gran-
des determinações de um dado complexo social – e a singularidade
– campo da aparência, da imediaticidade/facticidade expressa na vida
cotidiana, espaço em que, “cada fato parece explicar-se a si mesmo,
obedecendo a uma causalidade caótica”41.
A particularidade, compreendida como “campo de mediações”,
“síntese de determinações”, permite ao sujeito “negar” (“superar”) a
aparência, processando “o nível do concreto pensado, penetrando em
um campo de mediações (no qual se entrecruzam vários sistemas de
mediações), sistemas estes que são responsáveis pelas articulações, pas-
sagens e conversões histórico-ontológicas entre os complexos compo-
nentes do real”42.
Seguindo o pensamento de Pontes:
[...] significa que as leis tendenciais, que são capturadas pela
razão na esfera da universalidade, tais como leis de mercado, re-
lações políticas de dominação, como que tomassem vida, se obje-
tivassem e se tornassem presentes na realidade da vida singular
das relações sociais cotidianas, desingularizando-as e tornando
aquilo que era universal em particular, sem perder seu caráter de
universalidade nem tampouco sua dimensão de singularidade43.

A particularidade é compreendida, pois, como uma “categoria on-


tológico-reflexiva que permite que as leis sociais tendenciais se mostrem
aos sujeitos envolvidos na ação [...] e ganhem um sentido analítico-
operacional nas suas vidas singulares”. É onde a “legalidade universal
se singulariza e a imediaticidade do singular se universaliza (op.cit, p.
46-47).
Essa forma de análise do real permite ao marxismo, diferentemente
da pós-modernidade, não resultar em uma teoria confusa e estéril, sem
desdobramentos políticos claros. A teoria marxista está voltada funda-
mentalmente para a transformação e superação da sociedade burguesa.
40. Op. cit (p.47)
41. Op. cit. (p. 47).
42. Saffioti (2004, p. 60).
43. Saffioti (2004).

A Consulta Popular e o Feminismo 43


Possui, portanto, objetivos explícitos de intervenção política, com fins
num processo revolucionário, mediante o compromisso e os interesses
da classe trabalhadora.
É somente por intermédio dessa teoria que o movimento feminista
pode ter uma ação política transformadora. Para tanto, deve compre-
ender a categoria gênero como uma mediação de classe.

Gênero e patriarcado – diferenças e complementaridades


Comparado ao gênero, que por ser ontológico, data do início da
humanidade – estima-se cerca de 250 mil a 300 mil anos – o patriarca-
do é considerado jovem. Devido à resistência das mulheres, os homens
tiveram que lutar cerca de dois milênios para consolidar o sistema pa-
triarcal. De acordo com Saffioti (2004), se formos levar em considera-
ção o início do processo de mudança, pode-se dizer que o patriarca-
do tem cerca de 5.203-4 anos. Agora, se formos considerar o “fim do
processo de transformação das relações homem-mulher”, a idade do
patriarcado é de apenas 2.603-4 anos, portanto, um “recém-nascido”
frente à idade da humanidade44.
Partindo de uma outra perspectiva de análise, diferentemente de
feministas como Scott, Rowbotham, Lobo, Castro e Lavinas, que consi-
deram o patriarcado uma categoria “a-histórica” e “biologizante”, Sa-
ffioti45 afirma que o patriarcado não torna as diferenças entre os sexos
fixas e imutáveis, como defende a perspectiva cultural-simbólica.
O patriarcado qualifica as relações desiguais de gênero, explicita o
vetor de dominação e exploração do homem sobre a mulher presente
nesta sociedade. Dessa forma, o patriarcado é uma expressão específica
das relações de gênero, entendido como: “relações hierarquizadas entre
seres socialmente desiguais, enquanto o gênero compreende também
relações igualitárias”46.
Em outras palavras, diferentemente da categoria gênero que pode
também contemplar relações igualitárias, o patriarcado diz respeito,
44. Saffioti (2004, p. 119).
45. Saffioti (apud SAFFIOTI 2004, p. 138-139).
46. Saffioti (2004, p. 136).

44 Caderno de Debates
diretamente, as relações de dominação, opressão e exploração masculi-
nas no controle do corpo e na vida das mulheres. Relações estas ainda
fortemente presentes em nossa sociedade, daí a importância de conside-
rarmos o patriarcado, até porque:
Gênero é um conceito por demais palatável, porque é excessi-
vamente geral, a-histórico, apolítico e pretensamente neutro.
Exatamente em função de sua generalidade excessiva, apresenta
grande grau de extensão, mas baixo nível de compreensão. O
patriarcado ou ordem patriarcal de gênero, ao contrário, como
vem explícito em seu nome, só se aplica a uma fase histórica,
não tendo a pretensão da generalidade nem da neutralidade, e
deixando propositadamente explícito o vetor da dominação-ex-
ploração. Entra-se, assim, no reino da História. Trata-se, pois,
da falocracia, do androcentrismo, da primazia masculina. É, por
conseguinte, um conceito de ordem política47.

Este controle sobre as mulheres empreendido pelo patriarcado se


desdobra ainda no medo a ele associado. Ou seja, “a dinâmica entre
controle e medo rege o patriarcado”48. Tornar explícito este sistema
de opressão das mulheres é condição primeira para podermos analisar
crítica e politicamente as relações de gênero que vivenciamos e, com
isso termos a possibilidade de vislumbrarmos a construção de relações
igualitárias.
Saffioti sintetiza os argumentos em defesa da permanência do
termo patriarcado, especialmente porque:
1. não se trata de uma relação privada, mas civil;
2. dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, praticamente
sem restrições [...];
3. configura um tipo hierárquico de relação, que invade todos os
espaços da sociedade;
4. tem uma base material;
5. corporifica-se;
6. representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia

47. Saffioti (2004, p. 57-58).


48. Saffioti (2004, p. 101-102).

A Consulta Popular e o Feminismo 45


quanto na violência49.
O patriarcado se configura como um sistema, dado o seu nível de
enraizamento nas relações sociais vigentes. E tal é o seu poder hege-
mônico, que o mesmo se efetiva, inclusive, na ausência do homem. As
próprias mulheres incorporam e reproduzem as relações patriarcais,
seja entre si ou na educação de seus filhos e filhas.
Como bem mostra Zhang Yimou, no filme Lanternas vermelhas,
nem sequer a presença do patriarca é imprescindível para mover
a máquina do patriarcado, levando à forca a terceira esposa, pela
transgressão cometida contra a ordem patriarcal de gênero. [...]
Além de o patriarcado fomentar a guerra entre as mulheres, fun-
ciona como uma engrenagem quase automática, pois pode ser
acionada por qualquer um, inclusive por mulheres. Quando a
quarto esposa, em estado etílico, denuncia a terceira, que estava
com seu amante, à segunda, é esta que faz o flagrante e que toma
as providências para que se cumpra a tradição: o assassinato da
‘traidora’.50

Compreender, entretanto, que o patriarcado se configura, em bases


materiais e simbólicas, como um sistema de dominação e exploração,
não significa conceber como estática e imutável as relações de gênero
daí resultantes. Não há, portanto, no uso da categoria patriarcado a
impossibilidade de pensarmos a transformação deste sistema, uma vez
que ele não ‘cristaliza’ esta dominação, apenas a explicita claramente,
diferentemente do conceito de gênero.
Patman explicita em seu pensamento a importância política da uti-
lização da categoria patriarcado:
“[...] a perda [...] do único conceito que se refere especificamente
à sujeição da mulher e que singulariza a forma de direito político
que todos os homens exercem pelo fato de serem homens [...]
significaria a perda de uma história política que ainda está para
ser mapeada” (PATMAN apud SAFFIOTI, 2004, p. 55).

Nossa defesa em torno da necessidade de articular gênero e patriar-


49. Saffioti (2004, p. 132-133).
50. Este texto foi publicado em Divisão capitalista do trabalho. Tempo Social, publica-
ção do departamento de Sociologia da USP, organizada por Helena Hirata. São Paulo,
1(2): 73-103, 2 sem.1989. Traduzido por Helena Hirata, revisto por Magda Neves.

46 Caderno de Debates
cado se faz à medida que compreendemos a relação de complementa-
ridade entre ambas as categorias. Nesta perspectiva, destaca Saffioti:
1. a utilidade do conceito de gênero, mesmo porque ele é muito
mais amplo do que o de patriarcado, dando conta dos 250 mil
anos da humanidade;

2. o uso simultâneo dos conceitos de gênero e de patriarcado, já


que um é genérico e o outro específico dos últimos seis ou sete
milênios;

3. a impossibilidade de mera e redutora substituição de um con-


ceito por outro, o que tem ocorrido nessa torrente bastante ideo-
lógica dos últimos anos.

Trata-se pois, da necessidade de compormos uma integração dia-


lética entre gênero e patriarcado que nos permite transcender de meras
análises das relações entre homens e mulheres, nesta sociedade, para a
dimensão política de denúncia da desigualdade e em busca da constru-
ção da emancipação humana.

Referências
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Crítica Marxista, nº 11. São Paulo: Boitempo, 2000.
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nº 11. São Paulo: Boitempo, 2000.
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que um gênero em tempos neoliberais. In: Revista Crítica Marxista, nº 11. São
Paulo: Boitempo, 2000.
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indústrias de redes de dormir do município de Jaguaruana–CE. Monografia de
conclusão de curso. Fortaleza: UECE, 2002.
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2002.
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A Consulta Popular e o Feminismo 47


MÉZÁROS, Istivan. Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
MORAES, Maria Lygia Quartim. Marxismo e feminismo: afinidades e dife-
renças. In: Revista Crítica Marxista, nº 11. São Paulo: Boitempo, 2000.
PISCITELLI, Adriana. Re-criando a (categoria) mulher? In: ALGRANTI (org.).
A Prática Feminista e o Conceito de Gênero. Textos Didáticos. São Paulo:
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Módulo 1: Crise Contemporânea, Questão Social e Serviço Social - Brasília:
CEAD, 1999.

48 Caderno de Debates
Da divisão do trabalho entre os sexos
Daniele Kergoat (CNRS -França)

O objetivo desse texto é expor o mais claramente possível a neces-


sidade do conceito de “divisão sexual do trabalho” e sua função heurís-
tica. Organizaremos nossa exposição em tomo de três questões básicas:
1. O que entendemos por “divisão sexual do trabalho”? O que
recobre exatamente essa expressão?
2. O esforço de problematização em termos de divisão sexual do
trabalho é indispensável? Não seria possível utilizar com igual proveito
outros enfoques já existentes?
3. Que perspectivas novas essa problemática abre para a reflexão?
Que reconstrução da realidade social propõe ao observador?

1. O que é a divisão sexual do trabalho?


Por que falar em divisão “sexual”?
Como é que se situa em relação à divisão social do trabalho?

Que os homens sejam prioritariamente designados para a produ-


ção e as mulheres para a reprodução (trabalho assalariado/trabalho
doméstico), que as tarefas produtivas sejam reservadas ora aos homens,
ora às mulheres... isso é tão comum a todas as sociedades e tão antigo
que esses dados apareceram de início como “naturais” e “evidentes”,
a tal ponto que nenhuma necessidade (objetiva ou subjetiva) de tratar
esses fenômenos se manifestou; afinal de contas, a sociologia não se
interroga sobre o fato de que o céu é azul, que a terra gira ou que são as
fêmeas que, no reino animal, dão à luz. Claro que a família, o trabalho...
apareciam como campos sociológicos, mas como campos fechados, de-
limitados pelo destino natural da espécie: a sociologia da família, acei-
tava como um dado (e portanto sem questionar) os papéis masculinos
e femininos; aos homens, a ida à guerra ou a responsabilidade pela
subsistência econômica da família, às mulheres, a atribuição do traba-
lho doméstico...; quanto à sociologia do trabalho, ela raciocinava sobre

A Consulta Popular e o Feminismo 49


um modelo geral de “produtor” ou de “trabalhador”, modelo sempre
masculino, tanto gramatical quanto conceitualmente. Em suma, esses
dados não tinham (salvo em etnologia) o status de fenômenos sociais.
Foram necessárias as interpelações do feminismo para que essas
certezas fossem abaladas. Ao longo desses anos, os papéis no assala-
riamento e na família apareceram como o que são, isto é, não como o
produto de em destino biológico, mas como um “constructo social,”
resultado de relações sociais; o trabalho também foi requestionado,
através da recusa de limitá-lo exclusivamente ao trabalho assalariado
e profissional; pouco a pouco propôs-se uma definição cada vez mais
ampla do trabalho, levando-se em conta, simultaneamente, tanto o tra-
balho doméstico quanto o trabalho assalariado.
Em suma, a divisão do trabalho entre os sexos se impôs progres-
sivamente como uma modalidade da divisão social do trabalho, da
mesma forma que a divisão entre o trabalho manual e o trabalho inte-
lectual ou a divisão internacional do trabalho.
Essa forma de divisão social é válida para todas as sociedades: his-
toriadores e etnólogos mostraram, demonstrando-o, que as modalida-
des dessa divisão variam muito no tempo e no espaço, a tal ponto que
tarefa especificamente masculina numa sociedade pode ser especifica-
mente feminina em outra.
Mas não é porque as modalidades se modificam, que as sociedades
deixam de ser organizadas em tomo da divisão do trabalho entre os
sexos e isso merece ser estudado. A divisão sexual não é todavia a única
forma de divisão social do trabalho: ela articula-se, interpenetra-se com
outras formas de divisão social. Não se trata portanto aqui de pleitear a
exclusividade de uma forma da divisão social, mas argumentar no sen-
tido de que a sociologia retire as viseiras que entravam o conhecimento
(e perpetuam, reproduzindo-as, as relações de dominação) para abor-
dar um campo social certamente mais complexo mas ao mesmo tempo
mais interessante, mais contraditório e portanto mais vivo e suscetível
de dar espaço ao ator social.

50 Caderno de Debates
2. Divisão sexual do trabalho e noções alternativas
A divisão sexual do trabalho aparecia como “natural” e portanto
não sociológica; mas na realidade as atitudes, os comportamentos, as
práticas sociais dos homens e das mulheres variam. Essa diferença não
pode ser sempre escamoteada: em particular no terreno do trabalho,
quer se trate de práticas em relação à organização técnica e social do
trabalho ou daquelas em relação aos sindicatos e à reivindicação, tais
diferenças colocam problemas porque tanto a organização do trabalho
quanto a organização sindical devem, num dado momento, levá-las em
consideração, seja para utilizá-las da melhor maneira possível, seja para
compreender certas resistências.
Daí, a questão: não seria um esforço desnecessário falar de divisão
sexual do trabalho?
Não poderíamos utilizar, com igual proveito, as noções já existen-
tes: desigualdade, inferiorização, marginalização, superexploração etc.?
Vejamos, então, como essas noções são utilizadas e o que elas permitem
explicar.
Segundo alguns, as diferenças observadas remetem à natureza par-
ticular do sexo feminino. Assim, as mulheres seriam mais impulsivas,
mais nervosas, mais dóceis, dando menos importância à promoção,
mais meticulosas, menos combativas, mais sensíveis aos problemas fa-
miliares.
Dá-se, pois, às diferenças observadas, o status de atributos perifé-
ricos ao modelo geral, o que só seria correto se o modelo em questão
fosse realmente “geral”, o que não acontece, porque não se trata de um
modelo típico-ideal construído a partir da análise das práticas dos dois
sexos.
A ausência de explicação teórica é, assim, substituída por estere-
ótipos de lastimável simplismo sobre a “natureza feminina”. Nota-se
assim uma continuidade perfeita entre a construção da histeria femi-
nina enquanto objeto nosológico no século XIX e a da submissão fe-
minina à ordem produtiva, hoje (“a adaptação natural das mulheres a
tarefas repetitivas e simples parece mostrar em particular que o proble-

A Consulta Popular e o Feminismo 51


ma das condições de trabalho existe de uma maneira menos aguda para
elas” - CNPF1, relatório sobre os operários não qualificados, de 1972).
Socialmente tais estereótipos são, é claro, totalmente incapazes de
explicar a realidade e sobretudo de pensar a mudança.
Segundo outros autores, as diferenças observadas nos comporta-
mentos se deveriam
a um “plus” de opressão, de exploração... que pesa sobre as mu-
lheres. O caráter mais sofisticado desse raciocínio não deve nos iludir:
também aqui, reduzindo a diferença ao quantitativo, a referência a um
modelo que se supõe geral permanece: assim, a exploração, tradução
bem conhecida da relação antagônica capital/trabalho, se exerceria
mais fortemente (e não diferentemente) sobre as mulheres.
Duas objeções a esse raciocínio:
1º - não se explica por que mais sobre as mulheres, e quem se aven-
tura a dar tal explicação recai logo no plano biológico (ver a explicação
que certas teorias da segmentação dão da localização das mulheres no
mercado secundário);
2º - os modelos de mudança derivados dessa explicação não fun-
cionam, ou funcionam mal. Por exemplo: se a população feminina
é marginalizada no mundo do trabalho, é porque ela é menos bem
equipada no mercado do emprego; entenda-se menos formada, mas
também menos disponível objetivamente (por causa dos encargos fa-
miliares) e subjetivamente (por causa do investimento das mulheres no
“extra-trabalho”, isto é, na família).
Deste ponto de vista seria suficiente:
 dar às mulheres uma melhor formação profissional;
 “ajuda-las” no seu acesso ao trabalho por diversos arranjos:
horário, licença, aposentadoria etc.
Em suma, nessa óptica seria suficiente:
 instruí-las melhor para que elas se pareçam com os homens;
 mas ajuda-las para que elas continuem mulheres.

1. Conseil National du Patronat Français, organização representado os interesses em-


presariais na França.

52 Caderno de Debates
Tais soluções são fadadas ao fracasso:
 mesmo quando são melhor instruídas, elas permanecem
(com idade e nível de diploma equivalentes) desempregadas
por muito mais tempo que os homens; e quando obtêm fi-
nalmente emprego, é quase sempre com uma qualificação
inferior;
 mesmo quando obtêm facilidades com o trabalho de meio-
período, percebe-se rapidamente que o auxílio em questão
só as marginaliza mais (bloqueio da promoção, por exem-
plo) e remete-as rapidamente ao universo doméstico (pela
não-partilha do trabalho doméstico que é provocada pela
sua passagem a meio-período)2

O fracasso dessas explicações suscita uma primeira observação.


Deve-se notar inicialmente que esse tipo de explicação traz em si mesmo
seu limite na medida em que dicotomiza o ator social “mulheres”: de
um lado a trabalhadora, de outro a mãe-esposa. Ora, as práticas sociais
não são evidentemente dicotomizadas mas remetem à unidade dos in-
divíduos. Assim, não é de se espantar que as “soluções” que propõem
para ajudar as mulheres a deixar essa situação marginal em relação ao
universo do trabalho sejam fadadas ao fracasso.
Em suma, a noção de inferiorização preenche uma dupla função:
descrever uma situação, mas esvaziar o problema teórico que lhe é sub-
jacente.
Entretanto não basta mostrar que uma explicação é suficiente. É
necessário ressaltar em que consiste a dificuldade, sobre o que a ex-
plicação deveria se debruçar para dar conta do problema. Para isso
daremos um segundo exemplo, o da diferenciação sexual no que diz
respeito às qualificações operárias. Observamos que, se os dados esta-

2. Danilele Kergoat efetuou uma pesquisa sobre mulheres que trabalham meio-período
no setor de serviços e na indústria (operárias, vendedoras, assalariadas em escritório
e faxineiras). Um dos resultados dessa pesquisa indica que o trabalho doméstico, par-
tilhado com o marido quando ambos são assalariados em tempo integral, volta a ser
realizado exclusivamente pelas mulheres quando elas trabalham meio período. Cf.Le
travail à temps patiel. La documentation Française, 1984 (N.daT.)

A Consulta Popular e o Feminismo 53


tísticos se referem a uma sociedade particular, a sociedade francesa, os
avanços da pesquisa comparativa internacional mostram que a mesma
demonstração poderia ser efetuada paralelamente para todos os países.
Todos os dados mostram que, para uma mesma classificação, os
postos de trabalho femininos são bastante distintos daqueles ocupados
pelos homens e que, ao mesmo tempo, a natureza da penibilidade da
tarefa e a carga de trabalho que pesa sobre uns e outros variam sensi-
velmente segundo o sexo.

Tabela 1 - Operários não qualificados *


Condição Homens Mulheres
Trabalham em linha de montagem 7,7 26,5
Têm um ritmo de trabalho imposto:
pelo deslocamento automático de um
7,1 16,5
produto ou de uma peça
pela cadência automática de uma máquina 14,8 25,7
por normas de produção 27,3 42,6
têm uma remuneração que depende do ritmo de
18,1 29,0
trabalho
repetem sempre uma mesma série de gestos ou
33,5 68,6
de operações

(*) Pesquisa sobre as condições de trabalho, do Ministério do Trabalho fran-


cês, (realizada junto a 17.500 assalariados, em 1978 e reatualizada em 1985.

Essa divisão sexual, já nítida quando estudamos uma única catego-


ria, a dos operários não qualificados, toma-se ainda mais clara quando
comparamos simultaneamente sexos e categorias. É assim que, se re-
tomarmos a pesquisa do Ministério do Trabalho, examinando desta
vez a categoria “operários qualificados”, veremos que as denominações
admitidas geralmente e generalizadas ao conjunto da mão de obra re-
cobrem realidades bem diferentes segundo o sexo: 15% das operárias
qualificadas trabalham em linha de montagem, quando apenas 2,2%
dos operários qualificados (e 7,7% dos operários não qualificados) o
fazem; 26% das operárias qualificadas têm um salário que depende do

54 Caderno de Debates
ritmo de trabalho (contra respectivamente 16% para os operários qua-
lificados e 18% para os não qualificados); 48,2% repetem sempre uma
mesma série de gestos e de operações (contra 20,7% para os operários
qualificados e 33,5% para os não-qualificados). Isso significa que uma
operária qualificada tem duas vezes mais possibilidades de trabalhar
em linha de montagem que um operário não qualificado e uma vez e
meia mais possibilidades de ter uma remuneração dependente do ritmo
de trabalho e de ter que repetir sempre a mesma série de gestos ou
de operações: a clivagem passa portanto entre homens e mulheres de
classe operária, bem mais do que entre categorias profissionais,
Assim, apenas sobre o plano da organização técnica - plano que
poderíamos supor pouco dependente a priori da ideologia, e mais fa-
cilmente objetivável - aparece claramente que a situação das operárias
é qualitativamente diferente dos operários e não só quantitativamente,
porque as categorias sócio-profissionais tradicionais (“os não qualifi-
cados”, “operários qualificados”...) recobrem tipos de trabalho bem
diferentes segundo se trate de homens ou de mulheres. É por isso que
dizemos que o conceito de superexploração em si só é insuficiente para
dar conta da condição operária feminina.
Vemos assim claramente que as diferenças observadas no tratamen-
to que nossas sociedades reservam aos homens e às mulheres no campo
do trabalho, não têm a ver com um mais ou menos, mas devem ser re-
lacionadas, não a modulações, mas a diferenças, contradições entre os
dois sexos, a relações sociais, em suma.
E, inversamente, se admitirmos que existe uma relação social espe-
cífica entre homens e mulheres, decorreria daí que há necessariamente
práticas sociais diferentes segundo o sexo (assim como o problema da
qualificação, que veremos mais adiante). E dado que se trata de políti-
cas sociais, e não mais de condutas reguladas biologicamente, pode-se
encontrar um princípio de inteligibilidade. Assim, o que era ininteligível
para o sociólogo ou fora do campo de sua disciplina, torna-se objeto
de questionamento.
Concluindo: não se pode raciocinar unicamente em termos de rela-
ções de classe (as mulheres seriam mais vulneráveis que os homens na

A Consulta Popular e o Feminismo 55


relação capital/trabalho) assim como não se pode raciocinar a partir
de uma única categoria de sexo (ser mulher acrescentaria ou subtrairia
algo à situação típico-ideal do “trabalhador”).
Os comportamentos humanos, coletivos ou individuais, só podem
adquirir um sentido, referidos a um conjunto de relações sociais, pois
é este conjunto, sua configuração e sua mouvance que constituem a
trama da sociedade. Chega-se assim a um outro ponto essencial da pro-
blemática da divisão sexual do trabalho: a vontade de não pensar iso-
ladamente, de não imperializar uma relação social, mas, ao contrário,
esforçar-se para pensar conjuntamente em termos de complexidade e de
co-extensividade as relações sociais fundamentais: de classe e de sexo.

A divisão sexual do trabalho: um outro olhar sobre a realidade


Aqui, a questão a tratar é a seguinte: com a problemática da di-
visão sexual do trabalho, trata-se simplesmente de argumentar para
exigir o reconhecimento das mulheres igualmente como atores sociais,
para trabalhar em seguida sobre a condição feminina...ou é uma manei-
ra de considerar a realidade (através de uma teoria e de métodos) que
permita ver de outra maneira essa realidade, de descobrir novas facetas,
de relacionar fenômenos que classicamente permanecem isolados?
Em suma, será que tal problemática permite organizar mais ampla-
mente, de forma mais coerente, a explicação racional de nossas socieda-
des e de seu funcionamento? E se a resposta for positiva, nos pergunta-
remos se, na medida em que essa problemática permite uma renovação
da análise das práticas sociais, e portanto das lutas, ela poderia ter
conseqüências políticas?
Para ilustrar, vamos retomar o exemplo da qualificação/forma-
ção das operárias, que ilustra o esforço de desconstrução/reconstrução
exigido por essa problemática: se as operárias estão nos níveis mais.
baixos da escala de classificações, seria primeiro, porque são mal for-
madas pelo aparelho escolar e segundo porque elas se mobilizam pouco
pelos problemas de qualificação. Tal é o discurso dos economistas e dos
soció1ogos, e esquerda e direita estão grosso modo de acordo com ele.

56 Caderno de Debates
Nós nos insurgimos contra tais afirmações e o que delas decorre,
a saber:
 que bastaria reformar o aparelho de formação, de abrir por
exemplo carreiras masculinas para que as mulheres tenham
meios de adquirir uma formação superior, facilmente negociá-
vel no mercado de trabalho;
 que bastaria que as mulheres fossem conscientes do enjeu que
representa a qualificação na relação capital/trabalho para que
lutem... e ganhem nesse domínio.

A esse raciocínio em termos de desigualdade e de voluntarismo


(ou de conscientização, o que dá no mesmo), os trabalhos que realiza-
mos permitem opor a argumentação seguinte: em vez de dizer que as
mulheres operárias têm urna formação nula ou mal adaptada, dizemos
ao contrário que elas têm uma formação perfeitamente adaptada ao
tipo de empregos industriais que lhes são propostos, formação adqui-
rida de início por um aprendizado (a “profissão” de futuras mulheres
quando eram meninas) e em seguida por uma “formação contínua”
(trabalhos domésticos). As mulheres operárias não são operárias não-
qualificadas ou ajudantes porque são mal-formadas pelo aparelho es-
colar, mas porque são bem formadas pelo conjunto do trabalho repro-
dutivo.
Esse fato tem duas conseqüências:
 como esta qualificação das mulheres não é adquirida pelos
canais institucionais reconhecidos, ela pode ser negada pelos
empregadores; notemos aliás que a qualificação masculina é
também enjeu das relações sociais capital/trabalho, o patronato
procurando sempre negá-la; mas o que é específico às mulheres,
é que o não-reconhecimento das qualidades que se lhes exige
(destreza, minúcia, rapidez etc.) parece socialmente legítimo,
pois tais qualidades são consideradas inatas e não adquiridas,
como fatos de natureza e não de cultura; .
 as próprias operárias interiorizam essa banalização do seu
trabalho; como a, aquisição de seu savoir-faire se faz fora dos

A Consulta Popular e o Feminismo 57


canais institucionais de qualificação, sempre em referência à
esfera privada, ele aparece como uma aquisição individual e
não coletiva.
Um raciocínio como este permite compreender melhor as prá-
ticas existentes, mas também permite estruturar melhor o campo de
forças nas quais elas se realizam e portanto as condições (teóricas) nas
quais podem evoluir.
É que o problema da fomação-qualificação-classificação das
mulheres não se desenvolve num terreno neutro, onde todo mundo
teria a maior boa vontade de se debruçar sobre o “caso” desse grupo
minorizado das mulheres. Bem ao contrário, os homens apropriam-
se das carreiras rentáveis do aparelho de formação, e isso se acelera
com a crise; não se trata aqui de uma afirmação gratuita: conhecem-se
as dificuldades de acesso às carreiras masculinas e as dificuldades, ou
quase-impossibilidade, em fazer valer seu diploma quando se é mulher,
com diploma dito masculino, perante um patrão homem. Além disso,
sabe-se que os homens são mais combativos no que diz respeito à sua
própria qualificação e classificação. Isso não se deve, a nosso ver, ao
fato de que tenham mais consciência do enjeu da qualificação na re-
lação capital/trabalho; eles não são mais sensíveis por natureza a essa
questão da mesma maneira que não nasceram mais combativos que as
mulheres; entretanto, para eles, serem reconhecidos como
“qualificados” tem um significado bem diferente do que para as
mulheres.
Vê-se aqui como a comparação homens/mulheres colocada sob
a perspectiva das relações sociais, através da problemática da divisão
sexual do trabalho, permite abordar os dois lados da questão: como
o sistema social e sua evolução determinam o lugar das operárias na
escala das qua1ificações, e como/Porque as operárias interiorizam este
lugar; mas também, como as operárias podem transformar este sistema
e onde, em que pontos precisos, começaram a fazê-lo.
Concluindo, resumiremos o que dissemos pondo em evidência
os três pontos centrais, em tomo dos quais se estrutura a problemática
da divisão sexual do trabalho:

58 Caderno de Debates
 a divisão do trabalho entre os homens e as mulheres faz
parte integrante da divisão social do trabalho. De um ponto
de vista histórico, a estruturação atual da divisão sexual do
trabalho (trabalho assalariado/trabalho doméstico; fábrica,
escritório/família) apareceu simultaneamente com o capita-
lismo, a relação salarial só podendo surgir com a aparição
do trabalho doméstico (deve-se notar de passagem que esta
noção de “trabalho doméstico” , não é nem a-histórica nem
trans-histórica; ao contrário. sua gênese é datada historica-
mente). Do nascimento do capitalismo ao período atual, as
modalidades desta divisão do trabalho entre os sexos, tanto
no assalariamento quanto no trabalho doméstico, evoluem
no tempo de maneira concomitante às relações de produção;

 a divisão do trabalho é um termo genérico que remete a toda


uma série de relações sociais (como por exemplo a divisão in-
ternacional do trabalho, a divisão entre o trabalho manual e
intelectual...). A divisão do trabalho entre os sexos remete à
relação social entre homens e mulheres, que atravessa e é atra-
vessada pelas outras modalidades da divisão social do trabalho.
Tentamos demonstrar, no que diz respeito a essa imbricação
entre diferentes relações sociais, que relações de classe e rela-
ções de sexo não eram hierarquizáveis mas co-extensivas; em
outras palavras, trata-se de conceitos que se recobrem parcial-
mente e não de conceitos que “se recortam” ou “se articulam”;

 a divisão sexual do trabalho, se ela tem sua raiz na designação


prioritária das mulheres ao trabalho doméstico, não pode de
forma alguma ser considerada operatória unicamente no que
diz respeito às mulheres, ao trabalho doméstico, à esfera do
privado ou à da reprodução. Bem ao contrário, trata-se de uma
problemática (e não da abertura de um novo campo regional)
e de uma problemática que atravessa e dá sentido ao conjunto
de relações sociais que recobre o termo de divisão social do

A Consulta Popular e o Feminismo 59


trabalho; daí a necessidade de desconstrução/reconstrução da
maior parte dos conceitos utilizados em sociologia. Esse traba-
lho só pode ser, aliá, pluridisciplinar e transversal em relação às
compartimentações do tipo sociologia do trabalho/sociologia
da família.
O exemplo do conceito de “trabalho” é sem dúvida o mais
expressivo: as disjunções clássicas entre trabalho/não trabalho, traba-
lho assalariado/trabalho doméstico... foram recusadas como sendo o
reflexo da ideologia dominante e esforçamo-nos por reestabelecer as
relações entre o que tinha sido separado, até então, através de uma de-
finição mais extensiva de trabalho (o conceito de trabalho recobrindo
tanto o trabalho assalariado quanto o trabalho doméstico) e afastando-
o do âmbito exclusivo das relações mercantis. A partir daí, o trabalho
doméstico e as particularidades do trabalho assalariado das mulheres
não são mais “exceções” em relação a um modelo que se supõe ser
geral, mas tal problemática pressupõe uma tentativa de reconstruir um
modelo geral do qual essas mesmas especificidades seriam elementos
constitutivos.
Neste sentido, a problemática da divisão sexual do trabalho se
inscreve na grande tradição da sociologia que é precisamente de ir além
das aparências, além do senso comum, para mostrar que o que é per-
cebido como “natural” por uma sociedade, o é unicamente porque a
codificação social é tão forte, tão interiorizada pelos atores que ela se
toma invisível: o cultural torna-se a evidência, o cultural se transmuta
em natural.

(Tradução de Helena Hirata, revista por Magda Neves)


Hirata, Helena, org. Divisão capitalista do trabalho. Tempo
Social; Ver. Social. USP, S.Paulo, 1(2): 73-103, 2 sem.1989.

60 Caderno de Debates
Marxismo e feminismo: estratégia e tática
Tatiana Berringer- (São Paulo)

O feminismo é fundamental para a construção de uma organiza-


ção de novo tipo que luta por uma sociedade livre de explorações e
opressões. Precisamos tocar em pontos centrais e iniciar um processo
de reflexão para compreender o papel da luta feminista. Vivemos numa
sociedade patriarcal, que provoca o comportamento machista. A nossa
resistência em debater este tema só reforça sua importância: tão arrai-
gado que está em nós, reproduzimos e sustentamos o machismo sem
perceber.
O ponto de partida para compreendermos essas relações é entender
a raiz do sistema patriarcal: como o capitalismo se apropria do pa-
triarcalismo aprofundando e agudizando a exploração e opressão das
mulheres. Precisamos então entender a relação entre a teoria feminista
e a marxista.
O que nos une enquanto partido e lutadoras(es) é compreensão
histórica da luta de classes na sociedade brasileira e a necessidade de
uma estratégia revolucionária socialista que cumpra com as tarefas de-
mocrático, populares e nacionais as quais a burguesia interna não reali-
zará. Ainda é fundamental, reconhecer a especificidade da situação das
mulheres dentro da sociedade capitalista e patriarcal. Avaliamos que a
definição da estratégia é central e não podemos errar nesta avaliação
para a construção do projeto de sociedade que lutamos, diante disso,
a defesa que temos a partir do I Encontro Nacional de Mulheres da
Consulta Popular realizado em 6 e 7 de dezembro de 2008, é que: Sem
feminismo não há socialismo! Portanto, o caráter da revolução deve ser
feminista, socialista, proletário e internacionalista.
.De fato a emancipação da mulher da exploração que vivemos está
atrelada ao socialismo, porém, somente o socialismo não garante a su-
peração do patriarcado que data de mais de nove mil anos, com o inicio
da propriedade privada, ou melhor, da vida sedentária, da divisão entre
o mundo publico e privado. À mulher foi designado o papel de cuidar

A Consulta Popular e o Feminismo 61


e manter a casa e servir ao homem. O cuidado dos filhos deverá ser
algo coletivo, deverá haver ações estatais que garantam serviços básicos
para a manutenção de uma casa (lavar roupas, cozinhar, limpar a casa)
e de cuidar dos filhos, idosos e doentes.
Em A origem da família, da propriedade e do Estado:
 [...] A contribuição de Engels foi importante para mostrar que
o lugar social das mulheres não era expressão de uma “natureza
feminina” inata, identificando a relação entre homens e mulheres
como relação de opressão e situando nos processos socioeconô-
micos os elementos que conduziram à dominação masculina. A
primeira divisão de trabalho, entre homens e mulheres, institucio-
naliza-se como relação opressiva quando as mulheres perdem o
controle o sobre o trabalho e se tornam economicamente depen-
dentes do homem. Assim, a primeira forma de opressão origina-
se por contingências materiais e não por uma essência masculina
dominadora (ARAUJO, 2000, p.66). 

Não devemos separar as lutas, pois dentro do modo de produção


capitalista o papel da mulher é estruturante. O rompimento da opres-
são das mulheres não se dará somente pela tomada do poder pelos
trabalhadores (as). Devemos lutar contra uma  estrutura e um conjunto
de valores que é mais antiga que o sistema capitalista. Devemos cons-
truir novos tipos de relação de gênero e de garantias sociais desde já,
na nossa luta social e política. Por isso, a luta das mulheres é tática e
estratégica, são bandeiras que englobam o que chamamos de um Pro-
grama Mínimo para o Projeto Popular para o Brasil, são lutas que nos
ajudam a acumular forças, avançar na unidade, garantir uma melhoria
da qualidade de vida das mulheres e bem como, garantir a nossa par-
ticipação no mundo da política. As lutas contra a criminalização das
mulheres que praticam aborto e pela legalização do mesmo, creches,
saúde integral, aumento do salário mínimo, etc. são claramente lutas da
classe da trabalhadora e devemos intensificá-las.
Pensar um projeto popular para o Brasil, uma sociedade igualitária
e pautada em valores socialistas, deve ser um processo que busque novas
práticas militantes capazes de romper com o capitalismo patriarcal. Os
partidos que levam no centro da tática a questão eleitoral de disputa de

62 Caderno de Debates
governo investem energias que poderiam estar voltadas para formação,
e orientadas na busca de mudanças culturais e ideológicas. Mudanças
que exigem sistemático investimento de longo prazo em atividades de
formação (CASTRO, 2000, p.106). Como nos alerta a socióloga Mary
Garcia Castro uma organização de noto tipo:
Além de exigir enfrentamento com expressões de conservadoris-
mo popular, o que seria o avesso à tônica de ganhar votos, ou
dizer o que o povo quer ouvir- inclusive porque se estaria, ao se
questionar as relações entre homens e mulheres, por exemplo,
quebrando a idéia de unidade aparente no povo e se investindo
na unidade, no povo, como processo, ou seja, “engendrando” a
classe.
Por outro lado, defendo que investir no engendramento de um
feminismo marxista e de um feminismo socialista tem hoje parti-
cular pertinência, quer pela propriedade do marxismo – a insis-
tência em uma saída radical, considerando a falência das fórmu-
las liberais, inclusive no plano de políticas de identidade, para as
mulheres -, quer porque, como há muito defendem as feministas
marxistas e socialistas, não bastaria uma interpretação centrada
apenas no marxismo para dar conta da complexidade das rela-
ções desiguais entre os sexos, as divisões sexuais de trabalho, de
poder e de codificação do prazer, o que pede diálogo guardado os
limites ideológicos, entre distintos feminismos. (2000, p.106-7). 

  A aproximação entre o marxismo e feminismo deve nos ajudar a


desnaturalizar as diferenças sexuais criadas pelo patriarcalismo e apro-
fundadas pelo capitalismo, que coloca em termos de valores e insti-
tuições uma distinção que além de algumas características biológicas
não correspondem a diferenças entre homens e mulheres. A partir dessa
identificação, devemos usar o método marxista como instrumento de
análise profunda das contradições históricas da sociedade para pensar-
mos dialeticamente a questão de gênero e a superação da opressão das
mulheres.
  [...]O enfoque histórico e material do marxismo permitiu a
desnaturalização da subordinação da mulher[...],situando sua
gênese na e pelas relações sociais e ao mesmo tempo possibilita
pensar as práticas sociais, a construção das instituições, assim
como os valores transmitidos através das gerações, como pro-

A Consulta Popular e o Feminismo 63


cessos mutáveis, que ocorrem via uma agência humana ativa e
dinâmica, embora não determinista, como mostrou Marx em  O
18 de Brumário de Luis Bonaparte. [...] (ARAÙJO, 2000, p.65)

  Entendendo que classes sociais para o marxismo são contradições


e luta de classes, uma classe social define-se pelo seu lugar no conjunto
das práticas sociais e é o efeito da estrutura na divisão social do traba-
lho. As classes sociais só existem na luta de classes e os agentes sociais
são determinados principalmente pelo seu lugar no processo de pro-
dução, mas não exclusivamente. O econômico tem papel determinante
nas relações de produção e exploração, mas o ideológico e o político
têm igualmente um papel importante de dominação e subordinação.
Segundo o marxista grego-francês Nicos Poulantzas:
[...]é preciso sublinhar que estas barreiras de classe e sua repro-
dução ampliada têm como efeito desigualdades sociais especifi-
cas e concentradas em certos conjuntos de agentes, segundo as
diversas classes em cujo seio estão distribuídos em especial, os
jovens e os velhos, para não nos estendermos ainda mais sobre
o caso, de uma natureza e muito mais complexa, as mulheres.
É porque no caso das mulheres, não se trata simplesmente de
efeitos supradeterminados (isso é muito complexo) sobre elas
nas divisões da sociedade de classes, porém, mais precisamente,
uma articulação particular, no seio da divisão social do trabalho,
da divisão em classes e da divisão geral. (POULANTZAS, 1974,
p.22, grifos meus)

Isso se deve porque a divisão sexual do trabalho delega às mulheres


o papel da reprodução da força de trabalho determinado pelo trabalho
doméstico e de cuidado dos filhos(as). Somos nós quem sustenta, cria
e reproduz mais forças de trabalho (filhos(as), companheiros e mari-
dos) através do trabalho reprodutivo. O capitalismo se apropriou do
patriarcado e depende da divisão sexual do trabalho, que por muito
tempo significou uma distinção entre o lugar privado e o público.
Este do trabalho produtivo e do mundo da política aparece até hoje
como lugar dos homens. Esta situação se modifica um pouco quando
a mulher sai de casa e vai para a fábrica e para o mercado de trabalho.
Mas, ainda assim, a mulher continua responsável pelo espaço privado,

64 Caderno de Debates
cumprindo uma dupla jornada de trabalho, sem abandonar o trabalho
de cuidado da casa e de seus familiares.
Além da dupla jornada, o sistema encontrou no trabalho das mu-
lheres uma forma de aumentar a exploração e extração da mais-valia,
sub-remunerando-as. Mesmo quando as mulheres exercem as mesmas
funções que os homens, estatisticamente têm um salário inferior ao dos
homens. Mesmo que tenham formação, ocupam cargos de meio perío-
do ou que exigem qualificação abaixo daquelas que eles possuem.
No plano econômico, as mulheres seguem sendo a grande maioria
dos pobres do mundo, sem remuneração para o trabalho doméstico,
sem divisão deste com os homens e sem paridade nos trabalhos para
o mercado. A chamada globalização neoliberal ampliou a informaliza-
ção dos trabalhos: trabalhos temporários, terceirizados, precarizados,
sem garantias e direitos. E também em serviços sexuais (prostituição e
pornografia). E aumentou o tráfico de mulheres, compradas e vendidas
internacionalmente para serviços sexuais, domésticos ou até mesmo es-
cravos.
Há uma camada social no Brasil, constituída pela massa de em-
pregadas domésticas: uma parcela considerável das mulheres, respon-
sáveis pelo funcionamento e sustentação das casas, ocupando o papel
das “amas” da Casa Grande, um legado da estrutura colonial de que
não libertamos ainda milhões de mulheres. Os direitos trabalhistas
são ainda flexíveis para esta camada da classe trabalhadora feminina,
muitas trabalham como diaristas, sem vinculo empregatício. Emancipá-
las, reconhecer-lhes os direitos mínimos ligados ao trabalho é parte fun-
damental do projeto popular.
 No plano político, nos é relegado um papel secundário pelos sécu-
los em que fomos excluídas da atuação política institucional e também
revolucionária. Além da tardia universalização dos votos. Hoje, por
conta da dupla jornada de trabalho, não nos resta o mesmo tempo
que aos homens para militar e nos formarmos politicamente. E ainda
enfrentamos preconceitos, brincadeiras sexistas, esteriotipadoras e um
padrão de militante que não nos favorece! O mundo da política foi
construído a partir de uma linguagem e símbolos que os homens apren-

A Consulta Popular e o Feminismo 65


dem e dominam desde pequenos, assim temos uma imensa dificuldade
para rompermos e nos colocarmos, além de que a dominação e subor-
dinação que sofremos por sermos mulheres no sistema patriarcal nos
afeta psicologicamente, nos inferioriza, diminuindo a autoconfiança
para exercer o papel de dirigência e formulação.
Existe outra esfera de luta, mais ligada à esfera cultural, de cons-
trução de subjetividade e identidade, e que não se desvincula da luta
de classes - mesmo envolvendo (até certo ponto) mulheres burguesas
e proletárias. É a luta contra a mercantilização do corpo das mulhe-
res, a padronização da estética em padrões burgueses, a inferiorização
do sexo. São comportamentos que surgem como reflexo da sociedade
capitalista patriarcal e que dominam a indústria cultural e o comporta-
mento de homens e mulheres que devemos lutar também. Sabendo que:
[...] é inegável que, particularmente após os anos 60, significa-
tivos avanços democráticos foram obtidos pelas mulheres da
burguesia e da pequena-burguesia (intelectuais, artistas, profis-
sionais liberais, políticas, etc...). Desta época em diante, este setor
social vem conquistando direitos civis e igualdade de oportunida-
des de trabalho. Se isto não deu ainda a estas mulheres a cidada-
nia burguesa  absoluta, ao menos, configura significativo avanço
na direção da completa igualdade, de forma jamais sonhada em
outras épocas históricas. No entanto, estas mulheres emancipa-
das, em geral, situam-se nas relações de produção, entre aquelas
que extraem a mais-valia das próprias mulheres, as operárias.

As mulheres da classe trabalhadora, ao contrário, nada conquis-


taram nas ultimas décadas. A estas muito pelo contrário, cada
vez mais amplamente, têm sido negados direitos democráticos,
mesmo aqueles conquistados pela luta do movimento operário,
desde o século XIX, como o simples direito ao trabalho, hoje
retirado, em nome da chamada “modernização capitalista”.
(BENOIT, 2000, p.86)

Construir um novo bloco social moral e intelectual é um primeiro


passo que devemos dar para dentro e para fora de nossa organização.
O papel da (o) militante é cotidiano, é dentro de casa e nas relações
pessoais também. Nossas mães são oprimidas e opressoras no que se
refere ao machismo. Nossos companheiros e companheiras têm ações

66 Caderno de Debates
machistas, oprimem seus filhos e filhas.
Se entendemos que o Estado é um fator de coesão social, cujo papel
é a manutenção e reprodução das relações de classe, cujos aparelhos
repressivos e ideológicos exercem um papel decisivo para a divisão e
reprodução ampliada das classes. Pensar na transformação radical da
sociedade não se limita a mudança do poder de Estado, mas implica
na destruição dos próprios aparelhos de Estado que deverão ser subs-
tituídos. Os aparelhos ideológicos do Estado (escola, igreja, mídia) re-
produzem a opressão patriarcal. É preciso repensar na função e forma
de organização da religião e da família, se queremos garantir que as
mudanças aconteçam profundamente na sociedade.
A classe não se define somente no momento da luta de classes,
enquanto organização política autônoma, com “consciência de classe”,
portadora de uma ideologia proletária revolucionária, “classe para si”,
isso se dá em um momento conjuntural revolucionário quando as clas-
ses se apresentam como forças sociais. Porém a classe é definida pelo
conjunto de relações sociais econômicas, políticas e ideológicas que são
estruturas.
As mulheres têm sido protagonistas na luta contra as transnacio-
nais e por soberania alimentar. Através de uma aliança entre o campo e
a cidade estas pautas projetaram-se internacionalmente lideradas pela
Via Campesina e pela Marcha Mundial de Mulheres. Mas ainda há um
conjunto de pautas especificas da vida das mulheres que são reivindica-
ções que vêm sendo tocadas por entidades e movimentos de mulheres,
com trabalho específico de base, que visa à superação da violência se-
xista e de conquistas democráticas.
 E existe um duro caminho a ser percorrido no interior das organi-
zações políticas de esquerda, conforme defende Castro:
[...] a dupla militância, o estar na academia e estar em organiza-
ções políticas mistas, na militância em partidos e organizações de
esquerda e em núcleos autônomos feministas. É uma prática com
custos inclusive no plano pessoal, considerando o encrostamento
cultural do machismo em camaradas e companheiros, ainda que
se assuma na retórica, hoje, nas organizações de esquerda, de
citar gênero e tolerar as cotas para mulheres e os departamentos

A Consulta Popular e o Feminismo 67


de “assuntos da mulher”. Mas essas militantes, que insistem em
uma dupla entrada, estariam também contribuindo para renovar
as organizações de esquerda, para uma prática mais flexível e in-
clusiva na modelagem de projetos para a humanidade [...] (2000,
p.104). 

Por isso, termina seu artigo dizendo:


Engendrar um feminismo marxista, a partir de análises das ex-
periências de mulheres de setores populares em movimentos e
organizações de base, e re-acessando criticamente as teorias mar-
xista e feminista não pode ser agenda exclusiva das feministas de
esquerda, mas de todos os socialistas e comunistas (2000, p.108).

  A luta das mulheres é uma luta interna e externa, no Parti-


do revolucionário:, a auto-organização das mulheres tem o objetivo de
romper com o machismo dentro da nossa organização, criando novas
relações entre os camaradas e garantindo que as mulheres também
sejam protagonistas das lutas. Além de taticamente levantarem e lu-
tarem por bandeiras feministas, por pautas específicas a vida das mu-
lheres. Devemos construir as lutas junto às frente de massas dos mo-
vimentos feministas, dando peso e visibilidade ao processo de unidade
da esquerda que vêm sendo um exemplo pedagógico nos 8 de março e
colocando as mulheres em movimento.
Para isso devemos estar coordenadas pela definição tática nacional
da Consulta Popular, nos organizando em torno do tripé (formação,
organização e luta), buscando a unidade dos movimentos feministas e
criando força social. O setor deve potencializar a formação e a luta das
mulheres para atuarem nas demais instâncias da organização, sem se
tornar um grupo fechado e específico.

Bibliografia
ARAÚJO, Clara. Marxismo, feminismo e enfoque de gênero. Revista Crítica
Marxista. Campinas: Unicamp. Nª11, 2000.
BENOIT, Lelita Oliveira. Feminismo, gênero e revolução. Revista Crítica Mar-
xista. Campinas: Unicamp. Nª11, 2000.
CASTRO, Mary Garcia. Marxismo, feminismos, e feminismo marxista – mais

68 Caderno de Debates
que um gênero em tempos neoliberais. Revista Crítica Marxista. Campinas:
Unicamp. Nª11, 2000.
KERGOAT, Daniele. Da divisão sexual entre os sexos.
POULANTZAS, Nicos. As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janei-
ro: Zahar Editores, 1978.

A Consulta Popular e o Feminismo 69


Anotações
CONSULTA POPULAR
C ONSTRUINDO UM P ROJETO P OPULAR PARA O B RASIL

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