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01/07/2020 Lógica do Fantasma - aula 3

JACQUES LACAN

LÓGICA DO FANTASMA
1966 – 1967
COLEÇÃO
O SEMINÁRIO
LIVRO 14
Estabelecimento
Isagoge e Notas
de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Para uso interno do
RECORTE DE PSICANÁLISE

7 de dezembro de 1966

* 3 *

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Vocês puderam, na última vez que nós nos encontramos


aqui, escutar o que lhes propôs J.-A. Miller.
Eu não pude agregar observações. Penso que vocês
puderam notar, nesta exposição marcada de um super
conhecimento, o que foi inaugurado como lógica moderna
pelo trabalho e pela obra de Bole. Isso não pode ser
indiferente de fazer-lhes saber que J.-A. Miller, que esteve
ausente em meu último curso, não estava seguro sobre sua
escolha. Estas notações têm sua importância em razão da
extraordinária convergência ou ainda da reaplicação do que
pôde enunciar diante de vocês, de qualquer maneira, com
conhecimento de causa, quer dizer, sabendo quais são os
princípios e, se eu posso dizer, os axiomas ao redor dos
quais giram agora meu desenvolvimento. É surpreendente
que a ajuda de Boole, onde está ausente esta articulação
maior, que nenhum significante poderia significar-se a si
mesmo, que partindo da lógica de Boole, quer dizer, deste
momento de virada no qual, de qualquer maneira, se
apercebe ter querido uma formalização clássica, que esta
formalização permite não só aportar-lhe extensões maiores e
se revela ser a essência escondida sobre a qual esta lógica
podia orientar-se e construir-se, acreditando em algo que
não era verdadeiramente seu fundamento, acreditando
continuar o que nós buscaremos cernir hoje para, de alguma
maneira, separar [écarter] do campo no qual iremos
proceder: a lógica do fantasma.
A surpreendente facilidade com a qual os campos em
branco da lógica de Boole – Miller voltou a encontrar a
situação – o lugar onde o significante em sua função própria
está aí elidido neste famoso –1, do qual ele destacou
admiravelmente a exclusão na lógica de Boole, passando
por esta elisão ele deixava o lugar onde eu articulara o que
se situa aqui.
Isto tem sua importância e lhes permite apanhar a
coerência na qual se insere esta lógica em nome dos fatos do
inconsciente e, se nós somos o que nós somos, quer dizer,
racionalistas, isso que é preciso esperar, é bem evidente não
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que a lógica interior seja de alguma maneira invertida, senão


que aí se faça reencontrar seus próprios fundamentos. Vocês
viram marcado que neste ponto que necessita para nós a
posta em jogo de certo símbolo, este algo que responde a
este –1 de Boole, que não é seguro que seja o melhor ao
uso. Porque o próprio de uma lógica formal é que ela opere,
nós temos a resgatar novos operadores no que, à medida das
orelhas às quais eu me dirigia, eu tinha já tentado articular
de uma maneira manejável para o que havia a manejar, que
na ocasião outra coisa não era que a praxis analítica.
Este ano, partindo destes limites, sobre suas bordas, eu
estou compelido a dar-lhes as formulações mais rigorosas
para cernir o que nós vamos fazer e que merecem ser
tomadas na articulação mais geral do que nos são dadas pelo
instante, em matéria de lógica, a saber, aquilo que se centra
na função dos conjuntos.
Eu dispenso este sujet disso que J.-A. Miller aportou,
menos como articulação ao que eu desenvolvi para vocês,
do que como confirmação, asseguramento, enquadramento;
não é interessante apontar-lhes senão designando-lhes em J.
P. Sartre sob a designação de consciência tética de si o modo
que ele tem de ocupar o lugar onde reside esta articulação
lógica que é nossa tarefa, este ano: trata-se aí do que se
chama um lugar-tenente. Isto do qual temos que nos ocupar,
nós analistas, de uma maneira equivalente àquela dos outros
lugares-tenentes quando temos que manejar isto que é efeito
do inconsciente. É mesmo disto que podemos dizer que de
algum modo o que eu posso enunciar se situa em relação a
J. P. Sartre, posto que é ao redor deste ponto fundamental
que gira o privilégio no qual ele tenta manter o sujeito. Esta
espécie de lugar-tenente não pode de nenhum modo me
interessar a não ser no registro de sua interpretação.

A LÓGICA E O VERDADEIRO

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Lógica do fantasma. Seria preciso lembrar para hoje, e


nós não podemos fazê-lo senão muito rapidamente, o modo
pelo qual com um toque de dedo se faz vibrar em um
instante para lembrar a vacilação, não apagada, do que se
enoda à tradição que o termo universitário destacará. Não é
inútil indicar quaisquer que sejam os outros sentidos que se
possa dar a este termo de universidade, universitas
literarum, há aí alguma alusão ao universo do discurso. Está
claro que nesta hesitação (lembrem a valsa que o professor
de filosofia, no ano que vocês por aí passaram, fazia ao
redor da lógica das leis do pensamento ou de suas normas,
da maneira na qual isso funciona e que nós iremos extrair
cientificamente, ou o modo pelo qual é preciso que isto seja
conduzido)[1]. Admitam que, ainda que seja para não
interromper o debate, talvez a suspeita surja de que a função
da universidade, no sentido que eu acabo de articular, possa
ser de separar a decisão. Eu quero dizer que esta decisão é
talvez mais interessada, eu falo de lógica nisto que se passa
no Vietnã. Que é feito do pensamento, tanto assim que ele
resta ainda assim suspenso nesse dilema entre essas leis que
desde logo nos levam a nos interrogar se elas se aplicam no
mundo, dizemos antes ao real; dito de outro modo: se ele
não sonha. Eu não perco minha linha psicanalítica. Para nós,
analistas, saber se o homem que pensa sonha, é uma questão
que tem um dos sentidos mais concretos.
Para mantê-los suspirantes, saibam que eu tenho a
intensão de passar este ano tratando do despertar: normas do
pensamento no lado oposto. Eis que nos interessa, também
em sua dimensão não reduzida, este pequeno trabalho de
punçagem pelo qual geralmente o professor, quando trata da
lógica em sua aula de filosofia, terminará por fazer que
essas leis e essas normas terminem por se apresentar na
mesma linha de modo a permitir fiar um dedo sobre o outro,
dito de outro modo, que permite manejar tudo isso às cegas.
Para nós, analistas, esta dimensão não perdeu seu relevo
que se intitula aquilo do verdadeiro; portanto, depois de
tudo, ela não necessita, não implica nela mesma o suporte
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do pensamento e que, se ao interrogar qual é a verdade de


que se trata, a propósito do que eu suscitei o fantasma de
uma norma, seguramente, parece claro desde a origem que
isso não é imanente ao pensamento.
Se eu me permito, para fazê-los vibrar, escrever uma
figura que não era difícil de avivar, aquela da verdade
saindo do poço[2], “eu a verdade falo”[3], é para pontuar
este relevo onde se trata para nós de manter isto ao qual se
engancha nossa experiência e que é impossível excluir da
articulação de Freud, porque Freud colocou aí encostado ao
muro muito rapidamente e não se forçou por isto a intervir,
ele não se colocara aí. A questão pelo modo pelo qual se
presume o campo da interpretação, o modo pelo qual a
técnica de Freud lhe oferece a ocasião: a associação livre
que, dito de outro modo, nos leva ao coração desta
organização formal onde se esboçam os primeiros passos de
uma lógica matematizada a qual tem o nome de redes,
treliças; e precisamos (embora minha função hoje não seja
precisar) que o que chamamos treliças ou ripados, é disso
que se trata no que Freud também em seus primeiros
esboços de uma nova psicologia e no modo como ele
organiza o manejo da análise como tal, que ele constrói
avant la lettre, se posso dizer, e como a objeção lhe é feita
em um ponto preciso da Traumdeutung, ele responde à
objeção seguramente com sua maneira de proceder em toda
encruzilhada, vocês terão a ocasião de encontrar um
significado que fará a ponte entre duas significações se com
sua maneira de organizar as pontes vocês irão sempre de
algum lugar à algum lugar.
Não é por nada que eu tinha posto uma pequena etiqueta
em uma interpretação do século XVIII, sobre os hieróglifos
egípcios, a argila e a ponte; é disso que se trata em Freud
nesta rede onde ele nos ensina a fundar a primeira
interrogação. É com efeito uma pequena ponte: é como
ponte que isso funciona. O que se objeta é que assim tudo
explicará tudo.
Dito de outro modo, o que se opõe à interpretação
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psicanalítica, fundamentalmente, não é nenhuma espécie de


“crítica cientifica”, como se imagina na bagagem dos que
entram na medicina, que têm ainda um pouco de filosofia, a
saber, que o científico se funda sobre a experiência. Bem
entendido que nós ainda não abrimos Claude Bernard, mas
conhecemos disso o título!
É uma objeção que remonta à tradição medieval onde se
sabia o que era a lógica, onde ela estava mais expandida que
em nosso tempo. As coisas estão no ponto que havendo
deslizado em uma interwiew que eu tinha uma certa prática
de escolástica, eu pedi que se apagasse isso, senão o que é
que as pessoas teriam acreditado!
É da característica do falso tornar tudo verdadeiro.
A característica do falso é que se deduz isto do mesmo
passo, do mesmo pé, o falso e o verdadeiro não exclui o
verdadeiro, seria bastante fácil reconhecê-lo para aperceber-
se disto, é necessário haver feito um número mínimo de
exercícios lógicos; é lamentável que isto não faça parte dos
estudos de medicina. Os escolásticos expressavam isto pelo
adágio: Ex falso sequitur quod libet. É claro que o modo
pelo qual Freud responde nos leva rapidamente sobre o
terreno da estrutura da rede, ele não o expressa seguramente
em todos os detalhes, com as precisões modernas que nós
poderíamos dar-lhe [à estrutura da rede].
Seria interessante saber como ele pode aproveitar ou não
o ensinamento de Brentano. A função da estrutura da rede
como a maneira na qual as linhas de associação vêm a
convergir em pontos, ilustram de onde se fazem as partidas
eletivas, eis aqui o que está indicado por Freud. Sabe-se
bastante, por toda a continuação de sua obra, a inquietude, o
verdadeiro cuidado que ele tinha desta dimensão que é esta
da verdade, porque do ponto de vista da realidade estamos
acomodados, mesmo sabendo talvez que o traumatismo não
é senão fantasma de um certo modo, é ainda mais sobre um
fantasma como eu estou em vias de mostrar-lhes, é
estrutural, mas isto não deixa Freud, que como eu também
era capaz de inventar, isso não o deixa mais tranqüilo. Onde
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está o critério de verdade? Pergunta ele. Ele não teria escrito


o homem dos lobos se não estivesse nesta pista, se não
estivesse sobre esta exigência. É verdade ou não é?

A RELAÇÃODA VERDADE AO
SIGNIFICANTE
É verdade que ele suporta isso que se descobre ao
interrogar a figura fundamental que se manifesta no repetido
sonho do homem dos lobos? É verdade que ele não se reduz
a saber se sim ou se não, e em que idade ele viveu algo que
é reconstruído com a ajuda da figura do sonho? O essencial
é saber como o sujeito, o homem dos lobos, pode verificar
esta cena, sob seu ser e por seu sintoma, isto quer dizer
(porque Freud não duvida da realidade da cena primária)
como ele pode articular em termos propriamente de
significante. Vocês não têm senão que lembrar da figura do
V romano, enquanto que ela está ali em causa entre as
pernas separadas de uma mulher ou nas asas de borboleta,
para compreender que se trata do significante. Relação da
verdade ao significante, a volta por onde a experiência
analítica reencontra o processo mais moderno da lógica
consiste justamente nisto: é que essa relação do significante
à verdade pode curto-circuitar todo o pensamento que a
suporta e, do mesmo modo que uma espécie de desígnio, se
perfila no horizonte da lógica moderna que é o que reduz a
lógica a um manejo correto do que é só escritura;
igualmente para nós, a questão da verificação concernente a
isso com o que temos que ver passa por este estreito fio do
jogo do significante, enquanto que só para ele fica suspensa
a questão da verdade. Não é fácil levar adiante um termo
como este – da questão da verdade – sem fazer argumentar
imediatamente todos os ecos onde vêm deslizar “as
instituições”, as mais suspeitas, sem por outro lado produzir
as objeções feitas de velhas experiências nas quais aqueles
que se comprometem sobre este terreno sabem demasiado
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(gato escaldado tem medo de água fria) que vocês dizem


que por isso que eu vos faço dizer “moi, la verité je vous
parle”, que por aí eu abro sua reentrada ao tema do Ser, por
exemplo. Observemos aqui ao menos para saber, por duas
vezes, contentemo-nos com este nó bem expresso que eu
acabo de fazer entre a verdade (eu não impliquei ninguém
senão aquele a quem faço dizer estas palavras, “moi, la
verité je parle”, nenhuma pessoa divina ou humana está
interessada fora daquilo), a saber: este ponto de origem
entre o significante e a verdade. Que relação entre isto e o
ponto de onde eu parti recém; quer dizer que, para levá-los
por este campo da lógica a mais formal, eu esqueci este
onde se joga, como eu digo sempre, esta espécie de lógica.
Está claro que Bertrand Russel se interessa mais que J.
Maritain pelo que se passa no Vietnã, Isto por si só pode nos
dar uma indicação.
Evocando o Paysan de la Garonne sob seu último
hábito[4], este autor que se ocupou da escolástica influência
da filosofia de São Tomás[5], que não tem razão de não ser
evocado aqui na medida em que a evocação da obra não tem
incidência sobre a lógica; se eu evoco a J. Maritain e se
implicitamente lhes convido a reportarem-se a este espírito
de paradoxo que aí se demonstra é que se mantém neste
autor, mesmo em seus últimos anos, esta sorte de rigor que
permite aí ver conduzir até um impasse caricatural, em uma
indicação[6] bastante exata de todo o relevo do
desenvolvimento do pensamento moderno, a manutenção
das esperanças mais impensáveis do que deveria se
desenvolver em sua margem para que possa se manter o que
ele chama a intuição do Ser. Ele fala a este respeito de Eros
filosófico. Eu não tenho que repudiar diante de vocês o uso
de um tal termo, mas sim seu uso nesta ocasião, a saber: em
nome da filosofia do Ser, esperar o renascimento correlativo
da ciência moderna, [esperar isto] de uma filosofia da
natureza, partícipe de um Eros que não pode reconstruir
senão a comédia italiana. Isto não impede a passagem de
nada, para retomar essas distâncias, que sejam pontuadas
das mais pertinentes notações concernentes ao que é da
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estrutura da ciência uma vez que nossa ciência não


comporta nada de comum com a dimensão do
conhecimento; eis aqui que, com efeito, é muito justo, mas
não comporta uma promessa de que este renascimento do
conhecimento antigo seja rejeitado, pois ele comporta uma
outra perspectiva a qual eu retomarei depois deste parêntese,
é disto que se trata de interrogar.
Não há nenhuma necessidade para nós de recuar diante
do uso destas tábuas de verdade por onde os lógicos
introduzem, v.g., um certo número de funções fundamentais
da lógica proposicional.

A conjunção de duas proposições implica que, se nós


colocamos os valores, a saber, que se duas proposições:
O valor P: verdadeiro ou falso
O valor Q: verdadeiro ou falso
O que chamamos conjunção é o que não será verdadeiro
senão na condição de que os dois sejam verdadeiros? Em
todos os outros casos sua conjunção será falsa. É suficiente
que vocês abram não importa qual livro de lógica moderna
para encontrar a implicação, a equivalência.
Isto pode ser para nós suporte, mas não é suporte e apoio
senão para o que iremos perguntar para saber: é licito o que
nós manejamos pela palavra? O quê nós dizemos? E dizer
que há a verdade? É licito escrever o que nós dizemos, já
que o escrever será para nós o fundamento de nossa
manipulação?
Com efeito, a lógica moderna, eu acabo de dizer e de
repetir, quer se instituir, eu não disse como uma convenção,
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mas como uma regra de escrita, e esta regra de escrita, bem


entendido, se funda sobre o quê? Sobre o fato de que, no
momento de constituir o alfabeto, nós colocamos um certo
número de regras chamadas axiomas, concernentes à sua
manipulação correta e que isto comporta uma palavra que a
nós mesmos nos damos.
Temos o direito de inscrever nos significantes o
verdadeiro e o falso, do verdadeiro e do falso como de
qualquer coisa manejável logicamente?
Seguramente, qualquer que seja o caráter introdutivo,
primicial destas tábuas de verdade que podem nos cair nas
mãos, o esforço desta lógica será o de construir a lógica
proposicional sem partir deste quadro, devendo-se por outro
lado, depois de haver construído de outro modo as regras da
deducionabilidade, aí voltar.
Mas o que nos interessa é saber também o que isso
queria dizer, de que nos serviu, eu digo aqui especialmente,
na lógica estóica.
Eu fiz alusão a - está claro que isto não foi articulado
com uma tal força em nenhuma parte melhor que nos
estóicos.
Sobre o verdadeiro e o falso, os estóicos se interrogaram
por esta via lógica, a saber: o que é preciso para que o
verdadeiro e o falso tenham uma relação com a lógica no
sentido próprio em que nós a colocamos aqui; a saber, que o
fundamento da lógica não está tomado de outro lugar senão
da articulação da linguagem na cadeia significante e isto
porque sua lógica era uma lógica de proposição e não uma
lógica de classe. Para que haja aí uma lógica de proposição,
para que isso possa mesmo operar, como é preciso que as
proposições se encadeiem à vista do verdadeiro e do falso,
ou se ela tem algo a fazer, o verdadeiro deve engendrar o
verdadeiro, é o que chamamos de relação de implicação em
um sentido em que ela não faz nada intervir, a não ser dois
tempos proporcionais: a prótase, para não dizer a hipótese,
não se trata de crer, trata-se de colocar que o que é afirmado
é afirmado como verdadeiro; a segunda proposição é a
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apódose. Nós definimos a implicação como algo onde não


pode aí haver nada além de uma prótase verdadeira e de
uma apódose verdadeira. Isto não pode resultar senão em
algo que nós colocamos entre parênteses e que constitui
uma ligação verdadeira, isto não quer dizer de todo que aí
não possa haver mais que isso.
Suponhamos a mesma prótase falsa e a apódose
verdadeira. E então!? Os estóicos lhes dirão que isto é
verdadeiro, porque precisamente do falso pode ser
implicado tanto o verdadeiro como o falso; por
conseqüência é o verdadeiro, não há nenhuma objeção
lógica. Trata-se aqui do Ex falso sequitur quod libet.
A implicação não quer dizer a causa, a implicação quer
dizer esta ligação onde se escreve de uma certa maneira dois
tempos proposicionais concernentes à tábua de verdade: a
prótase e a apódose.
A única coisa que não pode acontecer é a doutrina do
assim chamado Filon: uma prótase verdadeira não saberia
implicar uma apódose falsa. Este é o fundamento radical
que permite manejar em uma certa relação com a verdade a
cadeia significante como tal. Isto nos dá a possibilidade de
uma tábua.
Pois bem, a ligação de implicação está conotada de
falsidade! O que é que isto quer dizer? Seguramente, eu já
lhes disse, as condições de existência mais radicais de uma
lógica.
O problema de fato evidentemente é este que nós temos
de enfrentar quando vamos falar disto que está escrito.
Em outros termos, quando o sujeito da enunciação entra
em jogo para colocá-lo em uma posição de valor, nós temos
que observar o que acontece quando nós dizemos que “é o
verdadeiro que é o falso”; isso não muda nada[7], apenas o
falso simplesmente retoma um não sei quê de brilho, um
enquadramento que o faz passar por um falso esplendor.
Dizer do falso que é verdadeiro não tem o mesmo
resultado, eu quero dizer que nós fundamentamos o falso,
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mas nós diremos antes que é falso que seja verdadeiro. O


emprego do subjuntivo nos indica que aí algo se passa.
Dizer que é verdade que é verdade, vai bem, nos deixa
uma verdade assegurada ainda que tautológica, mas dizer
que é falso que seja verdade não assegura sem dúvida a
mesma ordem de verdade.
Dizer que seja falso não é portanto dizer que seja
verdade. Nós nos vemos pois com a dimensão da
enunciação recolocada em suspenso de algo que não
demandava funcionar senão de um modo completamente
automático, ao nível da escritura, e isto porque é de fato
tocante notar qual é o lado escorregadio deste ponto onde o
dama surge exatamente desta duplicidade do sujeito. Eu não
hesitarei em ilustrar com uma pequena história de minha
carreira, esta reclamação de exigência que um dia surgindo
da garganta de alguém dos mais seduzidos pelo que eu
aportava como articulação de meu ensino, tocante jaculação
lançada ao céus: Por que ele não diz a verdade sobre a
verdade?
Esta espécie de inquietude encontraria sua resposta de
modo suficiente, como condição de repassar ao significante
escrito, o verdadeiro sobre o verdadeiro. O verdadeiro sobre
o verdadeiro, o significante não saberia significar-se a si
mesmo, salvo a isto que não seja ele que o signifique, salvo
o uso da metáfora, que substitui um significante outro a este
V da verdade, e de fazê-la sair de novo, a saber: a criação de
um significante falso.
A propósito do discurso assaz rigoroso que procuro fazer
hoje, isso pode ainda em vossos cérebros engendrar estas
confusões ligadas à produção do significado na metáfora.
Não é surpreendente que me volte às orelhas, da mesma
fonte onde se produz uma invocação concernente ao que eu
ensino de Freud, isto que esta boca elegantemente articulou
como “diluição conceitual”!
Há uma espécie de abuso onde se mostra a relação
estreita que tem com a estrutura do sujeito o objeto parcial.
O fato de admitir que é possível comentar um texto de
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Freud diluindo seus conceitos, evoca o que não poderia[8]


satisfazer à função do objeto parcial, que o objeto parcial
deve poder ser dividido. O pote de mostarda, definido como
estando necessariamente vazio de mostarda, não poderia[9]
ser enchido novamente de modo satisfatório com uma
diluição, com merda mole.
É essencial ver a coerência que têm estes objetos
primordiais com todo manejo correto de uma dialética
subjetiva.

A ESCRITURA E AS NEGAÇÕES

Para retomar estes primeiros passos concernentes à


implicação, é necessário ver surgir esta união entre a
verdade e o escrito, a saber: o que pode ser escrito e o que
não pode. Que quer dizer este “não pode” em cujo limite a
definição fica completamente arbitrária? O único limite
colocado na lógica moderna ao funcionamento de um
alfabeto em um certo sistema, o único limite sendo o da
palavra dada, axiomática e inicial. Que quer dizer “não
pode”? Há um sentido na palavra dada, inicial,
interditivo[10]. Mas o que é que se pode escrever disto? O
problema da negação está colocado ao nível da escritura
enquanto que ela regula como funcionamento lógico. Aqui
nos aparece imediatamente, estamos certos disto, a
necessidade que fez surgir desde o começo este uso da
negação nas imagens intuitivas, marcadas pelo primeiro
desenho disso que não deseja ser borda, as imagens de um
limite, aquela onde a lógica primeira, a introduzida por
Aristóteles, a lógica do predicado, que marca o campo onde
uma classe se caracteriza por um predicado dado e, fora
desse campo, por esta união com ele. Não é articulado ao
nível de Aristóteles que isto comporta a unidade do universo
do discurso, como eu digo a propósito do inconsciente, de
fazer voltar a sentir o absurdo de ressaltar que há o preto e o
que não é. É o fundamento da lógica do predicado.
Não é hoje, mas nas sessões seguintes, que eu tratarei de
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distinguir para vocês, de maneira completa, quais são ao


nível lógico, propriamente falando, o que se impõe da
própria escritura para discernir a negação. É por meio de
pequenas letras que eu lhes mostrarei que há quatro escalas
diferentes de negação, sendo que a negação clássica, aquela
que invoca e parece se fundamentar unicamente sobre o
princípio da contradição, não é senão uma dentre elas. Esta
distinção técnica, quero dizer, esta que se pode formular
estritamente na lógica formal, é essencial para nos permitir
por em questão o que Freud diz, e que depois que ele disse,
nós o repetimos: o inconsciente não conhece a contradição.
É triste que certas proposições sejam lançadas sob esta
forma de flechas iluminando estas formas, nos coloque na
pista dos desenvolvimentos os mais radicais e que isto
permaneça neste estado, suspenso ao ponto de que uma
dama qualificada por um título que ela tinha oficialmente, o
de Princesa, o repetisse acreditando que com isto dizia
alguma coisa: este é o perigo!
A lógica não se suporta senão onde possamos manejá-la
pelo uso da escrita, pois, para dizer a verdade, ninguém
pode assegurar que, porque alguém fala, por isto diz alguma
coisa. É isso que a torna suspeita, é por isso que é necessário
recorrer ao aparelho da escritura. Quer dizer, a palavra fica
vazia se não se a remete, como a toda asserção lógica, ao
aparelho da escritura.
Nós devemos nos aperceber do modo sob o qual surge,
noutro lugar que na articulação escrita, esta negação. Onde
poderemos apanhá-la? Ou seremos forçados a escrevê-la
somente com os aparelhos que eu já produzi diante de
vocês?
Tomemos esta implicação: a proposição P implica a
proposição Q (P Q). Tratemos de ver o que se pode
articular, partindo de Q, a saber: o que nós podemos
articular da proposição P, se nós a colocamos após a
proposição Q, nós devemos escrever a negação antes, ou ao
lado, ou acima, em qualquer lugar ligado a Q. P implica Q
indica que se não P, não Q ( P Q). Pois bem, por aí
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mesmo surge uma forma de negação que não tem nada a ver
com a negação complementar da lógica de classes e que
chamaremos o “não-sem” [pas–sans] – isto não anda sem
aquilo -, para sublinhar o paradoxo que pode haver aí em
reunir duas proposições por uma implicação, atendendo a
que o verdadeiro não engendra o falso.
Temos tomado um exemplo, e um dos mais simples, da
necessidade do surgimento no escrito de alguma coisa na
qual se faria mal crer que é o mesmo que funcionava todo o
tempo a título de complemento, a saber: que dele mesmo se
colocava o universo do discurso como 1. As duas coisas vão
tão pouco juntas que basta decretá-las para desarticulá-las
uma da outra, e fazer com que uma e outra funcionem
distintamente.
Isto se propõe como interrogação inicial para isso que
pode ser escrito, a saber: o ponto onde se ilumina a
duplicidade do sujeito da enunciação ao sujeito do
enunciado, esta duplicidade onde esse sujeito se mantém,
nós teremos desde logo a função da negação desde que ela
rejeite toda ordem do discurso que o discurso articula; isso
do qual ela fala, isso eu destacarei.
Isso que Freud avança, e que é desconhecido quando ele
articula o primeiro não da experiência enquanto que ela é
estruturada pelo princípio do prazer, como ordenando-se,
diz ele, de um eu [moi] e de um não-eu; este não deve ser
distinguido da negação complementar. Somos tão pouco
lógicos que não nos apercebemos que, nesse momento, não
se saberia tratar isto como uma maneira tanto mais falível,
ainda mais que no texto de Freud os dois estudos estão
distinguidos, o eu e o não-eu, lust-unlust, da não
complementaridade da ordem do discurso.
Se eu e não-eu querem dizer: tomar o mundo em um
universo do discurso, aquilo que é o que se evoca ao
considerar que o narcismo primário pode intervir na ciência
analítica, isto quereria dizer que o sujeito infantil, no ponto
onde Freud o designa, desde logo no primeiro
funcionamento do princípio de prazer, é capaz de fazer
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lógica. Enquanto que isto do que se trata é da identificação


do eu [moi] no que o agrada, no lust. O que quer dizer que o
eu do sujeito aqui se aliena de maneira imaginária, o que
quer dizer que é precisamente no lado de fora que isto que
agrada está isolado como eu, este primeiro não que é
fundador quanto à estrutura narcísica, de modo que na
continuação de Freud ela não se desenvolve senão nesta
espécie de negação do amor.
Não se dirá que eu não digo a verdade sobre a verdade,
senão a verdade sobre o que diz Freud.
Que todo amor esteja fundado neste narcismo primeiro,
eis aqui uma das perguntas onde Freud nos pede saber o que
pertence a esta pretensa função universal na medida em que
ela vem dar a mão à famosa intuição do Ser.
O des do desconhecimento que se distingue do
complemento na medida em que no universo do discurso ele
designa e pode designar a contrapartida. Nós o chamaremos
a “contra” para não dizer o contrário. É distinto para o
próprio Freud. Isto ao qual eu faço alusão na implicação
para revelá-lo nas revelações opacas em suas voltas, na
própria implicação, o “não-sem”, a implicação tal como a
define a tradição estóica. Há um certo paradoxo no fato de
que ela seja constituída de tal modo que não importa qual
proposição P e Q constitui uma implicação e que se está
claro dizer que “Mme. Untel tem os cabelos amarelos”,
[então] os triângulos equiláteros têm uma proporção por sua
altura. Mas o que implica a proposição da volta, a saber que
a condição torna necessária inverter a segunda proposição
em direção à primeira, é o “não-sem”.
Isto não acontece sem “Mme. Untel pode ter os cabelos
amarelos”, isso não tem para nós a ligação necessária com
isto: o triângulo equilátero deve ter algumas propriedades.
Resta o fato de que ela tenha os cabelos amarelos, isso não
acontece sem que algo pareça verdadeiro. Este não sem o
posiciona, o surgimento do que nós chamamos a causa, se se
pode dar uma existência a este ser fantasmático, é a função
deste “não-sem” e o lugar que ele ocupa que nos permitirá
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01/07/2020 Lógica do Fantasma - aula 3

desalojá-lo.
Para terminar sobre o que será o objeto de nosso
próximo encontro: o não. Podemos fazê-lo surgir enquanto
forma complementária do mundo, o desconhecimento, se
este termo de “não-sem”, quando ele venha se aplicar aos
termos mais radicais sobre os quais eu faço voltar para
vocês a questão do inconsciente, pode vir-nos à idéia de que
quando falamos de não-ser, trate-se de algo que estaria no
contorno da bolha do ser? Trata-se de que o não-ser seja
todo o espaço exterior? É possível sugerir que isso que nós
queremos dizer, este ser que eu preferiria intitular: “o lugar
onde eu não sou”?
Quanto ao “não pensar”, quem irá dizer que aí está
alguma coisa que não se possa pegar neste entorno de que
trata a lógica do predicado? A compreensão disto como se
ele constituísse o menos antinômico no registro da extensão,
que está claro que todo o passo que se fez na lógica está
feito sob o ângulo da extensão. Que a negação possa
continuar a estar em questionamento primordial posto em
uso, concernente a isto do qual se trata, se ela deve ficar
ligada à extensão, que quer dizer este “não pensar”? Ao
ponto do que nós podemos escrever em nossa lógica?
Questão ao redor da qual, a do “eu não sou” e do “eu não
penso”, eu desenvolverei nosso próximo encontro.

*
1. Esta frase consta assim nos dois textos de referência.
2. Em francês aparece puits [poço] que designa também a uma pessoa que sabe
guardar segredos.
3. Moi, la verité je parle. – A sintaxe francesa implica que quem fala a verdade seja o
je.
4. Lacan se utiliza do título do último livro de Jacques Maritain como metáfora do
nome do autor. O habillement habilmente empregado por Lacan tem no francês um
espectro tão grande ou maior que o “hábito” no português.
5. Lacan fala aqui em St. Thomas o qual, desde o Seminário 23, O sintoma,
retrospectivamente, pode ser pensado como um jeu de mot com Sainthome.
6. No texto francês aparece repère que, em sentido figurado, é tudo o que permite
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reconhecer, reencontrar uma coisa em um conjunto; e não se pode deixar de notar aí a


presença de um père, de um pai.
7. No texto francês aparece ça ne bouge pas.
8. No texto francês aparece saurait (saberia).
9. Idem nota anterior.
10. No texto francês aparece a palavra interdictif, não registrada pelo Petit Robert.

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