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LITERATURA AFRO-BRASILEIRA
Por dentro do Caroço de
dendê: a sabedoria dos
terreiros, de Mãe Beata de
Yemonjá
UESPI/UFPI
E-mail: asmaria1@hotmail.com
ponto que revela como o sagrado está dívidas que contraia. O homem
no cotidiano da comunidade. enterrou suas patadas e enquanto
essas ficaram embaixo da terra não
Nas Águas de Oxum
houve sossego.
O conto O balaio de água
Nos entremeios de narrativas
conta da violência e da rudez do
com nítida função de advertência,
homem que não reconhecia o trabalho
conforme a estrutura dos contos de
que sua mulher fazia e “além disso não
fadas tradicionais e narrativas
deixava que ela cuidasse de suas
populares, corre o discurso como elo
obrigações na sua roda de candomblé”
das gerações. E aqui podemos
(YEMONJÁ,2002:33). Um dia,
concordar com Flach (2009), que em
apanhando do marido, Tude disse que
seu projeto, sob a orientação da prof.
era capaz de carregar água no cesto e
Tettemanzy (UFRGS) aponta para o
ele debochou e usou de mais violência.
fato de que
Tude saiu chorando e foi sentar à beira
do rio, lá viu um cesto boiando na
o contador de histórias assume
direção dela. Tude correu, pegou o
a responsabilidade de
cesto e encheu d’água; mesmo transmitir às novas gerações a
assustada por aquilo que está memória coletiva, a qual está
acontecendo, refez-se correu para casa impregnada de um caráter
com o cesto cheio d`água, na cabeça, extremamente prático e fiel a
colocou-o no meio do quarto e mostrou uma sabedoria que se mantém
ao marido. Isso o assustou de tal forma atual através dos anos, porque
que nunca mais ele a impediu de que é o resultado das mais
cumprisse seus deveres com os orixás variadas experiências de vida,
com as quais as pessoas ainda
e ainda diz a história que “tornou-se um
se identificam. Entretanto, essa
bom marido” (YEMONJÁ, 2002:34). Tal
transmissão não se dá de
feito não é incomum quando se trata da forma passiva. Pelo contrário, a
relação filho de santo /orixás numa literatura popular só
indicação de que forças invisíveis permanece, só é aceita devido
fazem parte do espaço e tempo de ao fato de que se adapta e
vivência dos filhos de santo. incorpora elementos do
presente, especialmente
As narrativas de Mãe Beata
aqueles que lhe são conferidos
referem-se ao tempo antigo e de agora, no exato momento em que se
sendo desta forma histórias atemporais está contando uma história,
tratando tanto de virtudes e elevação, consequência da ação do
quanto de defeitos e degeneração narrador sobre ela (FLACH,
humanos. Outro exemplo é o conto As 2009, (Online).
patadas malditas, cujo foco incide
sobre um personagem que tinha muito No conto Ilá Mi, a mãe
dinheiro e ouro, advindos de roubo e ancestral, Mãe Beata aproveita para
coisas malfeitas. O sujeito era rude, desconstruir o maniqueísmo que
maltratava as pessoas, não pagava perpassa as histórias vigentes e traz a
figura de Iyá Mi (ser que muitas vezes que deve fazer para quando vierem os
aparece como má em algumas compradores.
histórias). Neste conto, Ilá Mi morre de
parto e desgostosa por ter morrido, Tem aqui ossum, waji, obi e
vendo seu filho precisando mamar, ekodidé. Você come o obi e o
transforma-se em coruja. Todo dia resto passa no corpo. A pena
assentava na cumeeira da casa e de ekodidé você coloca na
testa como enfeite. Fique na
quando ninguém estava no quarto se
janela, porém não diga nada a
virava em uma mulher e amamentava o
seu pai, pois ele vai para roça
filho até no dia em que este “fica forte e e não deve saber. (BEATA,
mais criado”. O povo nunca desconfiou 2002: 43)
de que ela era uma mãe ancestral e o
conto termina:
A narrativa termina quando esta
Assim, ela foi para o orun, para
moça fica na janela e é vista pelo
o céu, para nunca mais voltar. príncipe que imediatamente fica
Só em casos de grandes encantado por ela e torna-se seu noivo.
necessidades é que elas vêm O pai fica admirado. Em sonho, a
aqui (BEATA, 2002: 41). jovem descobre que a mulher
encantada é Oxum, sua mãe. Aqui se
Há um traço peculiar nas poderia apontar semelhança com os
narrativas de Mãe Beata que está na contos de Grimm, visto que a jovem
secura das palavras e na extensão das encontra o príncipe, todavia há no
histórias. Por este processo de narrar entremeio a participação de um ser que
com brevidade e densidade, representa um orixá, força da divindade
conhecemos a aldeia, onde havia invisível, que vem proporcionar à filha a
muitas mulheres virgens. Sob o crivo possibilidade de exercer suas
do patriarcalismo que calcifica as subjetividades e identidades, quando
narrativas tradicionais, em A pena do estas se viam perdidas no espaço e
ekodidé, conta do poder masculino tempo em que a jovem vivia e assim se
sobre o destino das mulheres. Na faz modificando o espaço.
aldeia, as mulheres eram compradas
A presença de uma divindade
pelos homens ricos para casar com reis
para a transformação do estado do
e príncipes e ainda havia o rito de
sujeito na narrativa revela-se como um
passagem e de ensinamento dado
processo de ensinamento; os fatos
pelas anciãs. Neste espaço, mocinhas
acontecem com a ativa participação da
feias e pobres não tinham como sair da
jovem para que ela não continue à
aldeia. Então a história é de uma
margem, e não tem um “sapatinho de
menina feia e pobre, sem pretendentes,
cristal” para que pelo rasto do acaso e
isolada, cujo próprio pai se encarrega
somente por ele as coisas aconteçam.
de levá-la para o ensinamento com as
A presença da divindade na história
anciãs. Naquele dia, aparece para a
tem um grande papel no
menina uma linda mulher e lhe diz o
desenvolvimento da narrativa e na
Sobre o orixá Oxum, Lopes nos Com esta noção, podemos ler
aponta: conto Exu e a lagartixa. Exu
Orixá iorubano das águas desenvolto e arisco, entende enrolar
doces, da riqueza, da beleza e Oxalá. Oxalá lhe pede um camaleão e
do amor. Segundo alguns ele leva uma lagartixa, no entanto Exu
relatos tradicionais, é divindade
não consegue enganar Oxalá e sai
superior, tendo participado da
vergonhoso. Essa história exemplifica
Criação como provedora das
fontes de águas doce um dos tipos de narrativas que Mãe
(Lopes,ANO p.505). Beata modela cujas personagens
representativas dos orixás atuam
Em A pena de ekodidé, Oxum humanamente.
se apresenta com um traço que lhe é
Xangô, Oxalá e Exu percorrem
peculiar, sua preocupação com a
as narrativas como desencadeadores
beleza, a elegância feminina e o amor
de ações ora pedagógicas ou lúdicas.
e sua proteção às mulheres, por ser
Sujeitos com tais atributos são recursos
uma “Ialodê – título conferido à pessoa
que conferem ao livro semelhança com
que ocupa o lugar mais importante
as narrativas populares seculares em
entre todas as mulheres da cidade
que o mito centraliza o narrado. As
(Verger, 1997). Portanto, as forças
peripécias de Exu e sua interlocução
invisíveis estão presentes no mundo
com outros orixás trazem para o corpo
visível, numa metamorfose que inverte
do conto o sentido de desconstrução
o estado das coisas para confrontar o
de estereótipo que a este orixá é
poder ou confortar os oprimidos. No
despendido. Exu, no círculo das
texto literário, pelo uso de
divindades invisíveis é o ser
prosopopéias, os orixás são
“intermediário entre homens e deuses.
constituintes do espaço e o tempo
Por estas razões é que nada se faz
anímico.
sem ele e sem que oferendas lhe
sejam feitas, antes de qualquer outro
Exu na encruzilhada do dizer
orixá, para neutralizar suas tendências
a provocar mal-entendidos entre os
Exu como dono da encruzilhada
seres humanos e em suas relações
e da bifurcação, apresenta, conforme
com os deuses e, até mesmo, dos
Barbosa, “um lado favorável e um lado
deuses entre si.” (VERGER, 1997, p.
caótico”, a estudiosa ainda lembra-
76) Ainda, segundo Verger,
nos
por ser uma divindade que É um orixá de múltiplos e
representa tanto o Bem quanto contraditórios aspectos, o que
o Mal, é ambivalente, torna difícil defini-lo de maneira
dicotômico, ambíguo e, por coerente. De caráter irascível,
isso, emblematiza um espaço ele gosta de suscitar
cultural de múltiplos dissensões e disputas, de
provocar acidentes e
Revista África e Africanidades - Ano 2 - n. 8, fev. 2010 - ISSN 1983-2354
www.africaeafricanidades.com
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