Você está na página 1de 8

Já são 21 horas e o maldito plantonista que deveria me substituir há 2 horas não

chega. Não que eu estivesse ansioso para voltar para casa. Depois da briga que tive com
a patroa, sei que o segundo round vai começar assim que eu chegar. Ultimamente aquela
mulher só vem me enchendo o saco, dizendo que me acho o “deus” e outras merdas que
nem dei ouvidos. Não é a primeira vez que o divórcio me passa pela cabeça, mas fico
pensando no que teria que aturar: contratar um advogado e pagar os honorários
estratosféricos que eles cobram, tentar entrar em acordo (impossível!) com aquela louca
que ainda pode sugar metade do que possuo, fazer a separação de bens, pagar pensão
para as crianças, arranjar uma casa nova para alugar...
Sinto uma dor na minha nuca que começa a irradiar para toda a minha cabeça,
como se tivesse sendo acertado por um martelo em um ritmo constante. Com os olhos
fechados, massageio meus ombros e alongo o pescoço, tentando conseguir um alívio,
mesmo que breve.
Abro os olhos e suspiro. Dou uma olhada para a minha sala. A luz fracamente
ilumina o recinto, um cubículo que tem espaço apenas para uma escrivaninha, uma
maca e uma pia. A escrivaninha está organizada e limpa, do jeito que gosto. Vejo
muitos médicos desleixados com seu espaço de trabalho, o que mostra uma falta de
profissionalismo, mas para mim os enfermeiros são os piores. Também, não poderia
esperar melhor vindo deles.
A maca fica encostada na parede, revestida por uma capa cinza desbotada. Um
papel a cobria, para garantir a higienização da maca a cada consulta, mas esse em
particular estava sendo reutilizado já havia alguns dias. No chão, o rolo vazio estava
encostado junto à lixeira.
Do lado da maca, encontrava-se uma mesinha de procedimentos, contendo uma
caixa de luvas (vazia), um esfigmomanômetro descalibrado, um pote de gaze quase no
final e uma lanterna sem pilha.
A pia fica no canto do consultório. A coloração bege parece destoar do das
paredes, mas poucos sabem que um dia sua porcelana já foi tão alva quanto meu jaleco.
O sabonete líquido que fica sob a pia assume uma coloração quase transparente, e sei
que, ao usá-lo, fará pouca espuma. Não há papel ou toalha para a secagem das mãos,
sendo que as vezes tenho que me submeter a secar em meu jaleco. Inadmissível.
Atrás da porta com a tinta descascada, vislumbro a luz inconstante do corredor,
que hora apaga e hora acende.
Apaga.
Acende.
Apaga.
Acende.
Apaga.
Acende.
As batidas na minha porta me lembram que ainda quero voltar para casa.
Ou talvez não.
- Entre.
A porta se abre, mostrando a figura de um jovem. Analiso-o por inteiro. Cabelos
desarrumados, barba por fazer, camiseta manchada, jaleco riscado com caneta e
amarrotado, tênis sujo. É a personalização do desleixo.
Com desgosto, digo:
-O que quer?
- Doutor, chegou mais uma paciente.
Olho para meu Rolex e vejo as horas: 21:10.
- Vai ter que deixar para o próximo plantonista. Meu turno acabou.
- Ele ainda não chegou, doutor.
Miserável. Ninguém me faz esperar. Quem esse desgraçado pensa que é?
Sinto outra martelada na cabeça. Suspiro.
- Qual é o caso?
- Maria Aparecida Ferreira da Silva, 84 anos, aposentada, deu entrada no
ambulatório com queixa de dor abdominal de grande intensidade, associada a
hematêmese, mal-estar, calafrio, sudorese e síncope. Diagnosticada com Alzheimer há 9
anos, faz uso de cloridrato de memantina 10mg, bromidrato de galantamina 8mg,
inibidor seletivo da receptação de serotonina 10mg, atorvastatina cálcica 10mg e AAS
81mg. Ao exame físico, apresenta-se com um estado geral regular, confusa, eupnêica,
com palidez cutânea mucosa importante, hipohidratada, afebril, anictérica e acianótica.
Ausculta cardíaca e pulmonar normal, mas tem dor difusa à palpação abdominal. ECG
está normal e a gasometria também, por enquanto, mas o hemograma aponta uma
anemia intensa.
- Eu teria vergonha de fazer uma anamnese como essa. Ainda bem que tenho a
experiência de desvendar esses prontuários deploráveis que vocês fazem. Tenho certeza
que esse é um caso de hemorragia digestiva alta causada pelo AAS. Faça uma
endoscopia só para confirmar mesmo.
- Mas, doutor, o hospital ainda está sem o endoscópio.
- Até hoje?!
- Foi o corte de verbas, doutor.
6 anos de graduação mais 2 anos de residência além de 4 anos trabalhando como
plantonista nessa porcaria de hospital e a incompetência desses gestores ainda me
espanta.
- Então, interne-a para monitorização.
- Doutor, não temos leitos disponíveis.
Esfrego os olhos e as minhas têmporas para ver se dor de cabeça que continuava
a me perturbar passava, mas sei que é inútil.
- Faça a monitorização na enfermaria mesmo até um leito desocupar. Vamos
esperar que nenhuma merda aconteça enquanto isso. Tem algum acompanhante?
- Sim, doutor.
- Mande entrar.
Ele sai, deixando a porta aberta. Maldito. Assim dá ideia de que sou receptivo a
todos que vêm me procurar. Não é assim que as coisas funcionam. Para entrar, tem que
ter minha permissão.
Me levanto e me dirijo à porta. Mal fechei e já escuto batidas. Volto calmamente
à minha cadeira e, depois de acomodar-me, dou a ordem.
- Entre.
A porta se abre, entrando uma mulher. Estatura baixa, ela não parecia ter mais de
40 anos. Estava com os cabelos presos num coque bagunçado, sendo que alguns fios já
grisalhos emolduravam seu rosto. A testa franzida combinava com as rugas nos cantos
dos olhos e as olheiras fundas. A camiseta com o logotipo de uma clínica odontológica
estava malpassada e com manchas de suor.
- Boa noite. O senhor é o Theo?
- Dr. Theo. Você é a acompanhante da paciente?
- Sou sim, senhor.
- Doutor.
Ela hesita. Parecia esperar um convite para sentar. Alguns segundos depois,
tomou a iniciativa, puxando a cadeira ruidosamente, para a minha irritação, e se
acomodando, como se esperassem ficar horas lá.
- E como ela está, doutor?
- Vai bem mal. Você deveria ter chegado com ela aqui mais cedo, quando ainda
tínhamos leito. Se fosse a minha mãe, teria vindo o mais rápido possível.
- Ela é a minha avó.
-Tanto faz.
- Eu vim o mais rápido que pude, mas eu não tesava em casa na hora que
aconteceu. Eu fui pegar os remédios dela no postinho ali pertinho de casa e...
Ah não. Era mais uma daquelas pacientes que vai me contar a vida inteira como
se eu tivesse algum interesse de saber.
...eu estava a pé porque o carro está no conserto desde semana passada, quando
bateram em mim quando eu estava na rotatória em frente à catedral, sabe, naquela rua
que só desce? Mas graças a Deus ninguém machucou não, foi só o carro que estragou...
Será que ela é tão obtusa a ponto de não perceber que eu não tenho tempo para
isso?
...aí, eu liguei para minha comadre para trazer a gente para cá, mas ela estava
levando os meninos para escola e até chegar lá em casa...
- Isso não importa agora. O estrago já está feito. A paciente tem um quadro de
hemorragia digestiva alta...
-Hemorragia?!
-...causada pelo ácido acetilsalicílico, interferindo na proteção da mucosa
gastrintestinal contra o ácido clorídrico da digestão. No momento ela está bastante
anêmica e desidratada e deverá ficar aqui no hospital para monitorização até que a
endoscopia seja realizada.
A testa se franze ainda mais e ela começa a balançar o pé de um lado para o
outro, encostando na escrivaninha e fazendo-a balançar.
- Mas é grave, doutor?
- Bom, ela já está numa idade avançada e bem fragilizada, então temos que atuar
rápido.
- E quando ela vai fazer essa endo... endosco...
- Endoscopia. Pois bem. Ainda não temos previsão.
- Como assim?
- O hospital não tem como fornecer.
A perna se agita mais ainda, atingindo a mesa com mais força e fazendo um
barulho maciço. Que mania mais irritante!
- Mas como não?
- Não temos o equipamento.
Ela começa a roer as unhas. Que nojo.
- E o que vai acontecer com ela enquanto isso?
- Já dei as ordens para interná-la para monitorização.
Ela deu um suspiro longo.
-OK. Sabe me dizer qual quarto ela está?
- Ela não vai para um quarto. Ela vai continuar na enfermaria.
Seus olhos se arregalam.
- Mas na enfermaria? Sem direito a uma cama?
- Bom, na melhor das opções, a maca estará desocupada. Se não, vai ter que ficar
na cadeira mesmo.
Ela começa a se exaltar. A martelada em minha cabeça intensifica e minha
paciência se esgota a cada momento.
- Minha avó é uma senhora! Ela não tem condições de passar a noite em uma
cadeira. E se essa situação for tão grave como o senhor diz que é, não tem como ela
esperar tanto pra fazer esse exame! O senhor não pode fazer nada?
Essa insolência foi a gota final.
- Olha aqui, senhora, é assim que as coisas funcionam por aqui. Se não está
satisfeita, então vá para outro hospital. Ou então leve a paciente para casa, não me
importo. Meu turno aqui já acabou mesmo e assim que você se for, posso finalmente ir
para casa. Boa sorte em achar outro médico a essa hora.
Seus olhos estavam arregalados e seus lábios entreabertos numa face de espanto.
Com os olhos marejados, ela abaixou a cabeça e murmurou.
- Não, doutor, eu só levei um susto, mas ela vai ficar aqui e, se Deus quiser, ela
vai melhorar logo.
Olho-a intensamente nos olhos e digo:
- Não atribua a Deus os frutos do trabalho de um médico.

Lembro o dia que cheguei na casa da vó Maria. Foi depois do enterro dos meus
pais. Estava de mãos dadas com ela, chorando e soluçando enquanto subia os degraus
que tinham no jardim. Ela destrancou a porta e juntas entramos.
A sala era pequena, mas aconchegante. O sofá bege estava encostado na parede
mais distante, enfeitado com as almofadas que a vovó tinha bordado. O piso de madeira
tinha sido encerado na semana anterior e eu ainda podia ver seu brilho. A janela estava
entreaberta, permitindo que uma brisa leve percorresse pela sala e agitasse as cortinas.
O telefone toca na sala ao lado e minha avó logo atende. Consigo escutar alguns trechos
da conversa. “Foi ontem à tarde, Eleonor. Eles vinham de Goiânia quando apareceu
um boi na pista e não conseguiram desviar. Morreram por conta de uma hemorragia”.
Do lado da televisão, vejo um móvel recoberto de fotos molduradas. Percorro os olhos
por todas elas. Vejo minha avó e meu avô numa foto preto em branco, ambos uma
aparência muito mais jovem, ela de vestido branco e ele de terno e gravata. Vejo meus
primos e eu, alguns anos atrás, cobertos de lama, irreconhecíveis. Desloco meu olhar
para a última foto. Vejo meus pais sentados no sofá bege dessa sala, ele com o braço
direito sobre os ombros dela e um sorriso torto. Ela estava radiante, me segurando
quando eu ainda era apenas um bebê.
Minha visão embaça e não consigo conter um soluço. Escuto os passos da vó
Maria entrando na sala. Ela me pega no colo e me coloca no sofá, ajoelhando na minha
frente.
- Meu bem, você sabe o que significa o seu nome?
Balanço a cabeça, fazendo com que as lágrimas escorram pelo meu rosto.
- Giovana significa “Deus é gracioso”.
Ela carinhosamente limpa os rastros das lágrimas e afasta a franja dos meus
olhos. Depois, ela retira o colar e o deposita na minha mão.
O colar é na verdade um terço de madeira maciça de cor castanho-avermelhada
delicadamente entalhado. Não era muito pesado e parecia levemente desgastado por ter
sido tocado tantas vezes por mãos suplicantes.
- Giovana, lembre-se de sua fé.
E eu me agarrei ao que eu tinha: minha vó e meu Deus.
Fechamos os olhos e juntas rezamos.
- “Tende piedade de mim, ó Deus, tende piedade de mim, porque minha alma em
vós procura o seu refúgio. Abrigo-me à sombra de vossas asas, até que a tormenta
passe1.”
Naquela época, minha vó era uma mulher muito vaidosa. A unha sempre
comprida e vermelha, a roupa impecavelmente passada, os cabelos loiros eram pintados
semanalmente e cuidadosamente modelados com bobs à noite. Era uma mulher polida,
que adorava conhecer novos lugares e agradar os netinhos.
Hoje ela é apenas uma sombra do que foi. No começo ela se esquecia de coisas
do cotidiano, situações recentes, e eu achava que era porque estava distraída ou
estressada demais. Mas, pouco a pouco, a situação piorava.
Estávamos comendo um frango assado que tinha sobrado do almoço. Coloquei o
frango numa forma de alumínio e liguei o forno. Enquanto ele pré-aquecia, fui à sala
pegar meu celular e fazer uma ligação. Quando retorno, vejo que minha avó tinha
colocado o frango com a forma no micro-ondas. Corri para desligar antes que algum
desastre acontecesse. Foi aí que percebi que alguma coisa estava errada.
E o erro tinha um nome: Alzheimer. E foi tomando forma: o cabelo foi ficando
branco, o banho foi esquecido, as unhas se quebravam, o garfo virou faca, a faca virou
garfo, as mesmas perguntas, as mesmas histórias.
E piorava.
-Que cidade a gente mora?
- Jataí, vó.
- Que máscara é essa no seu rosto? Desde quando você usa isso?
- A senhora quis dizer meus óculos? Uso desde pequena, vó.
- Meu bem, desde quando a gente se mudou para essa casa? Ela é nova?
- A senhora mora aqui há mais de 14 anos, vó.
- Cadê sua tia? Ela não vem mais?
- Ela faleceu esse ano, vó. Lembra não?
- Quem é essa velhinha na foto?
- É a senhora, vó.
A cada dia, sinto que perco um pouquinho mais dela. Sinto que um pedacinho
dela vai morrendo de cada vez. E nesses momentos de dor, eu peço forças ao meu Deus.
- “Bendito seja o Senhor, que ouviu a voz da minha súplica; nele confiou meu
coração e fui socorrido2. ”
Não tem sido fácil, ainda mais sem ajuda. Leva ao dentista, leva ao
cardiologista, leva ao neurologista, leva ao oftalmologista, volta para o dentista, compra
remédio, troca remédio, esse comprimido à noite, aquela pílula depois do almoço e da
janta.

1
Sl. 56.2
2
Sl. 27.6.
*
Volto a me sentar nesse corredor em frente ao consultório. A luz pisca sobre
minha cabeça. Sento-me curvada, os cotovelos apoiados nas pernas, as mãos
escondendo meu rosto. Pelos olhos fechados, consigo ainda visualizar a cena.
Tinha andado mais de 10 quadras para ir até o postinho mais perto pegar os
remédios. O dia estava abafado e o sol castigava. Andava rápido para ver se não deixava
vó Maria sozinha por muito tempo. Ela estava dormindo na hora que saí, mas era
melhor estar sempre por perto. Prendi os cabelos para tentar sentir uma brisa fresca na
minha nuca, sem sucesso. O cheiro de suor me acompanhava. Subi as escadas do jardim
e destranquei a porta.
Me deparei com minha avó quase caindo do sofá, o rosto branco como papel. Os
olhos estavam revirados, a boca tentava balbuciar algo. Do lado, uma poça negra e
fétida sujava o chão e seu vestido.
Escuto passos pelo corredor. É o jovem que me mostrou o consultório hoje mais
cedo. Ele passa por mim e bate na porta. A permissão para entrar é concedida. Ele
entreabre a porta e diz:
- Doutor, o outro plantonista chegou.
O jovem fecha a porta e me deixa sozinha novamente no corredor. A luz acende
e apaga.
Acende.
Apaga.
Acende.
Apaga.
Acende.
Apaga.
A porta se abre novamente. Doutor Theo sai e me olha de soslaio. Depois, me dá
as costas e vai embora.
Vejo-o ir e relembro de nossa conversa. Ele usava palavras difíceis e
irreconhecíveis. Anemia, endoscopia, acetilsalicílico... Mas uma delas eu sabia:
hemorragia. Lembrava dessa palavra no dia do enterro dos meus pais. Era a causa da
morte deles.
Percebo que balanço as minhas pernas. Quantas vezes minha vó já me chamou
atenção para essa mania? Não importa agora. Ela não está aqui para me lembrar. Ela
está numa cadeira de plástico na enfermaria, esperando sabe-se lá quando para realizar
esse exame, e até lá a hemorragia...
Respiro fundo, procurando me acalmar. Talvez o hospital não estivesse nas
melhores condições, mas é o único lugar que eu poderia recorrer. Meu emprego como
secretária mal suportava as contas dos atendimentos médicos e das consultas. Ainda
tinha o conserto do carro. Não poderia pagar uma internação em um hospital particular.
Queria poder arcar, meu Deus, como queria!
Respiro fundo novamente. Não quero perder minha vó. Ela é tudo o que me
resta.
Ela e meu Deus.
Tiro o meu terço de madeira do pescoço, segurando firmemente em minhas
mãos, e me ajoelho no azulejo frio daquele corredor.
- “Inclinai para mim seus ouvidos, apressai-vos em me libertar. Sede para mim
uma rocha de refúgio, uma fortaleza bem armada para me salvar. Pois só vós sois
minha rocha e fortaleza: haveis de me guiar e dirigir, por amor de vosso nome3. ”
*
Dirijo-me ao corredor, xingando-me por ter esquecido no consultório o
prontuário da paciente. De longe, consigo ver que aquela mulher ainda continua em
frente à porta. Coitada. Parecia tão desolada. E ainda teve o azar de ser atendida pelo
Dr. “Deus” quando ele estava de mal humor.
Percorro o corredor calmamente. A luz apaga e acende.
Apaga.
Acende.
Apaga.
Acende.
Apaga.
Acende.
Vejo a mulher tirar as mãos do rosto, retirar alguma coisa do pescoço e ajoelhar-
se no chão, com as mãos voltadas para o céu, a cabeça inclinada para trás.
A luz apaga e acende.
Apaga.
Acende.
E permanece acesa.

3
Sl. 30.3-4.

Você também pode gostar