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Capítulo 2

PENSAMENTO SEDENTÁRIO:
FORMAÇÕES DE SABER E COMPOSIÇÕES DE PODER
NA GRÉCIA ARCAICA E CLÁSSICA

Quando, na Grécia do século VI a.C., emergiu um novo


tipo de Estado nomeado democrático ou civilizado — que preten-
deu por diversas vezes se opor ao antigo Estado despótico ou bárba-
ro — surgiu também o que poderíamos chamar de pilares da tradi-
ção ocidental. Inventou-se uma nova maneira de viver e de pensar,
um modo bastante original de o homem se organizar, se relacionar
e agir com os outros e com o universo, muito diferente das forma-
ções anteriores (as dos mundos chamados selvagens ou primitivos e
dos mundos despóticos bárbaros).
Contudo, apesar da originalidade dessa nova formação social
grega — dita civilizada, num sentido restrito, que dará nascimento
ao cidadão, animal político que se relaciona pela força do argumento
racional — não se pode afirmar que aconteceu uma ruptura total
com os modos de poder e de organização das antigas sociedades. De
fato, essa nova formação social traz consigo, em suas múltiplas li-
nhas de composição, camadas de signos e blocos de atitudes que já
fundamentavam as formações anteriores, numa espécie de memó-

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ria ressonante. O passado e o presente interagem, coexistem. Ou,
como diria Bergson, o passado é. Em outras palavras, os mundos
selvagens e bárbaros não estão fora do mundo grego civilizado, não
foram relegados a uma exterioridade sumária de um passado que
foi, mas apenas reagem sobre o presente e reinvestem, com másca-
ras diferentes, o novo jogo social de forças.

Mito e Razão

Um dos modos pelos quais essa memória arcaica se con-


serva no presente é através do discurso mítico. Esse discurso circula
em fragmentos de narrativas coletivas, alimentando uma memória
que, de outro modo, estaria perdida para a nova formação social que
agora também se constitui por um novo regime de signos ou de sa-
ber. É isso o que particularmente nos interessa nesse contexto: a me-
mória que retorna pelo movimento de repetição manifestado na es-
trutura do discurso mítico.
E é nesse retorno que, curiosamente, vemos se desfazer outra
mitificação criada pelo Ocidente moderno. Ao contrário do que ge-
ralmente se crê, o mito não se opõe a um tipo de pensamento ra-
cional — ao menos não àquele inaugurado em plena decadência
das cidades-Estado gregas: o pensamento socrático-platônico-
aristotélico, que busca ‘naturalmente’ a verdade como Razão trans-
cendente e superior à natureza física e aos corpos que a compõem.
Podemos afirmar, como exemplo privilegiado, que o mito, e parti-
cularmente o mito de soberania, é o fundamento de toda a filosofia

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platônica e constitui, pela mesma razão, as bases epistemológicas e
metafísicas do modo de pensar do Ocidente, mais do que nunca hoje
presentes na razão e nas ciências.*
Vamos nos deter na doutrina platônica por um momento.

Platão e a divisão dos mundos

Platão divide o mundo em dois. Ele instaura uma sepa-


ração no seio do ser, operando, com seu método da divisão, uma
diferença de natureza entre dois planos. De um lado concebe um
plano divino constituído por Idéias, mundo supra-celeste das essên-
cias ou puras formas inteligíveis, lugar dos modelos superiores que
implicam uma realidade verdadeira que existe em si e permanece
imutável, eternamente idêntica a si mesma, apreendida apenas pelo
pensamento. De outro, concebe um plano dos corpos sensíveis, mun-
do terreno das aparências, da matéria, das imagens que se refletem
nos corpos sublunares, lugar dos fluxos, das mudanças e devires que

* Esse discurso mítico, difuso na cultura grega, atualiza e repete traços essen-
ciais da mitologia constitutiva da formação social micênica, que exprimia sua sobe-
rania através de um poder mágico-religioso, codificando suas relações por um
regime de signos cujo valor máximo encarnava a vontade do comandante único, um
déspota ou rei divino, o Ánax micênico. Sua vontade constituía-se como significan-
te-mor e centro fixo e motor da cadeia significante, determinando os conteúdos ou
significados a serem extraídos e sobrepostos no campo social, oportunamente, por
intérpretes sacerdotais e escribas, encarregados da regulação e aplicação dos signifi-
cados garantidores da ordem cósmica e humana. Essa formação social micênica, tida
como bárbara, anterior à divisão Oriente/Ocidente, está na origem e na fronteira da
sociedade grega civilizada e, portanto, se comunica com a origem do próprio Oci-
dente.

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se tornam sempre diferentes do que são, região inferior apreendida
pela experiência sensível e que, no melhor dos casos, conquista uma
realidade segunda, isto é, torna-se cópia, caso deixe-se ordenar e me-
dir à semelhança do mundo modelar das alturas.

Desejo e pensamento platônicos

Mas como se dá a relação entre esses dois mundos? Como


transpor o abismo cavado entre o Ser e o Devir? Pode-se dizer que a
relação entre os dois planos é estabelecida pelo desejo e pelo pensa-
mento. Mas este desejo ou amor não é qualquer amor, nem este
pensamento qualquer pensamento. Platão definirá, sobretudo no
Fedro e no Banquete, qual é a natureza do amor, do demônio Eros,
perguntando-se pelo seu ser verdadeiro e, a partir disso, definirá tam-
bém seu verdadeiro objeto, comum ao objeto do pensamento: a Ver-
dade. É a relação com a verdade que estrutura a erótica platônica e a
distingue dos outros discursos e práticas do amor correntes na Grécia
clássica, os quais se estruturavam na relação com o poder. Essa eró-
tica também substituirá, na sua filosofia, o modo como tradicional-
mente a verdade era produzida.

Os três mestres da verdade


na antiguidade grega

Na Grécia arcaica, período histórico que antecedeu o


nascimento das cidades-Estado, a produção da verdade esteve liga-

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da a três tipos de discursos ou de delírios: o do poeta, o do adivinho
(ou profeta) e o do rei de justiça (ou sacerdote). É surpreendente e
ao mesmo tempo fantástico para nós, acostumados que estamos a
opor a verdade à loucura, constatar que para esses gregos a verda-
de era produzida justamente pela loucura. Um homem louco era
aquele possuído por um deus. E é nessa condição que o poeta pode
expressar, pelo discurso inspirado, a verdade do passado, pois está
possuído pela deusa Mnemosine cuja presença, em tal tempo pas-
sado, permite-lhe dar testemunho da verdade (narrativa dos gran-
des acontecimentos míticos e das façanhas heróicas que traçaram
e estabeleceram a atual ordem divina, cósmica e humana e que,
portanto, constituem a sua verdade), através dessa palavra que se
apossa do poeta. Também o adivinho pode expressar a verdade do
futuro porque está possuído pelo deus Apolo, cuja presença no
tempo futuro permite-lhe dar testemunho da verdade do que acon-
tecerá, e que se revela nesse discurso ou delírio que se apossa do
adivinho. Do mesmo modo, o sacerdote dionisíaco pode expressar
a verdade oculta do presente porque está possuído pelo deus
Dionísio, cuja existência, no presente oculto, permite-lhe dar teste-
munho da verdade escondida, inacessível aos homens comuns, que
se manifesta através da fala delirante deste homem divino e puri-
ficador.1

1
F. M. Cornford. Principium sapientiae e M. Detienne. Les maîtres de verité
dans la Grèce archaïque.

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Um novo mestre da verdade

Mas Platão inventará, já no período decadente da Grécia


clássica, um quarto discurso — propriamente filosófico — e um
novo personagem. É o delírio erótico ou verdadeiro delírio, que ins-
pira agora o filósofo autêntico ou o verdadeiro amante. O filósofo
pode falar a verdade porque está possuído por Eros (que é definido
no Banquete como um semideus, isto é, um comunicador interme-
diário entre os deuses e os homens). O discurso erótico quer, por-
tanto, ser a ponte sobre o abismo criado entre os deuses e os ho-
mens, entre os modelos e as cópias, entre o ideal e o corporal. O
que é peculiar em Platão é o modo como ele problematiza o amor,
o amante e seu objeto. Ele quer definir a essência do amor e, ser-
vindo-se dela, identificar e autenticar aquele que está possuído por
este amor verdadeiro, elegendo-o como verdadeiro amante. É atra-
vés desse estranho amor articulado com a Verdade que Platão apon-
tará o caminho que sobe, aquele que conduz às alturas e leva a alma
a reencontrar sua origem, sua pátria junto às puras realidades inte-
ligíveis. É no mínimo estranha, pelo menos até Platão, esta maneira
de produzir a verdade, apesar da sua semelhança estrutural com os
esquemas anteriores do delírio e da inspiração. Além disso, o modo
de produção da verdade, com o surgimento da polis, encontra seu
modelo clássico e racional na maneira como o campo jurídico or-
ganiza e regula seus processos a partir do nascimento do inquéri-
to e da testemunha, onde a verdade é reapresentada e demonstra-

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da por relações mediatas de causa e efeito, extraídas de um discur-
so meramente humano, e não revelada imediatamente pelo dis-
curso inspirado. Sob essa luz, parece-nos que há simultaneamen-
te, em Platão, um arcaísmo e uma invenção no que diz respeito à
sua erótica e à autenticidade de quem diz a verdade (o mestre da
verdade).2

Função política no uso dos prazeres

Tradicionalmente, é comum pensar-se que o amor tem


por objeto corpos belos (ainda que, como demonstrou Foucault,3
essa relação também tenha sido problematizada pelos gregos, mas
sob a ótica da honra, da phylia e da cidadania), assim como é co-
mum atribuir-se aos amantes um desejo físico que buscam satisfa-
zer. De modo geral, não é a natureza do desejo que, neste caso, é
questionada, mas o seu uso. Os gregos pensavam e problematizavam
o desejo e os prazeres pelo uso que se fazia deles. O que importava
era a maneira de ser e de se conduzir nessas relações, não o ser do
amor. Dependendo de sua conduta, o indivíduo poderia conquistar,
através do domínio de si — domínio de suas paixões — a liberdade
e o direito de exercer o poder no oikos e na po1is, ou fracassar, tor-
nando-se escravo de si mesmo, submisso aos seus desejos materiais
e dominado por outros. O modo de se conduzir no amor e nos pra-

2
M. Foucault. As verdades e as formas jurídicas; L. Gernet. Droit et institutions
en Grèce antigue e H. Joly. Le renversement platonicien.
3
M. Foucault. História da sexualidade, vol. II.

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zeres constituía uma prova, uma passagem para as práticas políticas
e para a liberdade.

A essência platônica do amor

Platão dirá — e eis sua invenção — que não é na condu-


ta, mas na natureza ou verdade do desejo que está o principal pro-
blema e a verdadeira prova de sabedoria e de liberdade. Um desejo
que tem por objeto outros corpos é propriedade dos corpos ou da
parte corruptível da alma e não um verdadeiro amor cujo ser une a
parte imortal da alma com a verdade incorpórea. Nesse sentido, per-
cebemos claramente a introdução de um corte entre desejo e pen-
samento. É que, para Platão, se os corpos e o desejo dos corpos per-
tencem ao mundo efêmero do devir, o pensamento, ao contrário, é
propriedade da parte racional e permanente de nossa alma, com ori-
gem divina e portanto imortal. O desejo mundano tem por objeto
os corpos corruptíveis, mas o objeto do pensamento, aquilo que o
pensamento deseja, é a Idéia eterna e verdadeiramente real. É por
isso que Platão busca o ser do amor ou o verdadeiro desejo que,
precisamente por ser verdadeiro, está colado à parte racional da alma,
constituindo a condição para que ela conheça seu verdadeiro obje-
to. Assim será estabelecida uma ligação inédita entre desejo e pen-
samento, pela relação que ambos devem ter com a verdade.
Questionando a erótica, Platão deslocará os problemas que sua
época colocava, perguntando-se primeiramente não mais sobre a
maneira de se conduzir no amor, mas sobre o próprio ser do amor,

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buscando definir assim o amor verdadeiro. Também definirá o ver-
dadeiro amante, aquele que ama com esse amor verdadeiro e con-
templativo, servindo-se do mito, cujo modelo imanente fornece o
critério de seleção e autenticação dos pretendentes a amante. Além
disso, o próprio objeto do amor será deslocado. O amante não mais
visará um corpo belo em particular mas, partindo do reflexo da be-
leza no corpo sensível, elevar-se-á até a universalidade da beleza em
si mesma, inteligível em sua verdade própria e purificada de toda
mistura corpórea. É a partir desses deslocamentos operados por
Platão — segundo Foucault — que o Ocidente construirá toda uma
hermenêutica do homem de desejo. O desejo, no seu ser, vai se tornar
objeto de interpretação e de maldição, seja nas práticas confessionais
que emergirão com os padres cristãos e que buscam arrancar as ver-
dades recônditas da alma para salvá-la, seja nas terapêuticas pratica-
das pela psiquiatria e pela psicanálise que visam, na primeira, a cura
da alma do louco definido como doente mental e, na segunda, a cura
da alma edipiana portadora de um desejo inconsciente interpretado
como incestuoso e parricida, isto é, culpado.

Condição de acesso à verdade

Para Platão, a condição de acesso à verdade será determi-


nada pela natureza do amor que o indivíduo conquista em sua ascese
purificadora e nas práticas do domínio de si que o constituem como
sujeito moral (pode-se fazer o paralelo com Freud ao pensar as
provas de acesso à cultura pelo indivíduo). Por outro lado, são as

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impressões, os traços ou as marcas sensíveis, produzidas pelo corpo
belo na relação de amor (Eros) que excitarão a alma (psique) virtuo-
sa, doando-lhe asas e plumas para libertar-se dos corpos terrestres e
voar para as alturas. Nessa viagem para o alto, a alma reencontra ou
reconhece as formas puras, belas e harmoniosas, as realidades ver-
dadeiras, identificadas como causas supremas da ordem, do equilí-
brio, dos efeitos de beleza e harmonia que refletem através de todo
o universo corpóreo. Assim, a relação entre este mundo dos corpos
e o outro mundo das Idéias se dará pelo verdadeiro amor — amor
pela verdade. É esta erótica purificada que se tornará então o motor
do pensamento e do sujeito do conhecimento, capaz de elevar o ho-
mem virtuoso para conhecer, ou melhor, reconhecer as puras for-
mas ou Idéias. O processo de conhecimento platônico é um siste-
ma que se orienta para o alto e opera pelo reconhecimento ou
recognição de uma Idéia imutável, eterna, realidade acabada já mais
ou menos contemplada pela alma antes da encarnação, conforme
descrito no Fedro, mito da circulação das almas. Nesse sentido, para
Platão, pensar jamais significa produzir ou inventar uma realidade
nova, pois o valor de verdade só pode ser atribuído a um conheci-
mento que imite ou reproduza — por semelhança — as relações
internas do modelo inteligível e imutável.
Embora Platão separe pensamento e desejo, curiosamente ele
inventa um novo desejo, o amor verdadeiro que pertence ao homem
purificado e liberto dos prazeres corporais. O verdadeiro filósofo é
este homem virtuoso, apaixonado por marcas sensíveis que o con-
duzem às Idéias e ao Bem. Ele é o verdadeiro amante, capaz de en-

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contrar a verdadeira beleza, expressão da justa medida, do limite eter-
no, da razão interna constitutiva de todas as coisas. Ele é um mestre
da verdade que sabe conduzir os apaixonados para seu verdadeiro
objeto. É o filósofo apaixonado que conduz o pensamento e o de-
sejo em direção ao único objeto digno de amor e de conhecimento
— o objeto desencarnado, incorporal, o Ideal. Para Platão, o ho-
mem virtuoso (que o mundo moderno substituiu pelo homem sau-
dável e legislador e que encarna uma pura forma de lei) é aquele
que purifica sua alma das misturas corpóreas e liga seu desejo não
a outros corpos, mas às Idéias eternas. O verdadeiro amor é, pois,
um grande desejo de imortalidade, desejo de eternidade, desejo do
Além. A verdade não pertence mais a um tempo particular como
na Grécia arcaica (apesar de este tempo ser mítico), mas está fora
do tempo, transcende a dimensão temporal para entrar no domínio
do eterno. A verdade platônica pretende se aplicar tanto ao presente
como ao passado e ao futuro, mas se diz anterior ao próprio tempo,
quer situar-se fora do devir, excluir a metamorfose e isolar-se como
ser absoluto.

O ideal da saúde da alma e do corpo

Mais do que na saúde, é na erótica masculina, como ob-


serva Foucault, que os gregos formularam a exigência das mais ri-
gorosas austeridades: um ideal de renúncia, princípio de abstinên-
cia indefinida com alto valor espiritual. Mas é com Platão que esse
ideal ganha um sentido novo, estruturando toda uma nova maneira

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de pensar e de viver. O ideal do limite — a justa medida, a perma-
nência, as paradas e os repousos, o equilíbrio dos elementos corpó-
reos e a ordem fechada das imagens anímicas — é exaltado como
oriente exemplar. A doença seria propriamente a desmesura, expressa
na hybris, no devir louco e subversivo da matéria triunfando sobre a
forma, como fonte de esquecimento das Idéias. Sob esse olhar puri-
tano, a doença manifesta-se como o desequilíbrio dos elementos no
corpo e das imagens na alma, provocado pela ligação excessiva ou
faltosa do desejo ao devir corpóreo. As doenças passam a ser vistas
como frutos dos vícios e da escravidão do homem às paixões inferio-
res. Um corpo saudável, equilibrado e harmonioso é aquele que obe-
dece às ordens dietéticas ditadas pela alma racional — um corpo
comedido. E uma alma racional verdadeira é aquela que, conduzida
pelo verdadeiro amor (amor às Idéias), relembra, reconhece e imita
essas essências inteligíveis, aplicando suas ordens a si mesma e aos
atos do corpo. Uma alma sadia tem ritmo sincrônico e medida ma-
temática; está atrelada aos modelos eternos, ligada às formas fixas e
aos seres estáticos para comandar os corpos mutantes. É sobretudo a
virtude, a temperança, que fornece os paradigmas da ordem e das
justas proporções constitutivas da saúde da alma e do corpo.

Um ideal ascético de transcendência e de renúncia


ao corpo e ao pensamento imanente à natureza

Mas por que tal orientação? Por que a vida deve ser orde-
nada de fora? Por que o desejo e o pensamento devem ser modela-

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dos, limitados e subjugados desta forma? Seria por constituir a úni-
ca orientação verdadeira? Mas então o que significa a verdade? Ou,
para falar como Nietzsche, o que significa a vontade de verdade? O
que quer o homem que quer a verdade?
Ora, é evidente que tal homem já desqualificou este mundo
como ilusório e efêmero, como um mundo incapaz de se ordenar
por si só, como um mundo com potência para a perversão e, por
isso mesmo, devendo seguir a ordem transcendente de um outro
mundo verdadeiramente real, o outro mundo do além, o mundo
supracelestial do ser, da verdade e das permanências. Platão descon-
fia da ordem imanente à própria vida. Ele teme, acima de qualquer
coisa, o devir que traz consigo a possibilidade do caos, o devir que
tudo arrasta, que depõe todas as permanências, rompe todas as me-
didas, ultrapassa todos os limites, esfacela toda fixidez, dissolve as
marcas, destrói todas as verdades absolutas ou diques que preten-
dem paralisar o tempo e o movimento. Platão é um paranóico per-
seguido por fluxos, é um animal piedoso que pretende proibir as
metamorfoses em nome de um obscuro Bem. Situando-se o con-
texto político, social e histórico no qual Platão vive, compreender-
se-á o que está sendo dito. Com um pressentimento quase desespe-
rador da degradação universal, ele busca obsessivamente os meios
para conter a derivação caótica do tempo desde que Cronos aban-
donou o governo do mundo. Um combate deve ser travado para res-
tabelecer o domínio das permanências, das boas cópias, das jus-
tas medidas capazes de codificar e regular as relações entre os ho-
mens e restituir a ligação destes com o divino Bem. No horizonte

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platônico, um barco iça suas velas mas é acossado por ventos de to-
das as velocidades e direções. O mundo para Platão é como uma
nau em mar aberto e revolto, vagueando sem timoneiro, à deriva. É
preciso repor o timoneiro — um rei filósofo —, o único com sabe-
doria para pastorear os homens com equilíbrio, ordem e justiça; o
único com coragem e conhecimento suficientes para comandar o
indivíduo, a família e a cidade, restituindo a ordem ideal que con-
duz ao bem comum e à harmonia cósmica. As figuras do rei, do
político, do filósofo e do guerreiro unem-se para conter a degene-
rescência do devir, codificá-lo e regulá-lo. Entre a lembrança da gran-
de ordem modelar e os fluxos turbilhonantes da matéria, o sábio
asceta estica o fio da moral fixando com ele os limites. Um grande
paralisador da vida é o mestre da verdade, um doce paranóico ini-
migo dos devires, cavaleiro da paz, escravo da morte.
Uma separação do pensamento e da vida é o que Platão está ope-
rando na esteira de Sócrates, construindo uma máquina de pensar
fundada no negativo e reduzindo o pensamento à razão e ao reco-
nhecimento; ele denuncia os corpos indóceis como obstáculo à ra-
zão e à virtude, reduzindo a vida à vida reativa. Platão reorienta o
desejo e o pensamento que os pré-socráticos haviam dirigido para
as profundidades elementares da matéria, a physis. Ele os dirige para
as alturas das formas puras, funda uma crença — a crença nas es-
sências inteligíveis como valores supremos, que existem separadas
dos corpos sensíveis — e opera uma hierarquia de sentidos apreen-
didos ao mesmo tempo como causas da ordem universal e paradig-
mas das condutas humanas. Pensar seria contemplar as Idéias para

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conhecê-las, isto é, reconhecê-las, seja por ascensão a elas sem me-
diação, seja por elevação mediada pela dialética. Pensar é obedecer
com a alma (pensamento fundado no negativo); agir é obedecer com
o corpo, cumprir o dever prescrito pela alma racional (vida subme-
tida à regulação reativa).
Como deixar de se surpreender? Como, de repente em um dado
momento do curso da história dos homens, o desejo e a vida podem
ser capturados de forma tão espantosa por uma suposta realidade
ideal? Como não se assombrar diante de um pensamento que volta
as costas à própria vida e quer subjugá-la à moral ou a um objeto tão
etéreo como o Bem? Por que a vontade de um corpo pode querer li-
gar-se ou dirigir-se rumo a um outro mundo pretensamente mais real
e mais verdadeiro que o próprio corpo da vida ou vontade da terra?
Para Nietzsche, não há nenhuma dúvida de que este outro mun-
do é fictício. Entretanto, segundo ele, não é fictícia a vontade que o
quer. O mundo das Idéias é uma quimera, mas a vontade de Platão
— que o busca com todas as forças — é uma realidade concreta. E é
por causa desta concretude da vontade, aliada à ficção, que um efei-
to real é produzido nos corpos. Se assim não fosse, a obra platônica
seria apenas um conto de fadas para dissuadir crianças travessas.
Acontece, todavia, que ela triunfou no Ocidente e comanda imper-
ceptivelmente nossa subjetividade. Platão ainda é demasiado nosso.
A ficção é um ponto de vista particular eleito como verdade univer-
sal; é um mito elevado simultaneamente a um estatuto de estrutura
ontológica e lógica, ordem cósmica e lei humana com utilidade uni-
versal para reger os corpos aqui de baixo. Em outros termos, nossas

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existências e nossos atos — que compõem este universo corpóreo
— são ou devem ser apenas entidades segundas, isto é, imagens ou
cópias dos modelos permanentes que constituem o ser eterno das
alturas, do além-mundo.

Identidade e semelhança no método da divisão de Platão

Dois são os princípios que atravessam o sistema teórico


de Platão. Eles submetem o pensamento e formam os dois pólos do
método da divisão: princípio de identidade e princípio de semelhança
— um opera no mito, o outro na dialética. Mito e dialética não se
opõem, diz Deleuze, mas se complementam um ao outro para for-
necer a unidade necessária ao método da divisão. É com este méto-
do que Platão empreende a separação dos dois mundos — o Ideal e
o material —, movido por um objetivo profundo: operar as distin-
ções necessárias para separar o trigo do joio, o puro do impuro, o
autêntico do inautêntico, a forma da matéria, a Idéia da imagem,
o Modelo do simulacro. Platão quer fazer a seleção, peneirar as
misturas e separá-las. Pela prática da dialética, ele atinge as defini-
ções que diferenciam os seres. Entretanto, estas definições específi-
cas são ainda demasiado genéricas, redes com malhas abertas de-
mais. Muitos animais passam através delas sem serem apanhados.
Todos acreditam caber na definição e todos pretendem o status de
direito prescrito por ela. Define-se o verdadeiro político como pas-
tor dos homens, mas indivíduos de funções variadas pretendem um
cargo de político, produzindo um efeito de semelhança, semelhan-

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ça à definição. Assim também o verdadeiro amante e todas as fun-
ções privilegiadas. Não é, afirma Deleuze, uma dialética da contra-
dição, mas da rivalidade. Para levar a divisão a seu termo — uma
vez que não se trata da divisão de gêneros em espécies, como queria
Aristóteles, mas da separação do puro e do impuro — Platão, cheio
de ironia, introduz a narrativa mítica, pois é o mito que fornece um
modelo com um critério seletivo interno. Impõe, então, uma prova
capaz de selecionar os pretendentes, possibilitando efetivar a divi-
são e completando a tarefa que a dialética tinha começado. É pela
linha mítica que o pensamento platônico plantará as raízes do fun-
damento ontológico e fornecerá a medida ontológica imanente ao
mito, necessária para a autenticação da Idéia — identidade da Idéia
com ela mesma — e para a seleção da boa cópia ou do verdadeiro
pretendente — semelhança da imagem com a Idéia.
Percebe-se que a divisão é então deslocada. Ela não recai mais
sobre objetos de planos distintos como, por exemplo, entre modelo
e cópia, forma e matéria, Idéia e imagem — divisão superficial que
estava aí apenas para exigir uma divisão mais profunda e mais sutil
—, mas entre dois tipos de imagens no plano material: a imagem
dotada de semelhança (boa imagem ou ícone) e a imagem sem se-
melhança (má imagem, diferença pura ou simulacro). Esta diferença
entre dois tipos de imagens é a mesma para os tipos de desejo ou
amor, porque é sobretudo moral (a moral contra a estética) e não
epistêmica. A seleção se cumprirá então por um processo eletivo de
acordo com a matéria ou imagem mais ou menos dócil, mais ou
menos obediente, mais ou menos próxima ao modelo, conforme

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seu grau de semelhança a ele. No Político, quando se trata de encon-
trar o comandante autêntico dos homens — o verdadeiro político
— Platão nos diz que somente a Cronos — o deus, o mito — cabe a
qualidade primeira de pastor dos homens. É ele o modelo. O ho-
mem só possuirá essa qualidade, na melhor das hipóteses, como
qualidade segunda, como boa cópia ou imagem dotada do máximo
de semelhança ao modelo. A má imagem (o tirano ou o sofista, por
exemplo) pretenderá esse lugar por usurpação, subvertendo o mo-
delo, simulando uma aparência ou semelhança apenas exterior, atra-
vés da ilusão produzida pelo distanciamento. Daí a caça implacável
ao sofista, falso amante com desejos perversos, aquele que parece
ser capaz de tudo mas que não o é verdadeiramente, pois não passa
pela prova do pai. As duas divisões, a superficial e a profunda, sub-
metem simultaneamente o pensamento e o desejo.
O discurso mítico fundador do critério da verdade é, como di-
zíamos no início, um resíduo da estratificação da sociedade micênica
herdada pelos gregos. E Platão é um nostálgico. A saudosa soberania
desfeita do Ánax micênico (o déspota divino) se insinua de modo
sutil nos cantos platônicos em louvor à ordem do Um, do Uno e do
Bem. O mundo micênico era uma formação despótica mágico-reli-
giosa que relacionava a verdade à Voz divina do soberano — sujeito
absoluto de enunciação —, inscrita no discurso mítico e nas práti-
cas do ritual correspondente à eficácia e à renovação de tal sobera-
nia. O mito de soberania era fonte inexaurível de vida e dons natu-
rais, assim como era fonte da ordem divina, natural e humana. Não
há dúvida de que há uma forte ascendência desses valores sobre a

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obra de Platão. A narrativa mítica é sempre circular e faz retornar o
mesmo tantas vezes quanto for repetida. O que se repete é sempre o
combate e a vitória de um deus, o instaurador da ordem, sobre os
monstros que representam o caos. A estrutura do mito possibilita a
repartição dos valores e dos sentidos e a distribuição dos destinos
humanos e divinos. E Platão busca um fundamento, um critério
imutável, uma prova cuja passagem com êxito permita atribuir qua-
lidades e comandar os destinos, limitar os pensamentos e submeter
os desejos. É no mito que ele encontrará o fundamento-prova, uma
estrutura ideal, pois esta é sempre a mesma, traz consigo uma iden-
tidade e um modelo imanentes. Em sua obra, o mito e o princípio
de identidade são portanto inseparáveis. Tal princípio é constitutivo
do ser da Idéia. Toda realidade da Idéia deriva da concepção de que
seu ser só é verdadeiramente ser por permanecer eternamente idên-
tico a si mesmo, isto é, seu ser jamais muda ou participa do devir
dos seres corruptíveis. Jamais torna-se algo diferente do que é. E é
nesse sentido, segundo Platão, que a Idéia é circular, o movimento
próprio à eternidade. Nesse sentido também a verdade platônica é
sempre tautológica. O que podemos afirmar de uma Idéia é que ela
é sempre idêntica a si mesma, por exemplo: a Justiça é justa, a Bele-
za é bela etc. A tautologia das proposições encerradas na identidade
da Idéia gerou o problema das atribuições resolvido por Platão no
Sofista, com a introdução do princípio de alteridade — o grande gê-
nero do Outro que, como acreditamos, inaugura o pensamento por
analogia, dispositivo sutil de depreciação da vida e negação da po-
tência ontológica do pensamento. Toda a fixação da identidade da

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pessoa ou do eu humano é herdeira desta doutrina porque a parte
divina da alma humana é uma forma pura ou uma Idéia que, para
ser divina e imortal, implica o princípio de identidade. O chamado
eu profundo, tão decantado por muitos de nossos contemporâneos,
assim como o ego tão reivindicado pela psicanálise, seriam tal for-
ma, tal prisão, tal ficção!
Mas estariam todas as coisas submetidas à identidade da Idéia?
Platão gostaria de ver todos os seres e todos os atos deles limitados e
disciplinados sob a regência dos modelos correspondentes. Todavia
ele, pela boca de Sócrates, pergunta no Parmênides se haveria tam-
bém Idéias ou modelos para coisas tão indignas como um fio de
cabelo, a lama ou uma sujeirinha alojada sob a unha.
Essa questão revela a perturbação que Platão sente diante da pos-
sibilidade de haver também uma Idéia eterna para as diferenças pu-
ras que ele condena e relega ao plano mais inferior da matéria, des-
providas de fundamento e fonte dos simulacros. O mesmo descon-
forto se manifesta quando Platão busca definir o sofista: mestre das
máscaras e dos simulacros, embusteiro e falsário. Nessa tentativa é
o próprio Platão, como nota Deleuze, o primeiro a nos indicar a
reversão do platonismo. A vertigem que ele sente ao se debruçar so-
bre o abismo da matéria enlouquecida e seu horror à queda no ‘sem
fundo’ são causados pela ausência total de qualquer fundação do
devir ou do tempo, pelo esfacelamento de qualquer identidade da
Idéia (como no caso da diferença pura) ou mesmo semelhança da
imagem a algum modelo, pelo deslocamento infinito de toda ori-
gem ou fim último do real.

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Se a diferença pura é maldita, é porque, além de negar tanto o
modelo como a cópia, produz um efeito simulado de semelhança,
isto é, uma semelhança exterior construída sob a ilusão das distân-
cias entre o simulador e o observador, capaz de parecer sem ser, ca-
paz de enganar. Eis a fonte do erro e do falso. Eis todo o mal que
ameaça o trono da verdade e a ordem cósmica e humana.
Bastaria, contudo, o princípio de identidade para apoderar-se do
devir? Se fosse considerado suficiente, poderíamos fazer pouco-caso
da obra platônica, talvez lê-la como um conjunto de dramas literá-
rios capazes de nos divertir. Mas é com o princípio de semelhança
que Platão desenvolve toda a sua potência e pretensão de governar o
devir. É por esse princípio que o devir, segundo Platão, pode e deve
ser subjugado. É pelo grau de semelhança que se determinam a ordem
e o valor dos seres, sua hierarquia, seu lugar no cosmos. Se nosso
mundo terreno é o do domínio da matéria ou das imagens, tais ima-
gens, para serem reguladas ou codificadas, devem se submeter por
imitação ou semelhança à ação da Idéia, devem se tornar cópias dos
modelos, devem possuir um desejo de verdade, um verdadeiro amor.
Para quem conhece o catecismo cristão, como observa Deleuze,
fica fácil compreender. Reza que somos feitos à imagem e à seme-
lhança de Deus, mas pelo pecado perdemos a semelhança, perde-
mos a existência moral, estamos reduzidos à existência estética, ou
seja, tornamo-nos imagens sem semelhança ou simulacros; nosso
desejo perverteu-se como desejo de outras imagens e separamo-nos
de Deus ou da Verdade. Só o homem virtuoso é capaz de reconquis-
tar a semelhança.

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Para Platão, a degradação universal está em curso e o único meio
de contê-la é obrigar a imagem ou o devir a imitar a Idéia. Por exem-
plo: para todos os atos justos, haveria a Idéia de justiça — que é jus-
ta em si mesma — à qual deveríamos imitar para poder participar
dela. Do mesmo modo, para todos os homens haveria a Idéia de ho-
mem, o objeto geral ao qual todos os objetos particulares deste mun-
do deveriam se espelhar e conformar-se, a fim de conquistarem uma
conduta purificada e atingirem a verdade universal e eterna. O ho-
mem virtuoso, então, é aquele que submete suas partes inferiores,
os desejos e as forças corporais — domínio de si — e imita o mode-
lo, cumpre a vontade da Idéia. Este modelo que existe em si estaria,
portanto, fora de nós. A ordem real seria exterior à vida (e esta seria
ilusória, se não se deixasse regular e limitar por tal ordem). Assim,
as Idéias são o que os corpos devem imitar. Vamos chegar a elas atra-
vés do pensamento, conduzido pela inspiração do delírio erótico pró-
prio do verdadeiro amante. O pensamento dotado de asas pelo dese-
jo, pelo demônio Eros, não deve voltar-se para este mundo da im-
perfeição, para os corpos passageiros, para a vida, para o próprio de-
sejo corpóreo, senão para subjugá-los; do contrário, partiria suas asas
e cairia no mundo obscuro das cavernas e do esquecimento. Deve
voar para as alturas, para o reduto seguro das Idéias incorpóreas, re-
fletir-se na luz dos modelos perfeitos do além e retomar a memória
da origem para melhor dirigir este mundo. Só obterei um ato belo
se imitar a Idéia de beleza, desde que eu imite internamente esta
Idéia e não imite externamente outra coisa (por exemplo, um cor-
po belo). Porque a semelhança não vai de uma imagem a outra

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imagem, mas de uma imagem a uma Idéia. E assim para todos os
entes, para todas as atividades ou práticas.
Ocorre ao desejo, pois, ligar-se ao mundo supraceleste, mundo
fictício das alturas e fundamento de toda representação, cujo edifí-
cio vai ser construído e desenvolvido por Aristóteles sobre as bases
platônicas da Identidade e da Semelhança. A partir daí, o homem
contrairá o hábito de sobrevoar e julgar o corpo, ao invés de habitá-
lo e vivê-lo. A perseguição ao corpo e à vida, que no início fundava-
se numa decisão apenas moral, ganhará então justificação racional
e metafísica.
Eis uma maneira de pensar onde se separam as essências das
coisas, as idéias dos corpos, os seres dos devires. As palavras distan-
ciam-se dos corpos, expressando a eminência da teoria sobre a prá-
tica, imitando o logos divino, significando as essências eternas. O dis-
curso ganha eminência sobre os afetos e as coisas, pois expressa os
significados ideais que os substituem ou os representam. Mesmo
que em Platão isso não esteja tão explícito, podemos dizer — como
ocorrerá de uma maneira um pouco modificada em Aristóteles —
que a palavra justa significa a essência e a essência, por sua vez, con-
funde-se com o real ideal (em Aristóteles a essência 1ógica repre-
senta o real individual).
O próprio corpo, o desejo corpóreo ou os afetos devem agora
ser julgados por essas idéias, formas ou modelos universais, toma-
dos como valores superiores à vida.
Nietzsche insurge-se veementemente contra tal visão de mun-
do, afirmando que o Ocidente atolou a vida no pântano do niilismo

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— um valor de nada que o mundo e a vida tomam. Esse valor emerge
pela invenção de uma ficção, pela condensação da crença num mun-
do ideal e perfeito. Um valor superior, portanto, ao mundo terreno
demasiado inexato, à vida claudicante do mundo sublunar inferior.
Porque, se a vida é devir, para Platão ela nunca é verdadeiramente
real, idêntica a si mesma. Ela está sendo, se tornando alguma coisa
diferente de si.
O modelo é, eis a única realidade, mas a vida devém, eis toda
ilusão. Então o que se deve aniquilar, recalcar ou, no melhor dos
casos, regular e subjugar constantemente é o desejo das multiplici-
dades e diferenças do mundo, pois a vida nele é imperfeita. Se a vida
tem alguma realidade, deve-a às Idéias. Para Platão, é a alma o prin-
cípio e o motor da vida. Assim, imperfeita e devedora que é, nunca
atingirá plenamente este modelo de perfeição, senão quando tiver
se libertado enquanto alma pura e aniquilado completamente o cor-
po. A liberdade só é possível com a morte do corpo. Em nome da
ficção do Bem, das Idéias, do mundo ideal ou de Deus, deprecia-se
a vida, reduz-se a vida à mera ilusão das aparências, condena-se toda
existência como culpada. Inventa-se a própria aparência, o simula-
cro, aquele que apenas parece ser, mas carece, na verdade, da reali-
dade de ser. Eis o ressentimento contra a existência.
Mas por que a vida deveria ser julgada dessa forma ou de qual-
quer outra forma? É porque, diz Nietzsche, tal julgamento e tal ódio
à vida são apenas sintomas de um devir reativo de corpos envelhe-
cidos e decadentes, corpos impotentes e vencidos. Impossibilitados
de criar e de afirmar o devir — porque estão separados de seu poder

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imanente e resignados à determinação externa de suas vidas — res-
sentem o tempo e o fluxo efêmero de todas as coisas como contrá-
rios à imortalidade e à eternidade; querem vingar-se da vida ressen-
tindo-se contra a morte e principalmente contra os corpos ativos, aque-
les que estão colados ao próprio tempo ou ao devir e não conhecem a
ficção da morte nem do fim. É porque os corpos débeis e impoten-
tes não suportam a alegria da metamorfose e sentem-se ameaçados
pela velocidade, pela ligeireza, pela leveza, pela dança, pela ousadia
das forças ativas que deslizam numa superfície de encontros
corpóreos sem dever nem lei. Assim, a vontade de nada (vontade do
além-mundo), a vontade de negar (vontade de negar este mundo)
produzem o céu das alturas, esta teia de aranha vingativa, tornando a
realidade aparência ilusória e a ficção, realidade absoluta. Contudo,
afirma Nietzsche, a vida no fundo não se deixa julgar, pois somente
ela pode avaliar, já que é a única fonte de todos os valores — valores
que ela cria, mas também destrói, porque é soberana diante dos arti-
fícios que inventa, é a grande legisladora silenciosa e solitária.

Aristóteles e a construção da representação racional

Com Aristóteles não é muito diferente. Ele abaixa as


idéias platônicas, afirmando que as formas não pertencem a outro
mundo, mas a nossa alma. Aristóteles funda a psicologia e inventa
outro mecanismo no qual as idéias não são mais conhecidas pela
contemplação da origem ou ascensão dialética como em Platão,
mas concebidas por abstração da razão sobre a matéria sensível.

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Mantendo a divisão original socrático-platônica, ele conserva a emi-
nência da alma separada do corpo e concebe o sobrevôo da razão
sobre os indivíduos — sobrevôo que tem agora a altura da alma do
homem, representante e juiz do mundo.
Aristóteles, portanto, preserva o corte entre desejo e pensamento
e concebe um outro mecanismo de relação entre eles. Para melhor
compreendermos tal mecanismo é preciso lembrar rapidamente sua
doutrina tripartite da alma. Antes disso, porém, podemos distinguir
sumariamente três planos em seu sistema: o mundo físico existente,
composto de indivíduos ou substâncias; a alma incorpórea — lu-
gar dos seres de razão ou conceitos — que espelha ou representa
o mundo; a linguagem que manifesta ou significa as idéias da alma.
Para Aristóteles, o Bem é atingido quando conquistamos a
ciência universal e encontramos a unidade racional da alma, que
transcende a diferença dos povos, das cidades, das línguas e dos in-
divíduos. Mas para que o homem se torne racional (ou, como ele
diz, para que o homem atualize a capacidade de raciocinar, ador-
mecida nele enquanto possibilidade lógica) é preciso ser antes um
homem virtuoso. É isso que leva Nietzsche a concluir que o sujeito
especulativo pressupõe o sujeito moral. E é aí que Aristóteles intro-
duz um novo artifício: a categoria psicológica de intencionalidade.
Por quê? Porque ele visa a razão universal. Seria impossível cum-
prir tal objetivo sem a boa intenção. Vejamos: Aristóteles sabe que a
linguagem é equívoca, isto é, as palavras comportam múltiplos sen-
tidos. Mas se a linguagem é o instrumento que expressa ou signifi-
ca a razão (pois sem ela a razão seria muda e perderia a eficácia de

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comando), tal linguagem deve ser purificada, selecionada e codifi-
cada, eliminando sua equivocidade para operar somente com ter-
mos de significados unívocos. O sentido unívoco é o bom sentido,
o bom senso que só pode ser pensado pelo homem de boa intenção.
É por boa intenção (intenção de fazer o Bem) que o homem se deci-
de pelo bom sentido, único e universal. Só o homem de bom senso,
de boa intenção, é capaz de operar com uma linguagem pura e uní-
voca, tornando assim possível a coerência lógica entre as proposições
e silogismos expressos por tal linguagem. Esse é um dos modos pelo
qual Aristóteles exclui o sofista de toda verdade, mal-intencionado
por não aceitar a univocidade da linguagem lógica, ao desqualificar
qualquer ponto de vista privilegiado ou bom sentido que pudesse
erigir como verdadeiro ou universal, imparcial ou neutro.
A alma que tem três partes — vegetativa, sensitiva e intelectiva
— se expressa pela linguagem. As paixões, o desejo, os sentimentos
e as sensações pertencem às duas partes inferiores da alma (vegetativa
e sensitiva). A razão pertence à parte superior, isto é, à alma inte-
lectiva. As partes inferiores, nas quais incluem-se o desejo e os afe-
tos, expressam-se pela linguagem cotidiana, equívoca e impura,
mergulhada na multiplicidade dos sentidos. A parte superior ou ra-
cional pressupõe um ascetismo lingüístico (uma linguagem supe-
rior que opere com termos unívocos), capaz de purificar a expres-
são, para que as verdades coerentes e unificadoras da lógica do bom
senso possam ser comunicadas e possam vencer a multiplicidade
afetiva. Eis, portanto, uma nova maneira de subjugar o corpo e o
desejo: por um lado, condenar o desejo como inferior e gerador de

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multiplicidades desequilibradas e desmesuradas, produtor de inte-
resses parciais que instauram a desordem e o caos; por outro lado,
proclamar a razão como neutra, imparcial e universal, como causa
do equilíbrio, da concórdia e da ordem unificadora que desemboca
no Bem. O homem de juízo é aquele dotado de bom senso e senso
comum. Por um lado, servindo-se do bom senso torna-se capaz de
julgar pela razão, a partir de um sentido fixado como verdadeiro —
do passado ao futuro, do diferenciado ao indiferenciado, do múlti-
plo ao unificado —, afirmando ou negando a pertinência de atribu-
tos próprios ou essenciais às coisas, segundo a ordenação a este bom
sentido. Por outro, servindo-se do senso comum (órgão unificador
dos atos, pensamentos e experimentações e que se manifesta quan-
do alguém diz eu — quando a consciência do eu pretende-se sem-
pre a mesma, sendo o mesmo eu que anda, dorme, come, trepa, pen-
sa, defeca, ama, percebe, sente, imagina. . .), atribui identidade ou
permanência não só a si mesmo, como também aos indivíduos do
mundo; desse modo, o homem constrói a outra face do juízo, fun-
dada nas permanências ou identidades que se atribuem aos objetos.
O homem de juízo é um classificador — classifica a multiplicidade
para reduzir suas diferenças acidentais à diferença específica e à iden-
tidade do gênero, isto é, para reduzi-las à unidade universal da ra-
zão. Em Aristóteles, a saúde do corpo implica o meio-termo ou jus-
ta medida que condiciona a distribuição dos seus elementos e equi-
libra-os numa proporção mediana, excluindo os extremos (exces-
sos ou faltas); a conquista da justa proporção e do termo médio im-
plica a temperança e o governo da razão sobre o corpo. Do mesmo

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modo, a saúde da alma pressupõe a boa intenção, desejo ‘imparcial’
de universalidade, e a submissão do pensamento ao bom senso e ao
senso comum, que o tornam capaz de julgar. A doença, em ambos os
casos, ocorre na ausência do meio-termo, no vício das práticas indi-
viduais desligadas do Bem e na prodigalidade de sua desmesura ímpia.
É claro que seria preciso esclarecer e desenvolver mais largamente as
noções de saúde e doença situando-as no contexto grego. Mas seria
necessário outro espaço (e outro tempo) para tratá-las devidamente.
De qualquer modo, os gregos, incluindo apesar de tudo Platão e Aris-
tóteles (este último era filho de um médico), possuíam uma visão de
tal problema bem mais nobre do que nós, os modernos. O indivíduo,
constituído por qualidades e elementos primários, era sempre abor-
dado em sua integridade física e anímica. As disciplinas que emergi-
ram a partir do século XVIII — como as descrevem Foucault e Can-
guilhem — que tratam da saúde do corpo e da alma, comportam uma
sordidez e um cinismo nunca vistos até então na história do homem.
Nessa abordagem sumária da primeira linha, procuramos es-
boçar alguns traços do pensamento que estão na base das crenças e
práticas tradicionais do Ocidente e que continuam alimentando e
pretendendo justificar uma máquina que nos parece cada vez mais
doente e moribunda. Pior do que isso: uma máquina que fabrica a
doença e que, ao contrário do que crêem muitos marxistas, dela se
alimenta (como dizem Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo, o capita-
lismo nunca morreu de contradições) — uma máquina de morte.
Mas seria grande ingenuidade acreditar que bastariam alguns
filósofos moralistas, fechados em suas academias elaborando siste-

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mas ideais e ‘bem-intencionados’, para que tais concepções ganhas-
sem a adesão do corpo social e conquistassem o Estado por simples
questão de verdade. Já é um sintoma de doença contagiosa a sim-
ples emergência de tais moralistas, pois o que eles querem é curar,
ou melhor, purificar e preservar da contaminação da decadência um
corpo social cujo sentido de mundo começa a desmoronar e sub-
mergir e cujas relações de forças começam a escapar ao controle do
corpo fechado de suas regras, desfazendo o estrato ou o tecido de seu
mundo. É um tal contexto que torna possível uma adesão social a
tais doutrinas, as quais são suficientemente verdadeiras (a verdade
que merecem) para que possam encarnar e constituir o corpo do
Estado. É mais ou menos como o neurótico e o psicanalista: é por-
que a vontade do neurótico existe (por incrível que possa parecer
um nada de vontade existir) que nasce a demanda do psicanalista e
da psicanálise. No caso grego é porque a vontade do beócio — pro-
tótipo ideal do homem médio — existe que é preciso um rei filóso-
fo puritano ou um juiz racional cheio de bom senso para governá-
lo, salvá-lo e preservá-lo na segurança do termo médio, longe do
excesso e da falta. Em outras palavras, estes sistemas filosóficos são
já sintomas de acontecimentos e transformações atuais no conjun-
to das forças de um corpo social. No momento oportuno, surgirão
forças para se apropriar dessas idéias e crenças que, se bem-sucedi-
das, manifestarão sua utilidade ao traçarem limites, ao prescreve-
rem códigos, recortarem domínios com o objetivo de reformar, aper-
feiçoar e conservar um regime social que interessa a tais forças.

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