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Necessidade e Estrutura da Questão do

Ser: Ser e Tempo


Mateus Leite de Sousa

Martin Heidegger

Em 1927, o tratado Ser e Tempo tem como ponto central a questão sobre o sentido do ser,
que na história da metafísica, a pergunta perdeu toda sua força ao passar do tempo, tornando-se uma
questão trivializada, mesmo que nós não tenhamos a resposta. E por isto, Heidegger nos diz sobre a
necessidade de repetir a questão, de tirá-la do esquecimento. No presente texto, terá como centro o
primeiro capítulo da introdução: Necessidade, estrutura e primado da questão do ser, do § 1 e § 2.

A necessidade da questão do ser

No § 1, o filósofo observa de que modo a pergunta pelo ser caiu no esquecimento, mesmo
não sendo uma pergunta qualquer, já que “ela que deu fôlego às pesquisas de Platão e Aristóteles
para depois emudecer como questão temática de uma real investigação” 1. E o que foi conquistado
pelo dois filósofos gregos, foi mantido até a Lógica de Hegel, apesar de modificações e distorções
ao longo da história. Segundo Heidegger “[…] o que outrora, num supremo esforço de pensamento,

1 (HEIDEGGER, 2005, p. 27) itálico do autor.


se arrancou aos fenômenos, encontra-se, de há muito, trivializado”2. Tornou-se trivializada, na
medida que existe uma dispensa de repetir a questão, não temos mais a preocupação de perguntar
pelo sentido do ser.
Mas Heidegger deixa explícito que esta despreocupação não aparece simplesmente no nosso
tempo mas que isto acontece desde o solo grego, por um dogma formado, na qual a questão estava
presente, que declara a pergunta “[…] supérflua […] como lhe sanciona a falta. Pois se diz: ‘ser’ é o
conceito mais universal e o mais vazio”3.Neste ponto, o autor aponta a resistência do ser de
qualquer definição, por ser mais universal, o indefinível não necessita de definição. Logo após
disso, Heidegger inicia sua investigação, sem muitos detalhes, sobre três preconceitos que nutrem a
despreocupação pela pergunta do ser, sendo: o primeiro, “Ser” é o conceito “mais universal”; o
segundo, O conceito de “ser” é indefinível; e por último, O “ser” é o conceito evidente por si
mesmo.
No primeiro preconceito, o autor aponta dois equívocos sobre a “universalidade” do ser, que
“ser” não é universalidade do gênero, deixando claro que o ser apenas possui uma articulação
conceitual entre gênero e espécie, muito diferente de encaixá-lo como “a região suprema do ente” 4,
o ser transcende a universalidade genérica. O outro equívoco é que a universalidade do ser não
significa que o “ser” seja mais claro que outros conceitos, Heidegger diz que por ser universal, a
obscuridade paira sobre o conceito. É totalmente ao contrário do que foi compreendido.
No segundo preconceito, o autor observa a impossibilidade de definição para o conceito,
perante a sua universalidade. Na linguagem, sempre que definirmos, começamos com a palavra “é”:
“o carro é preto”. Mas para responder o ser, a questão sempre cairá em um absurdo 5, pois seria
preciso reduzi-lo a um ente. Concepção e determinação do ser por um ente, é a fórmula do fracasso
para a compreensão do ser, pois não estaríamos respondendo o ser mas sim reduzindo-o para uma
entificação. Por ser impossível defini-lo, não significa que a questão é “vazia”, mas que por isso é
necessário repetir a pergunta.
E por último, o terceiro preconceito é ligado ao cotidiano, no qual usualmente relacionamos
o ser ao ente, como já dito, todos compreendem quando definem: “o carro é preto”. Segundo
Heidegger “essa compreensão comum demonstra apenas a incompreensão” 6. No nosso tempo
ocorre este enigma de vivência com a compreensão do ser, mas envolto de obscuridade para o
sentido do ser, que para Heidegger aponta a necessidade de repetir a pergunta. A partir dos três
preconceitos, é perceptível que não só existe a falta de uma resposta mas também que a formulação
da questão é obscura. Heidegger termina o parágrafo dizendo que é preciso para iniciar a repetição
da pergunta pelo ser, primeiramente, é necessário elaborar a questão, retirá-la da obscuridade que
paira sobre este universal.

A estrutura da questão do ser

2 (Ibidem, 2005, p. 27)


3 (Ibid., 2005, p. 27)
4 (Ibid., 2005, p. 28)
5 Em Ser e Tempo, Heidegger coloca uma nota (p. 29) que o filósofo Pascal já tinha proferido sobre o “absurdo” de
definir o indefinível.
6 (Ibid., 2005, p. 29)
A partir do § 2, o autor explícita os momentos que constituem o questionamento. Destaco
três destes momentos: o questionado, o interrogado e o perguntado. Mas primeiramente é preciso
identificar o que é o questionamento e a investigação.
Ao questionamento, Heidegger define como procura, na qual tem uma direção prévia do
procurado, assim “questionar é procurar cientemente o ente naquilo que ele é e como ele é” 7. A
procura ciente pode ser transformado em investigação. A determinação e a chegada de uma
concepção do questionado estão ligados na investigação. O questionado e o interrogado são
pertencentes ao questionamento, já que “O questionamento enquanto ‘questionamento de alguma
coisa’ possui um questionado. Todo questionamento de… é, de algum modo, um interrogatório
acerca de… Além do questionado, pertence ao questionamento um interrogado”8. O perguntado
está ligado ao questionado, na qual a meta do questionamento é atingida.
Martin Heidegger explícita os momentos estruturais ligados na questão do ser. O primeiro
momento estrutural é a factualidade da compreensão do ser vaga e mediana, que é o nosso
convívio que nós temos do ser. Neste ponto, o filósofo retoma ao questionamento e nossa
incompreensão:

Enquanto procura, o questionamento necessita de uma orientação prévia do


procurado. Para isso, o sentido do ser já nos deve estar, de alguma maneira,
disponível. Já se aludiu: nós nos movemos sempre numa compreensão do ser. É dela
que brota a questão explícita do sentido do ser e a tendência para o seu conceito.
Nós não sabemos o que diz “ser”. Mas já quando perguntamos o que é “ser” nós nos
mantemos numa compreensão do “é”, sem que possamos fixar conceitualmente o
que significa esse “é”. Nós nem sequer conhecemos o horizonte em que poderíamos
apreender e fixar-lhe o sentido9.

Mesmo que a compreensão do ser leva-nos para uma tamanha dificuldade, a pergunta não
pode ser desistida. Heidegger aponta sobre a necessidade de esclarecimento dessa compreensão,
mas adverte dois pontos que devem ser considerados para a investigação: o esclarecimento não é
feita no início, e mesmo que isto aconteça “a interpretação dessa compreensão mediana do ser só
pode conquistar um fio condutor com a elaboração do conceito de ser” 10; a possibilidade da
impregnação de teorias e opiniões na nossa compreensão do ser, na qual significa que o ser não é
desconhecido pela história da ontologia, tendo teorias que são dominantes sobre o ser.
Estes momentos ficam mais claros quando contextualizados pela questão do ser: o
questionado é o ser; o perguntado é o sentido do ser; o interrogado é o ente exemplar. Neste ponto
Heideigger faz uma distinção de ente e ser:

Chamamos de “ente” muitas coisas e em sentidos diversos. Ente é tudo de que


falamos, tudo que entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela
maneira, ente é também o que e como nós mesmos somos. Ser está naquilo que é e

7 (Ibid., 2005, p. 30)


8 (Ibid., 2005, p. 30) itálico do autor.
9 (Ibid., 2005, p. 31)
10 (Ibid., 2005, p. 31)
como é, na realidade, no ser simplesmente dado (Vorhandenheit), no teor e recurso,
no valor e validade, na pre-sença [Dasein], no “há”.

Por isto é necessário que o ser e o seu sentido precisam de uma conceitualização própria
para cada um, que seja diferente da conceitualização do ente, para que não haja entificação ao ser.
Deixo claro que o ente não está fora da questão do ser 11, já que o ser se relaciona com ente, pois
“diz sempre ser de um ente”12. Mas é necessário colocar um ente que dê a abertura ao ser, com a
possibilidade de questionar, sendo um modo de ser deste ente, que é o Dasein13.
Não obstante, Heidegger antecipa uma dúvida: ao determinar o ente, para depois colocar a
pergunta pelo ser. Tal proposta não estaria em um círculo vicioso? Antes de respondê-la, o autor
aponta a improdutividade destas acusações, pois não são feitas com o intuito de contribuir com o
problema, mas obstruir o seu caminho para sua elucidação. A resposta é que o ente pode ser
determinado, sem que haja um conceito prévio sobre o sentido do ser. Um fato inegável que
Heidegger acrescentou é que se “não fosse assim, não poderia ter havido até hoje nenhum
conhecimento ontológico […]”14.
Por fim, o autor percebe que nas diversas ontologias é pressuposto o ser. Mas esta
pressuposição não é entendida por uma disponibilidade de um conceito, por fundamentação
dedutiva, “mas uma exposição de-monstrativa das fundações” 15. Para compreender esta
pressuposição, coloco um trecho, que não só explícita esta exposição, mas também insinua o
primado do Dasein, perante outros entes:

A “pressuposição” do ser possui o caráter de uma visualização preliminar do ser, de


tal maneira que, nesse visual, o ente previamente dado se articule provisoriamente
em seu ser. Essa visualização do ser, orientadora do questionamento, nasce da
compreensão cotidiana do ser em que nos movemos desde sempre e que, em última
instância, pertence à própria constituição essencial da pre-sença [Dasein]. […] Na
questão sobre o sentido do ser não há “círculo vicioso” e sim uma curiosa
“repercussão ou percussão prévia” do questionamento (o ser) sobre o próprio
questionar, enquanto modo de ser de um ente determinado. Ser atingido
essencialmente pelo questionado pertence ao sentido mais autêntico da questão do
ser. Isso, porém, significa apenas que o ente, dotado do caráter da pre-sença
[Dasein], traz em si mesmo uma remissão talvez até privilegiada à questão do ser 16.

Referências:

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo – Parte I. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de
Janeiro: Editora Vozes, 2005. 325p.

11 O ente também está em jogo, pelo seu ser.


12 (Ibid., 2005, p. 32)
13 O termo Dasein que Martin Heidegger designa para o homem, aquele que dá “a colocação explícita e transparente
da questão sobre o sentido do ser” (p. 33). Opto por deixar no original, em alemão, para não confundir o leitor com
as diversas traduções do termo: pre-sença, ser-aí, ser-o-aí.
14 (Ibid., 2005, p. 33)
15 (Ibid., 2005, p. 34)
16 (Ibid., 2005, p. 34) itálico do autor. Para entender os colchetes, leia a nota 13.

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