Você está na página 1de 97

1

Prólogo
O ERÓTICO JUSTIFICADO

― Tire a roupa, Giselle! Fique inteiramente nua!


A princípio fiquei fria, atônita, espantada com a
estranha ordem do meu companheiro de Resistência. Que
espécie de comando era aquele? Que utilidade poderia ter
no meu trabalho de patriota francesa contra o exército
nazista de ocupação?
― Tire a roupa, já disse! ― insistiu o maquis Paulo
Zingg, numa voz que inspirava respeito e medo a um só
tempo.
Não pude resistir e fui deixando cair, uma a uma, as
peças do meu vestuário. A saia rolou-me aos pés. A blusa.
Completamente despida, sem o gesto virginal de proteção,
aguardei os acontecimentos.
O maquis pôs de lado a metralhadora portátil que até
então estivera empunhando e acercou-se de mim,
examinando detidamente, como se fosse um médico, cada
detalhe do meu corpo nu. Apalpou-me as nádegas, os seios
e as coxas. Pediu-me que andasse pelo quarto, desse voltas,
exibindo-me como uma prostituta. Olhou-me por longos
momentos e afinal, puxando uma baforada do seu cigarro
Gauloises, sentenciou:
― É, você tem um corpo irresistível. Serve
perfeitamente ao que pretendemos fazer... Sua nudez
ajudará à nossa causa!
***
A guerra tem estranhos preceitos que a moral dos
tempos de paz não saberia aceitar. Admitimos que, em
2
nome da pátria, seja lícito jogar bombas sobre cidades
inimigas e matar centenas de pessoas inocentes. Somos
forçados a admitir ― e lendo esta história vocês
compreenderão ― que uma linda jovem ofereça a beleza do
seu corpo nu ao serviço de espionagem. Tudo indica que
uma heroína tem o direito de apelar para o erotismo do seu
corpo se com esse gesto devolve às suas compatriotas a
segurança de se manterem castas e bem vestidas. Os maquis
― bravos soldados dos subterrâneos de Paris ― impuseram
a Giselle o dever terrível de oferecer o próprio corpo aos
nazistas da ocupação. Só assim poderia ela roubar-lhes os
segredos vitais do planejamento do histórico desembarque
na Normandia, o dia D que veio libertar a Europa do jugo
de Hitler. Estas páginas que se seguem foram escritas por
Giselle na prisão de Lys, em velhos papéis de embrulho. O
ano era 1941. O general Stupnaggel, preposto de Himmler,
comandava o Exército de Ocupação Nazista na França. E a
GESTAPO massacrava os heróis da Resistência. Mas
Giselle nua era irresistível.
Giselle escreve:
"Onde fica bem claro que meu destino é o de uma
mulher marcada para servir aos apetites bestiais dos
adoradores da carne. O vaticínio da cigana... e o meu
corpo".
Meu nome é Giselle Montfort. Meu pai era escultor e
trabalhou com Auguste Rodin. Minha mãe era filha de um
parteiro de Cannes e suas últimas palavras foram de
preocupação e temor quanto ao meu futuro. Tudo porque
uma dessas ciganas errantes, que costumam acampar nos

3
arrabaldes de Paris, lhe disse que havia sangue e terror em
meu destino.
― Sua filha é uma mulher marcada! ― garantiu a
espanhola morena, de olhos grandes, negros.
E o que mais impressionou minha mãe foi a cigana ter
partido sem aceitar um franco. Mas isso, há tanto tempo...
Hoje, no meio de uma noite fria, escrevo sobre este papel
grosseiro, assim mesmo a lápis, na cela úmida, sem luz,
abafada. Terá curso minha palavra? Serei lida, algum dia,
por alguém neste mundo? Nem sei onde me encontro. Os
nazistas me trouxeram de olhos vendados, através de uma
longa viagem, e atiraram-me aqui, depois de um simulacro
de julgamento em que houve de tudo contra o meu espírito,
e principalmente contra o meu corpo. Ah... minha França
ocupada! Um nazista imundo no Arco do Triunfo, outro na
porta de Versalhes, Nem quero pensar! Meu julgamento...
que julgamento! Um oficial jovem, até bonito, de lábios
finos e duros, leu a sentença que me condena à morte por
fuzilamento, "em vista das minhas comprovadas atividades
contra a vida do "führer" do Terceiro Reich e contra a
Grande Alemanha".
Isso quer dizer que se cumpre de maneira inexorável a
profecia da cigana vagabunda. E eu jamais acreditara em
profetas... Um guarda noturno me atira a lata de comida
malcheirosa por um buraco do meu cárcere. Disse-me ―
como quem faz um grande favor ― que ainda não morrerei
por estes dias. Querem fazer-me crer que há algum interesse
especial em adiar minha execução. Pretendem extirpar-me
segredos, os demônios. Faltam-lhes detalhes essenciais para
completar o que já descobriram sobre o grupo subterrâneo
4
chefiado por Billy. Esses bravos "maquis" lhes têm dado
um trabalho constante. Ah... como gostaria de estar agora
novamente entre eles! Resolvi escrever para não pensar na
morte ou nas coisas piores do que a morte que certamente
me reservam. Facilitaram-me um lápis e alguns papéis de
embrulho. O carcereiro fez tudo isso chegar às minhas
mãos, fingindo gentileza. Doce ironia: as folhas me
recordam as da loja do meu pai, em Cannes. Os pacotes de
biscoito, na padaria tranqüila. Minha infância boa...
Os nazistas acham que a minha escrita lhes será útil.
Acham mesmo ― pois vivem achando ― que
possivelmente denunciaria os meus companheiros narrando
estes episódios. Que absurdo! Supõem-me tão ingênua
depois de me condenar à morte por muito perigosa! Estou
usando a linguagem taquigráfica dos sistemas TIFFIN
(1750) e LYLE (1762), combinada com a dos sistemas
HOLSWORTH & ALDRIDGE (1766), todas inglesas e
muito antigas, desconhecidas dos alemães que estão
habituados apenas aos sistemas PITMAN e GREGG, mais
recentes. Se, porventura ― o que parece sumamente difícil
e improvável ― estas páginas forem encontradas pelos
libertadores da Europa, talvez cheguem às mãos do meu
professor Raymond Pirrier que as decifrará. (1) Seja como
for, vou transmitindo aqui todas as lembranças destes dias
horríveis, como se estivesse confessando-me a mim mesma.

(1) Aquilo que Giselle pensava não ocorreria senão por


milagre, aconteceu de maneira bem simples. As forças de
libertação, com os "maquis" à testa, soltaram os presos
políticos de uma pequena prisão em Lys, entregaram todos
5
os documentos encontrados nos armários e fichários dos
nazistas às autoridades aliadas. Entre eles as memórias de
Giselle, que despertaram maior curiosidade pelo fato de
estarem cifradas em caracteres desconhecidos. Os técnicos
em taquigrafia foram chamados. Nenhum sabia do que se
tratava. Finalmente o "maquis" Berloz lembrou que Giselle
tinha um professor. Pirrier foi localizado e fez a tradução.

1
O MORCEGO E OS TARADOS

Ontem à noite foi introduzido um padre na minha cela.


Falava excelente francês e apresentou-se, gentilmente,
como Monsenhor Goulin. Deve ter notado minha
desconfiança, mas procurou convencer-me de que exercia o
ofício sagrado de confortar os condenados na hora intensa
da morte, levando-lhes a palavra de Deus. E explicou:
― A princípio os alemães não quiseram aceitar as
minhas razões. Mas por fim não viram mal algum em que
viesse aqui... É verdade que não deixam de me revistar toda
vez que entro na prisão, o que é constrangedor para um
sacerdote. Aceitaram que eu visite também sua cela.
Acredite em mim, filha. Farei tudo para ajudá-la a salvar a
alma.
Dei uma gargalhada.
― Padre nazista ― berrei-lhe, cuspindo para o lado.
Um fulgor estranho veio dos seus olhos. Levantou-se
num pulo, já sem aquele ar místico, sem um mínimo de
caridade cristã.
6
― Sua vaca! ― gritou.
E agarrando-me com a mão esquerda rasgou-me, com a
direita, o vestido de seda que estava em mim desde a prisão,
um vestido mais de uma vez profanado pelos oficiais
nazistas. Seminua, agachada ao canto da cela onde o falso
padre me atirara, vi-o de narinas abertas, ofegante, caminhar
na minha direção; sua expressão era a de um fauno ávido.
Agarrou-me novamente e despiu-me. Sua boca estava cheia
de insultos, ditos em francês legítimo, francês dos becos
sombrios de Montmartre. Pensei no que se ia repetir. A
posse!
Apesar de tudo ainda não me acostumara. Uma jovem
mulher, por mais vilezas que experimente, não se pode
habituar a servir de pasto aos apetites bestiais dos homens
desvairados, Desde a minha prisão, num cabaré em Paris, eu
rolara de cama em cama, satisfazendo oficiais nazistas.
Embora eu me mantivesse numa indiferença de gelo, não
conseguia afetá-los. Possuíam-me, de qualquer maneira,
como a um belo cadáver. Preparei-me para o pior. Goulin, o
falso padre, já estava bem perto de mim, Eu nua. Ele
trêmulo! Só lhe disse isso:
― Você? Um francês traidor!
Ele foi embora como uma sombra. Não consegui
entender no que as minhas palavras poderiam ter influído
para aplacar-lhe os instintos bestiais. Talvez medo dos
nazistas. Afinal, viera ali com outra missão, a de me
arrancar segredos. Não estava escalado para possuir-me.
Foi-se. Fiquei na cela, completamente nua. Meu vestido
transformado em trapos. Aquele Goulin filho da cadela!...

7
Os soldados nazistas, beberrões de chope, caras
redondas e chapadas, aproximavam-se da janelinha para me
ver. Davam gargalhadas, apontando certas partes do meu
corpo. Queriam ver-me os seios, que eu procurava cobrir
com as mãos. No dia seguinte, como eu teimasse em
encolher-me num dos cantos da cela, retraindo-me toda,
igual a um caramujo, houve um deles, a que os outros
chamavam de Goliath ― por causa de seu tamanho e de
suas feições abrutalhadas ― que decidiu obrigar-me a
erguer o corpo, para que meus seios fossem vistos por
todos. Trouxeram até à janela do cubículo uma grande
mangueira e fizeram o esguicho d'água atingir-me em cheio.
Pulei, com o impacto frio. Tive que correr, alucinada, pela
reduzida cela. Os miseráveis davam risadas lascivas.
Diziam coisas bestiais sobre meu corpo. Em certa hora,
exausta, caí ao chão. Sobre as minhas costas eles
continuavam a manter o jato gelado daquela mangueira.
Doíam-me as ancas e as nádegas, O jato parecia de fogo e
chumbo. O vozerio, as gargalhadas daqueles brutos
insensíveis davam-me tonteiras. Mas fui posta em estado de
alerta pelo berro grotesco de Goliath: ― Deixem-me entrar!
O brutamontes forçava o carcereiro indeciso.
― Deixa eu botar a mão nesta puta!...
Toda molhada, com o rosto colado à laje fria de olhos
fechados, eu ouvia os berros como se estivesse noutro
mundo. A voz de Goliath, as negativas do carcereiro e a
insistência dos outros soldados, apoiando o tarado. Ouvi a
chave ranger na fechadura e fiquei esperando. Mas, de
repente, tudo cessou, como por encanto. Acordei na
enfermaria, com a voz ríspida da enfermeira:
8
― Ela já está em condições de ir à presença do diretor.

UM PORCO A MAIS

O diretor da prisão é o pior dos animais desta manada.


Tem a agravante de ser imundo (e os alemães, em geral, são
limpos). Fala de maneira gutural, come em gestos grotescos,
sem um mínimo de civilização, e invariavelmente arrota, de
modo lamentável e nojento. Vi tudo isto hoje, quando me
levaram, escoltada, à sua presença. Ele pensou que eu não
entendesse alemão, quando ordenou aos guardas que se
retirassem e ficassem do outro lado da porta.
― Meu amor ― foi ele dizendo, numa tentativa de
tornar macio o seu vozeirão bovino ― Eu quero recebê-la
aqui como uma grande amiga. Isto não quer dizer que lhe
possa prometer a liberdade, ou a comutação da sua pena de
morte, mas...
Encarei-o, desafiando seu olhar.
― Mas?
― Mas há uma ou outra probabilidade... ― fez ele,
com olhar cínico ― dependendo, é claro, da maneira pela
qual nos entendermos de agora em diante.
Levantou um recipiente de metal e de lá tirou uma coxa
de galinha que passou a devorar como se fosse a última
porção de alimento da sua vida. Olhava-me
impiedosamente. Olhava sobretudo os meus joelhos. Eu
estava sentada, com as mãos sobre as pernas, e vestia um
capote militar que me emprestaram na enfermaria para
cobrir minha nudez,

9
― Você, Giselle, precisa deixar de ser a gata brava que
parece ― disse, procurando outro pedaço de galinha no
prato. ― Esse ar selvagem, essa indiferença, essa
agressividade de nada lhe servirão.
Transformou-se. Brutal, com os olhos injetados,
levantou-se e sacudiu-me pela gola do capote:
― Sabe o que você é? Uma rameira à-toa, uma
autêntica vagabunda de Paris, pretendendo se dar ares de
grande senhora. Eu lhe ensinarei a tratar bem os oficiais
alemães. Nós somos os vencedores, entendeu? Nós
esmagamos a terra decadente de vocês!
Continuou dizendo barbaridades. Comparou-me às
messalinas do mundo inteiro. Fez paráfrases à honra e ao
caráter. Elogiou, em altos brados, a Grande Alemanha de
que ele, com Himmler, Goering e o "führer", era um
artífice. De repente, voltou à docilidade, ou ao que lhe
deveria parecer gentileza. Chamou-me, então, de espiã linda
e segurou-me suavemente, na gola do capote, para abri-lo.
Foi então que se deu o inevitável. Cuspi-lhe na cara.
***
O coronel ainda me estava batendo, as mãos
sangrando, um olhar de louco, no instante em que os dois
guardas entraram ruidosamente.
― Levem esta mulher! ― gritava. ― Levem esta
vagabunda antes que eu a mate!
Um dos soldados levantou-me pelos pés com a ajuda
de outro, que me levantou pelas mãos. Eu já estava
insensível à dor e quase não senti quando me atiraram ao
fundo do cárcere, como um fardo.
― Ela não passa desta noite ― disse um dos guardas.
10
― Por quê?
― O coronel vai querer matá-la.
O outro guarda olhou longamente nos olhos do que
dava a informação de minha morte possível e disse:
― Não creio nisso. Chegou uma ordem do quartel-
general de Munique para poupá-la. A Casa Parda acha que
ela sabe de muitas coisas.
O primeiro guarda estranhou:
― Por que, então, não fazem com que ela vomite o que
sabe?
A explicação era simples. O coronel tinha ordens de
esperar um agente especial.
― O coronel suplicia até matar. E é preciso que o
torturador faça seu trabalho sem matar. Os mortos não
falam. Os mortos, como se diz na minha terra, têm boca de
peixe, E isso não convém, Rudolf.
Os dois ainda me olharam um pouco. Eu estava com os
olhos bem abertos para eles, ouvindo tudo que
conversavam, embora só agora, quando rememoro, posso
entender o que diziam. Depois, os dois saíram. Fiquei
pensando. Então, era verdade? Viria um técnico em suplício
para obrigar-me a denunciar os que estavam comigo, os
meus companheiros, os meus amigos? Viria de Munique,
seria altamente treinado e saberia como agir comigo? Até
onde poderia eu resistir?
As torturas usadas pelos agentes da GESTAPO eram
terríveis. Algumas ultrapassavam aquele conhecido ponto
de resistência humana. Meu Deus, se, num momento de
inconsciência, eu revelasse os nomes dos dedicados e
valentes rapazes, das mulheres abnegadas que mantinham
11
acesa a flama da resistência, canalizando para a Inglaterra
os pilotos britânicos derrubados e os franceses que
precisavam unir-se ao exército de De Gaulle? Eles saíam
através da Suíça, pois o Canal da Mancha estava sob uma
vigilância severa. Eu sabia de tudo isso. Iria dizer o que
sabia? Nosso grupo estava organizado em células estanques,
é bem verdade. Uma não sabia da outra. Mas, havia a
possibilidade de, no momento de desespero ou de
inconsciência, eu deixar escapar de meus lábios o nome de
Paulo Zingg. E isso era um caminho. Um caminho para
muitas outras informações e dores imediatas.
Conheci Paulo Zingg alguns meses antes da guerra,
quando estive nos Alpes. Ele devia ter um metro e oitenta e
cinco, sua família descendia de suíços, seu pai fora um dos
mais famosos pintores da França, em certa época, e deixara
a Paulo uma apreciável fortuna. A tia de Zingg possuía em
São Paulo, no Brasil, terrenos valiosos. Por isso, ele dividia
a maior parte de seu tempo entre os esportes de inverno e a
direção de dois cabarés um tanto quanto importantes de
Paris. A guerra e a ocupação fizeram com que eu o perdesse
de vista, até o dia em que recebi um bilhete com as iniciais
PZ. O bilhete me pedia que o encontrasse em certo
apartamento da Rua Grouchy. Nunca me esqueci desse
encontro. Ele estava sentado, com o rosto voltado para a
janela. Deitado, a três passos, um jovem desconhecido, que
mal ergueu os olhos para mim. Paulo Zingg, sem se voltar,
mandou que eu me sentasse.
― Chamei-a, Giselle, para saber se está disposta a
trabalhar com nosso grupo.
Sua voz era serena e quente.
12
― Sabemos que seu pai se encontra na Alemanha e
que seu noivo foi fuzilado. Você deve ter motivos
suficientes para odiar os alemães.
Não respondi. Aquilo parecia tão lógico que nem
deveria ser comentado. Paulo compreendeu. Houve um
silêncio e ele tornou a falar:
― Sua missão, Giselle, será a mais perigosa de todas
as que nós temos. Você vai ficar com o inimigo. Vai tocá-lo
com suas unhas. Estará tão perto do fogo que ele pode, a
qualquer momento, envolvê-la. Que é que você acha?
Paulo se voltou e, pela primeira vez, me olhou de
frente, olhos nos olhos. Eu não disse nada. Mas continuei a
olhá-lo. Se o meu olhar queria dizer sim, até hoje não sei.
Sei que estava disposta a qualquer coisa que fosse útil ao
trabalho da Resistência. Sei que desejava vingar-me de tudo
que me haviam feito os alemães.
Paulo deve ter entendido meu olhar como uma
expressão de tudo que me ia na alma. Por isso, não mais
tentando ser persuasivo, mas como um sargento que se
dirige a um soldado, disse, numa voz seca:
― Tire a roupa, Giselle. Fique inteiramente nua!
Aturdi-me. Não esperava aquele convite. Que é que ele
queria? Fiquei fria, atônita, espantada. Que espécie de
brincadeira era aquela? O olhar de Paulo, entretanto, dizia
que não era brincadeira. Por isso, fui tirando, uma a uma, as
peças de meu vestuário. Não eram muitas. Eu estava vestida
de saia e blusa, uma anágua curta, sutiã e, naturalmente,
aquela peça mais íntima e mais difícil de tirar em ocasiões
não adequadas, como a que me tinha posto diante de Paulo
Zingg.
13
Completamente despida, sem o gesto (clássico) de
proteção das virgens, mas numa atitude que, depois, Paulo
Zingg classificou de "ligeiramente desafiante e
absolutamente cretina, apesar de indiscutivelmente
adorável", aguardei a explicação. A pergunta estava em
todo o meu rosto. Talvez estivesse em todo o meu corpo nu,
se é que a gente pode ter uma expressão de pergunta, por
exemplo, nos seios trêmulos, no ventre contraído e nas
pernas que procuram proteger-se. Nenhum dos dois disse
uma palavra. O que estava deitado, enquanto tirava
baforadas do cachimbo, punha os olhos em mim como se
avaliasse alguma boa mercadoria exposta à venda por preço
altíssimo. Zingg, não. Calmo, sem demonstrar qualquer
deslumbramento, levantou-se e me olhou com olho técnico,
enquanto rodeava meu corpo.
― Vista-se, Giselle. É só!
Eu não estava contente de ter dado aquele espetáculo
sem nenhuma explicação. Por que me despira? Para que me
pusera nua diante daqueles homens? Que tinha a ver a
minha nudez o meu corpo, com meu pai na Alemanha, meu
noivo morto, a Resistência, os franceses humilhados?
Perguntei:
― Quer explicar o motivo desta cena de "strip-tease"?
Paulo disse que não se tratava de "strip-tease".
― A história é bem mais séria ― explicou. ― Sente-
se.
Sentei-me. Com voz pausada, tranqüilo e senhor de si.
Paulo Zingg começou a falar. Precisava de uma mulher que
tivesse um corpo alucinante, capaz de deixar os alemães de
queixo caído, pelo menos àqueles alemães que interessavam
14
ao trabalho da Resistência. Um corpo impecavelmente belo,
que modificasse a natural frieza nazista e aturdisse ao mais
rígido oficial prussiano.
Era verdade que a prática de Rudolf Hess se alastrara
rapidamente entre os mais duros homens da Wehrmacht,
dentro do próprio Estado-Maior. Mas se fosse encontrada
no meio das jovens parisienses aquela cuja carne e cujas
formas tivessem o toque excepcional, o traço de Vênus,
quem sabe, haveria uma possibilidade de êxito. Estranho e
violentamente real: meu corpo se ajustava com perfeição
àquelas normas traçadas pelo chefe da espionagem francesa.
Como se fosse uma simples máquina, uma peça de
artilharia. Eu não poderia negar que fosse bela.
Desde muito nova me habituara a ouvir dos homens, na
rua, o comentário nem sempre decoroso sobre a perfeição
das minhas ancas, ou a nitidez dos meus seios. Quantas
manhãs eu mesma não me havia surpreendido, na cama, a
olhar com meus próprios olhos admirados a maciez das
minhas próprias pernas indiscutivelmente provocantes.
Jamais, porém, me passara pela cabeça que meu corpo
devesse ser usado, algum dia, como arma de conquista,
numa guerra subterrânea. Zingg continuava explicando:
― Queremos que alguém se infiltre no meio deles.
Procuramos dia e noite, em toda Paris sensual e profana, um
corpo vivo de mulher bonita. Como o seu, Giselle! Eu
jamais a tinha visto despida, mas adivinhava suas formas
esculturais através dos vestidos. Além do mais, seus olhos,
seus cabelos, seu rosto, são maravilhosos. Agora vejo que,
nua, é irresistível. Seu corpo é impressionante. Você vai
transformá-lo no símbolo novo do exército clandestino.
15
Você será a Lady Godiva dos franceses, mas de um modo
bem mais violento. Sua nudez deslumbrante servirá para
conquistar os líderes nazistas. A guerra tem estranhos
preceitos que a moral dos tempos de paz não saberia aceitar.
Mas na guerra, Giselle, a única coisa que não se pode fazer
é perder a guerra. Deixe que profanem seu corpo, mas salve
a França. Ofereça sua honra em holocausto à honra de todas
as mulheres de nossa pátria!
Zingg nunca fizera um discurso tão longo. Ou assim
me parecia. Quando terminou, mostrava-se envergonhado
de haver falado tanto, e com aquelas palavras cínicas, do
cinismo da guerra. Baixou a cabeça e ficou em silêncio.
Nada acrescentou, Mas via-se, eu estava disposta a servir a
ele. Ou à França. Foi assim que me tornei a espiã nua de
Paris.
***
Os alemães pediam uma licença que poderiam gozar
em Hamburgo ou Bremem, com as famílias, mas vinham a
Paris. Queriam ver-me. Durante meses, desfilaram diante de
mim aquelas bocas sedentas, aqueles olhos úmidos,
enquanto eu exibia minha nudez.
― Cadela! ― disse-me a velha florista parisiense na
noite da minha estréia no CHEZ EVE para uma grande
platéia de oficiais nazistas.
― Você deve ter nascido em bom lugar e sua mãe
talvez se orgulhe da filha que pariu. Vendida aos boches!
Ela não sabia de nada. Nem poderia. Ninguém devia
saber de nada. Por isso não me incomodei quando cuspiu
para o lado e me disse as coisas que me disse. Fiquei fria,
embora intimamente constrangida.
16
― Que é que esta velha está dizendo? ― quis saber o
major que me conduzia pelo braço.
― Traduza o "argot" dessa velha. Mandarei castigá-la,
se lhe ofendeu.
Disse que não. Menti sobre os insultos. Expliquei que
se tratava de rixa antiga.
― Devo dinheiro a ela.
― Quanto? ― quis saber o nazista. Inventei uma
quantia, e ele pagou. Já no carro o major se dirigiu a mim
com palavras muito importantes.
― Quer ir para o meu hotel? ― neste momento nos
encaminhamos para o quartel da Gestapo.
― Mas não precisa sobressaltar-se. Nós não a
mandaremos para um campo de concentração. Você não!
Uma preciosidade como você não pode ter este destino.
Giselle, você trabalhará para nós, aqui mesmo em Paris!

No pequeno quarto de uma prisão, a memória dos fatos


cresce espantosamente. Parece-me estar vendo o capitão
inglês Randolph Bryan, oculto numa pequena casa do
"Bois". A minha primeira missão foi tirá-lo de Paris e
entregá-lo nos Alpes ao homem escalado para fazê-lo
atravessar a fronteira. As coisas principiaram a tornar-se
difíceis no instante exato em que pedi a Braun, um dos
oficiais do serviço de espionagem nazista, que me
arranjasse um salvo-conduto.

17
Esse Braun sempre me tratara com amabilidade,
embora deixasse claras as suas intenções:
― Giselle, gosto da quentura de suas mãos... ― dizia-
me o animal. Parecia um porco doméstico.
Encostava-se a mim até que eu o afastasse. Pior do que
isso: sabia do interesse de seu superior hierárquico por
mim. E se humilhava. Queria as sobras...
― Sou da Baviera, Giselle ― dizia-me.
― Lá os homens são pacientes. Lá os homens sabem
esperar. No dia em que você for abandonada, lembre-se de
mim. Estarei esperando por você.
Ora, dado esse devotamento, que ele próprio fazia
questão de dizer que não era "apenas" sexual, eu tinha
razões para acreditar que Braun me atenderia na primeira
ocasião, ao meu primeiro pedido. Depois do que me tinha
dito o major que saíra comigo, este era o meu passo inicial
com a espionagem nazista. Era o passo inicial no sentido,
vamos dizer assim, profissional, porque o resto tinham sido
contatos no campo amoroso, se é que houve amor alguma
vez. Mas, quando fiz o pedido, Braun, macio e primário,
transformou-se. Olhou-me duramente, com um ar de
desconfiança que eu nunca lhe vira antes no rosto.
― Para que você quer o salvo-conduto?
― Pretendo sair de Paris por uns dias.
― Aonde vai? Que vai fazer?
Braun me lançava estas perguntas num tom
profissional. Tive de procurar toda a malícia feminina que
havia em mim, essa malícia que leva a gente a dizer a um
homem que o ama sem o amar.
― Vou descansar na Província! ― afirmei.
18
― Por quê?
― Estou cansada, meu amor. Mas se há tanta
dificuldade, fique com seu salvo-conduto. Vou pedi-lo a
quem tenha mais autoridade.
Braun percebeu a alusão. E queimou-se. Senti que não
admitia a superioridade hierárquica quando se tratava de me
fazer um favor. Ah... ele era capaz de esperar até que eu
fosse abandonada por seu superior. Influência não tinha
para disputar-me o favor do corpo. Mas vi que mantinha sua
vaidade intacta. E fiz meu jogo. Quando ele disse:
― Deixe de arrogância. Temos de adotar certas
precauções!
Respondi, pondo na voz o maior charme do mundo:
― Não comigo, chéri...
Mas o desgraçado continuou durão:
― Você é uma francesa. Por que não haveríamos de ter
precauções com você?
Resolvi aí arrasá-lo de vez. E acrescentei:
― Porque sou alugada a vocês, dos pés à cabeça.
Braun então riu. Um riso bobo, mas franco. Certamente
lembrava-se de coisas. Das suas tentativas de me levar para
a cama.
― “Alugada a vocês”, diz você! Mas a verdade é que
você é alugada ao coronel, não a mim.
Passou os olhos sobre meu corpo, de alto a baixo.
Parecia querer fecundar-me com a vista. Pensei fosse ficar
nisso, nesse olhar concupiscente. Mas Braun me tocou com
as pontas dos dedos, um ponto do meu ombro esquerdo,
próximo ao pescoço e experimentou a maciez e o calor da
minha pele. Fui deixando. Desceu, escorregando a parte
19
externas dos dedos pelo colo, afundando-se pelo decote,
para dentro da minha blusa, pela maciês da minha pele.
Quando tentou avançar um pouco mais, quase a tocar o bico
do seio esquerdo, dei um passo atrás. Ele reagiu:
― Esquivando-se, heim, Giselle? Você tem esse corpo,
essa beleza de corpo, essa exuberância de forma. Por que se
faz tão difícil?
― Que imagina você, capitão Braun? Que eu vá me
entregar a todo o Exército Alemão?
― Não estou dizendo isso. Nem eu desejava que você
se transformasse numa propriedade da Wehrmacht.
Francamente, Giselle, detesto as mulheres públicas... Em
todo caso, acho que você devia ser mais condescendente
comigo. Principalmente se deseja o salvo-conduto.
Senti que tinha ganho a parada.
― Giselle ― disse ele ― levarei o salvo-conduto ao
seu quarto, esta noite. Depois da meia-noite...
Um "frisson" me percorreu o corpo. Santo Deus, eu
teria que suportar aquela figura animalesca, aquele
brutamontes horrível, aceitar os seus galanteios e os seus
carinhos, para cumprir a minha missão? Não me faltava
vontade de lhe dizer tudo que pensava de sua barriga, de seu
nariz vermelho, de sua cara de bolacha. A voz de Paulo
Zingg, porém, quente e persuasiva, soava aos meus ouvidos
como uma advertência vinda de longe:
"Giselle, o seu corpo já não lhe pertencerá. Você sabe
que eu o adoro. Que ele, para mim, é um santuário, o lugar
de minhas orações, o centro de todos os meus desejos.
Giselle, seu corpo é um hino de beleza, um poema de carne
e o lugar-comum de todos os poetas. Eu o conservaria
20
para mim o resto da minha vida, adorando-o. Mas, Giselle,
o seu corpo é a melhor arma, a única arma de que
dispomos. Ele salvará muitos de nossos companheiros. Sou
o primeiro a lhe dizer que use o seu corpo. Satisfaça com
ele os apetites desses brutos. Deixe que eles profanem com
suas mãos imundas a sua carne. Entregue-se, Giselle,
durma com os alemães, deixe que eles se fartem."
Os olhos de Paulo Zingg, lembro-me bem, estavam
vermelhos quando me disse estas coisas. Mas brilhavam,
quando acrescentou:
― Giselle, o seu corpo pertence à França!
Naquela noite, quando o Capitão Braun deixou o
serviço, eu estava no meu quarto, à sua espera; à espera do
salvo-conduto. O amor enxundioso daquele homem pelo
meu corpo é algo que conservo até hoje na lembrança, como
qualquer coisa de repugnante e rude. Braun era pegajoso.
Tinha limo. Betume sobre a pele. Quando, antes, na fúria de
seus beijos (que eu tinha de suportar de lábios cerrados,
dura e fria) resvalava sobre ele, sentia algo parecido com
lama. As frases de amor que soltava vinham misturadas
com suor e um cheiro acre de axilas. Ele me sussurrava
promessas, que eu sabia, e ele sabia, nunca seriam
cumpridas. Isso tinha outro cheiro. Muito pior.
De repente, a porta se abriu violentamente. Cinco
oficiais fardados cravaram os olhos em cima de nós. Eu
estava completamente nua. O capitão Braun puxou o lençol,
com esse pudor característico dos saxões, e ficou esperando.
Não disse nada. Mas eu sentia suas pernas tremerem. Estava
lívido e acovardado. À frente do grupo, o coronel, meu

21
amante oficial, não dizia uma palavra. Um tenentezinho é
que deu o primeiro passo à frente e falou:
― Capitão Braun, por ordem do coronel, tenha a
bondade de nos acompanhar.
Só então Braun pareceu estar vivo. Respondeu:
― Não têm o direito de me prender só porque estou
com uma mulher.
O coronel, até então calado, tomou a palavra, com os
lábios quase cerrados, naquela maneira de um alemão dar
ordens que eu iria conhecer depois através de muitas e
muitas oportunidades.
― De acordo. Mas, se você fornece salvo-conduto sem
autorização do Estado-Maior, torna-se passível de punição.
Acompanhe o tenente.
Tudo isso se passou enquanto eu, sob um lençol que
puxara também, dominada, como é lógico, por um medo
terrível, escutava em silêncio. Vi o capitão Braun vestir-se e
sair. Nesses poucos minutos, as palavras de Paulo Zingg
voltaram-me a apontar o caminho:
"Giselle, sempre que você se encontrar numa situação
difícil, pense. Procure raciocinar e agir com calma.
Encontrará uma porta. Mesmo quando todas parecerem
fechadas."
Dominei-me.
O coronel avançou em direção à cama. Vinha pálido e
enfurecido. Seus olhos pareciam do chumbo, duros e
opacos. Foi nesse instante que me lembrei de minha arma,
aquela arma secreta e clandestina, arma irresistível para os
homens, de que me havia falado Paulo Zingg. Puxei o
lençol e atirei-o para longe. Nua, inteiramente nua, levantei-
22
me e fiquei à sua espera. Ele se deteve. A porta se fechara
sobre o último guarda. No quarto, estávamos nós dois
apenas. Ele, todo oficial, de quepe, revólver na cintura, e eu,
toda mulher, com a pele que Deus me deu. Um vento frio
entrava pela janela.
***
Escrevo apressadamente porque as lembranças se
amontoam em meu cérebro e a morte se aproxima. Será
hoje? Amanhã? Daqui a uma semana? Quando chegará a
madrugada em que terei de ser levada ao muro de
fuzilamento e o coronel Oetting, com aquela barriga de
chope, adotará a pose de um general, apenas para dar a
ordem de fuzilamento ao pelotão? Ontem, fui conduzida a
uma cela da ala esquerda, cujas grades dão para o pátio de
execuções. Sob o pretexto de que a minha antiga prisão
fosse lavada, queriam que eu assistisse ao massacre de um
grupo de franceses. Percebi isso. Os miseráveis acreditavam
que o medo acabaria por derrubar todas as paredes da minha
resistência. Mas, se eles soubessem o que me vai por
dentro! Se soubessem as forças que tenho em minha alma!
Mesmo assim, permaneci na abertura, olhando, através das
grades, o espetáculo degradante.
― Um!
― Dois!
― Três!
O pelotão se deteve. Reconheci o tenente que o
comandava. Ernst era o seu nome. Uns trinta prisioneiros
(tentei contar), de punhos atados, aspectos cadavéricos, mal
se sustinham sobre as pernas. Dez soldados alemães vinham
depois, numa formação militar rígida. O tenente Ernst se
23
aproximou do coronel Oetting. Pude ouvir perfeitamente o
diálogo.
― Meu coronel, aqui existe um problema de ordem
técnica.
― Vamos resolvê-lo.
― Os condenados sobem a trinta.
Eu não estava errada.
― Os fuzis não passam de dez. Como vamos matá-lo?
― O jeito será executá-los em três turmas.
― Nós podemos também usar a metralhadora. Um
soldado fará todo o serviço.
― Não convém esbanjar munição. Divida os soldados.
Divida também esses porcos franceses. Dê mais balas aos
soldados e mataremos a todos.
O tenente ficou pensando um pouco e depois falou:
― Sei que há problema de levar os cadáveres ao forno
crematório. A segunda turma levará para o forno os
cadáveres da primeira. A terceira levará os cadáveres da
segunda. Mas quem levará os cadáveres da terceira?
E riu com sua piada imbecil. O tenente não riu. O
tenente tomou seu posto e, em tom seco, sem levantar a voz,
deu a ordem. Fez aquilo com absoluta naturalidade. Dez
prisioneiros foram separados do grupo e levados ao muro. O
coronel Oetting se sentou na cadeira que a ordenança lhe
trouxera ― porque ele gostava de dar ordem de fogo e
assistir aos tiros de misericórdia confortavelmente. Mandou
que certo prisioneiro fosse trazido à sua presença. Tratava-
se de um rebelde que não consentira em ser fuzilado pelas
costas nem de olhos vendados. Os soldados não tinham
conseguido dobrar a sua coragem. O coronel ofereceu-lhe
24
um cigarro. O "maquis" (era um "maquis") não se mexeu.
Apenas seus lábios formaram a palavra que eu pude ler e
não posso reproduzir. Digo, entretanto, que era aquela
mesma palavra que Cambronne disse aos ingleses.
― Ele fica para depois. Terei uma sessão especial com
ele.
Esforcei-me do fundo de meu peito para assistir a todo
o espetáculo. Vi os fuzilamentos das três séries. Queria
mirar-me naquele exemplo. Nem um dos condenados se
acovardou. Os vinte e nove homens e mulheres gritaram,
"Viva a França!", logo após a ordem de fogo, e caíram
secos, na laje do pátio.
O coronel aproximou-se da fileira de corpos e, aqui e
ali, como quem se desobriga de um serviço de rotina,
distribuiu tiros de pistola nos crânios dos agonizantes. Por
fim, quando todos estavam mortos, os dez soldados com o
oficial à frente deixaram o pátio, enquanto os guardas
conduziam o único sobrevivente. Isso foi tudo. Certo dia,
um bando de mulheres alemãs, todas jovens e rosadas,
entrou no pátio da prisão. Vinha à frente, com um sorriso de
inefável felicidade nos lábios, o mesmo tenente Ernst que
chefiara o pelotão da morte. As moças se aproximaram da
grande cela, onde uns duzentos homens se amontoavam
como sacos, pois não havia espaço para sentar ou deitar. O
jeito era ficar de pé, dia e noite, encostados uns aos outros.
Alguns morriam de pé.
― Espia aquele moço! ― apontou uma das prostitutas
ambulantes do Grande Reich.
Todas elas eram isso. Acompanhavam as tropas, como
se fizessem parte dos mantimentos. Havia necessidade de
25
sua presença para que os soldados alemães tivessem
convívio de mulheres. (E nem todas as mulheres do país
ocupado se recusavam aos seus pedidos!) Eu não sabia
disso então. Soube depois. Soube que aquelas pertenciam à
equipe ambulante, vamos chamar assim, das meretrizes a
soldo da Wehrmacht. Sua missão era acompanhar a tropa e
satisfazer as necessidades dos soldados.
Na França, eram absolutamente necessárias, pois
muitas mulheres francesas preferiam contaminar-se com
enfermidades humilhantes a se deitarem com os soldados e
oficiais alemães. Só umas poucas consentiam nisso, e os
soldados, esses, não tinham nenhuma possibilidade de
possuí-las. Essas vivandeiras amorosas do nazismo não se
compunham apenas de alemãs. Muitas eram austríacas,
outras polonesas, outras tchecas. Todas incorporadas a esse
exército não regular. Não se fazia questão absoluta de raça.
Os médicos especializados em "dèlivrances" se
encarregavam das complicações que, por acaso, viessem a
correr. Pois bem. Chegaram. Estavam a dois metros das
grades da cela. Apesar dos guardas armados de
metralhadoras, que as protegiam, elas tinham medo dos
rostos contraídos, do ódio concentrado nos olhos daqueles
prisioneiros. O coronel Oetting fez seu aparecimento no
pátio, acompanhado por seus cães de fila.
― Bertha, não fique aí. Esses homens há meses não
vêem mulher.
Bertha era bonita. Uma espécie de "vamp"' nazista, de
acordo com os padrões eugênicos do alto Reno.
― Você deixa esses homens loucos, Bertha ―
continuou Oetting, com um estranho sorriso nos lábios. ―
26
Não acha que seria um espetáculo monumental se pudesse-
se fazê-la entrar na cela, nua, e obrigar esses homens a
ficarem parados sob metralhadoras?
Bertha notou a mudança no olhar do coronel Oetting
entre a recomendação de ela sair de perto daqueles homens
e, quase sem interrupção, a sugestão para o que chamou de
"espetáculo monumental".
― Quer experimentar hoje à noite?
Ela quis.

A MENSAGEM

Esse coronel Oetting é um tipo estranho. Esta noite,


voltou à minha cela. Não o tinha visto mais, desde o nosso
ruidoso encontro. Embora fosse de esperar que tornasse à
carga, a verdade é que não houve nada disso. Parecia ter
desistido de tudo. Sem que a princípio eu compreendesse
por que tinha dado aquela ordem, o certo é que me
deixaram nua na cela. Ordem do coronel. Não me
forneceram um vestido, um cobertor, um pedaço de pano,
qualquer trapo com que me cobrisse.
― Ficará nua enquanto estiver na cela e morrerá nua
― disse-me um oficial, reproduzindo suas palavras.
Hoje, Oetting fez o seu reaparecimento.
― Giselle ― disse-me ele ― esta é a sua última
oportunidade. Quer deitar-se comigo esta noite e contar o
que sabe?
― Coronel, o senhor está perdendo o seu tempo ―
respondi-lhe.
― Não quer revelar os nomes?
27
― Vocês todos estão enganados a meu respeito.
Era incrível: o coronel Oetting não tinha ainda
percebido que minha boca permaneceria fechada, bem
fechada, pela minha vontade e pelo compromisso que me
ligava aos meus companheiros.
― Esta é a sua última palavra?
― É a verdade.
O coronel ensaiou sair de minha cela, parou quase à
porta, voltou-se e disse, com voz dura:
― Você será fuzilada amanhã, ao alvorecer.
Depois da meia-noite, o carcereiro me trouxe o que
seria a minha última refeição: um prato de sopa e metade de
um pão. Olhou-me bem no fundo dos olhos com um jeito
que eu, a princípio, julguei fosse de piedade. Mas, depois, vi
que não era. Queria dizer-me alguma coisa. Vi que ele era
um dos nossos. Não podia falar, porque o guarda nos
observava. Mas quando abri o pão achei um bilhete de
Paulo Zingg:
"Denuncie o Espanhol, o Charles e a Marie. Já estão a
salvo, Procure poupar a sua vida, que nos é indispensável,
ceda até o limite do possível."
Engoli o papel e fiquei imaginando o que fazer, durante
algum tempo. Depois, chamei o guarda e lhe disse: ―
Quero falar com o coronel Oetting.

28
3

Paris. A velha. A querida. A minha Montmartre. Meus


amigos que jamais tomarei a ver: Jacques, Pierre Dalloz,
Christine... As lembranças iam desfilando no meu cérebro,
enquanto o coronel Oetting não chegava. Viria, afinal? Ou
toda promessa de liberdade não passava de uma farsa? Seria
mais uma farsa? Os nazistas são assim. Desconcertantes.
Imaginosos na arte de amedrontar. Gostam de ver os
prisioneiros com o medo estampado no rosto. Fiquei
pensando de que maneira esses vermelhões da Wehrmacht
se portariam na presença da morte. Várias vezes eles
simularam um fuzilamento apenas para gozar a expressão
de pavor dos homens no momento do disparo.
― Veja o velho! Vai precisar de outras calças!
Os miseráveis achavam graça nessas coisas horríveis.
No meu devaneio, eu os punha na situação de vencidos.
Imaginava a cara do tenente Ernst, geralmente tão
orgulhoso, no instante em que fosse levado para a forca.
Via, em pensamentos, a expressão de terror que teria o
coronel Oetting, um gozador vulgar, na hora de morrer. Ele
adulava os jovens da guarda, acariciando-os mansamente, e,
ao mesmo tempo, não podia ver mulher. Tinha um profundo
e incomparável amor pela vida.
― As três coisas que mais amo no mundo ―
costumava dizer, quando estava bêbado ― são Hitler, a vida
e eu.
No íntimo, eu me comprazia em imaginar como ele se
comportaria no instante de perder essas três coisas de uma
29
só vez. De repente, porém, meus pensamentos foram
cortados. Guardas se aproximaram da porta da cela. A
fechadura rangeu e um deles atirou um capote militar aos
meus pés.
― Vista-se.
Vesti-me e deixei-me levar. Dois minutos depois,
entramos na sala de Oetting. O coronel lia uns documentos
e, sem levantar a cabeça, mandou que os guardas se
retirassem. Só quando a porta se fechou é que ele ergueu os
olhos e murmurou com voz engasgada:
― Giselle!
Não baixei o olhar. Fixei-o. O coronel Oetting saiu de
onde estava, rodeou a cadeira que um dos guardas
empurrara para mim e pôs a mão dentro do casaco que me
cobria, acariciando-me. O seu rosto no meu pescoço era
áspero e eu sentia a respiração quente passeando pelo meu
colo. Os lábios pareciam ventosas. A impressão que eu
tinha era de que ele babava, como certos epilépticos.
― Giselle!
Fria, hirta, como a própria estátua do sacrifício, eu o
deixava fazer o que bem entendesse. Já não me importava o
capote que, a princípio, tentara segurar, num movimento de
defesa. Via o ar de louco, a expressão alucinada daquele
homem vencido pela carne e dominado pelo sexo. O
coronel Oetting era um lúbrico, um tarado, um anormal, que
me agarrava e me amassava com seus beijos e seus abraços.
Minha vontade era a de cuspir-lhe outra vez na cara,
empurrá-lo para longe; mas as palavras de Paulo Zingg me
impediam: "Sua vida, Giselle, nos é indispensável."

30
Acima de todos os meus escrúpulos, de minha vida e
de meus amores, acima de meu asco e de minha revolta,
acima de tudo estava a França que eu precisava ajudar. E
por isso, apenas por isso, suportava as carícias desordenadas
daquele porco nazista. Foi assim que passei a ser a
companheira das noites de insônia e de insânia do coronel
Oetting. A princípio, obtive uma liberdade relativa. Saia
com ele, de automóvel, pelos arredores. Nunca mais voltei à
cela, desde aquele momento chamado assim, ironicamente,
de "a rendição de Giselle". Deixei que me supusesse
rendida. Mas como é difícil agüentar as carícias de alguém
que nos inspira repugnância!
O amor, pelo que pude perceber, fazia o coronel suar.
Não o esforço com que, por acaso, ele tivesse de enfrentar
uma ou outra resistência minha. Mas a simples excitação
sexual. E isso deixava a sua pele oleosa e o seu contato mais
nojento ainda. Era um suor frio que contrastava com sua
respiração ofegante e quente. As suas mãos, nessas horas, se
punham nervosas e, embora macias algumas vezes,
freqüentemente estavam crispadas e duras. Tudo isso
contribuía para que eu inconscientemente assumisse uma
atitude de retração. O coronel Oetting percebia esse
movimento e, daí, alegrar-se quando lhe parecia que eu
vibrava sob suas carícias.
Paulo Zingg recomendava que houvesse de qualquer
maneira retribuição ao amor que o coronel nazista
despendia em mim. Todas as minhas forças, toda a minha
vontade consciente só punham a serviço dessa
recomendação. O coronel Oetting se entusiasmava:
― Consegui, Giselle! Consegui tocar em você!
31
A sua teoria, para quem, como eu, conhecia claramente
toda a mentira atrás do motivo que o punha satisfeito, tinha
um pouco de ridícula.
― Giselle ― dizia ele ― eu sou o bruto, a fera, o
selvagem que você odeia. Mas ninguém pode controlar a
força do sexo. E você se deixa arrastar, Giselle!
Aos poucos, fui aceitando a minha missão. Procurava
palestrar amigavelmente com ele. Buscava tirar partido, sem
deixar perceber a minha verdadeira intenção. O coronel
Oetting, até certo ponto, colaborava. Mas o fato de eu ter
pertencido a um movimento clandestino francês e ajudado
muitos oficiais ingleses a deixar a França aparecia como um
obstáculo quase intransponível. Na verdade eu desconfiava:
o coronel não me libertara apenas porque me queria junto
dele, para satisfação de seus apetites sexuais. Devia haver,
acima disso, algum plano da Gestapo.
Dias seguidos fiquei pensando que plano poderia ser
esse. Que queriam eles de mim? Como iriam utilizar-me
para obter os segredos que considerassem importantes? A
resposta veio na noite seguinte, quando estávamos, eu e o
coronel Oetting, sozinhos, frente a uma lareira. Ele me
ofereceu uma camisola de dormir, dizendo que "era herança
de uma condessa pouco amável".
― Essa condessa não nos queria em sua residência,
veja você... Quando chegamos à sua casa, nos gritou:
"Vocês são o que há de mais vil sobre a Terra!" e bateu com
a porta em nossa cara. Fomos obrigados a forçar a entrada.
Dei carta branca aos meus soldados.
O coronel ria, enquanto contava a história. Claro, eu
não sabia. Minha imaginação, apesar de acostumada a supor
32
tudo desses monstros, não chegava a me indicar nada. O
coronel, sempre com um meio sorriso nos lábios, se
levantou, pôs a mão sobre a mesa e contou:
― A mesa era parecida com esta. Estenderam sobre ela
a mulher, depois de tirarem toda a sua roupa. Ela quis
bancar a forte, cometer seu heroísmo e deixou-se trabalhar
sem dizer palavra, apenas com os olhos postos no soldado
mais próximo. Sentei-me numa cadeira e fiquei olhando o
espetáculo. Um a um, os meus homens a possuíram. Os
mais apressados não chegavam nem mesmo a tirar a farda.
Era um espetáculo estupendo! Aos poucos, a condessa foi
deixando pender a cabeça, os seus olhos perderam o brilho
duro do começo e ela desmaiou. Aquela vaca aprendeu a
receber alemães em sua casa!
De pé, estendeu-me a camisola.
― Esta é uma lembrança da condessa. Você é digna de
usá-la.
O coronel Oetting me olhava. Eu sabia que ele estava
fazendo mais uma de suas experiências comigo. Queria
observar minhas reações ante o fato monstruoso. Mas,
preparada para isso, fingi não ligar e aceitei o presente,
― Quero que a vista. Agora mesmo.
Tirei minha roupa, usando cada gesto como uma
provocação. Só depois de nua e de ter-me espreguiçado
como Vênus se espreguiçaria para conquistar os favores do
Olimpo, é que vesti a camisola. O coronel abraçou-me pela
cintura. E apagou a luz. Nessa noite, senti que ele se estava
lembrando da condessa e de todos os seus soldados. Tinha a
fúria de um exército.
***
33
― Você hoje vai para a Capital ― disse-me ele, na
manhã seguinte a essa noite desvairada. ― Aguarde-me no
endereço que lhe vou dar. Ficarei em Paris algumas
semanas.
Suas últimas instruções foram pronunciadas em tom
frio e categórico:
― Lá, você deve entrar em contato com seus antigos
camaradas. Isso nos facilitará a tarefa, Giselle. Mostre que,
de fato, é uma das nossas, ou já sabe o fim que a aguarda.
Mostre que é inteligente.
Embarquei para Paris. Nessa cidade que eu amo, fiquei
instalada na Rua de Bac, à espera do coronel. Não podia
fazer muita coisa. Sabia que meus passos, todos os meus
passos, eram vigiados dia e noite, pela Gestapo. Mas Paulo
Zingg, que tomou conhecimento de minha chegada,
conseguiu furar o bloqueio da vigilância e mandou um
bilhete em que dizia: "A Gestapo ronda sua casa. Veja se
nos informa."
Utilizei a mesma mensageira que entrara em contato
comigo, disfarçada em moça procurando trabalho, e contei
o que se passava comigo e quais os planos do coronel
Oetting. Aconselhei a todos do grupo que não se
aproximassem de mim, pois corriam perigo. Achei que essa
era a melhor solução, o caminho verdadeiramente indicado
pelo bom-senso. Por isso, fiquei surpresa com a resposta de
Paulo Zingg:
"Três elementos suicidas do grupo clandestino vão
procurá-la" ― escreveu ele. ― "Você deve acolhê-los e,
sem demora, denunciá-los ao coronel. Será essa a única
maneira de ganhar rapidamente a confiança da Gestapo."
34
As palavras de Paulo Zingg me deixaram chocada. Na
verdade, a guerra me estava ensinando muitas coisas a
respeito dos homens. Então, era assim que se dispunha da
vida de três pessoas? Na situação em que me encontrava,
qualquer suspeito entrando em contato comigo tinha
declarada sua sentença de morte. Eu estava em Paris para
atrair o grupo clandestino a que pertenci e o simples fato de
um "maquis" me ter procurado iria catalisar todas as
suspeitas da Gestapo. Seria um homem morto. Paulo Zingg,
entretanto, falava de "elementos suicidas" como se falasse
de tanques, fuzis ou qualquer outra coisa sem alma. Não
eram homens. Eram pré-fantasmas. E eu devia utilizá-los,
utilizar as suas vidas, para que o coronel Oetting e a
Gestapo abrissem um crédito mais largo de confiança nessa
sua "agente". Isso me aturdia. E me deixava indecisa quanto
à importância de viver.

35
A MANIA DO CORONEL

O coronel Oetting, por sua vez, era uma surpresa diária


para mim. Ontem mesmo, me contaram mais uma de suas
estranhas manias. Registro aqui. Ele servia numa missão
militar nas Antilhas. Seu hábito semanal era o de ocultar-se
num pavilhão com seis mulatas novas, todas em legítima
"première" sexual. Naturalmente, esse prazer custava caro
ao então capitão Oetting. Punha as mulatas dentro do
pavilhão, trancava-as e surrava uma a uma. Depois,
mandava que elas o amarrassem e o surrassem também.
Somente dessa maneira atingia o grau necessário de
excitação.
Ao voltar para a Alemanha, depois de um caso nas
Antilhas que deu muito que falar, foi internado num
sanatório militar onde passou largo período de readaptação.
Foi esse o nome que deram ao tratamento a que ele foi
submetido. Precisava readaptar-se. E, passados os meses, os
médicos lhe deram alta. Estava readaptado.
Eu, porém, que tenho convivido com ele, noto que já
estão despertando as suas velhas anomalias. Por exemplo:
ele me pede para passear à sua frente nua, com turbante
vermelho, e de sapatos de salto alto. Outro exemplo: manda
que eu fique de pé, imóvel, enquanto ele, sentado numa
poltrona, passa meia hora de olhos postos em mim, aqueles
olhos amarelos de tigre na véspera do salto, sem dizer uma
palavra, sem esboçar um gesto, apenas olhando. Não faz
nada. Depois diz, cansado, que eu me vista e eu me visto.
Ele deita a cabeça para trás e fecha os olhos. Fica pensando.
***
36
Era meia-noite. (Lembro-me bem da hora porque as
batidas na porta soaram quase ao mesmo tempo que o
carrilhão da sala, grave e sinistro carrilhão roubado a um
castelo normando pelo coronel Oetting). Pois à meia-noite,
Max Jacob apareceu. O poeta surgiu com aquela expressão
suave que eu adorava, nas noites do tempo de paz nas
"Follies Bergères".
“Meu Deus! ― pensei comigo mesma. ― O pobre
Max se ofereceu como suicida e vem entregar-se à
Gestapo!”
Eu sabia que todo o quarteirão estava sendo vigiado e
que a entrada de Max no meu apartamento não poderia ter
passado despercebido. No próprio apartamento, disfarçado
em mordomo, dormia um agente do Serviço Secreto
Alemão.
― Ma petite, Giselle! ― disse Max Jacob abraçando-
me enternecido.
Fiz-lhe um sinal com o dedo nos lábios para que ele
ficasse calado. Max fingiu não perceber nada. -Giselle
adorada! ― tornou ele.
― Você está sempre divina, sempre maravilhosa! Que
perfume de mulher bonita, Giselle! A vida lhe tem sido boa,
não?
Seu lápis deslizava sobre um jornal aberto, enquanto
falava. O que escrevia era isso:
"Giselle, sei que nos estão ouvindo. Quando sair daqui
vão seguir-me, certos de que descobrirão nosso quartel-
general. Isso faz parte do nosso plano."

37
O contraponto entre o que escrevia no jornal nas partes
brancas das margens das folhas, e o que dizia em voz alta
revelava um clandestino altamente treinado.
― Minha querida, vou dormir esta noite em sua casa
― falou.
"Responda-me que é impossível" ― escreveu.
Obedeci.
― Ora, vá dormir onde quiser, Max. Não tenho lugar
no meu apartamento.
O tom de voz com que Max me falava mudou de
repente. Tornou-se irônico:
― Por que, Giselle? Você alugou os quartos de seu
apartamento aos alemães? Oh, minha querida, você se
vendeu depressa, heim?
O lápis desmentia a voz: "Perdoe, minha querida.
Insulte-me."
Insultei-o.
― Escute aqui, Max. Por que você não vai para sua
casa? Essa história de que me vendi aos alemães é conversa
fiada. Continuo francesa, amiga de meus amigos e leal ao
meu grupo.
― Quem mantém esse luxo todo, então?
― Eu trabalho, ora essa!
― Posso saber em quê?
― Estou no câmbio-negro.
― De quê, Giselle?
― De cigarros.
Max fez uma pausa. Sorriu, um pouco alto para um
sorriso, e comentou:

38
― Cigarros, minha linda? Cigarros que caem do céu,
provavelmente... Os ingleses lhe atiram cigarros de pára-
quedas, não é? Ou você os recebe pela fronteira?
― Max ― respondi ― deixe de fazer ironia. Você
sabe muito bem que meu tio Etiene tinha uma charutaria. Eu
guardei o estoque.
― Aqui? ― Sob uma laje da adega.
Max Jacob pareceu mudar de atitude. Sua voz (que
grande artista ele era!) revelava confiança na farsa que
representava.
― Giselle, posso acreditar na sua sinceridade?
― Eu sou francesa, Max...
― Laval é francês também.
― Mas Laval é um francês degenerado.
― Max ― interrompi ― qual o motivo de sua
desconfiança?
― A sua libertação inesperada.
― Max, minha libertação não foi tão inesperada assim.
Depois, foi feita porque os nazistas não tinham nada contra
mim. Nenhuma prova.
― Ah, foi? Os nazistas já estão exigindo provas? Eles
sempre condenaram sem julgamento.
― Bom, mas houve outra ajuda.
― Posso saber qual?
― Isto ― respondi e, com um gesto que mostrava meu
corpo de alto a baixo, pus-me de pé.
Nessa noite, eu vestia um "deshabillé" extremamente
simples, que primava pela sua quase transparência. O
coronel Oetting adorava o tom azul do tecido. E o tom de
pele que ele percebia sob o tecido. Pensei, enquanto olhava
39
Max Jacob. Nossa vida corria perigo. Nossos planos
estavam ameaçados, a cada instante, de ruir de maneira
inexorável. Vinha agora Max Jacob, poeta e esforçado
lutador da Resistência, meter-se na boca do lobo. Qual seria
a intenção de Paulo Zingg?
― Giselle, vou embora. Tenho um encontro com
nossos companheiros. Voltarei dentro de uma semana para
acertarmos um plano de ação.
― Está bem, Max.
Ele se aproximou de mim, segurou meu queixo com
sua mão firme e grande. Não tremia um pouco sequer.
― Giselle, se você nos trair...
Bateu-me suavemente no pescoço, como quem acaricia
sinistramente uma vítima, e falou duro:
― Eu a enforcarei com o meu próprio cinto, Giselle.
Palavra de honra!
Tal era o brilho de seus olhos nesse instante que eu
fiquei sem saber se a advertência era séria ou se destinava-
se apenas ao ouvido da Gestapo.
Uma hora depois que Max Jacob saiu, o coronel
Oetting chegou. Eu estava deitada e lia um livro sobre
Wagner. Oetting bisbilhotou as primeiras páginas.
― Onde você aprendeu alemão, Giselle?
― Estudei na Baviera. Cinco anos.
― Na Baviera?
― Sim. Meu pai foi embaixador em Berlim.
Matriculou-me num colégio de freiras na Baviera. (Tudo
isso era mentira. Meu pai não passava de um escultor sem
renome).

40
Com os olhos pregados nos meus, Oetting fez a
pergunta que desejava fazer desde o primeiro momento.
― Você gosta da Alemanha, Giselle?
Sem esperar um segundo, respondi:
― Não, coronel. Detesto a Alemanha. Detesto os
alemães, inclusive o senhor.
Ele se abriu num sorriso completo e absolutamente
idiota:
― Se você dissesse o contrário, Giselle, eu saberia que
estava mentindo. Leio em seus olhos, nas suas atitudes, nas
suas palavras mais simples, que você detesta os alemães e a
mim.
Subitamente, irritou-se. Sua voz adquiriu o tom rouco
que anunciava tempestade.
― Sua cadela ordinária! Quem é você, uma meretriz
desclassificada, para falar dessa maneira dos alemães?
Deitada na cama, eu descansava as costas num
travesseiro. O coronel Oetting puxou-me pelo "deshabillé" e
deu-me uma bofetada. Sua boca espumava insultos. Sem
uma palavra, desci do leito. Ele me acompanhava com os
olhos. Fui até o guarda-roupa, apanhei um quimono pesado
e ia vesti-lo, quando o coronel se atirou como uma fera
sobre mim.
― Que vai fazer?
― Vou vestir-me, ora essa!
― Por quê? É uma represália, não é? Pois vou ensiná-
la a receber castigos sem pensar em represálias.
Encarei-o duramente, os olhos nos olhos. Havia aço na
minha voz quando lhe disse:

41
― Coronel, se me trata como um animal, eu o
receberei como um cadáver. Não imagine que eu retribua
mais as suas carícias. Não existirá força no mundo que me
obrigue a acariciá-lo. Já lhe disse que não o suporto. Tudo
que tenho feito é procurar me acostumar a satisfazer os seus
caprichos. Por que não me trata de outra maneira? Se quer
meu corpo frio, inerte, hei-lo.
Despi-me.
― Exijo boas maneiras. Não gosto de ser chamada de
cadela nem de ordinária. Se quiser, pode me mandar de
volta para a prisão.
Desafiava-o com o olhar.
― Tem coragem?
Meu corpo estava inteiramente nu. E trepidava! O
coronel Oetting parecia não suportar por mais tempo.
Olhava-o de alto a baixo e o suor, aquele suor que eu
conhecia de tantas noites, caía em bagas pelo seu rosto. Pus
a mão instintivamente sobre um dos meus seios e verifiquei
que estava duro e trêmulo. Corri até a cama e caí de bruços,
como se fosse chorar. Todo o meu dorso, que tantos
garantiam ser perfeito, estava à disposição do olhar daquele
nazista louco. Fiz um ligeiro movimento com as ancas,
deixei que a fêmea dentro de mim se revelasse. O coronel
não tinha caráter para resistir a tanto. Aliás, segundo o
próprio Zingg, nenhum homem teria.

42
4

À hora marcada, Max Jacob se ajoelhou perto de mim,


na Igreja de Notre Dame. As palavras foram sussurradas
mansamente. Eu deveria procurar obter um carro oficial dos
alemães sob qualquer pretexto. Alegasse, por exemplo, a
necessidade de sair de Paris. Alegasse qualquer coisa. Mas
não deixasse de aparecer com o carro ao meio-dia de
segunda-feira. Era um domingo. Isso fazia parte de um
plano do grupo de "maquis" a que ele, Max, pertencia.
― Esta é a última vez que falo com você, Giselle.
― Você será preso?
― Ainda hoje, minha querida. Você não deve esperar
um minuto. Denuncie-me logo que chegar ao apartamento.
― Isso é inevitável, Max?
Foi a primeira vez que vi o rosto de Max ficar triste.
― Giselle ― disse-me ele ― estou marcado há muitas
semanas. Eles me seguem dias a fio, noites seguidas, e estão
a par de minhas atividades. Não posso fugir. Quando Zingg
falou da necessidade de três ou quatro voluntários suicidas,
para que a "missão Giselle" pudesse ir adiante, apresentei-
me. Quiseram recusar, dizendo que eu era demasiado
importante para ser sacrificado. Tudo bobagem. De
qualquer maneira, eu já estava condenado. Philippe e
Jacques também.
― Quer dizer que isto é um adeus, Max?
― Sim. Um adeus definitivo.
Max ficou em silêncio por algum tempo e, com a
mesma voz sussurrada, traçou o plano: ― Quando você
43
estiver com o coronel Oetting, dê-lhe nosso endereço. Eu,
Jacques e Philippe os esperaremos. Você então terá dado
uma prova fulgurante de honestidade na defesa dos
interesses alemães.
Parou novamente, voltou o rosto para mim e estendeu a
mão. Era a mesma mão firme de sempre.
― Adeus, Giselle. Honre o nosso sacrifício. Cumpra
sua missão. Lembro-me bem de seus passos dentro da
igreja.
E me lembro também de cada minuto daquele 24 de
fevereiro em que denunciei Max Jacob, esse grande poeta
de França, aos alemães. Uma denúncia que não era tão
criminosa assim, de vez que o próprio Max e seus
companheiros sabiam das condições em que o velho e
sentimental amigo se encontrava, Estava sendo vigiado e,
de uma hora para outra, seria preso. Considerou-se de maior
utilidade a sua inclusão dentro do que tomara o nome de
"missão Giselle".
― A confiança dos alemães é o que você precisa obter,
Giselle ― mandou-me dizer Paulo Zingg, em repetidas
mensagens.
Pois bem, apesar de saber que Max Jacob estava
perdido, sem qualquer possibilidade de salvação, doeu-me a
consciência. Quando, numa das farras loucas que o coronel
Oetfing organizava em meu apartamento para os seus
colegas de armas, entreguei a ele um papel com o endereço
de Max Jacob, em Saint Benoit.
― Quer assistir à prisão, Giselle? Eu não achava
conveniente. Ponderei que, assim, logo todos saberiam que
eu estava trabalhando para os alemães.
44
― Ora, nós faremos crer que você nos está traindo.
Segurou-me pela cintura, na sua atitude favorita, e
cravou-me os olhos, acrescentando: ― E não será isso
verdade?
Sustentei o olhar. Convinha desconcertá-lo.
― Coronel, é preciso não esquecer que sou francesa.
Se houver uma oportunidade, saberei aproveitá-la.
Na manhã seguinte, cerca das 11 horas, fomos até Saint
Benoit. A Gestapo já invadira a casa de Max Jacob. Mas
nos informaram que somente à noite o levariam para
Orleans. O coronel sorriu e disse:
― Entremos. Vejamos o que diz o trovador de França.
Max Jacob estava sentado e tranqüilo, enquanto um oficial
nazista examinava gavetas. Revistaram tudo. O coronel
Oetting cumprimentou-o delicadamente. Max não
respondeu.
Foi então que o nazista, irônico, me apresentou:
― Senhorita Giselle Montfort.
Max Jacob mal pousou os olhos sobre meu rosto. Sua
atitude era de desprezo, nojo e, ao mesmo tempo, piedade.
Senti que minha face ficava vermelha, apesar de
compreender que ele representava seu papel. Por fim, Max
falou. Em tom baixo, sem erguer a voz durante todo o
tempo:
― Giselle, você é uma infeliz. Causa-me pena. É uma
boa mulher para os alemães. Uma companheira de cama,
uma fêmea sem pudor, que perdeu os últimos vestígios de
dignidade. Você venderia sua própria mãe. Você se vende
todas as noites. Então, é verdade que foi você quem me
denunciou? Acha que isso tem alguma importância para
45
mim? Mais cedo ou mais tarde eles me pegariam. Mas
porque veio assistir ao resultado do seu trabalho?
Parou um pouco e balançou a cabeça.
― Não, Você está certa, Você é uma profissional.
Trabalha até o fim. Mas quero contar-lhe uma história. Um
dia destes, eu estava num café e um cidadão francês
elogiava os nazistas. Fui ao seu encontro, apertei a mão do
homenzinho e disse-lhe: "Permita-me cumprimentá-lo,
amigo". Todos me olharam revoltados. Acrescentei: "E que
Deus o perdoe!"
Max se levantou, parou à minha frente, pôs as mãos
nos meus ombros e repetiu:
― Que Deus a perdoe, Giselle.
Estava na minha frente um dos maiores poetas de
França. Eu iria saber depois que ele, de Orleans, tinha sido
removido para a prisão de Muetta, em Draney, perto de
Paris. Uma prisão úmida e miserável. Uma escuridão total
marcou, desde então, os seus dias.
Depois que deixamos Max Jacob, voltamos para nosso
apartamento. Haveria uma das festas de oficiais nazistas que
o coronel Oetting promovia de quando em quando. Essas
festas eram verdadeiras bacanais. Um espetáculo de doidos.
E note-se que nelas não eram admitidos senão de capitães
para cima. Nem aos tenentes era possibilitada a freqüência
ao meu apartamento. O que havia de menos desagradável
nelas é que todos os convivas chegavam banhados e de
roupa limpa. Aquele cheiro de trincheira tinha de ser
arrancado da pele à custa de muito sabão e de muita escova.
Eles chegavam, eram polidos, vinham sóbrios.

46
Tudo começava como se fosse uma distinta reunião
social de tempo de paz. Os primeiros drinques rodavam e os
pequenos grupos que se formavam entretinham palestras
agradáveis sobre os mais diversos assuntos. Por vezes,
amigos de outros tempos se encontravam. E
confraternizavam. Tinham suas recordações. Conversavam
sobre colegas de colégio que nunca mais haviam visto.
Posso dizer mesmo que, nesses poucos instantes de começo
de farra, os alemães eram simpáticos, como, fora os nazistas
e fora a guerra, os alemães de um modo geral o são.
De repente, um grupo começava a cantar. Copo na
mão, velhas canções alemãs estimulavam toda a sala. E
vinha a farra propriamente dita. Várias moças colaboravam
nessas festas. Não muitas, por que os grupos formados pelo
coronel Oetting geralmente eram de dez ou doze oficiais
nazistas apenas. Elas se espalhavam pela sala, conversavam,
bebiam com os homens e riam. Algumas tentavam, na hora
das canções, cantar também. Atrapalhavam-se com as
palavras (eram francesas) e gargalhavam para desculpar-se.
Vi muitas dessas moças. Olhei muito os seus rostos.
Inutilmente procurei descobrir, sem dizer nada, se alguma
delas estava na minha situação. Se tinha uma missão
também junto aos alemães. Mas nunca pude perceber nada.
Ao contrário disso, quando estive com elas no banheiro,
ouvi expressões de satisfação e felicidade:
― Aquele com quem estou é formidável, não é?
― Você viu o meu? É o tipo do homem macho. Um
lourão impossível!
Na verdade, sempre me pareceu que eu estava sozinha
em minha missão. Todas as outras queriam divertir-se,
47
conseguir os favores dos que dominavam nossa cidade,
obter alimentos, dinheiro, vestidos e prestígio como se o
destino da França não fosse o seu destino.
Certo dia, alguém, que eu nunca soube quem foi,
descobriu uma francesinha quase criança e levou-a para
uma dessas festas. Em tempo de paz aquela garota deveria
estar cursando os primeiros anos escolares. No máximo,
teria doze ou treze anos. Por mais incrível que pareça,
aqueles homens, vindos da guerra, a cercaram com um
interesse jamais demonstrado pelas mulheres mais velhas e
mais experientes. Despiram-na e eu pude ver que os
primeiros pêlos da puberdade ainda começavam a sombrear
seu sexo e suas axilas. Os seus seios eram apenas flores. E
seu corpo um pouco anguloso como os das crianças. Os
homens a disputaram.
O coronel Oetting, com a sua autoridade de anfitrião,
gritou uma ordem, quando começou a balbúrdia:
― Parem com isso. Vamos disputá-la nos dados.
Eu fui ao quarto, trouxe dados e os oficiais jogaram a
meninota, que sorria nua a um canto, sem nenhuma
expressão. Para ela, tanto fazia um como outro dos nazistas
o vencedor. Na verdade, seus olhos se fixavam nos dados,
ela própria toda entregue à sorte dos números. Não via
quem jogava os dados. Finalmente, um major magro e alto
conseguiu onze pontos. Ganhou. O coronel Oetting segurou
o braço da garota e entregou-a ao major, à semelhança de
um troféu.
― Pronto, major. Ela é sua.
E sorrindo com o canto da boca:
― Agora queremos assistir esse espetáculo.
48
Todos se sentaram e o major, olhando em volta com o
ar superior de um verdadeiro "conoisseur", despiu-se
lentamente. Deitou a francesinha no tapete da sala e, quando
ia possuí-la, gritou:
― Mas ela é virgem!
A gargalhada foi geral. A cara do major era de espanto
e queria dizer que aquela criança, sendo virgem, não podia
ser possuída. Um capitãozinho de cabelo aparado e sorriso
cínico deitou-se sobre a jovem, vestido como estava,
levantou-se daí a pouco e disse, sempre sorrindo:
― Pronto, major, agora ela não é mais virgem!
Lá para o meio da festa, os oficiais bêbados se despiam
e dançavam uns com os outros. Chamavam a isso o baile
dos "sans culottes". Eu era respeitada. Minha atuação vinha
sempre quando a festa estava no fim.
Dançava o "Pecado Original", tema que o coronel
Oetting, possuído de imaginação coreográfica, criara para
mim. Eu aparecia toda nua, apenas tentando proteger-me
com as mãos. Em gestos rápidos, elevava os braços e
voltava a cobrir-me. Os nazistas gritavam de entusiasmo.
Os meneios de meu corpo eletrizavam a sala. Os olhos de
todos os homens se cravavam em mim. Pareciam de fogo.
― Que mulher! ― dizia um.
― Que corpo! ― dizia outro.
Os que estavam mais sóbrios elogiavam o bom-gosto
do coronel Oetting. De repente, a coreografia do "grande
artista" me obrigava a deitar-me de ventre para cima, com
as pernas dobradas e os joelhos ligeiramente afastados. Eu
acompanhava o ritmo sensual da música com movimentos

49
de ventre que se aproximavam dos gestos de uma mulher
em pleno êxtase sexual.
Nessa hora, um capitão, certa vez, se atirou sobre mim,
agarrando-me e beijando-me escabrosamente. O coronel
Oetting, refeito da surpresa, puxou-o pela gola, enquanto o
capitão baixava a cabeça e pedia desculpas.
― Meu coronel, eu venho da Normandia. Lá as
mulheres fogem de nós ou se contaminam para que não as
queiramos possuir. Estive muitas semanas na Polônia e,
depois, vim direto para a Franca. Não tive sequer um
pequeno período de licença. Minha tropa é tropa de elite.
Há meses que não sei o que é mulher, meu coronel. E esta
me deixou louco.
― Qual é a sua divisão?
― Divisão Hitler, meu coronel.
Eu estava parada, na mesma posição em que a dança se
interrompera, quando ouvi, inesperadamente, a resposta do
coronel Oetting.
― Tome-a. Ela é sua por esta noite, capitão.
***
Livrei-me do irrequieto capitão ― um fauno sem
grandeza ou flauta ― que tentava arrastar-me em direção
ao quarto. Fui colocar-me face a face com o coronel
Oetting. Os outros oficiais, deitados sobre o tapete ou
sentados nos divãs e nas poltronas, com suas ninfetas ou
com seus companheiros de farda, tinham silenciado.
Queriam prestar maior atenção à cena, esperando, quem
sabe, uma tirada wagneriana.

50
― Coronel ― fui dizendo ― se imagina que me vou
transformar em depósito de imundície do exército alemão,
está muito enganado.
Ele escutava calado. Prossegui:
― Se esse aflito capitão, cujo nome ignoro, veio
mesmo do front, onde esteve tantos meses invicto de
mulheres, se ele necessita de emoções revitalizantes, se é
um herói nazista, se pertence à Divisão Hitler, isso não me
diz respeito. Por que não lhe oferece as cortesãs da casa? Há
muitas aqui, para sua escolha.
Com a mão apontei as doidivanas, inteiramente
embriagadas, que divertiam ― ou tentavam divertir ― os
oficiais. Chamei uma delas.
― Seu nome?
― Heléne.
― Quer ficar com este capitão indócil?
― E o outro? ― ela quis saber.
― Quer este?
― Tanto faz.
Chamei outra:
― Você aí. Seu nome?
― Delly.
― Está muito magra, mas tem um belo corpo e um
sorriso bonito. Agrada-lhe, capitão?
O huno não abria a boca. Só me espiava, com um jeito
de cão faminto e despeitado.
― Delly, prefere o capitão?
― Não faço questão de posto.
― Faz questão de quê?

51
A cínica fez com os dedos um sinal muito antigo.
Dinheiro era a solução.
― O capitão paga mais. Fique com ele.
Chamei outras três. Era impressionante vê-las assim,
tão disponíveis na sua honra. Heloise, Marly e Dora, esta
uma espanhola morena, conversadora. Quando o quadro
ficou completo, ofereci-o ao capitão, como uma feitora de
bacantes:
― Estão às suas ordens para fazê-lo esquecer da
guerra, capitão. Eu prefiro me abster da honra.
Cheguei mais perto do coronel. Senti que ele estava
feliz com a minha atitude. Tratava-se de outra experiência
sua.
― Muito bem, Giselle. Sou forçado a admitir que você
está magnífica. Tem a facilidade de expressão de um
Goebbels.
Pousei minha mão sobre seu braço.
― Estou quase me acostumando com sua
personalidade, coronel.
Voltei os olhos para o capitão ávido. Ele estava no
meio das cinco fêmeas, já sem dólmen, em manga de
camisa, contando a passagem do Reno por sua Divisão
Blindada. O coronel se divertia, talvez sem saber bem por
quê.

O GOLPE TRAIÇOEIRO

Amanheceu, e, como sempre, Oetting roncava. Seria o


ronco noturno uma reminiscência da bestialidade dos
homens? Não pensei muito sobre isto, porque o telefone
52
soou, estupidamente, e o brutamontes saltou da cama,
assustado. Depois de atender ao chamado deixou que sua
face granítica assumisse uma expressão de alegria.
― Giselle, descobrimos um dos quartéis dos "maquis".
Vou assistir ao cerco.
Meu coração estremeceu, mas não me deixei perturbar.
Perguntei, à queima-roupa:
― Posso ir com você?
Ele mostrou-se receoso:
― Não acho conveniente para uma mulher. Voltarei
ainda hoje, com certeza.
Saiu sem dar qualquer indicação sobre o reduto que a
Gestapo descobrira. E eu fiquei apavorada. Era preciso
avisar Zingg, mas como? Se a vigilância ainda era severa?
De qualquer maneira, vesti-me e saí às pressas. Fui parar no
Quartier Latin. Entrei no restaurante "Capoulade". Percebi
que um carro me estava acompanhando e que dele saltara
um homem de preto. Ficara defronte.à casa de refeições, na
esquina da rua Soufflot com o Boulevard Saint Michel.
Através do vidro do restaurante eu podia observá-lo.
Procurei uma das mesas no canto e o garçom se aproximou.
Fingindo que estudava o cardápio disse-lhe que mandasse
Bebert Vogel falar comigo.
― Ele foi deportado, senhora.
― E Jean Labrit?
― Não está. Se quiser algum recado...
― Diga-lhe apenas que Giselle está aqui para avisar
que a Gestapo descobriu um dos nossos redutos. Não sei
qual. Pode ser este ou qualquer outro.

53
O garçom se afastou. Minutos após veio com pratos
que eu não escolhera. Falou mansamente:
― Labrit já sabe. Foi o grupo do padre Corentin.
Acabaram com ele.
E em tom alto:
― Mais alguma coisa, senhora?
Enquanto comia, observava o homem de preto. Ele
disfarçou durante alguns minutos mas por fim entrou no
"Capoulade" e sentou-se numa das mesas próximas à
minha. Terminei a refeição e saí. Ele veio atrás. Seguiu-me
até a porta do edifício. À noite, Oetting entrou. Vinha
eufórico. Da nossa desgraça se compunha a alegria dos
nazistas. Agora tudo era motivo para um sorriso seu, ou um
gracejo.
― Pobrezinha da Giselle. Ficou o dia inteiro em casa?
― Não. Saí. Almocei fora.
― Onde?
― No "Capoulade". Com este racionamento é onde se
pode comer alguma coisa.
O coronel se despiu rapidamente, vestiu o pijama e
deitou-se.
― Quer saber o que aconteceu hoje, Giselle?
― Se quiser me contar.
― Quero contar, sim. embora saiba que você detesta
essas nossas caçadas humanas. Há de convir que é a luta
pela sobrevivência. Não foi um general francês que disse:
― "Na guerra, como na guerra"?
― Prossiga!
― Calma! Você chegou a conhecer, em seu tempo
perdido de "maquis", o tal padre Corentin Cloarec?
54
― Não.
― Aquele do convento que fica ali no 14.° distrito, à
rua Rose?
― Não conheço.
― Ele recebia os "maquis" feridos e transformava o
convento em hospital. Preparava-os para voltarem à luta.
Tinha sabotadores, terroristas, assassinos sob custódia. Sabe
o que fizemos?
Seu sorriso era revoltante, mas sincero:
― Um de nós, que fala o francês, sem sotaque, bateu à
porta. O grupo conduzia um homem ferido. ― Oetting
imitou a voz do comandante: ― "Trata-se de um maquis
que está morrendo, padre Corentin!" ― esclareceu o que
dominava o idioma, acrescentando detalhes sobre a
perseguição nazista a fim de remover do espírito do
sacerdote qualquer suspeita. ― Sem demora ele abriu a
porta. Você vê... os franceses não são tão maliciosos quanto
se imaginam. Nossos homens caíram de punhais sobre ele.
Barbaridade? Talvez. Mas dentro da semântica de guerra eu
chamaria a isto de simples punição. O padre cozinheiro veio
aos gritos saber do que se tratava. Queriam matá-lo
também, mas não deixei.
Fiz uma sinal de indiferença com os ombros.
― Está triste, Giselle? ― concluiu Oetting.
Ele mudou de assunto:
― Antes de você, vinha aqui uma artista de cinema,
Corine Luchaire.
E fez uma revelação que me deixou fria:
― Tenho um filho com ela.

55
5

Como não podia deixar de ser, a minha casa se tornou,


em pouco tempo, o ponto preferido de reuniões profanas
dos oficiais graduados da Wehrmacht. O fato de que eu
servira no movimento clandestino francês passava agora
quase despercebido, ante a circunstância valiosa da
denúncia que fizera, enviando Max Jacob ao muro de
fuzilamento. Tornei-me, para todos os efeitos, uma deles.
O sigilo natural dos membros do Estado-Maior alemão
que me freqüentavam foi pouco a pouco sendo
negligenciado. Discretamente eu me ia insinuando na sua
intimidade. Falava em estratégia. Procurava interessar-me
no seu "heroísmo". Um dia, já depois da segunda garrafa de
champanha, o major Grung, responsável pelo suprimento de
munições aos aquartelamentos de Léon, deixou escapar esta
frase:
― Os Aliados são uns bobocas, Respeitam a velha
igreja de Santo Agostinho ao sul de Lyon. Nem uma bomba
cai sobre ela. Mas lá guardamos coisa muito boa.
Uma semana depois este local foi pesadamente
bombardeado pela RAF. Era com efeito um imenso
depósito de munições. A mensagem aos ingleses, apontando
o objetivo, transmiti-a eu, através dos amigos do
"Capoulade". É bem verdade que eu temia ser descoberta,
mais tarde ou mais cedo. A qualquer momento um passo em
falso poderia denunciar-me. Mas os oficiais que iam à
minha casa estavam de tal maneira embrutecidos pela carne
56
que não sabiam desconfiar. Só lhes interessava o sexo, o
prazer, a loucura fácil do vinho. Na minha presença
esqueciam completamente as regras prussianas pelas que se
deveriam pautar se quisessem vencer a guerra. Mandavam a
disciplina às favas.
― Isto até parece a casa de Funk! ― disse-me, certa
noite, um oficial prussiano, alto, magro, cara-de-pau.
― Casa de Funk? ― perguntei, intrigada.
― Sim. Vou explicar. Em Hamburgo vivia um
camarada de nome Hans Funk. Toda a sua família se dava,
sem reservas, ao culto do amor profano. A esposa, as duas
filhas. Funk também.
― E daí?
― Um dia, na praça que fica bem na extremidade de
Ripperbank, dois namorados se amavam, descaradamente,
ao pé da estátua de Bismarck. O Chanceler de Ferro, lá do
topo do seu monumento, abaixou a espada, saiu da sua
incômoda posição e perguntou: "Vocês estão pensando que
isto aqui é a casa do Funk?"

57
A DANÇA E AS VIOLETAS

Pela madrugada apareciam no meu apartamento os


tipos mais exóticos do oficialato alemão. O grupo da
Resistência, que Zingg chefiava, vivia a relembrar-me ―
através de mensagens ― sobre a necessidade de eu procurar
atrair sempre, e cada vez mais, os nazistas ligados ao
comandante germânico de Paris, o general Stupnaggel.
Certa vez, o coronel Oetting chegou acompanhado de
cinco oficiais. Enquanto se refestelava ele numa poltrona da
sala, com aquele ar de dono do mundo que fazia questão de
manter, seus companheiros varejavam a casa, de ponta a
ponta. Oetting procurava escutar a rádio de Berlim.
― Que estão procurando? ― indaguei.
― Examinem os cômodos! ― foi a resposta.
― Para quê?
― Logo saberá.
Observei depois que várias patrulhas alemãs
percorriam o bairro. Ainda desta vez o coronel não quis
revelar-me o segredo. Sua resposta era sempre a mesma:
― Logo saberá.
Soube de tudo, muito depois, e não através da palavra
de Oetting. Ele não gostava de contar seus fracassos. Os
nazistas procuravam Jean Tuby, um dos nossos
telegrafistas, aquele que era capaz de montar e desmontar
um transmissor com a rapidez de um malabarista. Uma
informação cifrada estivera sendo irradiada de um edifício
não muito longe do meu. Os técnicos da Gestapo
localizaram o ponto onde se achava o transmissor e

58
esquadrinharam todo o quarteirão. Mas Jean escapara,
disfarçado em mulher, vendedora de violetas.
Ah! O poder das violetas.
Depois de fugir ao cerco o pobre Jean ainda fora
censurado por Zingg. Não deveria fazer transmissões das
proximidades da minha residência. Nada deveria
comprometer-me. O risco fora muito grande. Eu, apesar de
tudo, ainda estava sob suspeita. Era uma deles, como dizia
Oetting, orgulhoso de ter-me convertido. Mas confiavam,
desconfiando. Os cinco oficiais, depois de vasculharem
minha casa inutilmente, voltaram à sala onde me encontrava
com "meu" coronel. Um deles, mais ousado, comentou:
― Bonita! Porém muito vestida.
Oetting explicou, sádico:
― Por enquanto. Logo se despe. As francesas gostam
de tirar a roupa.
― Quando assistiremos a isso? ― perguntou um
outro, de olho lúbrico.
Oetting, dono do mundo, explicou, com voz macia:
― Na hora da minha dança, Giselle se despe. Mas não
é um "strip-tease" comum. Ela interpreta alguns motivos da
minha autoria. Vocês sabiam que eu sou também
coreógrafo? O grande militar alemão, o estrategista das
batalhas vitoriosas, tem de ter alma de coreógrafo. Não é a
guerra, por acaso, a dança das horas? Das horas que mais
contam na história do mundo?
Oetting falava inflamado, apaixonado por si mesmo,
como todo bom nazista. Eu fui, aos poucos, me preparando
para aquela dança terrível. O coronel foi até o piano e

59
atacou os primeiros acordes da sua composição medíocre:
"A Abelha e o Zangão".
Fiz o melhor que pude para entretê-los. Embora não
soubesse ainda naquele momento o que os nazistas
procuravam no quarteirão, pressentia alguma perseguição
aos meus companheiros. Assim, tratei de mantê-los
fechados no meu apartamento, olhando-me o corpo nu.
Dancei a dança das horas. Das horas perdidas. O telegrafista
Jean Tuby talvez devesse sua liberdade à minha nudez, mais
do que às violetas. Afinal, as violetas...

O GENERAL E EU

Afinal, o famoso comandante das forças de ocupação


de Paris, general Stupnaggel, caiu nas minhas malhas.
Vinha com freqüência à minha casa, trazido por Oetting. A
princípio mostrava-se apenas interessado nas outras
pequenas, nas ninfetas irresistíveis. Depois resolveu cuidar
de mim, com alguma ênfase. Trazia inúmeros oficiais na
sua companhia. Eu a todos preparava bom repasto. Não era
esta minha missão? Tinha meu pequeno exército de garotas
livres, umas poucas fiéis à nossa causa, outras apenas
interessadas em dinheiro (que significava comida, naqueles
dias amargos). O objetivo era distraí-los, embebedá-los,
roubar-lhes informações.
A princípio os oficiais se comportavam. Afinal,
estavam na frente do comandante. Mas depois, aquela
intimidade que o convívio entre mulheres fáceis estabelece,
abrandava os rigores da disciplina e apagava os traços mais
nítidos da hierarquia militar. Stupnaggel já permitia quase
60
tudo aos seus comandados. Procurava mesmo estabelecer
certa bagunça a fim de desviar os olhares de Oetting de
sobre mim. E iniciava suas investidas. Meu amante oficial
― "meu" coronel Oetting, como o chamara, num duplo
sentido ― estava já demonstrando o ciúme.
Quando eu ficava na sala com Stupnaggel, ele trazia à
nossa presença garotas mais ousadas, procurando fazer o
general-comandante interessar-se por alguma delas. Inútil.
Stupnaggel dava visíveis mostras de pretender "requisitar-
me" para seus serviços exclusivos. De repente, aconteceu!
O general, na frente do próprio Oetting, pôs a mão no meu
decote. "Meu" coronel, numa última tentativa, foi buscar
Molu, uma japonesinha adorável, famosa por sua habilidade
em tornar os homens velhos mais jovens. Uma criatura
absolutamente fêmea de carne dourada e intensa.
― Veja, general, que belo espécime!
O general limitou-se a olhá-la friamente. Depois voltou
a bolinar-me, com aquela autoridade que seu posto lhe dava,
mas com aquela falta de jeito que sua condição de nazista
imbecil lhe emprestava. Oetting permanecia lívido. Por fim,
Stupnaggel levantou-se e chamou o coronel a um canto. Eu
calculava o assunto dessa conversa pela cara de Oetting. Por
mais subserviente e viciado que se revelasse ― faço justiça
em reconhecer ― o coronel não gostava que eu fosse
dormir com seus chefes militares.
"Uma mulher, quando pertence a um homem, deve-lhe
fidelidade. Uma mulher não é uma árvore que dá sombra ao
primeiro viajante, ao segundo e ao terceiro,
indiferentemente. Não me incomodo que outros tenham

61
marchado antes por este caminho. Mas quando o percorro,
gosto de fazê-lo sozinho".
A conversa foi rápida. Voltaram os dois, em passo
marcial. Oetting sentou-se a meu lado, limpando as bagas
de suor que lhe desciam agora pela testa. Situação difícil.
Stupnaggel se afastara em direção ao corredor que dava
para os quartos.
― Giselle... ― principiou Oetting.
― Já sei: o general quer ficar comigo.
― Que posso fazer? Ele impôs. Falou categoricamente.
Olhei com desprezo aquela imundície de gente.
Perguntei:
― Ele sabe que lhe pertenço?
― Que você é minha companheira? Sabe.
― Por que, então?...
― A hierarquia militar. Desde que você é francesa, e
não é minha esposa, sou obrigado a concordar.
Eu estava intimamente satisfeita com a oportunidade de
travar relações com o general-comandante de Paris, mas
queria mortificar Oetting e não perdê-lo também.
― Neste caso ― falei ― sou obrigada a concordar.
Oetting engoliu uma praga quando notou que
Stupnaggel se aproximava. Ergueu sua taça de Sautémes e
disse:
― À vossa felicidade, meu general. E à plena
satisfação dos vossos desejos.
Apontou-me. Sorria um sorriso cadavérico. Disse, em
péssimo francês:
― La femme est à vous!

62
Para maior infelicidade de Oetting o general não ficou
nesta primeira "entrevista". A partir desse dia passou a
freqüentar-me toda semana. Aparecia sem aviso, e quando
surgia, "meu corond Oetting", com o rabo entre as pernas,
era obrigado a dar uma voltinha pelo quarteirão, deixando o
campo livre. Seu papel era tão ridículo que passou a ser
comentado pelos próprios oficiais de sua roda. Davam-lhe
apelidos tão deprimentes que não vale a pena repetir. Zingg,
o chefe do grupo dos "maquis", entretanto, mostrava-se
satisfeito com a marcha dos acontecimentos.
Era estranho pensar que aquele valoroso revolucionário
punha seu idealismo acima de qualquer sentimento de
ternura por mim. Primeiro, a causa da libertação da França.
Depois, o meu amor, a minha honra, o meu caráter. Teriam
que ser os idealistas homens assim tão frios? Ah!
Estávamos em guerra! E na guerra... Zingg enviou-me um
pedido. Eu deveria saber o programa do general Stupnaggel
para a próxima terça-feira. Como o nazista não tinha dia
marcado para vir, resolvi aparecer em seu gabinete, no
Ministério da Marinha. Quando o auto parou à frente do
edifício, na Place de la Concorde, não tive maiores
dificuldades em chegar à portaria, graças a um salvo-
conduto que Oetting me deu para ter livre-trânsito em
lugares considerados perigosos de Paris.
― Desejo falar ao general Stupnaggel! ― disse ao
sentinela. Se eu tivesse mostrado intenções de dirigir-me
pessoalmente a Hitler não teria causado maior espanto ao
soldado alemão que me atendeu.
― É impossível! ― respondeu, metalicamente.
― Faça chegar até ele meu cartão.
63
― Não tenho ordens ― foi ele dizendo, enquanto lia
no cartão: GISELLE MONTFORT.
― Leve-o então ao capitão Kuntz.
― Vou ver se posso.
Meia hora depois eu entrava no gabinete do capitão.
Era um dos meus comensais. Não foi difícil convencê-lo a
falar com o general Stupnaggel sobre minha visita. Apenas
o comandante de Paris se encontrava em conferência e não
me podia atender.
― Escreverei algumas palavras ― falei ― e o senhor
fará com que cheguem ao general.
― Com prazer, mademoiselle Giselle ― (e o capitão
Kuntz sorria com todos os dentes, de canto a canto. Ele
sabia que eu era a nova prenda do general. Seu melhor
conforto).
O bilhete era simples. Uma bela mulher não tem que
escrever muito para atingir seus objetivos. Dizia:
”Espero-o à noite. Giselle.”
***
Quando eu descia as escadas do edifício da Place da La
Concorde, um gendarme francês, auxiliar do policiamento,
sussurrou-me com ódio:
― Vaca nazista!
***
Fui acostumando-me. A princípio era difícil suportar os
olhares de ódio, a expressão de desprezo, de intenso
desprezo, que eu lia nos rostos dos meus compatriotas, na
rua. Depressa os franceses passaram a me considerar o
símbolo da corrupção e da desonra, a máxima expressão do
que os alemães chamavam "a decadência da França". Se a
64
maioria silenciava à minha passagem, algumas mulheres do
povo tinham, no entanto, aquela bela coragem de me
enfrentar com palavras. Eu representava a traição.
Tinha de agüentar os insultos da minha gente, que
desconhecia, totalmente, o sacrifício do meu posto de espiã.
Mas aos poucos, observando que nenhuma das que me
xingavam pelas ruas fora denunciada por mim, as vizinhas
se aquietaram. E eu comecei a me preocupar; era preciso
que os nazistas não desconfiassem de nada, e jamais me
sentissem simpatizada pelos meus concidadãos.
Passei, então, friamente, a conduzir-me com arrogância
no meio do povo. Como se eu também fosse uma
conquistadora. Os insultos voltaram a me cobrir de
opróbrio. E as pequenas que vinham à minha residência
encontrar, diariamente, a chusma de oficiais alemães ávidos
de prazer, eram muitas vezes até agredidas na rua por
populares mais corajosos. Duas protestaram, mas fiz-lhes
ver que deveriam calar-se, porque, do contrário, as pessoas
autoras dos insultos seriam presas, iriam para os campos de
trabalho forçado na Alemanha, as mulheres para o campo
de morte lenta, em Compiègne. As moças preferiram, desde
então, como eu, ouvir em silêncio as ofensas. Era o lado
mais difícil da nossa missão!

65
AS "MENINAS"

Quero deixar bem claro, nestas minhas memórias, para


a hipótese de que algum dia venham a tomar-se conhecidas,
o papel desempenhado por estas moças que freqüentavam
meu apartamento. Não eram todas heroínas como qualquer
falso literário tentaria fazer crer. Algumas se ofereciam aos
alemães em troca de alimentos. Outras obedeciam às ordens
do Movimento Clandestino, mas é forçoso admitir que,
enquanto trabalhavam, comiam do bom e do melhor, num
contraste flagrante com o resto da população que se
comprimia em racionamentos cruéis.
Uma ou outra procurava os nazistas por motivos
particulares. Lembro-me ― porque me causou profunda
impressão ― do caso de Delly, a esbelta marselhesa que
melhor sabia fingir camaradagem com os nazistas,
aparentando exagerado amor ao dinheiro e aos "tickets" de
racionamento. Ela se tornou minha amiga especial.
Pequenos favores, no meio da confusão. Uma ou outra
palavra de ternura, em ocasiões em que todos eram tão
amargos, nos aproximaram espiritualmente.
Certa madrugada, quando os alemães haviam saído, e
apenas Oetting dormia no quarto dos fundos, roncando
como sempre, eu e Delly ficamos aconchegadas no salão
principal, frente à lareira. O inverno era rigoroso e o coronel
obtivera uma quota especial de carvão, alegando o fato de
que passava suas noites de folga em minha casa. Abrigadas
do frio, olhávamos os carvões em brasa e pensávamos em
nossas vidas antes da maldita guerra. Foi então que Delly
contou-me sua história tão simples, tão igual às outras, tão
66
profundamente triste. Reproduzo-a, agora, em minhas
próprias palavras:

A HISTÓRIA DE DELLY

“Eu completara 17 anos e todos diziam que eu me


casaria depressa por ser muito bonita. Meu pai, o professor
Bonnard, abanava a cabeça e falava: “ Mania de casar!
Todo mundo com essa mania de casar! Pra que tanta
pressa? Um mundo está aí, novinho, para ser vivido pelos
solteiros, desembaraçados, prontos para qualquer
aventura...” Mas a verdade é que eu já tinha um namorado,
Flavien, aluno de pintura em Paris, membro de uma família
razoavelmente rica da cidade, e bonito como ele só.
Morávamos na Rua da Gare, em Reims, e o pessoal de
Flavien vivia num palacete defronte. Havia rosas, e
juramento, e estas doidas bobagens do amor bom, sem
preocupações. Veio a guerra. Flavien foi mobilizado e não
voltou mais.
A mãe dele, com o choque, nunca mais se levantou. Só
então meu pai soube que eu já amava alguém. Minha
tristeza, pela ausência de Flavien, era muito maior do que a
simples tristeza de amiga. Era grande e permanente. A
outra, bem pior, sucedeu quando a empregada veio subindo
as escadas, toda nervosa, e nos disse, à mesa do jantar, que
os alemães estavam lá embaixo. Vi que meu pai
empalidecia. Admirada, minha mãe quis saber a razão
dessa visita que lhe parecia estranha. Seus olhos buscavam
a resposta nos olhos do meu pai, que desviava o rosto,
constrangedoramente. Por fim, deu uma desculpa qualquer,
67
sugeriu que talvez não passasse tudo de simples visita de
rotina, e desceu as escadas. Ficamos lá no alto, ouvindo o
diálogo.
O alemão fez a pergunta:
― O senhor é Bonnard?
― Sim. Alguma coisa?
― Dez minutos para arrumar-se.
O oficial voltou-se para o soldado nazista e disse que
acompanhasse meu pai até o andar superior. Insistiu na
ordem de não abandoná-lo nem que fosse ao banheiro. Meu
pai subiu, arrumou uma pequena mala, vestiu o casaco e se
deteve um minuto para olhar minha mãe. Acariciou-me os
cabelos e finalmente desceu, sem uma palavra. As lágrimas
só nos vieram aos olhos alguns minutos depois, tão rude e
inesperado fora o golpe.
Meia hora antes jantávamos, tranqüilos, numa reunião
de família que há tantos anos eu me acostumara a ver
inalterável. Agora, o meu pai saía para o desconhecido.
Durante noventa dias não tivemos uma só notícia dele. Se
estava vivo, se fora torturado, se pudera manter sua já
precária saúde de velho.Certa noite a criada nos alarmou,
outra vez, com os gritos de "alemão lá embaixo! alemão lá
embaixo!”.
Eu mesma fui abrir a porta. Um sargento nazista
perguntou, em tom seco, se a casa era da família Bonnard.
No mesmo tom respondi que sim. Ele tirou do bolso uma
carta e depois de colocá-la em minhas mãos ― pois eu
estava tão espantada que nem esboçara um movimento ―
partiu. A carta, rabiscada a lápis, do próprio punho do meu

68
velho, dizia que estava bom, mas precisava de roupas de
inverno e certos alimentos.
Durante meses enviamos o que era possível obter.
Dormíamos noites de inverno rigoroso quase sem
cobertores para que nada faltasse ao velho. Por uma
segunda carta, com muita habilidade na escrita, ele nos fez
ver que muito pouca coisa lhe chegava às mãos. O resto
deveria estar sendo desviado para os soldados de Hitler, no
'front' russo.
Minha mãe caminhava quilômetros a pé, em
Compiègne, para entregar um embrulho de comida e roupa
que quase sempre meu pai não recebia. Para ficar mais
perto dele tínhamos mudado nossa residência para
Compiégne, onde cinco esposas de presos organizaram
uma espécie de república, alugando uma casa. Um dia,
quando eu voltava das imediações da prisão, um carro
oficial alemão se deteve perto de mim. O graduado nazista
viajava no assento traseiro e me chamou:
― Fraulein! ― Imobilizei-me.
Os alemães nunca nos chamavam para boas coisas.
Preparei-me para uma desgraça. Ele me convidou a fazer o
resto do percurso no seu automóvel. Agradeci com a
cabeça e pus-me a andar. Ele deu ordem ao chofer para
acompanhar-me vagarosamente, e, num francês ruim, quis
saber se eu tinha alguém preso em Compiégne.
― Tenho meu pai! ― expliquei-lhe, num ímpeto.
― É assim que a senhorita se interessa pela sorte
dele? ― falou o nazista, com voz suave.
― O bem-estar de seu pai não significa alguma coisa
para a família?
69
― É evidente que sim! ― disse eu, com uma esperança
na alma.
Fez um ar irônico que me deixou ainda mais
intranqüila.
E insistiu: ― Pois viaje comigo.”

O PREÇO

“Foi assim que travei conhecimento com Hans Gluck,


o oficial alemão responsável pela guarda do campo de
prisioneiros de Compiègne. É claro que ele me falou da
possibilidade de melhorar as condições de meu pai,
transferindo-o até para a enfermaria, se eu me tornasse
mais condescendente. O que quereria dizer "tornar-me
condescendente"?
Muito depressa cheguei a saber. Ele me convidou para
visitá-lo em sua casa, um bangalô roubado a uma distinta
família francesa. Prometi comparecer. Amarga foi a
decisão que tomei, àquela noite, sem que minha mãe
soubesse. Mesmo que o oficial alemão fosse dos mais rudes
― eu raciocinava ― alguma coisa de positivo teria de
fazer pelo meu pai, caso contrário eu não voltaria à sua
presença, pelo menos com meus próprios pés. Apanhei um
pequeno xale e disse à velha minha mãe:
"Fique tranqüila, querida! Vou sair um pouco, só até a
casa de Hermine, em busca de alguns gramas de manteiga.
Está fazendo frio e é possível, mamãe, que eu durma lá".
Eu estava decidida a pagar um alto preço pela vida do
meu pai.”

70
6

A neve caía sobre a vidraça, enquanto eu escutava o


impressionante relato de Delly, que tremia ao recordar
aquelas cenas do seu recente passado. Lá fora, Paris
ocupada era um vulto negro, com seus "boulevards"
apagados e sua alegria ferida. Atiçamos o fogo na lareira, e
a jovem marselhesa prosseguiu:
“Eu estava mesmo disposta a pagar qualquer preço
pela vida do meu pai. Saí, dentro da noite gelada, deixando
minha pobre mãe em casa, e fui bater à porta do oficial
Hans Gluck. A voz soou, soturna: ― Quem é?
Tive vontade de fugir. Mas falei firme: ― Sou eu. A
moça de ontem. A que o senhor encontrou na Rua Satin.
― Entre!
Subi a escada. Ele abrira a porta com um cordão. Lá
estava seu corpo descomunal, no alto, cobrindo quase toda
a luz. Continuei subindo. Não se arredou do caminho. Tive
de esbarrar a meio palmo do seu nariz. Aí aconteceu o
inesperado: ele voltou-me as costas e foi para seu quarto.
Lá deitou-se, com as mãos atrás da nuca. Estava bem
vestido, de robe de chambre de "foulard". Falou: ― Não se
dispa!
Fiquei espantada. Eu não fizera um gesto nesse
sentido.
― Prefiro despir as minhas vítimas! ― explicou, no
meio de uma gargalhada estranha.
Falou com serenidade:

71
― Vocês nunca poderiam acreditar no mistério, na
delícia que há em retirar, de uma bela mulher, as peças do
seu vestuário, lentissimamente, com a doçura dos sonhos.
Tossiu um pouco, e acrescentou:
― Mesmo que não seja de mulher, desde que o corpo
tenha formas perfeitas.
Parece que eu estava, naquilo tudo, de olhos abertos,
paralisada de medo, porque ele ensaiou um sorriso meigo
ao dizer:
― Não receie. Sou um tarado mas não devoro minhas
vítimas.
Fez uma pausa antes de observar:
― Você deve ter uns seios impressionantemente duros
e quentes. Gosto das minhas vítimas francesas. Procuro
amá-las devagar, mansamente. O amor é uma coisa lenta.
A carne é a maior invenção de Deus. Nada de pressa. A
carne pede tempo.
Veio vindo em minha direção. Eu sentia duzentos
quilos de chumbo me prenderem os pés. Com um gesto leve,
afastou a blusa e descobriu-me os seios. Jamais me
perdoarei. Naquele instante, com toda a força do meu
espírito, detestava o nazista. Mas meu corpo estava
realmente excitado.”

QUANDO O HOMEM CANSA

“Esta não foi a pior das minhas experiências, porque


naqueles tempos o pior sempre vinha no dia seguinte. Gluck
amava as virgens. Ele se interessava por uma jovem até
onde seus encontros tinham um sabor de sangue. Enquanto
72
durava meu período de iniciação ia conseguindo dele
certas vantagens para meu pai. Houve de fato certa
condescendência em relação ao velho. Transferiram-no
para a enfermaria. Deram-lhe um regime mais suave. Mas
o oficial logo se cansou de mim. Depressa se enfastiava de
qualquer mulher com quem dormia cinco ou seis vezes.
Procurava-as, naturalmente, entre as filhas e irmãs dos
presos. Usava de argumentos terríveis. Ameaçava-as, e às
suas famílias, de deportação, caso resistissem.
Quantas e quantas moças se entregaram ao bruto
"para serem despidas mansamente, amadas suavemente",
como ele costumava repetir ― a fim de que seus pais e seus
irmãos ficassem em terra francesa até o dia da libertação.
A hora era negra e sombria, mas todos conservavam a
esperança de que os alemães, um dia, seriam expulsos. A
última vez que saí do bangalô de Gluck, marcada por seus
dentes ― e ele não tinha sido tão suave quanto prometera
― levava na memória, bem nítidas, as palavras do tarado:
― Não é preciso voltar. Principalmente não me
aborreça mais com a situação do seu pai. Já fiz por ele o
máximo e não estou disposto a complicar-me apenas para
servi-la.”

A IDÉIA TERRÍVEL

“Via bem o perigo que o velho corria. A deportação. O


campo de trabalho na Alemanha. Todos os homens
prisioneiros iriam para o leste, onde o braço escravo
construía fortificações e armamentos. Tinha certeza de que,

73
após isto, nunca mais voltaríamos a ver papai. Foi então
que uma idéia assombrosa me surgiu: A da chantagem.
Gluck era medroso dos seus superiores. Tornaria a sua
presença e lhe diria, calmamente, que se ele retirasse sua
proteção eu faria cair nas mãos do general-comandante a
denúncia de tudo que fizera: as transigências na prisão de
Compiègne. Tudo para possuir-me, sem qualquer vantagem
para o Exército Alemão. Uma jogada perigosa que talvez
resultasse em maior desgraça para mim, e para meu pai.
No entanto, era a última de que poderia lançar mão. Fiz
meia-volta e, após cinco minutos, abria, com a própria
chave que ele me dera, a porta do bangalô. Estava tudo
escuro. Subi a escada e vi que a porta do quarto jazia
semicerrada.
― Gluck!
Ninguém respondeu.
― Hans Gluck!
O mesmo silêncio. Empurrei a porta. Sobre o leito, o
oficial estava deitado, com a cara enfiada no travesseiro.
Nas costas, à altura do coração, um punhal cravado, até o
cabo. Ao lado da cama, de pé, encostada à parede, imóvel e
branca como a própria estátua do terror, uma menina de
quinze anos, absolutamente nua.”

A VIRGEM ASSASSINA

― Você fez isto? ― perguntei.


Ela assentiu, com a cabeça, molemente.
― Por quê?

74
Um pranto convulsivo dominou-a por completo. Fiquei
com medo de que a ouvissem, de fora, e procurei acalmá-la.
Recompôs-se.
― Por que fez isso? Por que matou o homem? ―
insisti.
― Ele me perseguiu durante meses... ― foi ela
dizendo, em soluços.
― Prometia sempre vantagens para meu noivo, Albert,
que está preso. Eu adoro Albert! Ele ia ser deportado.
― E depois?
― O comandante Gluck jurou-me que ajudada a
salvar Albert da deportação se eu concordasse em vir aqui
dormir com ele. Aceitei, embora fosse cruel. Fazia-o pelo
amor ao meu Albert...
O pranto da menina era sufocante. Aos poucos foi
falando:
― Ontem, soubemos que há dois meses Albert estava
na Alemanha, servindo no leste, em um campo de
concentração. E esse miserável a me enganar, dando
notícias de Albert, dizendo-o aqui em Compiègne. Por isso
matei-o. Friamente, como se mata a um cão. Ele nem
chegou a desconfiar do meu propósito. Eu estava
carinhosa. Despiu-me, sem pressa. Era assim que ele fazia.
Confirmei: ― Sim. Tinha esse hábito.
― Quando acabou, procurou abraçar-me. Tirei o
punhal que escondera sob o travesseiro e cravei-o em suas
costas. Com toda a força. Ele ainda me apertou, num último
gesto. Mas perdeu logo as forças. Afastei-me. ― Apontou o
cadáver. ― Agora está aí. Não diz mais nada. Não faz

75
coisa alguma. Está parado. Terminou. E eu? Que farei
agora?
― Você vai sair daqui o mais depressa possível! ―
observei, numa súbita compreensão de que estávamos
ambas correndo um perigo extremo.
― Alguém a viu entrar?
― Acho que não.
― Reze por isso. E vista-se, depressa.
Ela deu mostras de retornar à realidade. Pôs urgência
em vestir-se, e até, procurando as roupas, pisou várias
vezes o cadáver de Hans Gluck, o que me constrangeu.
Depois pensei comigo mesma: "É apenas o cadáver de um
tarado nazista!" E dei-me pressa em fugir com a menina.
Naquela noite ela dormiu em minha casa. Estava ainda
traumatizada e me fazia perguntas assim:
― Você acha que só pelo fato de esse homem imundo
ter posto a mão no meu corpo, eu não mereço o Albert, se
um dia ele voltar?
Confortei-a, da melhor maneira possível. Eu também
me fizera aquelas mesmas perguntas, com o pensamento
voltado para meu querido Flavien. Mas ela insistia:
― Tenho a impressão de que as mãos dele me
deixaram verdadeiras marcas de ferro em brasa no corpo.
Eu sustentava o argumento de que ela agira nobremente,
fizera o mais sublime dos sacrifícios.
Finalmente aconselhei:
― Agora é ir a um médico francês para verificar se o
tal Gluck não lhe deixou alguma lembrança desagradável.
― Lembrança?
― Ou herança, como quiser. Um filho.
76
Ela abanou a cabeça.
― Isto não seria possível. Ele nunca me possuiu!
***
Com a jovem que assassinara o oficial alemão em
nossa casa, vivíamos em eterno sobressalto. Os nazistas
eram terríveis nos atos de represália e, nestes casos, faziam
quase sempre uma expedição punitiva. Isto porque não lhes
era possível descobrir a origem dos atentados contra seus
homens. Restavam-lhes os meios mais bárbaros, como o de
fuzilar reféns e perseguir famílias inocentes.
À saída dos cinemas ou nas filas de racionamento
eram escolhidos os números 10, ou 20, ou 50 e levados
sumariamente para o paredão de fuzilamento. Por isso
ficamos esperando o pior. Dia e noite sem sair. Minha mãe,
posta ao corrente de tudo o que ocorrera, ajudara a
consolar a pobre moça, embora não se conformasse, ela
própria, de que eu também houvesse posto em jogo a minha
honra.
A menina chorava, e insistia neste ponto:
― Não tenho o direito de envolvê-las nas minhas
complicações. Deixem-me ir embora.
Mas, embora soubéssemos que a presença da jovem
assassina em nossa casa constituía um perigo virtual de
fuzilamento, continuávamos a protegê-la, à espera de um
milagre. O milagre veio na pessoa de um desconhecido.
Bateu-nos, altas horas da noite, na janela. A casa era baixa
e no alinhamento da rua. Geladas de frio e medo,
acordamos.
Minha mãe, com voz rouca, perguntou: ― Quem é?
― Um francês que está com fome ― foi a resposta.
77
Ouvi os passos de minha mãe na sala e o ruído da
porta se abrindo. O homem entrou e minha mãe me
chamou: ― Delly! Venha me ajudar.
E acrescentou:
― Ele está ferido. Foi apenas o tempo necessário para
vestir um robe e precipitar-me na sala. O francês estava
sentado, com as mãos sobre a mesa e a cabeça apoiada.
Pálido, quase da palidez cadavérica, via-se que perdera
sangue em quantidade. Vestia uma capa impermeável e por
isso não pudemos, de imediato, ver o ferimento. Minha mãe
ajudava-o, já, a erguer-se.
― Venha comigo, Delly. Precisamos levá-lo ao quarto.
Eu e a outra moça, secundadas por minha mãe,
conseguimos arrastar o ferido até a cama maior da casa. O
corpo tombou, enquanto eu tirava a capa que o envolvia.
Não pude conter um grito.
― Veja, minha mãe! Sobre a blusa azul do estranho
uma enorme mancha de sangue revelava a gravidade do
ferimento.
― Deve ter atingido o pulmão ― e minha mãe,
enquanto falava, ia despindo o busto do desconhecido.
― Não podemos fazer muita coisa sem auxílio de um
médico.
― Acha que podemos arriscar?
Minha mãe voltou seus olhos para mim. Havia uma
chama diferente, um brilho estranho, quando respondeu:
― Vamos tentar salva-lo! Achei que deveria fazer uma
ponderação, àquela altura.
― Mas, minha mãe ― comentei ― acontece que
temos já conosco a assassina de um oficial alemão. Com
78
mais este desconhecido, certamente fugitivo de um campo
de prisioneiros, não teremos meios de nos manter por muito
tempo. Além do que é praticamente impossível ocultá-los.
Minha mãe era uma velha francesa de fibra, e
retorquiu:
― Antes de tudo, aqui não está uma assassina, mas
somente a executora da vontade divina! E este homem
ferido é um francês, lutando pela França.
― Os alemães não pensam assim ― observei ― e se
formos apanhados juntos, aqui nesta casa, teremos
encerrado nossa passagem por este mundo.
― Nossa passagem por este mundo só vale se
conseguirmos deixar nele, com um belo gesto, a nossa
marca. Do contrário terá sido inútil. No momento minha
maior preocupação é o que possa acontecer ao seu pai,
meu bom marido, naquele lugar horrível. Mas vamos
chamar o médico, quanto antes, para cuidar deste ferido!
― concluiu minha mãe, com uma força de espírito
extraordinário.
Convenci-me dos argumentos da mamãe. Minha
mocidade, minha vontade de viver, haviam posto em mim,
nos minutos anteriores, um princípio de egoísmo. Mas
resolvi afinal dedicar-me aos meus infelizes companheiros.
E lembrei o nome do doutor Cerdan, um verdadeiro
francês.
― Está muito vigiado nesta hora. Mas só pode ser ele
mesmo ― assentiu minha mãe.
O desconhecido soltou um gemido. Bagas de suor
molhavam o travesseiro, e o pobre se contorcia em dores.

79
― O ferimento é gravíssimo! ― disse a menina, que o
estudava.
― Não passará desta noite se alguma coisa não for
feita.
― Só temo a gangrena! ― falou o desconhecido,
entredentes.
― Qualquer pessoa encontrada a esta hora na rua
será presa. As patrulhas alemãs devem estar rondando a
cidade, depois da morte do oficial ― comentou minha mãe.
― Mas é preciso arriscar. Do contrário, o homem não
escapa. Vocês duas ficarão ao lado dele. Eu vou à casa do
doutor Cerdan.
― A senhora? Não! ― disse eu.
― E por quê? Sou velha e não desperto suspeitas.
Prefiro que você fique, minha filha.
Como se não me ouvisse, minha mãe vestiu o casaco,
enrolou o xale no pescoço e saiu.
A menina ficou do meu lado, fazendo-me companhia.
Era um trágico espetáculo aquele. Duas moças sentadas ao
pé de um leito onde um homem agonizava. Sangue pingava
no assoalho.

A MENINA CONTA SUA HISTÓRIA

“Para fazer o tempo passar, resolvi dirigir perguntas à


menina que assassinara Hans Gluck:
― Você disse que ele não a possuiu?
― Não. Ele não me teve realmente. Mal me tocou.
― É estranho. Os alemães não costumam ser tão
condescendentes. Principalmente aquele tipo.
80
Da mesma forma que contasse uma história simples,
dos dias calmos de antes da guerra, a moça me contou sua
espantosa tragédia:
― Era outra a intenção dele. Estava apenas dando
tempo ao tempo. Costumava dizer que me preparava para
os esponsais. ― um brilho de pavor crescia nos olhos da
adolescente quando recordava aquele episódio. ― As
noites e os dias se passavam e eu sempre esperando que ele
cumprisse a promessa de fazer algo por Albert, meu noivo.
Não me importava, àquela altura, o que ele fizesse ao meu
corpo. Decidira considerar válida apenas minha alma, que
de tudo sairia limpa. Suas mãos sujas de tarado não a
poderiam tocar. Ele gostava de segurar minhas mãos e
beijar-me os dedos. Dizia que lembrava lírios e não sei que
mais. Sugava-os, a principio, mansamente. Depois, num
crescendo, ia até a fúria, e, então, mordia-os como um
louco. O paroxismo durava pouco. Vestido como estava,
deixava a cabeça tombar sobre o travesseiro e dormia até o
amanhecer. Nunca vi coisa igual.
― Tara!
― Eu sei que era um tarado. A cena se repetia todas
as noites. Veja como tenho os dedos.
Mostrou as mãos. Todas marcadas. A direita, então,
parecia esmagada, e deixava ver os sinais dos dentes.
― Você pagou um preço muito alto ― disse-lhe eu. ―
Comigo, tudo foi diferente.
Ela abaixou a cabeça, com tristeza e disse apenas:
― Que podia eu fazer? Pedir-lhe que me possuísse em
vez de morder-me?

81
― Compreendo a situação. Já passei por isso. Não
existe um...

O HOMEM FERIDO SE REVELA

Nisto, o ferido gritou. Não poderíamos continuar nossa


conversa diante do seu sofrimento. Já agora delirava.
Repetia frases sem nexo. Mas insistia em um nome.
― E agora vem a grande revelação! ― diz Delly. ―
Era o teu nome que ele pronunciava, Giselle. Falava assim:
“Giselle... Giselle... sou eu... sou Zingg... Não me conhece
mais, meu amor? Sou Paulo Zingg... Ah, Giselle, deixar que
aqueles porcos sujem seu corpo... Pensar que aquelas
bocas imundas beijam a minha Giselle... Ah!”
― Naquele tempo ― continua Delly explicando ―
jamais me passaria pela cabeça quem seria Giselle, esta
que agora, aqui na casa do coronel Oetting, diante da
lareira, ouve minha narrativa.
Giselle, mais curiosa, pediu: ― Continue, continue,
Delly! Não pare de contar!
Delly prossegue, voltando à cena daquela noite
angustiada, na sua casa, em Compiègne.
― Como disse, o ferido delirava, falando teu nome.
Num esforço desesperado, ergueu metade do corpo, mas
tombou sem forças. Quando ajeitávamos o travesseiro sob
sua cabeça, bateram violentamente na porta. Não poderia
ser minha mãe. Ela batia um sinal combinado, a espaços
longos. O ruído era agressivo.
― Quem é? ― perguntei com voz firme.
Responderam lá de fora: ― Gestapo!
82
83
7

Neste exato momento, Delly interrompeu sua narrativa.


E foi quando nos levantamos, de nossa confortável posição
em frente à lareira, porque o telefone tocou. Um chamado
urgente do quartel-general para o "meu" coronel Oetting
que roncava. Fomos acordá-lo, com toda a urgência
possível. Ele quase perfilou-se diante do aparelho, falando
com seu superior. Logo depois vestiu-se e tomou o caminho
da rua. Novamente ficamos, Delly e eu, na tranqüilidade da
sala bem aquecida. Ouvimos o automóvel oficial de Oetting
roncar pela rua afora, como se nos abandonasse. Agora
desfrutaríamos de alguns longos momentos de liberdade.
Servimo-nos de duas boas doses de velho conhaque,
aconchegamo-nos outra vez nas grandes poltronas e
contemplamos o brilho das chamas da lareira em nossos
próprios rostos agora serenos. Delly recomeçou sua história:
As pancadas da Gestapo na porta de casa quase me
fizeram o coração saltar pela boca. A pobre menina
fugitiva tremia do meu lado. Na cama, os olhos muito
abertos, o desconhecido que agora eu sabia ser Paulo
Zingg, demonstrava toda a sua angústia de ser
surpreendido naquele estado desesperado. Os homens da
polícia secreta alemã batiam com mais força. Resolvi
ganhar tempo. Foi o que me ocorreu.
― Um momento. Estamo-nos vestindo! ― gritei.
A verdade é que naquele instante eu sonhava com um
milagre, algo de sobrenatural que acontecesse depressa.
Minha mãe chegou no minuto seguinte, e aí revelou-se de
84
um sangue-frio excepcional. Ouvi-lhe a voz, na discussão
com os nazistas. Revelava-se rabugenta. Exagerava sua
condição de velha intransigente:
― Que querem os senhores na casa de uma anciã, a
estas horas da noite?!
Vi que procurava também ganhar tempo. Chamei a
menina, fiz com que me ajudasse a embrulhar Zingg em
toalhas e velhos jornais. Transformei-o, em poucos
instantes, numa verdadeira múmia. Meu objetivo era
esconder seu ferimento. Única providência cabível, naquele
minuto, sem qualquer esperança. Pouco depois minha mãe
abriu a porta e deixou que os nazistas entrassem. Vinha
discutindo, embaraçando-lhe os movimentos.
― Afinal, o que querem? ― perguntou.
― Queremos revistar-lhe a casa ― disse um deles,
enérgico. ― Fugiu um preso que pode bem estar escondido
aqui.
Com a voz mais tranqüila deste mundo minha mãe
concordou:
― Bem,... os senhores mandam mesmo. Vasculhem a
casa, como quiserem.
― Somente há mulheres aqui? ― perguntou o mais
rude.
A velha não tirou os olhos dele nem se perturbou
quando disse:
― Temos um homem também.
O ESTRATAGEMA

Fiquei gelada. Que pretenderia minha mãe? Então,


sem mais nem menos, entregava o prisioneiro fugitivo, um
85
francês como nós, aos carrascos alemães? E depois de
todas as invocações de patriotismo feitas uma hora antes?
Pretenderia, com aquilo, salvar nossas vidas?
― Onde está o homem? ― quis saber o agente que
parecia ser mesmo o chefe.
― Queremos vê-lo.
― No quarto dos fundos.
― Vamos lá.
À porta do aposento, enquanto a abria, minha mãe
observou:
― Os senhores não fazem questão de entrar?
― Questão? Por quê?
Minha mãe fez um gesto displicente.
― Por quê?... A doença.
O agente empalideceu e parou à entrada.
― Doença?
― Ele está mal.
Na cama, verde de pavor, ou do sangue que perdera,
Zingg parecia também já resignado. Talvez fora de si.
Tinha os olhos fundos e uma barba cerrada cobria metade
do seu rosto, dificultando a identificação.
― Vamos entrar logo ― disse o segundo agente.
Mas uma força estranha o deteve e fez com que ele
arriscasse a pergunta:
― Qual é a doença?
― Lepra?!

A LISTA

86
Depois de substancial silêncio os homens da Gestapo
resolveram entrar assim mesmo. Não tocaram em um móvel
sequer. Com os olhos pregados em Zingg, deitado na cama,
exigiram o cartão de identidade. Aí julguei tudo perdido,
mas outra vez a presença de espírito de minha mãe salvou a
situação.
― Não tem documentos. ― explicou ela. ― Vinha
rolando pela cidade e acabou em nossa porta. Ficamos
apiedados e não sabíamos qual a enfermidade. Depois de
estar aqui há alguns dias, descobrimos. ― Suspirou, numa
aflição que parecia verdadeira. ― Agora talvez os senhores
nos livrem dele.
― Por que não telefonaram à Saúde Pública?
― Estamos cansados de fazê-lo. É a guerra. Não
tomam qualquer providência. Os senhores sabem como é...
― Esses franceses... ― comentou um dos agentes. ―
Gente desorganizada.
Voltou-se o chefe do grupo para minha mãe:
― Providenciarei a remoção. As senhoras terão de ir
também para um hospital, a fim de serem examinadas. Há
sempre o perigo do contágio.
― Nós? Por quê?
― Ficaram muito tempo em companhia de um leproso.
― Não tocamos nele.
― Mesmo assim. É uma medida de proteção.
Quando iam saindo e quase respirávamos felizes, pois
teríamos algumas horas para fazer o prisioneiro, que era
Zingg, desaparecer, outro golpe por pouco não fez
desmoronar minha resistência.
Foi quando o chefe pediu:
87
― Tragam a lista dos moradores desta casa.
― A lista?
― Sim. Imediatamente! Ou vocês não sabem que o
Exército de Ocupação alemão pune com deportação
aqueles que não conservam listas de residentes em suas
casas.
Minha mãe foi ao quarto e voltou com o cartão.
Depois de lê-lo o chefe observou: ― Aqui fala em duas
pessoas. A senhora é a mãe. Qual das duas é Delly, sua
filha?
― Sou eu! ― adiantei.
― E essa moça?
― Uma amiga que nos visita.
― A estas horas? Tem documento de identidade?
A pobre moça tremia quando respondeu que não.
― Neste caso, virá conosco ― informou o chefe.

88
OS CORPOS QUE SALVAM

Compreendi, então, que estávamos jogando a última


cartada. Alguma coisa precisava ser feita, e pela expressão
desanimada da minha mãe percebi que dela nada mais era
possível esperar. Agi, sem muita noção do que estava
realizando, talvez por simples instinto de sobrevivência.
Falei, num tom desconhecido para minha própria mãe:
― Podem levá-la, se quiserem. De uma coisa fiquem
certos: nós gostamos dos alemães. E somos mulheres sem
homem!
Os agentes se entreolharam. Percebi um brilho
diferente em seus olhos:
― Ah... gostam dos alemães?
― Principalmente dos mais limpos ― acrescentei.
― Então por que não saem agora conosco desta casa
onde há um leproso infecto? Vamos cear em algum bar
limpo.
O chefe do grupo consultou os outros dois, em surdina,
e depois fez sinal para que os acompanhássemos. Vestimos
nossos velhos casacos e partimos, fingindo agora alegria.
Dei um último olhar a minha mãe, que não disfarçava sua
tristeza e sua vergonha. Longo e triste é o caminho das que
são obrigadas a transigir no seu pudor, por uma causa ou
por uma idéia mais nobre.
Delly fez uma pausa. Agora as brasas da lareira
estavam quase apagadas. E Paris dormia aos nossos pés,
dentro da noite gelada. Sabíamos que, àquela mesma hora,
em dezenas de quartos fechados, jovens rebeldes francesas,
ou simples aventureiras, davam seus corpos a oficiais da
89
invicta Wehrmacht, em busca de pequenas informações que
serviam a planos enormes. Daí minha convicção, hoje em
dia, de que o exército alemão não haveria de perder sua
guerra nos campos da Rússia. Ele já a perdera em nossas
camas desforradas.
***
As revelações de Delly não constituíam para mim uma
grande surpresa. Eu pressentira já que sob aquela máscara
de leviandade pulsava um coração de heroína. Só a
espantosa coincidência de Zingg em sua casa, naquela noite
angustiosa, me deixara inquieta. Não quis apressar a
narrativa. Tive medo de precipitar o fim da história. Deixei
que falasse mansamente, como era do seu hábito. Ela
prosseguiu:
Os oficiais alemães saíram conosco e somente quando
o dia já ia alto pudemos regressar a casa. Tínhamos dado
tempo a minha mãe para arranjar uma solução que livrasse
Zingg da morte certa. Não erramos em confiar no excelente
raciocínio da velhinha. Mal nos aproximamos do prédio
sentirmos que algo de extraordinário se passava. Da porta
da rua entreaberta, vimos, em plena sala, o velório.
Diversas mulheres e homens guardavam o esquife de
alguém. O sangue gelou-me nas veias, mas uma das
primeiras pessoas a levantar-se à minha entrada foi
exatamente minha mãe. Não era ela, felizmente, a morta.
― Quem foi? ― perguntei, com a voz embargada.
― O rapaz.
― Não resistiu, mamãe?
***

90
Aqui Delly interrompeu novamente sua história e
observou:
― É preciso que eu faça um retrospecto de tudo o que
aconteceu durante nossa ausência de casa, para que você
entenda, Giselle. Minha mãe só pôde me contar isto muito
depois:
Momento após nossa saída com os agentes da
Gestapo, o doutor Cerdan, chamado pela minha mãe, deu
entrada em casa. Zingg piorava, assustadoramente. A um
simples exame, o médico verificou que a remoção do
"maquis" teria de ser imediata, para um local onde fosse
possível tratamento hospitalar adequado. Dois problemas
se apresentavam, quase insolúveis: a condução de um
ferido, em plena noite, numa cidade mantida sob rigorosa
vigilância, e a justificativa do desaparecimento do doente,
no dia seguinte, quando os perdigueiros nazistas
retornassem em busca do suposto leproso.
O doutor Cerdan encostou seu velho carro Packard na
parte dos fundos da casa. Com a ajuda de um enfermeiro,
seu acompanhante, logrou transportar Zingg até a mala do
automóvel, colocado propositadamente de costas, contra a
porta de saída, onde não havia qualquer iluminação. Havia
perigo de que o bravo "maquis" sucumbisse no transporte,
tal seu estado de fraqueza, mas entre a morte certa e a
morte provável só se apresentava uma alternativa: a
tentativa de remoção. Que afinal se fez, Zingg foi recolhido
à enfermaria de um convento onde o próprio doutor Cerdan
conseguiu operá-lo com êxito.
***

91
Neste ponto da história Giselle não se conteve e
perguntou:
― Mas o meu querido Zingg esteve a ponto de morrer
assim?
― Escapou, nesse milagre que agora lhe descrevo. E só
uma constituição de super-homem faria com que se
restabelecesse tão depressa quanto se restabeleceu. Mas
ouça o resto da história.
― Sim... Conte como foi que sua mãe justificou a
ausência do "leproso" no dia seguinte.
― Aí é que está... ― fez Delly. ― Era preciso arranjar
um morto para substituir Zingg lá em casa!
― Um morto?
― Sim! Um cadáver! E um cadáver de homem jovem,
parecido com o do suposto leproso que os agentes da
Gestapo haviam encontrado na noite anterior, no quarto dos
fundos da nossa casa.
― E como foi feita esta "operação"?
― Não sem certa dificuldade . No convento-hospital da
Resistência, onde o doutor Cerdan operava Zingg, havia
dois franceses rebeldes mortos. Mas as caras não conferiam
com a do nosso "maquis". Foi preciso escolher o mais
jovem e desfigurar-lhe o rosto com ácidos. O cadáver fez,
na mala do carro, o trajeto inverso que havia feito Zingg.
Documentos falsos de identidade foram arranjados pelo
grupo dos "burocratas livres". Restou apenas um atestado de
óbito, passado pelo próprio doutor Cerdan, declarando que a
morte ocorrera por moléstia infecto-contagiosa e que o
enterro deveria ser realizado o mais breve possível. Quando
os alemães chegaram, de manhã, encontraram o corpo já no
92
velório. Não houve a mais leve suspeita. Autorizaram o
enterro e até exigiram que o fizéssemos depressa. Mas você
imagina o meu susto, ao chegar em casa, com os agentes da
Gestapo, já dia claro, e encontrar um esquife na sala? Se
não era o da minha mãe, tinha que ser o de Zingg. Mas o
cadáver de um bravo guerrilheiro francês, desfigurado por
vitríolo, substituíra o chefe dos "maquis". Até depois de
morto o herói anônimo prestou um serviço à causa dos seus
companheiros.
― E Zingg? ― perguntou Giselle. ― Que continuou
fazendo, depois de todas estas peripécias?
Delly foi entusiástica na resposta:
― Seu Zingg é mesmo formidável. Ainda doente, no
leito do convento-hospital, recebia os companheiros,
traçava planos de sabotagem, estruturava operações de
salvamento dos outros companheiros detidos.
― E você, Delly, já tomava parte em tudo isto, assim
efetivamente? Era um membro da Resistência naquela
época?
Delly foi comedida:
― Sim, de certa maneira, mas por interesse muito
pessoal. Queria, como quero até hoje, salvar meu pai. Eu
poderia dizer que lutava pela França quando permitia que os
boches me possuíssem. Mas não seria verdade. Só penso no
meu pai. Há poucos meses, um alto oficial do campo de
prisioneiros prometeu-me a liberdade do velho por 60 mil
francos. Não tinha tanto dinheiro. Para obtê-lo depressa,
segui este caminho. Vim rolando e acabei aqui na sua casa,
Giselle. Aqui há ouro de sobra.

93
― E sua companheira? Foi presa? ― quis saber
Giselle.
― Por incrível que pareça, nunca chegaram a descobrir
que fora ela a assassina de Gluck ― disse Delly.
E subitamente, com ar mais triste:
― Mas vários inocentes morreram por causa daquele
assassinato. A menina, depois, pôde alistar-se no
movimento clandestino e teve uma tarefa mais suave que a
nossa: acompanhar fugitivos até a fronteira. Por falar em
fugitivos, você recebeu notícias de Zingg, recentemente?
― Um bilhete, faz poucos dias. Imagine: quer que eu
arranje de qualquer maneira um carro oficial alemão. Só
isso. Um carro oficial alemão. Como se fosse um isqueiro
de cobre, ou um maço de cigarros.

VOLTA AO PRESENTE

A campainha da porta soou. Era o fim do nosso


momento de sossego. Deu entrada na sala, mal-humorado, o
coronel Oetting.
― Péssimas notícias ― disse. ― Vou ser transferido
para a Rússia.
Exultei-me, interiormente. Mas a alegria não durou o
tempo de um sorriso.
― Não fique satisfeita antes do tempo. Você irá
comigo. – concluiu Oetting.
― Para a Rússia? Está maluco?
― Para a Rússia ou para o inferno!
― Não me pode obrigar.

94
― Esquece-se de que quem conseguiu sua liberdade
pode revogá-la.
― E o general Stupnaggel?
― Confia demais no interesse do general Stupnaggel.
― Falarei com ele.
― Tempo perdido. Virá a Paris uma grande
personalidade alemã e ele não pensa noutra coisa.

AÇÃO RÁPIDA

Não fiquei de braços cruzados. Mandei um recado


urgente a Stupnaggel que se apressou em visitar-me, na
noite do dia seguinte. Perfumara-se e adotava uns ares de
mancebo. Mal fechou a porta atrás de si quis agarrar-me os
seios.
― Descanse, general.
― Como posso, Giselle? Você me enlouquece!
― Aceita um chá?
― Aceito alisar sua pele.
E procurava fazê-lo, com as pontas dos dedos, para
eletrizar-se.
― É pura seda, Giselle. Tal qual um par de meias de
Lyon que mandei para minha mulher na Alemanha.
― Ela é bonita?
Ele deu uma gargalhada.
― Bonita? Ah!... Uma bruxa. Tem todos os defeitos.
Só falta voar na vassoura. Bebe, joga, fuma. Pesa quase cem
quilos. E se considera uma valquíria ― concluiu num gesto
de desalento -, mas mantenho-a por uma questão de
princípio. Em troca, ela se mostra compreensiva e não
95
perturba minha vida com ciumeiras. A escolha de criadas
sempre foi um privilégio meu, quando estava em casa.
― Por que esse interesse?
Stupnaggel esfregou as mãos. Antes de continuar,
sentou-se num divã, pediu que eu deitasse sobre o tapete
oriental a seus pés.
― Não cubra as pernas, Giselle. Elas são monumentos.
Já não lhe pertencem. Eu quero vê-las enquanto falo. Quero
desejá-las. Você parece uma estátua macia de Afrodite.
― Disseram-me uma vez isso.
― Pois acertaram. Não há quem olhe seu corpo sem
dizer poemas, sem fazer coisas impossíveis.
O general tomou uma atitude grotesca, própria dos
tarados sexuais. Seria aquilo sua espécie de poema?

CONTINUA...

© 1964 ― DAVID NASSER E A.S.GUEIROS

NOTA INFORMATIVA:
A espiã Giselle Montfort foi criada pelo jornalista David Nasser no
ano de 1948 e publicada originalmente no Diário da noite na forma de
capítulos seriados (56 capítulos). As histórias foram depois publicadas em
quatro volumes cuja primeira edição foi publicada em 1952 pela Editora
Distribuidora Edições do Povo. Estes quatro volumes foram publicados
posteriormente pela Editora Monterrey em Março de 1964 e em Dezembro
de 1967.

96
97

Você também pode gostar