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EDUARDO COUTINHO:
PALAVRA E MEMÓRIA
JORDANA BERG
MARÍA CAMPAÑA RAMIA
JOÃO MOREIRA SALLES
PATRICIA RUIZ ACERO
NÚM. 012
EDUARDO COUTINHO: PALAVRA E MEMÓRIA | 1
LOS CUADERNOS DE CINEMA23 são projetados para coletar e registrar o
conhecimento, a experiência e o pensar sobre o cinema. Eles têm o objetivo
de proteger, compartilhar e promover a cultura e os vários trabalhos
cinematográficos da América Latina e da Península Ibérica. Esta publicação
é possível graças a participação dos integrantes do CINEMA23.
memórias
EDUARDO COUTINHO:
PALAVRA E MEMÓRIA
JORDANA BERG
MARÍA CAMPAÑA RAMIA
JOÃO MOREIRA SALLES
PATRICIA RUIZ ACERO
I.
Existe uma dimensão individual na vida que para mim é essencial, e acho que
chega ao político de outra forma. O que eu quero não são respostas, quero
perguntas. Não quero falar do paraíso. Quero falar do mundo que existe. Não
quero saber como o mundo é, mas como está, recolher fragmentos do mundo
como ele existe.
A pureza e a perfeição são as únicas coisas que me revoltam. A pureza
e a perfeição são fascistas. Então meus filmes são pela vida, porque a vida
será sempre imperfeita, porque a vida será sempre incompleta. A perfeição é
a morte. Acabou. Eu não sou optimista, mas meus filmes são a favor da vida
www.cinema23.com porque aceitam a imperfeição do ser humano e da sociedade. Não quero saber
Publicação gratuita, proibida a comercialização.
A reprodução total ou parcial dos textos e imagens contidos
do paraíso. Quero saber o que as pessoas fazem frente à dureza da vida e dos
nesta publicação é proibida salvo prévia autorização do editor. tempos. Às vezes podem cantar um bolero, pode ser isso.1
CINEMA23 celebra as diferentes opiniões expressas por seus integrantes.
Se eu tivesse que escolher umas palavras para lembrar do Coutinho, sempre seriam essas.
Este caderno foi impresso em julho de 2017.
A impressão consistiu de 1500 cópias.
1 Campaña Ramia, María, “Não quero saber como o mundo é, mas como está - Uma conversa com Eduardo
Impresso no México | 2017 Coutinho”, em Ohata, Milton (org.), Eduardo Coutinho, Cosac Naify, São Paulo, 2013, p. 321.
4 Moreira Salles, João, “Morrer e nascer - Duas passagens na vida de Eduardo Coutinho”, em Ohata, Milton 5 A Região Metropolitana de São Paulo reúne 39 municípios do estado homônimo, os quais se fundem com a
(org.), op. cit., pp. 372-373. capital do estado formando uma área urbana contínua.
6 Bernardet, Jean-Claude, “Jogo de cena y Moscou”, em Campaña Ramia, María y Mesquita, Cláudia (orgs.),
op. cit., pp. 105-106.
Jordana Berg (Rio de Janeiro, 1963) se graduou como desenhista visual. Desde 1985 João Moreira Salles (Rio de Janeiro, 1962) é cineasta, produtor e roteirista, fundador da
trabalha em televisão e, desde 1990, como editora freelance. Durante vinte anos editou produtora e distribuidora VideoFilmes e da revista Piauí. É considerado um dos mais
doze filmes de Eduardo Coutinho — desde Santo forte (1999) até Últimas conversas importantes documentaristas contemporâneos. Começou sua carreira em 1985 como
(2015) —, e se transformou assim em sua colaboradora de mais longo fôlego. Editou roteirista de uma série documental para televisão. Entre suas obras estão Notícias de uma
mais de 85 filmes e trabalhou com prestigiados cineastas como Eduardo Escorel (O tempo guerra particular (1999), sobre o estado de violência urbana no Rio de Janeiro (codirigido
e o lugar), Renato Terra e Ricardo Calil (Uma noite em 67), Daniela Broitman (Marcelo por Kátia Lund), Nelson Freire (2003), seu primeiro longa-metragem para cinema sobre o
Yuka no caminho das setas), Helena Solberg (A alma da gente), Flávia Castro (Diário de pianista brasileiro reconhecido internacionalmente, e Entreatos (2004), sobre os bastidores
uma busca), José Joffily e Pedro Rossi (Caminho de volta), entre outros. Entre 1993 e da campanha de Luiz Inácio "Lula" da Silva à presidência do Brasil em 2002. Em 2007
1996 viveu em Paris, onde trabalhou como editora na UNESCO e como freelancer em estreou o documentário Santiago, que foi aclamado em inúmeros festivais do mundo.
documentários. Entre 2010 e 2011 foi professora na Escola de Cinema Darcy Ribeiro no Dez anos depois, realiza No intenso agora (2017), filme construído inteiramente com
Rio de Janeiro. Em 2017 trabalha no documentário de Petra Costa sobre o impeachment material de arquivo e lançado na Berlinale. Amigo pessoal e colaborador de Eduardo
da presidente Dilma Rousseff. É membro do Rough Cut Service, serviço internacional Coutinho, produziu seus filmes a partir de Edifício Master (2002) e finalizou seu filme
de consultoria de montagem. póstumo, Últimas conversas (2015), após a morte do cineasta brasileiro.
María Campaña Ramia (Quito, 1977) é programadora de cinema, documentarista, jorna- Patricia Ruiz Acero (Bogotá, 1980) é bailarina com formação em dança tradicional
lista e tradutora audiovisual. Mestre em Produção de Documentários na Universidade de e contemporânea, comunicadora social e produtora audiovisual. Estudou na Pontifícia
Estrasburgo, França. Foi diretora artística do Festival Internacional de Cine Documental Universidade Javeriana na Colômbia. É mestre em Cultura e Desenvolvimento e professora
Encuentros del Otro Cine - EDOC, no Equador, entre 2006 e 2016. Foi diretora de do programa de Cinema e Audiovisuais na Universidade do Madalena (Santa Marta).
programação do Festival de Cinema La Orquídea (Cuenca, Equador); curadora convidada Fez documentários e ficções no Caribe e Colômbia, dentre os quais se destacam Cantadoras
do Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro e bolsista do Seminário Flaherty, nos EUA. de vida, sobre os rituais fúnebres em Chocó, e Yeya espíritu que danza, documentário sobre
É membro da equipe de programação de EDOC e Ambulante, no México. Em 2012, a bailarina e investigadora Delia Zapata Olivella. Fez três documentários para a Liga de
coeditou o livro El otro cine de Eduardo Coutinho, a primeira publicação em espanhol Mujeres Desplazadas de Bolívar e o curta-metragem Mi muñeca. Foi produtora de nove
dedicada integralmente à obra do realizador brasileiro, e organizou uma retrospectiva do edições do Festival Audiovisual Tornado Cartagena e da Mochila Audiovisual del Caribe.
seu trabalho no EDOC. Fez os documentários Mi abuelo, mi héroe(2005) e Derivadas Coordenou durante quatro anos a seção Novos Criadores no Festival Internacional de
(2015). Têm sido colunista, crítica de cinema, cronista de viagens e repórter de publicações Cine de Cartagena de Indias - FICCI, e na edição de 2017 organizou a retrospectiva de
do Equador e do Reino Unido. Mora no Rio de Janeiro. Eduardo Coutinho. Atualmente produz o documentário Las cuerdas, sobre mulheres boxea-
doras em Santa Marta.
MCR: Como vocês podem ver, Coutinho decide não incluir os retratos da senhora porque
ilustraria algo que não foi filmado durante a conversa, algo que não ocorreu naquele
momento. É fundamental no cinema de Coutinho preservar a verdade da filmagem,
preservar o encontro; caso haja alguma discussão, incluindo negociações de pagamento
de cachês, tudo fará parte da edição final.
De fato, vemos nos filmes de Coutinho como ele já chega com a câmera ligada,
como em Cabra marcado para morrer ou em Boca de lixo (1992), que não faz parte da
retrospectiva mas cito aqui pela força expressiva desse primeiro encontro entre Cou-
tinho e os catadores de lixo que participaram do filme. O primeiro encontro entre
Coutinho e seus personagens é sempre mediado pela câmera e esta relação será mantida
durante o parêntese que dure a filmagem. Coutinho não participava da pesquisa prévia
para encontrar personagens. Isso estava a cargo de seus assistentes; igualmente, salvo
poucas exceções, não havia uma relação posterior, porque ele não costumava manter
contato com os seus personagens.
Há outro aspecto que acho fundamental no cinema de Coutinho, que é a duração
dos planos, sempre generosa e detalhada. Nesse tempo surge algo que rompe com essa
assimetria de poder entre quem filma e quem é filmado; essa diferença se atenua graças
ao tempo que os sujeitos têm para se desenvolver diante da câmera, de se converterem
em personagens e de se assumirem a si mesmos para além de nossas preconcepções. Isso Elizabeth Teixeira e os filhos durante as filmagens de Cabra marcado para morrer, em 1964
acontece também pelo fato de Coutinho ter filmado, de modo geral, classes pouco privi-
legiadas do Brasil, sobre as quais boa parte dos espectadores têm una ideia pré-estabelecida, PRA: Poderíamos dizer que esse método se afasta de toda aquela primeira experiência
resultado da maneira como esse estrato social é representado pelo cinema e principalmente que vinha do jornalismo de reportagem, como já mencionamos anteriormente, através da
pela televisão brasileira. Os personagens crescem no cinema de Coutinho, constroem a duração do plano, da não-utilização de imagens de ilustração ou imagens de apoio; ou seja,
si mesmos e isso tem a ver com o tempo que ele lhes dedica. todos esses elementos que aparentemente são clássicos e tradicionais no documentário.
Há também muitos silêncios no cinema de Coutinho. É um cinema muito oral mas Outra coisa que eu gostaria, João, é que você nos fale sobre como cada vez ele se aproxima
a palavra sempre nasce do silêncio, e para ele retorna. Creio que o silêncio é fundamental mais desse tempo presente, ao que ocorre no momento da filmagem, nesse encontro com
para os seus filmes. seus personagens que você mencionou. Coutinho não conhecia os personagens, ele queria
moldar o que acontecia no presente do encontro...
PRA: João, você que esteve tão próximo do Coutinho, nos diga: qual era o seu dom?
Como ele fazia para que as pessoas, a partir da narrativa de suas histórias, voltassem a viver
o passado? É um pouco o que acabamos de ver nesse fragmento de As canções.
PRA: Sim, uma obra que, como você diz, se realiza a partir dessa redução, do encontro entre
personagens partindo da palavra e de como a câmera filma esse encontro. Para finalizar,
María, você que foi a gestora dessa primeira publicação de Coutinho em espanhol e desta
retrospectiva — porque na verdade Coutinho foi pouco difundido aqui na Colômbia,
em parte porque seus filmes são em português —, eu gostaria que você nos contasse um
pouco sobre a sua experiência e seu interesse pelo cinema de Coutinho.
MCR: Bem, de alguma forma o Brasil é o gigante diante do resto dos países menores da
América do Sul. O Brasil tem 8,5 milhões de km2; sempre me surpreendeu imaginar que
o Equador caberia trinta vezes nessa superfície. Acredito que é uma relação um pouco
complexa a que os falantes do espanhol temos com o Brasil, por um lado um gigante ma-
ravilhoso que idealizamos como um lugar de grande sensualidade, com um idioma belís-
simo que ao mesmo tempo entendemos e não entendemos. O Brasil também é América
lhes pergunta se é bom trabalhar no lixo, e as respostas não são óbvias: “Sim, é bom. Aqui
não tenho um patrão que mande em mim, tenho um trabalho onde posso ganhar um
pouco de dinheiro para dar comida e uma vida digna a meus filhos; aqui tenho liberdade,
não pertenço a ninguém”.
Em uma obra que se ancora na palavra, no falar, no contar coisas, Coutinho tinha
uma relação muito especial com o silêncio. O silêncio foi algo que aprendemos a
construir juntos. Na filmagem ele começou a perceber que devia escutar o silêncio, per-
mitir que ele se instalasse, e não tentar movimentar a cena para terminar esse momento
um pouco difícil. Coutinho foi aprendendo a sustentar o silêncio o máximo possível, mas
dizia uma coisa: “O silêncio é a negação de qualquer tentativa de totalizar a realidade”.
Ele gostava muito do incompleto, e o silêncio tinha algo da incompletude da palavra.
Coutinho também sabia lidar com o limite do silêncio, porque o silêncio pode passar do
limite e levar a pessoa a uma situação de humilhação insuportável. Ele tinha essa intuição,
essa sensibilidade muito profunda de sustentar o silêncio mas não ao ponto de maltratar
a pessoa, ao ponto de permitir que ela se afogasse. Quando trabalhávamos na sala de
edição estávamos sempre muito atentos aos silêncios, que foram aumentando cada vez
mais em seus filmes.
Vou falar um pouquinho da grande paixão de Coutinho. Apesar de não poder usar
música que não fosse diegética, Coutinho era um apaixonado pela música, pedia sempre a
seus personagens que cantassem. Ele gostava muito da música brega, como Roberto Carlos,
música de amor, de sofrimento. Conhecia todas as letras, cantava. Quando estávamos na
ilha de edição — ele não tocava no computador porque não sabia como funcionava —,
me pedia que eu colocasse músicas bregas no YouTube por horas. Por isso a montagem não
avançava, porque era música e música todo o dia. Quando estava em filmagem, também
pedia a sua equipe para que pusessem música nos intervalos quando paravam a filmagem
e também pedia para que cantassem e cantava junto.
Dona Teresa. Santo forte (1999) Pergunta: Muito obrigado por ter compartilhado conosco esse material. Depois de todo
esse trajeto que você faz para preparar sua comunicação, de revisar esse material cheio de
lembrar como ele escutava bem às pessoas, o quanto estava conectado com seus personagens. lembranças e memórias, o que fica para você ter trabalhado com Coutinho? Que apren-
Eu acho que essa pergunta era a base de sua conexão. Não dava como certo as coisas e isso dizado, que ensinamentos a nível profissional e pessoal?
fazia com que as pessoas tivessem a possibilidade de falar de coisas “feias”, politicamente
incorretas, de todo tipo, porque não estavam sendo julgadas moralmente nem sob nenhum Jordana Berg: Há uma palavra em português, acho que não tem em espanhol, que é
tipo de juízo. Gostaria de apresentar duas cenas, uma de um filme que se chama Boca de lixo ‘saudade’. É tanta história. Muito do que eu fazia nos filmes de Coutinho, não faço em
(1992), que Coutinho filmou em um lixão, em um lugar que normalmente é ruim, tem filmes de outros diretores, porque essas eram as loucuras dele. Em outros filmes embarco
cheiro ruim. As pessoas que trabalham no lixo são consideradas um pouco como o lixo da na loucura de outros diretores. Os dogmas usados nos filmes de Coutinho não me servem
sociedade, mas Coutinho não deu como certo que era ruim trabalhar aí. Aqui Coutinho para outros filmes. Ao menos não como uma regra. Mas há coisas que ficam comigo,
JB: Havia uma pesquisa. Coutinho tinha seus pesquisadores, alguns eram assistentes de
direção, outros simplesmente eram contratados para a pesquisa. Eles encontravam os
personagens, os filmavam com uma câmera simples e faziam uma pequena montagem,
uma limpeza, para que Coutinho pudesse escutar a história principal do personagem, ver
como falava, se falava bem. Para cada filme, tinha muitas opções de personagens e entre
eles elegia vinte, trinta, quarenta. Isso variava.
Em As canções, Laura Liuzzi, a assistente de direção, parava em lugares muito con-
corridos como a saída do metrô ou a praia, com um cartaz que dizia: se você tem uma
história de música para contar, vem conversar comigo. Para Últimas conversas (2015), dois
assistentes de direção foram a muitas escolas públicas para entrevistar os jovens.
JB: Bom, Coutinho amava estar na ilha de edição. Era um momento que não lhe exigia
muito esforço físico porque estava sentado. Então fazia com que durasse o máximo
possível; normalmente durava entre doze e vinte semanas, quatro ou cinco meses.
Santo forte foi um filme complicado, de gente falando, com jump cuts, “chato”. Todo
mundo dizia: “O que você está fazendo? Isso não interessa”. Um amigo dele inclusive lhe
disse: “Isso é uma tortura”. No final, o filme foi muito bem, desatou algo muito forte, Maria de Fátima. As canções (2011)
ganhou muitos prêmios, inclusive de montagem — o que achei um pouco engraçado
porque foi a primeira edição que fiz com jump cuts e ganhei um prêmio —. Então, quando diferentes durante muitas semanas por isso levou tanto tempo. Mas normalmente era
fizemos Babilônia 2000 (2001), o segundo filme depois de Santo forte, Coutinho estava quinze semanas, algo assim.
muito seguro, feliz. Foi muito fácil montá-lo, em cinco semanas já estávamos com tudo
pronto, mas ele não queria deixar de estar na ilha, assim que a montagem durou até a P: Como decidiram o título de O fim e o princípio?
nona semana. Finalmente foram nove semanas, foi o filme mais curto em edição que eu
fiz com ele, os outros eram doze, quinze, dezesseis semanas. Em Moscou (2009) foram JB: Existe um livro da poetisa polonesa Wislawa Szymborska que se chama, em português,
vinte. Coutinho decidiu fazer As três irmãs, de Tchekhov em um estúdio e não funcionou Fim e princípio, mas não me lembro se teve alguma conexão. Os títulos de Coutinho
de todo. Não conseguíamos descobrir como fazer a montagem e tentamos várias coisas eram algo que nunca estava em negociação. Todos os títulos vieram desde o início. Já que
9 Campaña Ramia, María e Mesquita, Cláudia (comps.), El otro cine de Eduardo Coutinho,
Corporación Cinememoria, Quito, 2012.
10 Programa da série Caminhos da sobrevivência da TV Manchete.
11 Curtas-metragens realizados para os extras do DVD de Cabra marcado para morrer.