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PREFIGURAÇÕES DO OLHAR

Eu sou o poeta do corpo e sou o poeta da alma,


as delícias do céu estão em mim
e os horrores do inferno estão em mim:
o primeiro eu enxerto e amplio ao meu redor,
o segundo eu traduzo em nova língua.

Walter Whitman (Songs of Myself)

Os filmes de Sylvain George são variações em torno de um tema. Sylvain parece continuar a
remontar e reconstruir seu olhar, sua “poesia”, seu mundo, consciente de que são fragmentos mutáveis,
transitórios, de que na verdade nem existe um tema, mas antes, uma necessidade de se imbrincar no
mundo, de se colocar na fronteira desse universo específico, para antes, entender a si mesmo e sua
maneira de relacionar-se.

Sylvain está sempre partindo de sua subjetividade, partindo de si para realizar seus filmes.
Nesta Mostra Retrospectiva do cineasta, que retorna ao Brasil depois de ocorrer em Goiânia no II
Fronteira – Festival Internacional do Filme Documentário e Experimental em agosto deste ano, através
do convite da Semana dos realizadores, tem-se a oportunidade de conhecer como os registros dos
encontros do cineasta com imigrantes do Porto de Calais na França por mais de 10 anos gerou uma obra
pessoal e definitiva sobre as fissuras e cicatrizes da crise mundial contemporânea e suas raízes
colonialistas.

Com curadoria de Rafael Castanheira Parrode e Toni D’Angela, a Mostra Retrospectiva Sylvain
George, teve uma série de ensaios dedicados à reflexão do conjunto de filmes exibidos. Os textos estão
no catálogo do II Fronteira (disponível em PDF no www.fronteirafestival.com), alguns deles escritos pelo
próprio cineasta.

É muito interessante observar como Sylvain se propõe à abstrações significativas para as


experiências da vanguarda, de um cinema poético. Em No Border, os zooms em câmera lenta nos rostos
perdidos na multidão de manifestantes (seu primeiro filme): as feições; o grão da imagem. Em
L’Impossible, o fogo dá forma à imagem, confere-lhe calor (e cor) ao preto e branco áspero dos
encontros com os imigrantes. Em Les Éclats, a abstração das imagens, o ritmo jazzistico, o som, a
música. Em Q’uils Reposent em Revolte, o único filme onde a dureza do cotidiano dos imigrantes se
impõe à estética do filme - um filme, contudo, no qual Sylvain insere a dimensão do corpo em primeiro
plano (o corpo como inscrição da violência e da história). Em Vers Madrid, o encontro com a dissonância
e a resistência, uma abertura para a contradição, um vislumbre do futuro.

Há um processo quase que whitmaniano, no qual o olhar do realizador é remodelado pelas


tranformações do tempo e do espaço, impossibiltando que tudo permaneça: um olho dinâmico da vida.
Não é preciso olhar para tudo para perceber o mundo. Nos filmes de Sylvain existe um processo de
alteridade visceral e de descobertas íntimas a partir do contato com o outro. Os planos subjetivos, o
preto e o branco contrastados (quase sempre), a textura esgarçada e granulada do digital, são
construções que fazem de seus filmes retratos expressionistas (quase barrocos?), de problemas
urgentes da imigração na Europa.

O que torna a cinematografia de Sylvain tão interessante é sua militância política, tomada como
eixo central, abertura para uma poética do engajamento. Fortemente influenciado pelos filmes mais
políticos de Ken Jacobs e a relação com espaço, profundidade e aproximação (Capitalism: Slavery,
Capitalism: Child Labor); Gianikian e Ricci Lucchi (Trilogia da Guerra) e a reinscrição da história,
possibilidade de inventar novos sentidos, ressaltar as contadições, conferir nova plasticidade às imagens
históricas oficiais; Pasolini (La Rabbia) e a pedagogia poética e crítica de Pialat (L’Amour Existe); a
constatação cíclica do tempo, de que tudo se repete, de que tudo está supenso em Gianvito (Protif
Motif and Whispering Wind). Em todos, a idéia de encontrar beleza e poesia diante de coisas miseráveis
e contraditórias, numa tentativa de (re)humanizar o mundo.

Neste convite da Semana dos Realizadores há uma imensa felicidade pelo reencontro com a
obra e o artista. Para nós, oportunidade de contribuir com a difusão de parte significativa da
cinematografia de Sylvain, que impressiona seus espectadores, iluminada pelo olhar do mundo que
oferece.

Henrique Borela, Marcela Borela e Rafael C. Parrode

Diretores Artísticos

FRONTEIRA - Festival Internacional do Filme Documentário e Experimental

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