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04/02/2020 Planejamento tributário: quais são os limites?

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DIREITO TRIBUTÁRIO

Planejamento tributário: quais são os limites?


Questão ainda é acentuada pela falta de legislação especí ca sobre o tema

ANA CLAUDIA UTUMI

25/11/2019 07:37

Crédito: Pixabay

Um dos temas recorrentes nas disputas entre o sco e o contribuinte é o


planejamento tributário, em suas mais diversas formas. Várias dessas disputas
envolvendo valores que ultrapassam centenas de milhões de Reais, senão bilhões.
Isso porque, as autuações frequentemente envolvem multas altas, que podem
chegar a 225%. Mas por que tantas disputas?

A resposta para isso está na dicotomia entre o entendimento do empresário do que


pode ser feito para economizar tributos, e o entendimento dos scos – em especial
do sco federal – sobre o mesmo tema. Essa questão ainda é acentuada pela falta
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de legislação especí ca sobre o tema, falta de parâmetros legais para estabelecer


quais são os limites à liberdade do contribuinte de agir para economizar tributos.

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A metodologia utilizada pelo sco para questionar essas economias tributárias é a


denominada “desconsideração”, com a qual o sco não cancela ou anula atos ou
negócios praticados pelo contribuinte, mas apenas os desconsidera para ns de
apurar os tributos devidos, considerando o que seria o ato, do ponto de vista
econômico, efetivamente praticado.

Como exemplo, imaginem que a Sra. Francisca é proprietária imóvel, incluído em sua
declaração de bens por R$ 500 mil, e a empresa “Imóveis X” quer comprar esse
imóvel por R$ 10 milhões. Sra. Francisca constitui uma empresa (“Target”) para a
qual transfere o imóvel a valor de custo (valor da declaração), a título de aumento de
capital. A Imóveis X constitui nova empresa (“Nova”) e aporta R$ 10 milhões ao seu
capital. Na sequência, Sra. Francisca e Imóveis X permutam as quotas das
empresas Target e Nova. Sra. Francisca registra as quotas da Nova pelo custo de
aquisição – custo esse equivalente a entregar as quotas da Target, ou seja, R$ 500
mil – e não apura ganho ou perda de capital.

Neste caso, do ponto de vista jurídico, tratou-se de troca de participações societárias


(“permuta”) – troca da Target pela Nova – e não de venda de imóvel. Como as
pessoas físicas devem declarar seus bens a custo, a Sra. Francisca seguiu a
legislação e declarou as quotas da Nova a custo, sem gerar ganho de capital. No
entanto, do ponto de vista econômico, Sra. Francisca era dona de um imóvel
adquirido por R$ 500 mil e passou a ser proprietária de empresa Nova com caixa de
R$ 10 milhões. Do ponto de vista econômico, Sra. Francisca trocou o imóvel por R$
10 milhões.

Ao se deparar com situações como essa, o Fisco, ao invés de cancelar a troca de


participações societárias, simplesmente desconsidera a permuta para ns
tributários, e considera ter havido a venda do imóvel. Com isso, a autuação exigiria o
imposto de renda sobre o ganho de capital da Sra. Francisca, com multa de 75% (ou
150%, se a scalização entender que houve evasão scal) e juros SELIC.

O caminho da desconsideração é utilizado por diversos países (“disregard”) para


atacar negócios que, apesar de não serem ilegais, foram realizados para somente
para buscar a economia tributária. Para aplicar a desconsideração, prevista no
parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (“CTN”) e ainda não

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regulamentada em âmbito federal, o sco recorre frequentemente aos conceitos de


simulação e abuso de direito.

A simulação é veri cada em três situações, nos termos do artigo 167 do Código Civil
(“CC”), quais sejam: (a) antedatar ou pós-datar documentos; (b) negócios que
aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais
realmente se conferem, ou transmitem; e (c) negócios que contiverem declaração,
con ssão, condição ou cláusula não-verdadeira, sendo esta hipótese a mais utilizada
nas autuações scais.

Por outro lado, o conceito de abuso do CC é muito, mas muito mais amplo que o de
simulação, constando do seu artigo 187: Também comete ato ilícito o titular de um
direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu m
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Ora, mas o que seria o exercício de um direito que excede manifestamente os limites
impostos pelo seu m econômico? E qual o m social de um determinado direito?
Quando se veri ca que o exercício de um direito excede os limites dos bons
costumes?

Nota-se que se trata de um conceito extremamente


amplo e, por conta dessa amplitude, perigoso para
que se admita sua utilização à determinação dos
fatos geradores de tributos.

Na prática, quando a scalização se depara com situações em que houve a


economia tributária, uma das formas adotadas para atacá-la é justamente a rmar
que os atos praticados foram abusivos porque visavam apenas economizar tributos.
Basta analisarmos, por exemplo, as acusações de deduções indevidas de ágio
(atualmente denominado goodwill) pago na aquisição de empresas.

Porém, em muitas das operações sob debate, apesar da economia tributária, o


objetivo primordial do negócio não necessariamente era economizar tributos, como
no caso de aquisições de empresas: o objetivo dos negócios é a expansão das
atividades econômicas, e não a geração do ágio, sendo este uma consequência da
aquisição – não a sua causa.

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Os questionamentos não se limitam apenas às situações de fusões e aquisições.

Há discussões relativas à alocação de receitas a pessoas jurídicas e não às pessoas


físicas (chamada “pejotização”, muito comum em diversos setores da economia,
inclusive no caso de recebimentos por direitos de imagem de artistas e
desportistas), divisão das atividades empresariais em mais de uma empresa,
deduções de despesas e aproveitamentos de prejuízos scais, tomadas de créditos
de PIS/COFINS, formas de contratação de funcionários, etc.

Toda essa discussão sobre planejamento tributário no Brasil vem acompanhada dos
estudos e propostas internacionais sobre o combate ao planejamento tributário dito
“abusivo” ou “agressivo” que, segundo apurações da OCDE, implicariam perdas de
arrecadação de até 240 bilhões de dólares ao ano[1]. Esses estudos e propostas
estão organizados sob a sigla BEPS – Base Erosion and Pro t Shi ting, iniciativa
coordenada pela OCDE, da qual mais de 130 jurisdições participam, incluindo o
Brasil.

O BEPS tem como principais pilares (a) parcela justa (fair share) de tributos – cada
contribuinte tem o dever de contribuir com sua parcela justa ao nanciamento do
Estado onde está estabelecido, há um dever moral de pagar tributos, uma
moralidade tributária; (b) devida atribuição dos lucros e tributação aos países nos
quais haja o efetivo desenvolvimento das atividades econômicas e a criação de
valor; e (c) segurança jurídica e con ança nos sistemas tributários doméstico e
internacional.

Nessa linha, a OCDE[2] explica que, o “Pacote BEPS traz 15 ações que equipa os
governos com instrumentos domésticos e internacionais necessários para atacar o
planejamento tributário. Os países agora têm instrumentos para assegurar que os
lucros sejam tributados onde as atividades econômicas que geraram esses lucros
são desenvolvidas e onde o valor é criado. Esses instrumentos também dão aos
negócios maior segurança pela redução das disputas sobre a aplicação das regras
de tributação internacional e a padronização do cumprimento de obrigações.”.
(tradução livre da versão original em inglês).

Nesse emaranhado de discussões nacionais e internacionais sobre o planejamento


tributário, adoção de conceitos amplos e abrangentes do Código Civil, decisões de
tribunais etc., cam os contribuintes confusos sobre como proceder em relação à
organização de seus negócios.

Se essa organização implicar redução de carga tributária, essa redução será aceita
pelo sco? Quais os limites das escolhas dos contribuintes?
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Todas essas perguntas cam sempre sem respostas de nitivas justamente pela
falta de legislação clara sobre o tema. Mesmo sem legislação especí ca, claro que
há parâmetros mínimos para os contribuintes tomarem em conta, parâmetros esses
baseados na realidade econômica, no que é normalmente denominada substância
econômica. Além disso, já é assente no CARF que as operações, para que tenham
sustentação econômica efetiva, têm que ser justi cadas não apenas pela economia
tributária, mas por razões reais de negócios.

Vários países implementaram normas chamadas “normas gerais antielisivas”


(“General Anti-avoidance Rules” – “GAAR”) para oferecer aos contribuintes maior
clareza quanto aos parâmetros mínimos que os negócios têm que observar para
que a economia tributária seja efetiva. Uma legislação como essa seria mais que
bem-vinda no Brasil.

Muitos a rmam que o parágrafo único do artigo 116 do CTN já seria a lei geral
antielisiva. Porém, trata-se de uma disposição muito genérica e simplória para
merecer a denominação “lei geral antielisiva”. Esse parágrafo estabelece que A
autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados
com a nalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza
dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a
serem estabelecidos em lei ordinária.

Algumas questões sobre esse parágrafo único: como se analisa a nalidade dos
atos praticados? Se houver outra nalidade que não a economia tributária, esse
dispositivo é automaticamente afastado? Qual o conceito de dissimular? O que seria
“dissimular a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”? Os tais
procedimentos podem ser estabelecidos por cada ente federativo, ou seja, pela
União, por 26 estados e pelo Distrito Federal, e por 5.570 municípios? Os
procedimentos têm que ser harmônicos, ou podem ser distintos? Essas questões
demonstram justamente que o parágrafo único do artigo 116 é por demais amplo e
inde nido para ser admitido como lei geral antielisiva.

A lei geral antielisiva (“LGA”) ideal? Primeiro, ela deveria ser trazida por lei
complementar por se tratar de normas gerais sobre direito tributário, como
estabelece a Constituição.

Segundo, a LGA deve trazer mais claramente os parâmetros para análise das causas
e efeitos econômicos dos atos praticados pelos contribuintes, criando os
parâmetros para que se quali que como agressiva ou abusiva uma determinada
situação que gera economia tributária.

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Terceiro, a LGA deveria prever mecanismos para melhorar o diálogo do sco com
contribuintes de forma individual (e não por meio de associações de classe e outros
órgãos coletivos) sobre seus negócios. Ou seja, mecanismo ágil (no ritmo que os
negócios empresariais demandam) discussão com o sco sobre negócios que se
pretenda implementar e forma de implementação, nos moldes do que se adota nos
países europeus. Nesses países, a partir de discussões do contribuinte com o sco,
em este estando de acordo com a maneira de se organizar os negócios de um dado
contribuinte e com os impactos tributários correspondentes, o sco emite uma
resposta favorável formal (ruling), trazendo maior segurança jurídica aos negócios.

Enquanto a LGA não vem, cabe lembrar aos contribuintes que não há mais espaço
para operações que ocorram apenas formalmente, ou seja, que não possam ser
con rmadas pela realidade econômica. Não há, tampouco, espaço para operações
cujo único propósito seja a economia tributária. Assim, as oportunidades tributárias
podem surgir a cada novo negócio, com clareza em relação à substância econômica
e o efetivo propósito negocial.

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[1] Fonte: https://www.oecd.org/tax/beps/about/, consultada em 10 de novembro de

2019.

[2] Fonte: https://www.oecd.org/tax/beps/about/, consultada em 10 de novembro de

2019. Versão original em inglês: The BEPS Package provides 15 Actions that equip


governments with the domestic and international instruments needed to tackle tax
avoidance. Countries now have the tools to ensure that pro ts are taxed where
economic activities generating the pro ts are performed and where value is created.
These tools also give businesses greater certainty by reducing disputes over the
application of international tax rules and standardising compliance requirements.

ANA CLAUDIA UTUMI – Diretora da ABDF. Doutora (USP) e Mestre (PUC/SP) em Direito Tributário. MBA em
Finanças (IBMEC/SP). Graduação: Direito (USP) e Administração de Empresas (FGV). Professora
convidada da FIPECAFI, IBET, IBDT e University of Zurich. Sócia de Utumi Advogados.

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