Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
0006
*
Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora associada do Departamento de
Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
Bolsista Produtividade em Pesquisa - CNPq. Ponta Grossa, Paraná, Brasil. E-mail: cortesluci@gmail.com
**
Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora do Departamento de Direito e do Progra-
ma de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Ponta Grossa, Paraná, Brasil.
E-mail: dirceiam@uol.com.br
civil e do Estado. Assim, nosso desafio é resgatar de sua vida) com aquilo que havia de válido
alguns pontos da filosofia hegeliana para ligá-los no Iluminismo, no movimento das “luzes” inte-
ao debate do direito penal, considerando a critica lectuais que haviam preparado o processo da
materialista sobre a visão metafísica de filósofo Revolução Francesa. (KONDER, 1991, p. 3).
alemão. Conforme Marx ([1873]1984, p. 17): Hegel foi leitor dos teóricos contratualistas,
A mistificação por que passa a dialética nas especialmente de Monstesquieu, Rousseau e
mãos de Hegel não o impediu de ser o primei- Kant, fontes de inspiração para suas reflexões.
ro a apresentar suas formas gerais de movi- Compreender o processo de transformação do
mento, de maneira ampla e consciente. Em real e encontrar o sentido da razão na história foi
Hegel, a dialética está de cabeça para baixo. seu desafio. De Montesquieu, Hegel absorve a
É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim defesa da supremacia do interesse público sobre
de descobrir a substância racional dentro do o privado e as tipologias das formas de governo,
invólucro místico.
defendendo a monarquia constitucional, e de
Rousseau a discussão sobre a vontade geral
Hegel em seu contexto histórico e filosófico como a condição para a liberdade, na qual a
particularidade integra-se na comunidade. Con-
É impensável compreender a filosofia de forme Coutinho (1996, p. 130):
Hegel fora do contexto da Revolução Francesa.
Foi no turbilhão das transformações sociais, Em sua juventude, o grande pensador alemão
políticas e econômicas desencadeadas com a esteve muito próximo de Rousseau: em seus
revolução que ele elaborou sua filosofia. escritos do período de Berna, Hegel propõe
restaurar, como remédio para as cisões e alie-
Hegel nasceu em 27 de agosto de 1770,
nações que também aponta no mundo moder-
em uma Europa ainda pouco desenvolvida, na no, uma comunidade democrática muito pró-
qual a Alemanha era mais atrasada e rural que xima do modelo grego, que é também, como
a França e a Inglaterra. As condições de vida se sabe, o paradigma adotado por Rousseau.
da população em geral na Alemanha eram de
pobreza e não havia uma unidade política ou um O imperativo categórico de Kant levou
Estado nacional. Era preciso ver o seu tempo Hegel a articular a moral do indivíduo com a
filosoficamente, pois, para Hegel, a filosofia é liberdade que só é realizada na esfera da uni-
ligada a cada momento histórico. “A tarefa da versalidade ética, pois cada homem é parte da
filosofia é conceituar o que é, pois o que é, é a humanidade.
razão. No que concerne ao indivíduo, cada um Conforme Garaudy (1983, p. 9), foi no de-
é de toda maneira um filho de seu tempo; assim senrolar do processo revolucionário que Hegel
a filosofia é também seu tempo apreendido em elaborou seu pensamento filosófico, como se
pensamentos.” (HEGEL, [1820] 2010, p. 43). segue:
A Revolução Francesa, o evento histórico Mas se Hegel tem dezenove anos por ocasião
de grande importância no processo de moder- da tomada da Bastilha, tem vinte e quatro no
nização da Europa, entusiasmou o jovem Hegel Termidor e vinte e nove no Dezoito Brumário.
na discussão sobre a liberdade e a igualdade. Está a ponto de concluir sua Fenomenologia
No percurso de sua elaboração teórica, Hegel do Espírito quando, em 1807, as tropas fran-
perde o entusiasmo revolucionário, após analisar cesas de invasão acampam em Iena, na fren-
o período jacobino do terror. A sua filosofia se te de sua casa, e quando a Paz de Tilsit
mostra conservadora na análise política de seu sanciona a ruína total de sua pátria, a Prússia.
tempo, mas, ao mesmo tempo, mantém o germe Escreve sua Ciência da Lógica de 1812 a
1816, isto é, entre o momento em que se
revolucionário da negatividade como mola do
inicia, em 1813, a sublevação nacional de
processo do real em construção. seu país contra o império napoleônico e a
Uma questão teórica delicada que se apre- derrota de Waterloo. O ano em que publica
sentava a Hegel, na época, consistia em com- sua Filosofia do Direito, 1821, é o ano do
binar adequadamente a fé cristã em que fora Congresso da Santa Aliança, em Laybach.
criado (e que jamais abandonaria, ao longo Seus cursos sobre a Filosofia da História,
ele os ministra de 1822 a 1831, no meio das
maiores perturbações da história: ele os inicia O desafio de Hegel é pensar a ação dos
no momento em que a Grécia, em 1822, homens na história sem anular a individualidade
proclama em Epidaure sua independência. e ao mesmo tempo compreender os desígnios
O trono da Espanha é derrubado e a América da razão universal. Para Hegel, é na possibili-
Latina destrói o jugo colonial da Espanha;
dade de conhecer a totalidade da realidade em
em 1825 estoura, em São Petersburgo, a
insurreição dos Decembristas. seus diferentes aspectos, que a razão histórica
ganha sentido e revela sua marcha na realização
Em meio a um mundo em transfor- do devir. Conforme Konder (1991, p. 16), Hegel
mações, Hegel se propõe à tarefa de pensar compreende que
filosoficamente o tema da liberdade na história
a vida devia ser pensada no movimento pelo
humana como um processo de superação do
qual cada ser vivo transcendia de si mesmo,
dilaceramento que marca a sociedade moderna.
na direção dos outros; devia ser pensada si-
A sua filosofia dialética busca conciliar o espírito multaneamente em sua dimensão finita e em
cristão com a necessidade objetiva da revolu- sua dimensão infinita, naquilo em que ela ia
ção, o que permite dar vida à particularidade, além dos indivíduos.
inserida em uma totalidade ética. É na relação
contraditória e necessária entre as diferentes A história como registro da razão contém
esferas da singularidade, da particularidade e da a síntese da atividade de cada um que, singu-
universalidade que o processo histórico cumpre larmente, só encontra o sentido da sua ação na
os desígnios da razão. coletividade do Estado, como parte da história
do povo, cada Estado nacional é também um
O destino é o modo de existência da totali-
singular, por meio do qual cada povo participa
dade no indivíduo, da particularidade no ab-
soluto. A imanência do infinito no finito é um da história mundial. “Assim como o individuo
dos temas centrais do sistema hegeliano. Sob singular não é uma pessoa efetiva sem a relação
sua forma primitiva ela tem uma ressonância com outras pessoas, assim tampouco o Estado
mística. (GARAUDY, 1983, p. 11). é um indivíduo efetivo sem a relação com os
outros Estados” (HEGEL [1820], 2010, p. 302).
O aspecto místico da filosofia hegeliana
decorre da submissão da história a uma razão
anterior. O ponto de partida de todo movimento O Estado e a sociedade civil em Hegel
dialético é o espírito absoluto, o qual está, por-
Hegel retoma a visão orgânica sobre a
tanto, acima dos homens. Para Hegel, a história
origem do Estado e da sociedade. Para ele, o
só é racional se expressar a vontade do espírito
Estado, como universalidade, é o momento da
absoluto e só tem início quando os homens
normatividade ética que realiza a síntese das
passam a conhecer os desígnios da razão. Os
particularidades presentes na sociedade civil.
povos que não alcançaram o desenvolvimento da
O Estado não é o reino dos interesses particu-
razão na sua forma objetivada do Estado, para
lares, mas a síntese ética dos interesses gerais,
Hegel, não têm história.
universais. A sociedade civil, momento no qual
Hegel recebeu a influência da filosofia de
opera a particularidade, o espaço dos interesses
Schelling1 e adotou o princípio de que a pro-
e das disputas individuais, é superada na síntese
vidência opera na história. Vejamos a análise
universal do Estado.
de Karel Kosik sobre o idealismo alemão: “Se
a história é racional, se tem um sentido, isto §255. Depois da família, a corporação consti-
se deve somente a que nela se manifesta e se tui a segunda raiz ética do Estado, a qual está
realiza uma intenção superior, a razão ou o plano fundada na sociedade civil-burguesa. [...] §
da providência” (1976, p. 232). 256 O fim da corporação, enquanto fim deli-
mitado e finito, tem sua verdade – assim como
a separação presente na regulamentação ex-
1
terior da administração pública e de sua iden-
Friedrich Wilhelm Joseph Von Schelling (1775-1854), filósofo
alemão, foi amigo pessoal de Hegel e do poeta e filósofo Friedrich
tidade relativa, – no fim universal em si e para
Hölderlin. Em 1841, sucedeu Hegel na cadeira de filosofia da si na efetividade absoluta desse; a esfera da
Universidade de Berlim.
A. A mediação dos carecimentos e a satis- John Locke3 já tinha elaborado uma jus-
fação do singular mediante o seu trabalho e tificativa racional para a relação de trabalho no
mediante o trabalho e a satisfação dos care- sistema de mercado, o assalariamento. Para
cimentos de todos os demais – [é] o sistema Locke, o trabalho é a substância do valor, só o
dos carecimentos.
trabalho agrega valor à coisa. Com o surgimento
B. A efetividade do universal da liberdade aí do dinheiro e do sistema de trocas, tornou-se
contido, a proteção da propriedade mediante possível vender o tempo de trabalho e dessa
a administração do direito. forma, separar a produção do trabalhador. É o
trabalho que cria riqueza, mas quem comprou o
C. A prevenção contra a contingência que per-
manece nesses sistemas e o cuidado do inte-
tempo de trabalho tem a propriedade da riqueza
resse particular como algo comum median- criada pelo trabalho que lhe foi vendido. Essa
te a administração pública e a corporação. troca entre tempo de trabalho e salário ocorre
(HEGEL, [1820]. 2010, p.193). no sistema de produção social, tornando legítima
a relação desigual entre os trabalhadores e os
Como analisar a sociedade civil burguesa empregadores. Hegel vê nessa relação um resul-
que leva à cisão das singularidades dentro de tado do arbítrio, do mérito e das circunstâncias.
uma oposição de interesses, um sistema eco- Hegel afirma a possibilidade da venda do
nômico no qual há a acumulação de riqueza produto do trabalho para o uso de outro dentro
de um lado e a pobreza de outro? Para Hegel, do sistema de trocas da sociedade civil burgue-
apesar da evidente contradição existente na sa. A sua análise sobre a propriedade engloba
sociedade civil burguesa, o Estado não pode a propriedade material e a espiritual, ou como
atuar para negar a particularidade. O processo hoje podemos chamar de propriedade intelectual.
histórico apresenta as “dores do parto” da razão
na construção da universalidade. Seu processo § 67. De minhas habilidades particulares,
de dilaceramento faz parte do movimento do corporais e espirituais e de minhas possibili-
dades de atividade eu posso alhear em favor
real. As desigualdades sociais aparecem como
de outro as produções singulares e um uso
resultado inevitável da atividade social. Hegel delimitado no tempo, porque eles recebem,
analisa a divisão do trabalho como essencial de acordo com essa delimitação, uma relação
ao sistema de trocas que regula e desenvolve exterior à minha totalidade e universalidade
o sistema de carecimentos como um modo de (HEGEL [1820] 2010, p. 101).
produção social. Os economistas liberais ins-
piraram a reflexão de Hegel sobre a economia O sistema de corporações cria os espaços
de mercado, especialmente Adam Smith, Jean coletivos nos quais os sujeitos singulares se
Batista Say e David Ricardo. agregam e estabelece a divisão social do traba-
lho. A corporação realiza a mediação dos inte-
§ 198. Mas o universal e o objetivo no trabalho resses particulares na universalidade do Estado.
residem na abstração, a qual efetiva a especi- O Estado como esfera da universalidade
ficação dos meios e carecimentos e com isso
ética não está dentro da sociedade civil, mas aci-
igualmente especifica a produção e produz a
divisão dos trabalhos. O trabalho do singular
ma dela e dos interesses particulares. O Estado
torna-se mais simples pela divisão e, através existente deve buscar a realização do conceito
disso, torna maior sua habilidade no seu tra- de Estado como o real. Para Hegel, a constitui-
balho abstrato, assim como a quantidade de ção é o meio para evitar uma desfiguração do
sua produção. Ao mesmo tempo, essa abs- Estado, para que o existente aproxime-se do real.
tração da habilidade e do meio completam “Exatamente para superar essa desfiguração,
a dependência e a vinculação recíproca dos o Estado precisa organizar seu funcionamento
homens para a satisfação dos demais care- de acordo com uma constituição, e essa cons-
cimentos até a necessidade total. A abstra- tituição será tanto mais racional quanto melhor
ção do produzir torna o trabalho, além disso,
sempre mais mecânico e, com isso, torna-o
no fim apto para que o homem possa dele re-
3
tirar e deixar a máquina entrar em seu lugar. No texto de John Locke, Segundo Tratado do Governo Civil, há
uma análise sobre a origem do valor, sua relação com o trabalho
(HEGEL [1820], 2010, p. 197). e a defesa da propriedade privada burguesa.
o primeiro momento é o da certeza sensível, no natureza, o homem nega sua identidade imediata
qual o indivíduo está imerso na natureza e tem como um ser natural e constrói uma segunda
um saber imediato da realidade. A dúvida apare- esfera do ser, o social. Ele constrói a si mesmo
ce e dissolve a certeza imediata, levando ao se- como resultado de um processo de negação de
gundo momento, no qual da percepção passa-se seu isolamento, somente na universalidade é
ao discernimento ou o entendimento, iniciando a possível operar a individualidade. A consciência
busca do conceito. É um processo analítico que individual só é possível a partir da consciência
supera o momento da certeza sensível. A seguir, universal. A humanidade é o sujeito do espírito
ganha destaque o trabalho de comparação e a objetivo, a liberdade concreta só é possível na
autoconsciência. A negatividade se coloca como unidade do singular no universal.
centro do movimento de realização do espírito. Conforme coloca Nobrega (2005), na dia-
Ganha destaque o papel transformador da ne- lética hegeliana, o espírito se subdivide em três
gatividade e do trabalho como realizações do momentos: o espírito subjetivo, o espírito objetivo
espírito. O outro e o ser em si estão em uma e o espírito absoluto. A tese aparece como o
relação de constante superação. Nesse processo espírito subjetivo – o homem, sua subjetividade
em que a negatividade opera, é possível pensar interior, o desejo, a emoção, a percepção, a
concretamente a realidade, identificar suas deter- inteligência. A antítese é o espírito objetivo, é
minações a partir da razão analítica que leva ao exterior ao homem e se realiza na moral, no di-
discernimento. A superação é um processo por reito, na política. A síntese é o espírito absoluto,
meio do qual o espírito se desenvolve, chegando superando a divisão anterior, a oposição entre
ao conceito como a verdade. sujeito e objeto, entre espírito e ser.
Conforme Garaudy (1983, p. 57), para Para Hegel, as instituições são realiza-
Hegel: ções do espírito objetivo, momentos de maior
liberdade.
O homem não pode chegar à consciência de
si mesmo pela contemplação mas somente No Espírito subjetivo, a mente está presa den-
pela ação. O desejo é o começo deste eu ati- tro de si mesma. No Espírito objetivo a mente
vo, negador do ser dado um eu que transfor- se liberta, se objetiva fora de si mesma, con-
ma e que cria. Disso decorre uma segunda soante com as demais mentes. Não é que a
consequência: a relação entre o homem e a Lei, o Estado, a Moral etc. lhe sejam impostos
natureza, sua unidade, não é um “dado”, é de fora para dentro, opressiva e ditatorialmen-
uma ação. Esta unidade que aqui é somente te. O processo é inverso: a mente ao se exte-
desejada, só se realizará no fim de um lon- riorizar nas instituições humanas faz com que
go trabalho, pelo qual o homem humanizará sua vontade coincida com a Lei, o Estado,
a natureza. a Moral etc. A mente não é determinada por
algo exterior a ela. Ela se determina. E quem
Em Hegel, as relações entre os homens ama a Lei não é escravo da Lei. (NOBREGA,
possibilitam que a universalidade do espírito 2005, p. 69).
se expresse. O homem só pode realizar-se em
sociedade, na qual suas necessidades são sa- Em Hegel, a ação é a expressão da liber-
tisfeitas. Nesse sentido, já operou uma primeira dade, a autodeterminação como realização da
superação da certeza sensível, o homem ao vontade.
desejar já estabelece uma relação entre a sua § 92. Porque a vontade é ideia ou efetivamen-
subjetividade e o mundo exterior, os objetos do te livre, apenas na medida em que tem ser-
desejo. -aí, e o ser-aí, em que se colocou, é o ser da
O idealismo objetivo de Hegel se contrapõe liberdade, assim a violência ou a coação em
ao subjetivismo, a negatividade como motor do seu conceito destrói-se imediatamente a si
processo de superação coloca a necessidade mesma, enquanto externação de uma vonta-
de transcendência da consciência singular, da de a qual suprassume a externação ou o ser-
identidade imediata do ser para a relação entre -aí de uma vontade. Por isso a violência ou
sujeito e objeto. O trabalho realiza a mediação a coação, tomada abstratamente, é o ilícito.
(HEGEL [1820] 2010, p. 118).
do homem com a natureza, afastando-o da
Na dialética hegeliana, a coação é uma revela uma força que opera acima da vontade
violência que se configura como o ilícito, a qual dos particulares, uma ação de natureza pública
será negada por sua vez pela segunda coação, cujo efeito é anular a violação do direito, o crime,
a força do ato jurídico, força que suprassume a que só ocorre na esfera das particularidades, na
primeira coação com o efeito de negá-la. Assim, sociedade civil burguesa, no mundo privado. A
o Direito é uma coação que serve para restaurar ação da violência negativa que restaura o direito
a liberdade. é, para Hegel, uma necessidade objetiva. Assim,
o direito está no espírito objetivo e não como
§ 94. O direito abstrato é um direito de coa-
mera ação das subjetividades. O direito revela
ção, porque o ilícito [perpetrado] contra ele é
uma violência contra o ser-aí de minha liber- a razão e sua legitimidade não pode decorrer
dade em uma Coisa exterior; a preservação da intenção meramente vingativa da pena, nem
desse ser-aí contra a violência é, assim, ela mesmo de um caráter pedagógico que a pena
mesma, uma ação exterior e uma violência teria sobre a vontade dos particulares, sobre a
que suprassume aquela primeira violência. vontade subjetiva. O direito, como espírito obje-
Definir logo, de antemão, o direito abstrato ou tivo é uma necessidade da própria razão, cuja
estrito como um direito no qual se pode coa- legitimidade está na força negativa de anular
gir, – quer dizer apreendê-lo a partir de uma a violência do crime, não como vingança, mas
consequência que somente intervém no des- como restauração do direito que fora violado.
vio do ilícito. (HEGEL [1820] 2010, p. 119). Hegel questiona a teoria da pena que vê o
crime como um mal em si e que demanda uma
Hegel estabelece a análise sobre o aspecto retribuição, outro mal com a função de reparar o
objetivo do crime a partir da extensão quantitativa crime. Vejamos suas colocações a seguir:
da lesão e de suas determinações qualitativas,
se a lesão foi em toda a extensão do direito ou A teoria da pena é uma das matérias que,
só em parte dele e o tipo de violência que se na ciência jurídica positiva da época recente,
praticou. Desse trabalho analítico sobre o aspec- tomou a pior direção, porque, nessa teoria,
to objetivo do crime decorre a necessidade de o entendimento não basta, porém depende
essencialmente do conceito. Quando o cri-
medir a extensão e a qualidade da punição, que
me e sua suprassunção, que se determina
funciona como uma coação diante da violência ulteriormente como pena, são considerados
que o ilícito realizou. como um mal em geral, pode-se certamente
A diferença entre roubo e furto refere-se ao ver como é irracional querer um mal mera-
aspecto qualitativo, o de que, no primeiro mente porque outro mal já está ali presente.
caso, sou violentado também como consci- ([Ernst Ferdinand] Klein, Princípios do Direito
ência presente, enquanto essa subjetiva in- Penal [Alemão Comum], [Halle, 1795], § 9 s).
finitude, e uma violência pessoal é cometida Esse caráter superficial de um mal é pressu-
contra mim. [...] é como o crime que é para si posto como o que é primeiro, nas diferentes
mais perigoso no seu caráter imediato, uma teorias da pena, da teoria da prevenção, da
infração mais grave segundo a extensão ou a intimidação, da ameaça, da correção etc, e o
qualidade. (HEGEL [1820] 2010, p. 120). que deve daí resultar é determinado também
superficialmente como um Bem. Mas não se
trata meramente de um mal, nem desse ou
O crime, como a lesão do direito, é uma vio-
daquele Bem, porém se trata de maneira
lência que Hegel identifica tendo uma existência
determinada do ilícito e da justiça. (HEGEL
exterior positiva. Para negar a existência positiva [1820], 2010, p. 122).
dessa violência, é preciso da ação negativa do
direito, que anula o crime. A ação negativa é o Dessa forma Hegel questiona as funções
direito e sua violência revela o poder e a ne- da pena, a teoria da pena que a coloca como uma
cessidade de punir para anular o crime. Essa retribuição do mal que é o crime, e ainda denun-
negatividade da violência, que restaura o direito, cia a confusão reinante sobre as finalidades da
independe da vontade do criminoso como tam- pena, vistas como: intimidar, prevenir e corrigir
bém independe da vontade da vítima. Podemos a vontade subjetiva. Para Hegel, esse ponto de
supor que, para Hegel, a ação negativa do direito vista superficial da teoria da pena, inverte o que
é substancial – a justiça –, com o aspecto moral, como forma de sua integração à universalidade
subjetivo do crime. Para Hegel, punir é “em si e ética, uma ressonância da ideia de Rousseau
para si justo”. para quem o homem deveria ser obrigado a ser
livre. A liberdade, em Rousseau, só existe na vida
Nessa discussão, importa somente que o cri-
política da comunidade, na qual, cada um obe-
me tem de ser suprassumido[;] não, eventual-
mente, como produção de um mal, mas como decendo a lei que ele mesmo ajudou a elaborar,
violação do direito enquanto direito e, em se- não obedece a outro que não a si mesmo. Um
guida, [saber] qual é a existência que tem o povo elabora a sua lei como um ato de soberania
crime e que tem de ser suprassumida; ela é e, assim, do ponto de vista subjetivo, obedecer
o verdadeiro mal, que tem de ser removido, a lei é também um ato de liberdade. Para Hegel,
e o ponto essencial é aquilo em que ela resi- a punição é um direito do criminoso e não uma
de; enquanto os conceitos, a esse propósito, vingança contra o mal que o crime realizou. Ao
não são conhecidos de maneira determinada, colocar sob essa perspectiva, Hegel coloca o
assim é preciso que a confusão reine na con-
substancial na justiça e não no resultado do
sideração da pena. (HEGEL [1820], 2010, p.
122). crime, no mal praticado. É a negação do crime
que torna necessária a pena para restaurar o
Na Fenomenologia do Espírito, Hegel direito e vincular a vontade subjetiva com a von-
parte do primeiro momento, a certeza sensível tade absoluta, que só se realiza concretamente
até chegar ao momento do conceito, quando a na eticidade universal. Vejamos a seguir como
razão chega a realizar-se concretamente. Sem Hegel expõe seu ponto de vista sobre o punir
essa consideração do trabalho da razão, não se como justo em si e para si que o Estado realiza:
pode avançar na compreensão do punir como em
si e para si justo, tema aprofundado na análise Beccaria, como se sabe, negou ao Estado o
da Filosofia do Direito. No idealismo de Hegel, direito de infligir a pena de morte, pela razão
a liberdade concreta só existe no universal, as de que não se podia presumir que esteja con-
tido no contrato social o consentimento dos
subjetividades são integradas na síntese com o
indivíduos de se deixar matar, antes tem de
universal e só aí pode encontrar a realização má-
ser admitido o contrário. Contudo, o Estado
xima da liberdade. O idealismo objetivo funda-se não é de modo algum um contrato (ver § 75),
na relação dialética entre os diferentes níveis de nem a sua essência substancial é incondicio-
realização do espírito que integram o existente nalmente a proteção e a garantia da vida e
com o real. Não é possível compreender a função da propriedade dos indivíduos enquanto sin-
da pena em Hegel sem considerar o sentido da gulares, antes ele é o superior, que reivindica
razão na história e a superação das esferas das também essa vida e essa propriedade mes-
particularidades na universalidade ética, cuja mas e exige seu sacrifício. – Além disso, não
expressão mais acabada é o Estado. é apenas o conceito de crime, o racional em si
e para si, com ou sem consentimento dos indi-
§100. A lesão que sofre o criminoso não é víduos singulares, que o Estado tem de fazer
apenas justa em si, – enquanto justa, ela é, ao valer, porém também a racionalidade formal,
mesmo tempo, sua vontade sendo em si, um o querer do indivíduo singular, reside na ação
ser-aí de sua liberdade, de seu direito; porém do criminoso. Que a pena seja aí considera-
ela também é um direito do criminoso mesmo, da como contendo seu próprio direito, nisso
ou seja, posto em sua vontade sendo aí, em o criminoso é honrado como um ser racional.
sua ação. Com efeito, em sua ação, enquanto – Essa honra não lhe compete quando o con-
é a de um ser racional, reside o fato de que ceito e a medida de sua pena não são toma-
ela é algo universal, que por ela é estabele- dos em seu ato mesmo; – tampouco lhe com-
cida uma lei que ele reconheceu para si nela, pete quando é considerado somente como
portanto sob a qual ele pode ser subsumido um animal nocivo, que tem de ser tornado
como sob o seu direito. (HEGEL [1820], 2010, inofensivo, ou quando se visa à intimidação
p. 122). e à correção. – Além do mais, considerando o
modo de existência da justiça, a forma que ela
Podemos supor que há, na análise de tem no Estado, a saber, enquanto pena, não
Hegel sobre o direito de o criminoso ser punido, é de toda maneira a única forma, e o Estado
não é o pressuposto que condiciona a justiça jurídica enquanto tal. (HEGEL [1820], 2010,
em si. (HEGEL [1820], 2010, p. 123). p. 133).
Na defesa de uma justiça que não seja vin- A vontade subjetiva que atua em um objeto
gadora, mas punitiva, Hegel alega que somente externo, realizando-se como vontade externa-
quando o Estado opera a justiça ela se afasta lizada que ocorre em circunstâncias múltiplas,
da vingança, e os crimes são perseguidos e pu- transforma o objeto no qual a ação incidiu. Nesse
nidos enquanto crimes públicos. A justiça como sentido, a culpa resulta do agir da vontade sub-
vingança é uma nova lesão, uma violência da jetiva. O ato e a ação não são idênticos, a ação
vontade particular e não do universal. “A vingan- pressupõe o saber do propósito e só nesse senti-
ça, pelo fato de ser ação positiva de uma vontade do pode se falar em culpa da vontade. A relação
particular, torna-se uma nova lesão: enquanto é entre necessidade e contingência se coloca na
essa contradição, cai no progresso ao infinito e análise sobre as consequências da ação.
lega-se de geração em geração até ser ilimitada”
As consequências, enquanto são a configu-
(HEGEL [1820] 2010, p. 126).
ração imanente própria à ação, manifestam
Conclui Hegel que se coloca “a exigência apenas sua natureza e não são outra coisa
de uma justiça libertada do interesse e da figura senão ela mesma; por isso a ação não pode
subjetivos”, a passagem para a moralidade na negá-las nem desprezá-las. Mas, inversa-
qual a vontade quer o universal (HEGEL [1820], mente, compreende-se também entre elas o
2010, p. 126). que ocorre de maneira exterior e se acres-
Na moralidade, a vontade em si, a subje- centa de maneira contingente, que em nada
tividade, deve voltar-se para si, a objetividade, concerne à natureza da própria ação. (HEGEL
nesse processo, a subjetividade deve igualar-se [1820], 2010, p. 135).
ao conceito. “(...) e com isso, a ideia recebe sua Na singularidade, a intenção expressa a
verdadeira realização, que a vontade subjetiva vontade subjetiva, enquanto sabida, conhecida
se determina a ser igualmente objetiva e, com pelo agente. Configura-se a liberdade subjetiva
isso, verdadeiramente concreta” (HEGEL [1820], como a possibilidade do agente buscar na ação
2010, p. 130). sua satisfação, segundo a intenção do agir. Para
Para Hegel, conforme § 113, Filosofia do Hegel, o direito da liberdade subjetiva é o ponto
Direito, a externação da vontade moral é a ação. central da modernidade. “O que o sujeito é, é a
As determinações da ação revelam sua exteriori- série de suas ações (§ 124).”
dade, sabida por mim como minha, a vinculação Na modernidade, a subjetividade se des-
com o conceito, enquanto dever-ser e, com a taca e a ação passa a ser analisada em sua
vontade do outro. diferença com o fato. O fato é o que acontece
O contrato e o ilícito começam certamente a ou o que chamamos de circunstâncias, nas
ter uma vinculação com a vontade do outro, quais não se opera a vontade, não há intenção.
– mas a concordância que tem lugar neles A ação tem como pressuposto a liberdade, pois
se funda no arbítrio; e a vinculação essencial na ação ocorre aquilo que o sujeito faz, revela o
que aí se encontra com a vontade do outro significado e a intenção, que podem ser, então,
é, enquanto jurídica, o elemento negativo que considerados como exteriorização da vontade.
consiste em conservar minha propriedade No contexto da modernidade, é a ação que
(segundo o valor) e deixar ao outro a sua. Ao
interessa para configurar o campo do compor-
contrário, o aspecto do crime enquanto pro-
vém da vontade subjetiva e, segundo o modo tamento humano que é motivável por normas,
de sua existência que nela tem, somente aqui entre elas, as normas penais. Para Hegel, a ação
entra em consideração. – A ação jurídica (ac- é a expressão da liberdade, o aspecto subjetivo
tio), enquanto não é imputável segundo seu da ação se revela na intenção do agente, como
conteúdo, que é determinado por prescrições, vontade sabida por ele. A vontade particular
apenas contém alguns momentos da ação pode negar a liberdade e, nesse sentido, essa
propriamente moral e, no caso, os contém de ação positiva de negar a liberdade deve ser ela
modo exterior; por isso ser uma ação propria- mesma negada, agora pela restauração do direi-
mente moral é um aspecto diferente da ação to. Assim, a legitimidade para a punição não se
encontra nas consequências do crime, nem na loca a polêmica sobre as garantias processuais
função da pena, mas, antes disso, na realização e a necessidade da estrita legalidade. Dessa
da razão, como reencontro da subjetividade com forma, uma leitura atenta de Hegel pode indicar
a objetividade. O punir é justo em si e para si e aspectos que hoje estão no debate atual do direi-
configura-se mesmo como um direito do crimi- to penal, especialmente quando se configura um
noso em ser punido, como forma de reconheci- direito penal do “inimigo” que torna muito flexíveis
mento da sua condição de ser racional que age todas as garantias processuais e a legalidade7.
com vontade e que deve adequar a sua vontade Um direito penal destituído das suas garantias
singular à vontade universal. Punir não é vingan- torna-se uma violência diante do indivíduo e, o
ça, mas a restauração do direito no sentido de punir, como justo em si, pode ser o instrumento
fazer coincidir o conceito com a subjetividade. de uma razão justificadora de um poder autoritá-
rio do Estado. Nesse cenário, é preciso resgatar
Considerações finais o aspecto central da análise de Hegel sobre o
direito de punir, para fugir das interpretações con-
Como pensar a partir de Hegel o direito servadoras que sua filosofia permite. O punir só
penal? Ou como pensar um Hegel penalista? é justo em si mesmo quando expressa a vontade
Certamente há contribuições importantes da universal, não como instrumento de dominação
Filosofia do Direito de Hegel para o direito penal, da vontade particular. A pena é uma retribuição
mas devemos ter em mente que o objeto da sua jurídica, justificada pela necessidade de restau-
filosofia não era delimitado pelo Estado e nem rar o direito. Ferrajoli (2006) critica a posição de
pelo direito penal. Assim, é na filosofia da história, Hegel da pena como uma retribuição jurídica,
como compreensão do desenvolvimento do espí- na qual cabe ao Estado reafirmar o direito. No
rito absoluto, que se pode encontrar um sentido entanto, é preciso considerar que, para Hegel,
para o direito penal dentro do sistema filosófico punir o crime não é vingança, e mesmo na sua
de Hegel. É na perspectiva de totalidade da vida concepção de pena como retribuição jurídica,
social que se encontra a análise de Hegel sobre o criminoso nunca pode perder sua dignidade.
o direito penal e o poder de punir, como forma Assim, em tempos de “Estado de exceção per-
de fazer coincidir a vontade singular, o espírito manente8”, que transforma o criminoso em inimi-
subjetivo, com a vontade universal, no momento go, em não pessoa, o debate sobre a dignidade
de sua realização como espírito objetivo. humana é uma exigência para o direito penal.
Punir é a restauração do direito violado Dessa forma, cabe revisitar de forma crítica a
pelo crime. Mas para punir é preciso considerar obra de Hegel.
os aspectos quantitativos e qualitativos do crime.
Dessa forma, se coloca em Hegel a discussão
Referências
sobre adequação do direito ao caso concreto, a
equidade. Para Ferrajoli (2006, p. 150), Hegel AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo:
aborda a equidade na análise sobre a legalidade, Boitempo, 2004.
o formalismo e o caso singular:
BOVERO, M. A monarquia constitucional: Hegel e
[...] na definição de Hegel segundo a qual “a Montesquieu. Apêndice. In: BOBBIO, Norberto. A
equidade significa uma ruptura do direito for- teoria das formas de governo. 6.ed. Brasília: Editora
mal” e inclusive permite “decidir acerca de um Universidade de Brasília, 1992.
caso singular, sem ter em conta as formalida-
des do procedimento e, em especial, os meios BRANDÃO, G. M. Hegel: o Estado como realização
de provas objetivos, tal como estabelece a lei. histórica da liberdade. In: WEFFORT, Francisco. Os
Seria regido pelo interesse próprio deste caso clássicos da política. São Paulo: Ática, 1999. v.2.
singular, não pelo interesse de uma disposi- BUSATO, P. C. Modernas tendências de controle so-
ção legal que pudesse tornar-se geral”. cial. In: Estado e democracia: pluralidade de ques-
Certamente a adequação da decisão ao
caso singular e o respeito às formalidades do 7
BUSATO, Paulo César. 2008.
procedimento, em matéria de direito penal, co-
8
Conforme as análises de Giorgio Agamben (2004).