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Doi: 10.5212/Emancipacao.v.13i2.

0006

O Estado como eticidade: apontamentos sobre o


direito penal a partir de Hegel

State as ethics: notes on criminal law based on


Hegel

Lucia Cortes da Costa*


Dircéia Moreira**

Resumo: O presente artigo aborda o pensamento filosófico de Hegel sobre


o Estado e sua relação com as esferas da singularidade e da particularidade.
Apresenta o conceito de sociedade civil em Hegel, a formação da ordem burguesa
e a administração da justiça. Analisa o conceito de crime em Hegel e a relação
entre a vontade singular e a imputação de responsabilidade a ação do sujeito na
esfera do direito penal.
Palavras-chave: Estado como eticidade. Sociedade civil burguesa. A vontade
singular e a ação consciente. Direito penal.

Abstract: This paper presents considerations concerning some the philosophical


thought of Hegel on the state and its relationship with the spheres of the singularity
and particularity. Introduces the concept of civil society in Hegel, the formation
of the bourgeois order and the administration of justice. Analyzes the concept of
crime in Hegel and the relationship between the will and the singular liability under
the action of the subject in the sphere of criminal law.
Keywords: State like ethics spheres. Bourgeois civil society. The will and the
singular conscious action. Criminal law.

Recebido em: 16/09/2013. Aceito em: 03/10/2013

*
Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora associada do Departamento de
Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
Bolsista Produtividade em Pesquisa - CNPq. Ponta Grossa, Paraná, Brasil. E-mail: cortesluci@gmail.com
**
Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora do Departamento de Direito e do Progra-
ma de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Ponta Grossa, Paraná, Brasil.
E-mail: dirceiam@uol.com.br

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Lucia Cortes da COSTA; Dircéia MOREIRA

Introdução de interesses privados, são superados na esfera


pública do Estado. Em um processo dialético, os
Pensar o problema filosófico do direito diferentes momentos da eticidade estão relacio-
penal a partir de Hegel exige considerar a sua nados, a família é superada pela sociedade civil
lógica filosófica, a dialética idealista. Aos inician- burguesa, a qual é superada pelo Estado. Dessa
tes na leitura de Hegel, o contato direto com seus forma, a particularidade encontra o universal. A
escritos pode parecer profundamente desafia- superação no sentido hegeliano não equivale
dor. Dessa forma, para compreender Hegel, é ao aniquilamento das esferas da singularidade
preciso considerar o contexto histórico no qual e particularidade e sim, na sua síntese numa
sua obra se insere, uma época de revoluções totalidade mais complexa.
políticas, transformações econômicas e sociais Na filosofia de Hegel, o Estado é a realiza-
que demarcaram o fim da sociedade medieval e ção da razão, no entanto, é preciso considerar
a ascensão da modernidade na Europa. que ele faz uma distinção entre dois momentos
Hegel, como um pensador moderno, en- da razão: o real e o existente. Na dialética he-
frentou, no debate filosófico, os teóricos contra- geliana, o motor de todo movimento é a nega-
tualistas e a hipótese de que o poder do Estado tividade, o princípio da contradição foi elevado
tem sua origem e legitimidade na vontade dos à categoria central de sua estrutura filosófica.
indivíduos. Para os contratualistas, as partes Assim, o existente é um momento do real, mas
formam o todo. Hegel, ao pensar filosoficamente não o esgota. O real é o processo no qual o devir
o papel da subjetividade na história, resgata seu histórico se objetiva, o real é o movimento de
ponto de partida na elaboração aristotélica de constante superação do existente. Dessa forma,
que a parte só tem sentido no todo. É contra a o Estado, como real, não pode ser identificado
tese de que o Estado decorre de uma decisão com o Estado existente, mas com o processo de
dos homens que vivem em um estágio pré-social, objetivação do devir histórico. A eticidade é o re-
ou direito natural, que Hegel elabora sua filosofia sultado de um longo percurso do espírito objetivo
do direito e sua concepção da história como um no caminho de realização da razão.
processo de desenvolvimento do espírito obje- Hegel, ao analisar a filosofia do direito,
tivo. Para ele, o todo antecede e dá sentido às coloca a administração da justiça na sociedade
partes. Assim, o Estado não pode ser concebido civil, a esfera na qual os conflitos privados sur-
como um contrato firmado pelos homens. gem. Dessa forma, como Hegel analisa o crime
Hegel desenvolve sua filosofia a partir e qual a sua punição? Se a ação é, em último
de um ponto de vista idealista e religioso, a sentido, o mais profundo expressar-se da razão
perspectiva cristã é evidente na sua obra. Para ou espírito absoluto, como pensar a vontade
compreender a vinculação da sua filosofia ao subjetiva no curso da história e ser capaz de lhe
idealismo cristão, deve-se considerar que, nessa imputar a responsabilidade do agir consciente?
perspectiva teórica, o “verbo” se fez “carne” e, Qual a relação entre o Estado e a punição? Como
assim, o espírito absoluto (verbo), ao se objetivar analisar o problema da administração da justiça
no mundo (carne), cria a história, a qual cumpre nessa perspectiva?
um sentido último, a reconciliação do homem O texto a seguir tem o objetivo de suscitar
com o espírito absoluto. Para Hegel, a história a reflexão sobre a contribuição da filosofia do
é a razão objetivada; a história é o registro do direito de Hegel para pensar o direito penal,
movimento da razão; a existência é parte do com a pretensão de sugerir alguns pontos para
processo de constituição do real como um devir. o debate. Não é tarefa fácil falar da filosofia
A realização máxima da razão é a síntese do hegeliana, é preciso, primeiro, considerar sua
particular com o universal. A superação da vida lógica dialética para, depois, discutir os con-
dilacerada é o reencontro das particularidades ceitos que explicitam a razão na história. A sua
na universalidade ética. filosofia busca compreender o sentido da história
Hegel analisa as relações dialéticas de como momentos de objetivação da razão. Hegel
mútuas determinações entre a singularidade, a analisa a eticidade como a ideia da liberdade. O
particularidade e a universalidade. Os conflitos ético objetivo, as leis e instituições sendo em si
que nascem na sociedade civil, com oposição e para si, nas esferas da família, da sociedade

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O Estado como eticidade: apontamentos sobre o direito penal a partir de Hegel

civil e do Estado. Assim, nosso desafio é resgatar de sua vida) com aquilo que havia de válido
alguns pontos da filosofia hegeliana para ligá-los no Iluminismo, no movimento das “luzes” inte-
ao debate do direito penal, considerando a critica lectuais que haviam preparado o processo da
materialista sobre a visão metafísica de filósofo Revolução Francesa. (KONDER, 1991, p. 3).
alemão. Conforme Marx ([1873]1984, p. 17): Hegel foi leitor dos teóricos contratualistas,
A mistificação por que passa a dialética nas especialmente de Monstesquieu, Rousseau e
mãos de Hegel não o impediu de ser o primei- Kant, fontes de inspiração para suas reflexões.
ro a apresentar suas formas gerais de movi- Compreender o processo de transformação do
mento, de maneira ampla e consciente. Em real e encontrar o sentido da razão na história foi
Hegel, a dialética está de cabeça para baixo. seu desafio. De Montesquieu, Hegel absorve a
É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim defesa da supremacia do interesse público sobre
de descobrir a substância racional dentro do o privado e as tipologias das formas de governo,
invólucro místico.
defendendo a monarquia constitucional, e de
Rousseau a discussão sobre a vontade geral
Hegel em seu contexto histórico e filosófico como a condição para a liberdade, na qual a
particularidade integra-se na comunidade. Con-
É impensável compreender a filosofia de forme Coutinho (1996, p. 130):
Hegel fora do contexto da Revolução Francesa.
Foi no turbilhão das transformações sociais, Em sua juventude, o grande pensador alemão
políticas e econômicas desencadeadas com a esteve muito próximo de Rousseau: em seus
revolução que ele elaborou sua filosofia. escritos do período de Berna, Hegel propõe
restaurar, como remédio para as cisões e alie-
Hegel nasceu em 27 de agosto de 1770,
nações que também aponta no mundo moder-
em uma Europa ainda pouco desenvolvida, na no, uma comunidade democrática muito pró-
qual a Alemanha era mais atrasada e rural que xima do modelo grego, que é também, como
a França e a Inglaterra. As condições de vida se sabe, o paradigma adotado por Rousseau.
da população em geral na Alemanha eram de
pobreza e não havia uma unidade política ou um O imperativo categórico de Kant levou
Estado nacional. Era preciso ver o seu tempo Hegel a articular a moral do indivíduo com a
filosoficamente, pois, para Hegel, a filosofia é liberdade que só é realizada na esfera da uni-
ligada a cada momento histórico. “A tarefa da versalidade ética, pois cada homem é parte da
filosofia é conceituar o que é, pois o que é, é a humanidade.
razão. No que concerne ao indivíduo, cada um Conforme Garaudy (1983, p. 9), foi no de-
é de toda maneira um filho de seu tempo; assim senrolar do processo revolucionário que Hegel
a filosofia é também seu tempo apreendido em elaborou seu pensamento filosófico, como se
pensamentos.” (HEGEL, [1820] 2010, p. 43). segue:
A Revolução Francesa, o evento histórico Mas se Hegel tem dezenove anos por ocasião
de grande importância no processo de moder- da tomada da Bastilha, tem vinte e quatro no
nização da Europa, entusiasmou o jovem Hegel Termidor e vinte e nove no Dezoito Brumário.
na discussão sobre a liberdade e a igualdade. Está a ponto de concluir sua Fenomenologia
No percurso de sua elaboração teórica, Hegel do Espírito quando, em 1807, as tropas fran-
perde o entusiasmo revolucionário, após analisar cesas de invasão acampam em Iena, na fren-
o período jacobino do terror. A sua filosofia se te de sua casa, e quando a Paz de Tilsit
mostra conservadora na análise política de seu sanciona a ruína total de sua pátria, a Prússia.
tempo, mas, ao mesmo tempo, mantém o germe Escreve sua Ciência da Lógica de 1812 a
1816, isto é, entre o momento em que se
revolucionário da negatividade como mola do
inicia, em 1813, a sublevação nacional de
processo do real em construção. seu país contra o império napoleônico e a
Uma questão teórica delicada que se apre- derrota de Waterloo. O ano em que publica
sentava a Hegel, na época, consistia em com- sua Filosofia do Direito, 1821, é o ano do
binar adequadamente a fé cristã em que fora Congresso da Santa Aliança, em Laybach.
criado (e que jamais abandonaria, ao longo Seus cursos sobre a Filosofia da História,
ele os ministra de 1822 a 1831, no meio das

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maiores perturbações da história: ele os inicia O desafio de Hegel é pensar a ação dos
no momento em que a Grécia, em 1822, homens na história sem anular a individualidade
proclama em Epidaure sua independência. e ao mesmo tempo compreender os desígnios
O trono da Espanha é derrubado e a América da razão universal. Para Hegel, é na possibili-
Latina destrói o jugo colonial da Espanha;
dade de conhecer a totalidade da realidade em
em 1825 estoura, em São Petersburgo, a
insurreição dos Decembristas. seus diferentes aspectos, que a razão histórica
ganha sentido e revela sua marcha na realização
Em meio a um mundo em transfor- do devir. Conforme Konder (1991, p. 16), Hegel
mações, Hegel se propõe à tarefa de pensar compreende que
filosoficamente o tema da liberdade na história
a vida devia ser pensada no movimento pelo
humana como um processo de superação do
qual cada ser vivo transcendia de si mesmo,
dilaceramento que marca a sociedade moderna.
na direção dos outros; devia ser pensada si-
A sua filosofia dialética busca conciliar o espírito multaneamente em sua dimensão finita e em
cristão com a necessidade objetiva da revolu- sua dimensão infinita, naquilo em que ela ia
ção, o que permite dar vida à particularidade, além dos indivíduos.
inserida em uma totalidade ética. É na relação
contraditória e necessária entre as diferentes A história como registro da razão contém
esferas da singularidade, da particularidade e da a síntese da atividade de cada um que, singu-
universalidade que o processo histórico cumpre larmente, só encontra o sentido da sua ação na
os desígnios da razão. coletividade do Estado, como parte da história
do povo, cada Estado nacional é também um
O destino é o modo de existência da totali-
singular, por meio do qual cada povo participa
dade no indivíduo, da particularidade no ab-
soluto. A imanência do infinito no finito é um da história mundial. “Assim como o individuo
dos temas centrais do sistema hegeliano. Sob singular não é uma pessoa efetiva sem a relação
sua forma primitiva ela tem uma ressonância com outras pessoas, assim tampouco o Estado
mística. (GARAUDY, 1983, p. 11). é um indivíduo efetivo sem a relação com os
outros Estados” (HEGEL [1820], 2010, p. 302).
O aspecto místico da filosofia hegeliana
decorre da submissão da história a uma razão
anterior. O ponto de partida de todo movimento O Estado e a sociedade civil em Hegel
dialético é o espírito absoluto, o qual está, por-
Hegel retoma a visão orgânica sobre a
tanto, acima dos homens. Para Hegel, a história
origem do Estado e da sociedade. Para ele, o
só é racional se expressar a vontade do espírito
Estado, como universalidade, é o momento da
absoluto e só tem início quando os homens
normatividade ética que realiza a síntese das
passam a conhecer os desígnios da razão. Os
particularidades presentes na sociedade civil.
povos que não alcançaram o desenvolvimento da
O Estado não é o reino dos interesses particu-
razão na sua forma objetivada do Estado, para
lares, mas a síntese ética dos interesses gerais,
Hegel, não têm história.
universais. A sociedade civil, momento no qual
Hegel recebeu a influência da filosofia de
opera a particularidade, o espaço dos interesses
Schelling1 e adotou o princípio de que a pro-
e das disputas individuais, é superada na síntese
vidência opera na história. Vejamos a análise
universal do Estado.
de Karel Kosik sobre o idealismo alemão: “Se
a história é racional, se tem um sentido, isto §255. Depois da família, a corporação consti-
se deve somente a que nela se manifesta e se tui a segunda raiz ética do Estado, a qual está
realiza uma intenção superior, a razão ou o plano fundada na sociedade civil-burguesa. [...] §
da providência” (1976, p. 232). 256 O fim da corporação, enquanto fim deli-
mitado e finito, tem sua verdade – assim como
a separação presente na regulamentação ex-
1
terior da administração pública e de sua iden-
Friedrich Wilhelm Joseph Von Schelling (1775-1854), filósofo
alemão, foi amigo pessoal de Hegel e do poeta e filósofo Friedrich
tidade relativa, – no fim universal em si e para
Hölderlin. Em 1841, sucedeu Hegel na cadeira de filosofia da si na efetividade absoluta desse; a esfera da
Universidade de Berlim.

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sociedade civil-burguesa passa, por isso, ao depois “o segundo momento da particularidade


Estado. (HEGEL [1820], 2010, p. 228). da vontade, essa tem um conteúdo ulterior [feito]
de fins determinados” (HEGEL [1820], 2010, 79).
Segundo Konder, Hegel trabalha com o
A propriedade privada marca o momento
conceito de Estado como “efetividade da ideia
no qual a particularidade externaliza-se. Dessa
ética”, um conceito para o qual o Estado exis-
forma, o Estado não pode suprimir o direito
tente deveria sempre tender. O real, para Hegel,
abstrato, a propriedade. A família é o espaço em
não coincide com o existente de forma direta.
que se encontra uma unidade natural e imediata,
O real é o movimento em sua dinâmica e cons-
esfera do desenvolvimento da personalidade
tante superação que transcende ao dado como
singular. A sociedade civil estabelece uma liga-
existente. “O Estado existente não coincide,
ção formal entre as singularidades autônomas e
automaticamente, com o Estado real-efetivo: ele
opera a divisão e a contraposição entre os ho-
só se aproxima da efetividade e só se torna a
mens que, no sistema de carecimentos, realizam
encarnação da razão na medida em que corres-
trocas e no qual o contrato é o elemento que dá
ponde ao conceito de Estado” (KONDER,1991,
segurança jurídica a essas relações sociais.
p. 66).
A sociedade civil opera a cisão da unidade
Para que o Estado seja a expressão
imediata da família, primeira unidade natural,
da liberdade concreta, ele deve integrar a par-
substancialidade imediata do espírito. Na socie-
ticularidade e resguardar o direito abstrato. A
dade civil burguesa, o sistema de carecimentos
propriedade privada, localizada na sociedade
leva à divisão do trabalho e os membros da
civil burguesa como direito abstrato, deve ser
família separam-se para se integrarem nas cor-
respeitada pelo Estado.
porações. A produção social não é realizada a
O Estado é a efetividade da liberdade concre- partir das unidades das famílias, mas, sim, dentro
ta; mas a liberdade concreta consiste em que do sistema de divisão do trabalho e das trocas
a singularidade da pessoa e seus interesses na sociedade civil.
particulares tenham tanto seu desenvolvimen- É o sistema de mercado que surge na
to completo e o reconhecimento de seu direito sociedade civil burguesa que estabelece a vin-
para si (no sistema da família e da sociedade
culação entre todos. No Estado, a particularidade
civil-burguesa), como, em parte, passem por
si mesmos ao interesse do universal, em par-
deve superar o momento egoísta do interesse
te, com seu saber e seu querer, reconheçam- privado e participar da efetividade ética universal.
-o como seu próprio espírito substancial e são Pode-se afirmar que a partir dessa necessidade
ativos para ele como seu fim último, isso de de superação do momento egoísta na esfera da
modo que nem o universal valha e possa ser universalidade ética, o Estado como devir histó-
consumado sem o interesse, o saber e o que- rico para Hegel, não pode ser identificado com
rer particulares, nem os indivíduos vivam me- a posição dos liberais. Mas o Estado existente
ramente para esses últimos, enquanto pesso- não pode suprimir as relações que ocorrem na
as privadas, sem os querer, ao mesmo tempo, sociedade civil burguesa. Nesse sentido, o Es-
no e para o universal e sem que tenham uma
tado situa-se fora do sistema de carecimentos.
atividade eficaz consciente desse fim. (HE-
GEL [1820], 2010, p. 235-236).
A administração do direito é tarefa da sociedade
civil e serve para dar segurança jurídica nas
Para Hegel, o Estado é a razão objetivada relações sociais de produção. A polêmica sobre
na história – a eticidade que recompõe a socie- a distinção entre o Estado real e o existente,
dade em uma síntese universal. A superação colocou o debate entre a convivência de um
dialética coloca as três dimensões da eticidade núcleo revolucionário e um caráter conservador
– a família, a sociedade civil e o Estado – como da filosofia de Hegel2.
momentos ligados ao desenvolvimento do espí-
§188. A sociedade civil-burguesa contém os
rito absoluto. três momentos:
Somente na modernidade a singularidade
e a particularidade se desenvolvem. O primei-
ro momento da liberdade formal e abstrata, a 2
Essa polêmica deu origem a duas posições filosóficas: a direita
“vontade dentro de si singular de um sujeito”; e a esquerda hegeliana.

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A. A mediação dos carecimentos e a satis- John Locke3 já tinha elaborado uma jus-
fação do singular mediante o seu trabalho e tificativa racional para a relação de trabalho no
mediante o trabalho e a satisfação dos care- sistema de mercado, o assalariamento. Para
cimentos de todos os demais – [é] o sistema Locke, o trabalho é a substância do valor, só o
dos carecimentos.
trabalho agrega valor à coisa. Com o surgimento
B. A efetividade do universal da liberdade aí do dinheiro e do sistema de trocas, tornou-se
contido, a proteção da propriedade mediante possível vender o tempo de trabalho e dessa
a administração do direito. forma, separar a produção do trabalhador. É o
trabalho que cria riqueza, mas quem comprou o
C. A prevenção contra a contingência que per-
manece nesses sistemas e o cuidado do inte-
tempo de trabalho tem a propriedade da riqueza
resse particular como algo comum median- criada pelo trabalho que lhe foi vendido. Essa
te a administração pública e a corporação. troca entre tempo de trabalho e salário ocorre
(HEGEL, [1820]. 2010, p.193). no sistema de produção social, tornando legítima
a relação desigual entre os trabalhadores e os
Como analisar a sociedade civil burguesa empregadores. Hegel vê nessa relação um resul-
que leva à cisão das singularidades dentro de tado do arbítrio, do mérito e das circunstâncias.
uma oposição de interesses, um sistema eco- Hegel afirma a possibilidade da venda do
nômico no qual há a acumulação de riqueza produto do trabalho para o uso de outro dentro
de um lado e a pobreza de outro? Para Hegel, do sistema de trocas da sociedade civil burgue-
apesar da evidente contradição existente na sa. A sua análise sobre a propriedade engloba
sociedade civil burguesa, o Estado não pode a propriedade material e a espiritual, ou como
atuar para negar a particularidade. O processo hoje podemos chamar de propriedade intelectual.
histórico apresenta as “dores do parto” da razão
na construção da universalidade. Seu processo § 67. De minhas habilidades particulares,
de dilaceramento faz parte do movimento do corporais e espirituais e de minhas possibili-
dades de atividade eu posso alhear em favor
real. As desigualdades sociais aparecem como
de outro as produções singulares e um uso
resultado inevitável da atividade social. Hegel delimitado no tempo, porque eles recebem,
analisa a divisão do trabalho como essencial de acordo com essa delimitação, uma relação
ao sistema de trocas que regula e desenvolve exterior à minha totalidade e universalidade
o sistema de carecimentos como um modo de (HEGEL [1820] 2010, p. 101).
produção social. Os economistas liberais ins-
piraram a reflexão de Hegel sobre a economia O sistema de corporações cria os espaços
de mercado, especialmente Adam Smith, Jean coletivos nos quais os sujeitos singulares se
Batista Say e David Ricardo. agregam e estabelece a divisão social do traba-
lho. A corporação realiza a mediação dos inte-
§ 198. Mas o universal e o objetivo no trabalho resses particulares na universalidade do Estado.
residem na abstração, a qual efetiva a especi- O Estado como esfera da universalidade
ficação dos meios e carecimentos e com isso
ética não está dentro da sociedade civil, mas aci-
igualmente especifica a produção e produz a
divisão dos trabalhos. O trabalho do singular
ma dela e dos interesses particulares. O Estado
torna-se mais simples pela divisão e, através existente deve buscar a realização do conceito
disso, torna maior sua habilidade no seu tra- de Estado como o real. Para Hegel, a constitui-
balho abstrato, assim como a quantidade de ção é o meio para evitar uma desfiguração do
sua produção. Ao mesmo tempo, essa abs- Estado, para que o existente aproxime-se do real.
tração da habilidade e do meio completam “Exatamente para superar essa desfiguração,
a dependência e a vinculação recíproca dos o Estado precisa organizar seu funcionamento
homens para a satisfação dos demais care- de acordo com uma constituição, e essa cons-
cimentos até a necessidade total. A abstra- tituição será tanto mais racional quanto melhor
ção do produzir torna o trabalho, além disso,
sempre mais mecânico e, com isso, torna-o
no fim apto para que o homem possa dele re-
3
tirar e deixar a máquina entrar em seu lugar. No texto de John Locke, Segundo Tratado do Governo Civil, há
uma análise sobre a origem do valor, sua relação com o trabalho
(HEGEL [1820], 2010, p. 197). e a defesa da propriedade privada burguesa.

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O Estado como eticidade: apontamentos sobre o direito penal a partir de Hegel

corresponder à natureza do conceito de Estado na esquerda hegeliana que surgiu a crítica de


(KONDER, 1991, p. 64).” Marx ao Estado burguês.
Conforme Bovero (1992, p. 160), para Marx5 elaborou a crítica ao Estado liberal,
Hegel a monarquia constitucional e a divisão alegando o seu caráter de classe. O Estado, para
dos poderes decorrem da própria diferenciação ele, é a particularidade que se apresenta como o
da vida moderna. Embora inspirado em Mon- universal, um sistema de dominação de classe.
tesquieu, ele4 elabora uma proposta diferente Marx analisou, inicialmente, a Filosofia do Direito
de divisão dos poderes, colocando o poder do de Hegel, afirmando que não era o Estado que
príncipe, do governo e do legislativo. fundava a sociedade civil e, sim, esta é que cria-
O poder judiciário não aparece nessa par- va o Estado e o legitimava. É célebre a afirmação
ticipação porque é interpretado por Hegel de Marx de que, em Hegel, a dialética estava de
não como genuíno poder constitucional, mas cabeça para baixo. Ele contestou o conceito de
como atividade administrativa diretamente Estado elaborado por Hegel confrontando-o com
funcional, na ordem civil, mais do que na po- a realidade do Estado liberal existente.6
lítica. A administração da justiça é colocada Ao colocar o Estado fora da sociedade
assim por Hegel no nível da “sociedade civil”. civil, o aspecto conservador da filosofia de Hegel
(BOVERO, 1992, pg. 161). serviu para legitimar a sociedade capitalista e
Hegel, inspirado na figura de Napoleão, colocar na esfera da singularidade o momento da
estabeleceu na sua “Filosofia do Direito” o poder culpa por seus atos de vontade, como momentos
do monarca como a síntese do Estado. Há uma da liberdade abstrata, formal. Assim é possível
dialética entre o Estado, a família e a sociedade compreender porque em Hegel não existe um
civil, as esferas da universalidade (Estado), da Poder Judiciário no Estado e a administração
particularidade e das singularidades. Para ele, da justiça é inerente à sociedade civil-burguesa.
a sociedade civil é “o conjunto de indivíduos
participantes da vida econômica no regime A ação, o crime e a pena em Hegel
capitalista de concorrência” (GARAUDY, 1983,
Para Hegel, a realização do espírito abso-
p. 91). A necessidade do Estado foi colocada
luto deve levar a uma síntese na qual o indivíduo
como o momento ético em que se transcende
integra e assimila a experiência total da humani-
da singularidade egoística dos indivíduos ato-
dade. É a partir de uma perspectiva da totalidade
mizados, colocando o Estado como a “unidade
ética que se pode compreender a vontade como
do universal existente em si e da particularidade
intencionalidade que se realiza. A singularidade,
subjetiva. O Estado, enquanto efetividade da
que Hegel chama de espírito subjetivo, integra-
vontade substancial, que ele tem na autocons-
-se na eticidade que se realiza como o espírito
ciência particular elevada à sua universalidade,
objetivo.
é o racional em si e para si”. (HEGEL, [1820],
Hegel elabora os momentos dialéticos
2010, p. 230).
que o espírito absoluto percorre em seu desen-
Hegel defendia que, como conceito de
volvimento. Na sua Fenomenologia do Espírito,
eticidade, do universal, o Estado precisava da
constituição para regular a sua ação. A sua
filosofia pôde ser usada para criticar o Estado
5
existente ao afirmar o processo interno de ne- Friedrich Engels analisa a relação do Estado com a família e
a propriedade privada, partindo da crítica sobre os motivos eco-
gação, abrindo um caminho para a superação nômicos presentes na organização dos Estados. Marx e Engels
da realidade. Seus discípulos dividiram-se em acreditavam que o Estado foi criado pelo desenvolvimento da
sociedade, a partir das suas relações sociais de produção e da
duas correntes: a direita conservadora que fa- forma de apropriação da riqueza como riqueza privada.
voreceu a legitimação da sociedade burguesa,
6
da propriedade privada e do Estado nacional Marx (1980. p. 24): “La idea es convertida en sujeto, y la relación
real de la familia y de la sociedad civil com el Estado es concebida
burguês, e a esquerda hegeliana, que criticou o como su actividad imaginaria interna. Familia y sociedad civil son
Estado burguês e a sua ordem econômica. Foi las presuposiciones del Estado, son los agentes verdaderos, pero
en la especulación ello es invertido. Pero en tanto que la idea
es convertida en sujeto, los sujetos reales, sociedad civil, familia,
“circunstancia, arbitrio, etc.”, son transformados aquí en momen-
4
Ver no § 298 e seguintes da Filosofia do direito. tos irreales, com outra significación, en objetivos de la idea.”

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o primeiro momento é o da certeza sensível, no natureza, o homem nega sua identidade imediata
qual o indivíduo está imerso na natureza e tem como um ser natural e constrói uma segunda
um saber imediato da realidade. A dúvida apare- esfera do ser, o social. Ele constrói a si mesmo
ce e dissolve a certeza imediata, levando ao se- como resultado de um processo de negação de
gundo momento, no qual da percepção passa-se seu isolamento, somente na universalidade é
ao discernimento ou o entendimento, iniciando a possível operar a individualidade. A consciência
busca do conceito. É um processo analítico que individual só é possível a partir da consciência
supera o momento da certeza sensível. A seguir, universal. A humanidade é o sujeito do espírito
ganha destaque o trabalho de comparação e a objetivo, a liberdade concreta só é possível na
autoconsciência. A negatividade se coloca como unidade do singular no universal.
centro do movimento de realização do espírito. Conforme coloca Nobrega (2005), na dia-
Ganha destaque o papel transformador da ne- lética hegeliana, o espírito se subdivide em três
gatividade e do trabalho como realizações do momentos: o espírito subjetivo, o espírito objetivo
espírito. O outro e o ser em si estão em uma e o espírito absoluto. A tese aparece como o
relação de constante superação. Nesse processo espírito subjetivo – o homem, sua subjetividade
em que a negatividade opera, é possível pensar interior, o desejo, a emoção, a percepção, a
concretamente a realidade, identificar suas deter- inteligência. A antítese é o espírito objetivo, é
minações a partir da razão analítica que leva ao exterior ao homem e se realiza na moral, no di-
discernimento. A superação é um processo por reito, na política. A síntese é o espírito absoluto,
meio do qual o espírito se desenvolve, chegando superando a divisão anterior, a oposição entre
ao conceito como a verdade. sujeito e objeto, entre espírito e ser.
Conforme Garaudy (1983, p. 57), para Para Hegel, as instituições são realiza-
Hegel: ções do espírito objetivo, momentos de maior
liberdade.
O homem não pode chegar à consciência de
si mesmo pela contemplação mas somente No Espírito subjetivo, a mente está presa den-
pela ação. O desejo é o começo deste eu ati- tro de si mesma. No Espírito objetivo a mente
vo, negador do ser dado um eu que transfor- se liberta, se objetiva fora de si mesma, con-
ma e que cria. Disso decorre uma segunda soante com as demais mentes. Não é que a
consequência: a relação entre o homem e a Lei, o Estado, a Moral etc. lhe sejam impostos
natureza, sua unidade, não é um “dado”, é de fora para dentro, opressiva e ditatorialmen-
uma ação. Esta unidade que aqui é somente te. O processo é inverso: a mente ao se exte-
desejada, só se realizará no fim de um lon- riorizar nas instituições humanas faz com que
go trabalho, pelo qual o homem humanizará sua vontade coincida com a Lei, o Estado,
a natureza. a Moral etc. A mente não é determinada por
algo exterior a ela. Ela se determina. E quem
Em Hegel, as relações entre os homens ama a Lei não é escravo da Lei. (NOBREGA,
possibilitam que a universalidade do espírito 2005, p. 69).
se expresse. O homem só pode realizar-se em
sociedade, na qual suas necessidades são sa- Em Hegel, a ação é a expressão da liber-
tisfeitas. Nesse sentido, já operou uma primeira dade, a autodeterminação como realização da
superação da certeza sensível, o homem ao vontade.
desejar já estabelece uma relação entre a sua § 92. Porque a vontade é ideia ou efetivamen-
subjetividade e o mundo exterior, os objetos do te livre, apenas na medida em que tem ser-
desejo. -aí, e o ser-aí, em que se colocou, é o ser da
O idealismo objetivo de Hegel se contrapõe liberdade, assim a violência ou a coação em
ao subjetivismo, a negatividade como motor do seu conceito destrói-se imediatamente a si
processo de superação coloca a necessidade mesma, enquanto externação de uma vonta-
de transcendência da consciência singular, da de a qual suprassume a externação ou o ser-
identidade imediata do ser para a relação entre -aí de uma vontade. Por isso a violência ou
sujeito e objeto. O trabalho realiza a mediação a coação, tomada abstratamente, é o ilícito.
(HEGEL [1820] 2010, p. 118).
do homem com a natureza, afastando-o da

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O Estado como eticidade: apontamentos sobre o direito penal a partir de Hegel

Na dialética hegeliana, a coação é uma revela uma força que opera acima da vontade
violência que se configura como o ilícito, a qual dos particulares, uma ação de natureza pública
será negada por sua vez pela segunda coação, cujo efeito é anular a violação do direito, o crime,
a força do ato jurídico, força que suprassume a que só ocorre na esfera das particularidades, na
primeira coação com o efeito de negá-la. Assim, sociedade civil burguesa, no mundo privado. A
o Direito é uma coação que serve para restaurar ação da violência negativa que restaura o direito
a liberdade. é, para Hegel, uma necessidade objetiva. Assim,
o direito está no espírito objetivo e não como
§ 94. O direito abstrato é um direito de coa-
mera ação das subjetividades. O direito revela
ção, porque o ilícito [perpetrado] contra ele é
uma violência contra o ser-aí de minha liber- a razão e sua legitimidade não pode decorrer
dade em uma Coisa exterior; a preservação da intenção meramente vingativa da pena, nem
desse ser-aí contra a violência é, assim, ela mesmo de um caráter pedagógico que a pena
mesma, uma ação exterior e uma violência teria sobre a vontade dos particulares, sobre a
que suprassume aquela primeira violência. vontade subjetiva. O direito, como espírito obje-
Definir logo, de antemão, o direito abstrato ou tivo é uma necessidade da própria razão, cuja
estrito como um direito no qual se pode coa- legitimidade está na força negativa de anular
gir, – quer dizer apreendê-lo a partir de uma a violência do crime, não como vingança, mas
consequência que somente intervém no des- como restauração do direito que fora violado.
vio do ilícito. (HEGEL [1820] 2010, p. 119). Hegel questiona a teoria da pena que vê o
crime como um mal em si e que demanda uma
Hegel estabelece a análise sobre o aspecto retribuição, outro mal com a função de reparar o
objetivo do crime a partir da extensão quantitativa crime. Vejamos suas colocações a seguir:
da lesão e de suas determinações qualitativas,
se a lesão foi em toda a extensão do direito ou A teoria da pena é uma das matérias que,
só em parte dele e o tipo de violência que se na ciência jurídica positiva da época recente,
praticou. Desse trabalho analítico sobre o aspec- tomou a pior direção, porque, nessa teoria,
to objetivo do crime decorre a necessidade de o entendimento não basta, porém depende
essencialmente do conceito. Quando o cri-
medir a extensão e a qualidade da punição, que
me e sua suprassunção, que se determina
funciona como uma coação diante da violência ulteriormente como pena, são considerados
que o ilícito realizou. como um mal em geral, pode-se certamente
A diferença entre roubo e furto refere-se ao ver como é irracional querer um mal mera-
aspecto qualitativo, o de que, no primeiro mente porque outro mal já está ali presente.
caso, sou violentado também como consci- ([Ernst Ferdinand] Klein, Princípios do Direito
ência presente, enquanto essa subjetiva in- Penal [Alemão Comum], [Halle, 1795], § 9 s).
finitude, e uma violência pessoal é cometida Esse caráter superficial de um mal é pressu-
contra mim. [...] é como o crime que é para si posto como o que é primeiro, nas diferentes
mais perigoso no seu caráter imediato, uma teorias da pena, da teoria da prevenção, da
infração mais grave segundo a extensão ou a intimidação, da ameaça, da correção etc, e o
qualidade. (HEGEL [1820] 2010, p. 120). que deve daí resultar é determinado também
superficialmente como um Bem. Mas não se
trata meramente de um mal, nem desse ou
O crime, como a lesão do direito, é uma vio-
daquele Bem, porém se trata de maneira
lência que Hegel identifica tendo uma existência
determinada do ilícito e da justiça. (HEGEL
exterior positiva. Para negar a existência positiva [1820], 2010, p. 122).
dessa violência, é preciso da ação negativa do
direito, que anula o crime. A ação negativa é o Dessa forma Hegel questiona as funções
direito e sua violência revela o poder e a ne- da pena, a teoria da pena que a coloca como uma
cessidade de punir para anular o crime. Essa retribuição do mal que é o crime, e ainda denun-
negatividade da violência, que restaura o direito, cia a confusão reinante sobre as finalidades da
independe da vontade do criminoso como tam- pena, vistas como: intimidar, prevenir e corrigir
bém independe da vontade da vítima. Podemos a vontade subjetiva. Para Hegel, esse ponto de
supor que, para Hegel, a ação negativa do direito vista superficial da teoria da pena, inverte o que

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é substancial – a justiça –, com o aspecto moral, como forma de sua integração à universalidade
subjetivo do crime. Para Hegel, punir é “em si e ética, uma ressonância da ideia de Rousseau
para si justo”. para quem o homem deveria ser obrigado a ser
livre. A liberdade, em Rousseau, só existe na vida
Nessa discussão, importa somente que o cri-
política da comunidade, na qual, cada um obe-
me tem de ser suprassumido[;] não, eventual-
mente, como produção de um mal, mas como decendo a lei que ele mesmo ajudou a elaborar,
violação do direito enquanto direito e, em se- não obedece a outro que não a si mesmo. Um
guida, [saber] qual é a existência que tem o povo elabora a sua lei como um ato de soberania
crime e que tem de ser suprassumida; ela é e, assim, do ponto de vista subjetivo, obedecer
o verdadeiro mal, que tem de ser removido, a lei é também um ato de liberdade. Para Hegel,
e o ponto essencial é aquilo em que ela resi- a punição é um direito do criminoso e não uma
de; enquanto os conceitos, a esse propósito, vingança contra o mal que o crime realizou. Ao
não são conhecidos de maneira determinada, colocar sob essa perspectiva, Hegel coloca o
assim é preciso que a confusão reine na con-
substancial na justiça e não no resultado do
sideração da pena. (HEGEL [1820], 2010, p.
122). crime, no mal praticado. É a negação do crime
que torna necessária a pena para restaurar o
Na Fenomenologia do Espírito, Hegel direito e vincular a vontade subjetiva com a von-
parte do primeiro momento, a certeza sensível tade absoluta, que só se realiza concretamente
até chegar ao momento do conceito, quando a na eticidade universal. Vejamos a seguir como
razão chega a realizar-se concretamente. Sem Hegel expõe seu ponto de vista sobre o punir
essa consideração do trabalho da razão, não se como justo em si e para si que o Estado realiza:
pode avançar na compreensão do punir como em
si e para si justo, tema aprofundado na análise Beccaria, como se sabe, negou ao Estado o
da Filosofia do Direito. No idealismo de Hegel, direito de infligir a pena de morte, pela razão
a liberdade concreta só existe no universal, as de que não se podia presumir que esteja con-
tido no contrato social o consentimento dos
subjetividades são integradas na síntese com o
indivíduos de se deixar matar, antes tem de
universal e só aí pode encontrar a realização má-
ser admitido o contrário. Contudo, o Estado
xima da liberdade. O idealismo objetivo funda-se não é de modo algum um contrato (ver § 75),
na relação dialética entre os diferentes níveis de nem a sua essência substancial é incondicio-
realização do espírito que integram o existente nalmente a proteção e a garantia da vida e
com o real. Não é possível compreender a função da propriedade dos indivíduos enquanto sin-
da pena em Hegel sem considerar o sentido da gulares, antes ele é o superior, que reivindica
razão na história e a superação das esferas das também essa vida e essa propriedade mes-
particularidades na universalidade ética, cuja mas e exige seu sacrifício. – Além disso, não
expressão mais acabada é o Estado. é apenas o conceito de crime, o racional em si
e para si, com ou sem consentimento dos indi-
§100. A lesão que sofre o criminoso não é víduos singulares, que o Estado tem de fazer
apenas justa em si, – enquanto justa, ela é, ao valer, porém também a racionalidade formal,
mesmo tempo, sua vontade sendo em si, um o querer do indivíduo singular, reside na ação
ser-aí de sua liberdade, de seu direito; porém do criminoso. Que a pena seja aí considera-
ela também é um direito do criminoso mesmo, da como contendo seu próprio direito, nisso
ou seja, posto em sua vontade sendo aí, em o criminoso é honrado como um ser racional.
sua ação. Com efeito, em sua ação, enquanto – Essa honra não lhe compete quando o con-
é a de um ser racional, reside o fato de que ceito e a medida de sua pena não são toma-
ela é algo universal, que por ela é estabele- dos em seu ato mesmo; – tampouco lhe com-
cida uma lei que ele reconheceu para si nela, pete quando é considerado somente como
portanto sob a qual ele pode ser subsumido um animal nocivo, que tem de ser tornado
como sob o seu direito. (HEGEL [1820], 2010, inofensivo, ou quando se visa à intimidação
p. 122). e à correção. – Além do mais, considerando o
modo de existência da justiça, a forma que ela
Podemos supor que há, na análise de tem no Estado, a saber, enquanto pena, não
Hegel sobre o direito de o criminoso ser punido, é de toda maneira a única forma, e o Estado

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O Estado como eticidade: apontamentos sobre o direito penal a partir de Hegel

não é o pressuposto que condiciona a justiça jurídica enquanto tal. (HEGEL [1820], 2010,
em si. (HEGEL [1820], 2010, p. 123). p. 133).

Na defesa de uma justiça que não seja vin- A vontade subjetiva que atua em um objeto
gadora, mas punitiva, Hegel alega que somente externo, realizando-se como vontade externa-
quando o Estado opera a justiça ela se afasta lizada que ocorre em circunstâncias múltiplas,
da vingança, e os crimes são perseguidos e pu- transforma o objeto no qual a ação incidiu. Nesse
nidos enquanto crimes públicos. A justiça como sentido, a culpa resulta do agir da vontade sub-
vingança é uma nova lesão, uma violência da jetiva. O ato e a ação não são idênticos, a ação
vontade particular e não do universal. “A vingan- pressupõe o saber do propósito e só nesse senti-
ça, pelo fato de ser ação positiva de uma vontade do pode se falar em culpa da vontade. A relação
particular, torna-se uma nova lesão: enquanto é entre necessidade e contingência se coloca na
essa contradição, cai no progresso ao infinito e análise sobre as consequências da ação.
lega-se de geração em geração até ser ilimitada”
As consequências, enquanto são a configu-
(HEGEL [1820] 2010, p. 126).
ração imanente própria à ação, manifestam
Conclui Hegel que se coloca “a exigência apenas sua natureza e não são outra coisa
de uma justiça libertada do interesse e da figura senão ela mesma; por isso a ação não pode
subjetivos”, a passagem para a moralidade na negá-las nem desprezá-las. Mas, inversa-
qual a vontade quer o universal (HEGEL [1820], mente, compreende-se também entre elas o
2010, p. 126). que ocorre de maneira exterior e se acres-
Na moralidade, a vontade em si, a subje- centa de maneira contingente, que em nada
tividade, deve voltar-se para si, a objetividade, concerne à natureza da própria ação. (HEGEL
nesse processo, a subjetividade deve igualar-se [1820], 2010, p. 135).
ao conceito. “(...) e com isso, a ideia recebe sua Na singularidade, a intenção expressa a
verdadeira realização, que a vontade subjetiva vontade subjetiva, enquanto sabida, conhecida
se determina a ser igualmente objetiva e, com pelo agente. Configura-se a liberdade subjetiva
isso, verdadeiramente concreta” (HEGEL [1820], como a possibilidade do agente buscar na ação
2010, p. 130). sua satisfação, segundo a intenção do agir. Para
Para Hegel, conforme § 113, Filosofia do Hegel, o direito da liberdade subjetiva é o ponto
Direito, a externação da vontade moral é a ação. central da modernidade. “O que o sujeito é, é a
As determinações da ação revelam sua exteriori- série de suas ações (§ 124).”
dade, sabida por mim como minha, a vinculação Na modernidade, a subjetividade se des-
com o conceito, enquanto dever-ser e, com a taca e a ação passa a ser analisada em sua
vontade do outro. diferença com o fato. O fato é o que acontece
O contrato e o ilícito começam certamente a ou o que chamamos de circunstâncias, nas
ter uma vinculação com a vontade do outro, quais não se opera a vontade, não há intenção.
– mas a concordância que tem lugar neles A ação tem como pressuposto a liberdade, pois
se funda no arbítrio; e a vinculação essencial na ação ocorre aquilo que o sujeito faz, revela o
que aí se encontra com a vontade do outro significado e a intenção, que podem ser, então,
é, enquanto jurídica, o elemento negativo que considerados como exteriorização da vontade.
consiste em conservar minha propriedade No contexto da modernidade, é a ação que
(segundo o valor) e deixar ao outro a sua. Ao
interessa para configurar o campo do compor-
contrário, o aspecto do crime enquanto pro-
vém da vontade subjetiva e, segundo o modo tamento humano que é motivável por normas,
de sua existência que nela tem, somente aqui entre elas, as normas penais. Para Hegel, a ação
entra em consideração. – A ação jurídica (ac- é a expressão da liberdade, o aspecto subjetivo
tio), enquanto não é imputável segundo seu da ação se revela na intenção do agente, como
conteúdo, que é determinado por prescrições, vontade sabida por ele. A vontade particular
apenas contém alguns momentos da ação pode negar a liberdade e, nesse sentido, essa
propriamente moral e, no caso, os contém de ação positiva de negar a liberdade deve ser ela
modo exterior; por isso ser uma ação propria- mesma negada, agora pela restauração do direi-
mente moral é um aspecto diferente da ação to. Assim, a legitimidade para a punição não se

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encontra nas consequências do crime, nem na loca a polêmica sobre as garantias processuais
função da pena, mas, antes disso, na realização e a necessidade da estrita legalidade. Dessa
da razão, como reencontro da subjetividade com forma, uma leitura atenta de Hegel pode indicar
a objetividade. O punir é justo em si e para si e aspectos que hoje estão no debate atual do direi-
configura-se mesmo como um direito do crimi- to penal, especialmente quando se configura um
noso em ser punido, como forma de reconheci- direito penal do “inimigo” que torna muito flexíveis
mento da sua condição de ser racional que age todas as garantias processuais e a legalidade7.
com vontade e que deve adequar a sua vontade Um direito penal destituído das suas garantias
singular à vontade universal. Punir não é vingan- torna-se uma violência diante do indivíduo e, o
ça, mas a restauração do direito no sentido de punir, como justo em si, pode ser o instrumento
fazer coincidir o conceito com a subjetividade. de uma razão justificadora de um poder autoritá-
rio do Estado. Nesse cenário, é preciso resgatar
Considerações finais o aspecto central da análise de Hegel sobre o
direito de punir, para fugir das interpretações con-
Como pensar a partir de Hegel o direito servadoras que sua filosofia permite. O punir só
penal? Ou como pensar um Hegel penalista? é justo em si mesmo quando expressa a vontade
Certamente há contribuições importantes da universal, não como instrumento de dominação
Filosofia do Direito de Hegel para o direito penal, da vontade particular. A pena é uma retribuição
mas devemos ter em mente que o objeto da sua jurídica, justificada pela necessidade de restau-
filosofia não era delimitado pelo Estado e nem rar o direito. Ferrajoli (2006) critica a posição de
pelo direito penal. Assim, é na filosofia da história, Hegel da pena como uma retribuição jurídica,
como compreensão do desenvolvimento do espí- na qual cabe ao Estado reafirmar o direito. No
rito absoluto, que se pode encontrar um sentido entanto, é preciso considerar que, para Hegel,
para o direito penal dentro do sistema filosófico punir o crime não é vingança, e mesmo na sua
de Hegel. É na perspectiva de totalidade da vida concepção de pena como retribuição jurídica,
social que se encontra a análise de Hegel sobre o criminoso nunca pode perder sua dignidade.
o direito penal e o poder de punir, como forma Assim, em tempos de “Estado de exceção per-
de fazer coincidir a vontade singular, o espírito manente8”, que transforma o criminoso em inimi-
subjetivo, com a vontade universal, no momento go, em não pessoa, o debate sobre a dignidade
de sua realização como espírito objetivo. humana é uma exigência para o direito penal.
Punir é a restauração do direito violado Dessa forma, cabe revisitar de forma crítica a
pelo crime. Mas para punir é preciso considerar obra de Hegel.
os aspectos quantitativos e qualitativos do crime.
Dessa forma, se coloca em Hegel a discussão
Referências
sobre adequação do direito ao caso concreto, a
equidade. Para Ferrajoli (2006, p. 150), Hegel AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo:
aborda a equidade na análise sobre a legalidade, Boitempo, 2004.
o formalismo e o caso singular:
BOVERO, M. A monarquia constitucional: Hegel e
[...] na definição de Hegel segundo a qual “a Montesquieu. Apêndice. In: BOBBIO, Norberto. A
equidade significa uma ruptura do direito for- teoria das formas de governo. 6.ed. Brasília: Editora
mal” e inclusive permite “decidir acerca de um Universidade de Brasília, 1992.
caso singular, sem ter em conta as formalida-
des do procedimento e, em especial, os meios BRANDÃO, G. M. Hegel: o Estado como realização
de provas objetivos, tal como estabelece a lei. histórica da liberdade. In: WEFFORT, Francisco. Os
Seria regido pelo interesse próprio deste caso clássicos da política. São Paulo: Ática, 1999. v.2.
singular, não pelo interesse de uma disposi- BUSATO, P. C. Modernas tendências de controle so-
ção legal que pudesse tornar-se geral”. cial. In: Estado e democracia: pluralidade de ques-
Certamente a adequação da decisão ao
caso singular e o respeito às formalidades do 7
BUSATO, Paulo César. 2008.
procedimento, em matéria de direito penal, co-
8
Conforme as análises de Giorgio Agamben (2004).

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