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Abstract
The present paper discusses the autonomy of subjects regarding decisions about life and death, debating the difficulties
found by psychotherapists when dealing with this subject, which creates resistances and controversies in contemporary
society. The author talks about dealing with suicide according to concepts of analytical psychology, especially C. G. Jung
and some post-Jungian authors, which analyzes death as archetypal experience linked to initiatic necessities of transfor-
mation of crystallized aspects of personality, and that show up through symptoms connected with the suicidal conception
and with self-destructive behaviors. It discusses also the ambiguity of social standards that conveys adolescents and young
people both the message of their being autonomous to decide on certain necessities and hindrances to their freedom
as regards other subjects, as happens with the sense of life and death. The paper questions the paradigm that guides the
practice of health professionals when they identify with the ideals of the classic medical practice, which attributes to
itself the responsibility to decide in the patients’ behalf what they must do with their drives, preventing them from being
listened as the subjects of their own experience. Lastly, it proposes an approach of suicide allowing patients to establish a
metaphorical rapport with death on the basis of symbols observed in unconscious attitudes and fantasies, in order to reach
other senses censured both in patients’ discourse and that of their relatives, due to their being dominated by the fear and/
or release concrete death allows them to feel.
Keywords: Suicide. Adolescent. Jungian Theory.
* Psicóloga. Mestre pelo IPUSP. Supervisora clínica, com especialização em arteterapeuta. E-mail: santina.rodrigues.oliveira@gmail.com
Introdução idade. As orientações dadas no Estatuto para o
cuidado do adolescente são extensivas “à criança
A discussão sobre a autonomia do sujei-
e ao adolescente”, generalizando as necessida-
to frente a decisões relativas à vida e à morte – des e os cuidados sugeridos ao adolescente e à
seja ele um adolescente ou um adulto – esbarra, criança. Entretanto, nossas reflexões sobre qual-
usualmente, em tabus e, portanto, tende a gerar quer questão relacionada à infância e à adoles-
grande polêmica1. Os acalorados debates a que cência – sobretudo a questão do suicídio e de
assistimos sobre a eutanásia e a distanásia, espe- seus dilemas éticos – não podem ser generaliza-
cialmente sobre os limites aplicáveis aos proce- das, uma vez que um adolescente que tem entre
104 dimentos tecnológicos disponíveis para a poster- 12 e 15 anos de idade, como sabemos, apresenta
gação da vida, a partir de casos divulgados pela necessidades e dificuldades diferentes, tanto das
O Mundo da Saúde, São Paulo - 2012;36(1):103-110
O suicídio e os apelos da alma: reflexões sobre o suicídio na clínica...
mídia ou retratados pelo cinema ou literatura, só daqueles que estão entre os 16 e 18 anos, como
confirmam a complexidade do tema. das apresentadas por crianças que se encontram
Ao estender a questão da decisão sobre a na infância, até os 12 anos.
própria morte ao adolescente, surge mais um fa- A presente reflexão não tem como foco cen-
tor complicador, uma vez que há uma série de po- tral essa periodização; limitaremo-nos a discutir a
sicionamentos bastante ambivalentes em relação questão do suicídio entre aqueles que estão mais
ao que define temporalmente essa fase da vida próximos do final da adolescência, lidando com
na sociedade contemporânea. Se, por um lado, os desafios da passagem dessa fase para a seguin-
o jovem de 16, 17 anos é estimulado a ser livre te, a do jovem adulto propriamente dito.
e a assumir suas escolhas quanto a alguns assun- Observamos que essa tendência, de os adul-
tos da sua vida pessoal e social (por exemplo, a tos tutelarem os filhos, netos ou sobrinhos, torna-
escolha da profissão, o início da vida sexual, o -se ainda mais evidenciada quando precisam li-
direito de votar nas eleições), por outro, ele é fre- dar com os problemas afetivos do adolescente.
quentemente submetido a uma espécie de tutela Em geral, quando o jovem se fecha em seu mun-
tardia, até os 25, 26 anos, por parte dos adultos, do e indica que está tendo dificuldades para lidar
que se encontram, por sua vez, tomados por pre- com os novos desafios dessa fase da vida, apre-
ocupações com os perigos da vida moderna, es- sentando sintomas de depressão, ansiedade ou
pecialmente nas grandes cidades. Drogas, novas de outra ordem psicopatológica – especialmente
companhias, viagens estão entre as experiências quando associados à ideação suicida, ou mesmo
que oferecem ao adolescente novas descobertas a tentativas de suicídio –, os adultos se apavoram,
e que se fazem acompanhar da consequente ne- sentem-se inseguros, impotentes e, via de regra,
cessidade de criar respostas próprias, com mais culpados; e, antes de buscar ajuda profissional,
autonomia; entretanto, elas sempre geram algu- por estarem tomados de pânico, recorrem a me-
ma ansiedade nos familiares e, principalmente, didas de controle que tendem a reforçar as de-
nos responsáveis pelo jovem. fesas do adolescente. Há, também, responsáveis
Tal ambivalência ressoa, também, na área que não sabem o que fazer e, reféns do medo e
da psicologia, pois o código de ética que regula- da impotência, tendem a se distanciar, apostando
menta essa profissão, editado pelo CRP (Conselho que isso é “normal”, que se trata de “uma fase e
Regional de Psicologia), está em conformidade vai passar”. Mas essa, como toda regra, também
com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescen- tem suas exceções e, muitas vezes, aquilo em que
te), o qual atribui ao adolescente o mesmo status os adultos apostam que “passa” pode se agravar e
conferido à criança e às pessoas legalmente in- se aprofundar, pois o sofrimento de grande parte
terditadas. De acordo com o ECA, uma pessoa dos pacientes que chegam ao consultório (ado-
que tem até 12 anos de idade é considerada uma lescentes ou adultos) apresenta uma história pre-
criança, ao passo que as que têm entre 12 e 18 gressa, e o conflito que o produziu ainda persiste.
anos são tidas como adolescentes. Para efeito le- Na prática clínica, declarações tácitas de
gal, algumas determinações do Estatuto são tam- que “não vale a pena viver” e de que “a única sa-
bém aplicadas a pessoas entre 18 e 21 anos de ída é a morte” são comuns no discurso de jovens
que consideram o suicídio. A temática terapêuti- O suicídio é o problema mais alarmante da
ca principal trazida por eles era a morte, que se vida. Como se pode estar preparado para
apresentava tanto em comportamentos autodes- ele? Por que é cometido? Por que é evita-
trutivos quanto em ideias e fantasias de suicídio. do? Ele parece irremediavelmente destruti-
Havia, também, aqueles que, tanto antes de ini- vo, deixando atrás de si culpa e vergonha
ciar a psicoterapia como durante o processo, ti- e uma desalentada estupefação. O mesmo
nham empreendido atentados frustrados contra a ocorre na análise, para o analista; o suicí-
própria vida, por meio, por exemplo, de autome- dio é mais complexo ainda que a psicose,
dicação excessiva e de enforcamentos, sendo que a tentação sexual ou a violência física, por-
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alguns dos que não deram continuidade ao trata- que representa a síntese da responsabilidade
mento chegaram a consumar o suicídio. Então, o que um analista carrega. Mais ainda, é fun-
sendo ouvidas pelo eu dominante na constitui- rer?”. Seriam os sentidos prévios dados ao corpo
ção psíquica geral do sujeito? Se o eu, tanto para infantil ou as expectativas narcísicas depositadas
Hillman como para Jung, é apenas um dos perso- nas relações familiares? Ou, ainda, as necessida-
nagens que constituem a psique como um todo, des simbióticas vivenciadas nos relacionamentos
haveria uma oportunidade, mesmo em uma si- amorosos juvenis? Todos esses campos podem ser
tuação extrema como essa, de abrir espaço para reimaginados no contexto terapêutico, entretan-
que os demais personagens ganhassem corpo e to, o foco não seria salvar o paciente, tampouco
pudessem expressar suas necessidades ao eu, expulsar a morte dos espaços por ela habitados.
que é o sujeito da consciência, mas não de toda Pois, se a morte não pode ser considerada
a comunidade psíquica? em sua realidade psíquica, ela se lança concre-
O analista deve propor e sustentar a terapia tamente sobre o sujeito – e mesmo que não seja
como um espaço para se reimaginar a morte e considerada, ainda assim poderá ser consumada
o corpo em relação aos aspectos sombrios indi- –, como o ceifador que decepa impiedosamente
cados acima, de maneira que o paciente possa os ramos de trigo. Por mais paradoxal e angus-
trazer livremente suas fantasias e ideias a respeito tiante que essa abordagem pareça, transformar a
desse assassino que habita a psique e orbita em morte em metáfora permitiria dar um lugar para
torno do eu, tentando feri-lo e atacá-lo; ou que, as fantasias suicidas se apresentarem ao sujeito,
visto de outra perspectiva, talvez esteja fazendo seria um caminho para que ele pudesse falar de-
uma convocação para mudanças no modo como las e com elas a um outro, no caso, ao terapeuta,
a vida está sendo conduzida. Há que se tomar a à família, à sociedade, sem precisar negar essa
morte como um personagem, tal qual já foi feito pulsão. Ao contrário de evitar o tema, de desviar
diversas vezes no cinema (como em “O Sétimo a atenção e a libido do paciente para outros as-
Selo”, de Ingmar Bergman) e na literatura (“As In- suntos ou tarefas orientadas pelo ego (trabalho,
termitências da Morte”, de José Saramago), para viagem, estudos), o analista promoveria um en-
indagar dela o que precisa morrer ou o que não contro no setting com tal personagem, reconhe-
pode mais ser mantido vivo nos moldes que se cendo seu estatuto de um outro que precisa falar
encontra. Consideremos, também, que a morte e ser ouvido. Para isso, há que se considerar o
não pode ser tomada apenas como uma negação fato de existirem jovens que, apesar da idade cro-
da vida, pois inaugura novas perspectivas exis- nológica, têm condição de participar desse diá-
tenciais para o sujeito, que estão para além dessa logo, talvez muito mais do que os adultos e os
estreita oposição morte-vida. profissionais da área da saúde possam admitir, e
Dialogar com a morte, considerando-a uma que anseiam por um lugar para falar dos impulsos
personagem que tem voz ativa no setting, e falar autodestrutivos que se colocam como atravessa-
dela e de suas intenções com o eu do paciente, mentos poderosos, sem ter de se justificar ou ne-
poderia em alguns casos evitar sua literalização gar o que pensam e o que sentem. Desde que se
na passagem ao ato suicida, pois, nessa perspecti- possa identificar os recursos disponíveis ao eu do
va, o suicídio seria uma espécie de concretização jovem para empreender esse diálogo com algu-
das fantasias de morte, indicando a falência da ma clareza, é importante desvincular a adoles-
cência de um estado de total imaturidade, mais é uma morte simbólica, acompanhada de uma
ainda, é importante retirar nossas projeções sobre transformação tanto da consciência pessoal como
o adolescente ao considerá-lo incapaz de lidar do indivíduo, diante da consciência coletiva.
com certas figuras arquetípicas, como a morte. Sabemos que, no Ocidente, a adolescência
ganha outros sentidos, em função de seu con-
Sobre o caráter iniciático do suicídio texto histórico, cultural e social. O jovem está às
voltas com mudanças dramáticas que marcam
David Tacey3 – outra referência pós-jun- a passagem do mundo infantil para o mundo
guiana importante para essa discussão – apon- adulto, e essa passagem se reflete em dificulda-
ta as perspectivas espirituais (entenda-se éticas, 107
des quanto ao próprio corpo, à autoimagem e à
valorativas e morais) que podem ser observa-
sua presença no mundo familiar e social5. A falta
portanto, de deslocamentos narcísicos importan- que deveriam ser cumpridas se ela quisesse obter
tes que se dão na personalidade; e porque narci- o perdão de Eros e se juntar novamente a ele. As
sismo e alteridade são alguns dos conceitos fun- tarefas apresentam importantes significados sim-
damentais para se entender esse período crucial bólicos e representam capacidades que a jovem
chamado adolescência. deveria desenvolver. A cada tarefa cumprida, Psi-
O mito, conforme o poeta romano do século que adquiria uma habilidade que não tinha an-
II d.C. Apuleio7, trata de uma jovem mortal cuja tes, de modo que ia saindo de um estado mítico
beleza afrontava o reinado da própria Afrodite. marcado pelo que chamaríamos de uma profun-
Por conta disso, os templos da deusa haviam se da inconsciência a respeito de si mesma, para um
esvaziado, de modo que o oráculo orienta o pai estado mais diferenciado em relação ao outro.
de Psique a bani-la, entregando-a como esposa a Mas sempre que se defrontava com as tarefas, ela
um monstro que vive junto a um penhasco. desistia e tentava se matar – pulando no rio ou
Afrodite incumbe Eros, seu filho, de flechar atirando-se do alto de uma torre. Nessas horas
a jovem para que esta se apaixone pelo monstro de desespero, algo externo vinha invariavelmente
e não mais volte. Eros, no entanto, acaba ferido em seu socorro, normalmente um elemento da
pela própria flecha e, tomado de forte paixão, natureza: na primeira tarefa, por exemplo, formi-
faz com que o vento Zéfiro salve a moça, que é gas a ajudaram a separar diferentes sementes que
levada a um lugar encantado, onde tem todos os estavam misturadas; em outra, a águia de Zeus
seus desejos magicamente satisfeitos, além de ajudou-lhe a colher a água de um regato sagrado
gozar da presença do deus Eros em longas noites em meio aos dragões. No mito, Psique encarna a
de amor. Há apenas uma regra imposta por ele: imagem do desolamento, da desistência, da im-
Psique não deveria nunca ver o rosto do amado. potência e do impulso suicida diante de todas as
Ela o obedece religiosamente, até que recebe a tarefas que lhe foram atribuídas por Afrodite. Ao
visita de suas irmãs, que, invejosas da condição final, ela se une ao amado, tornando-se imortal
paradisíaca desfrutada pela jovem, agora grávi- como ele.
da, incutem nela a ideia de que não se encon-
trava casada com um deus, mas com o próprio
Um breve recorte clínico
monstro – por isso era proibida de ver sua face
– e que ele devoraria a ela e ao bebê assim que Assim como Psique, alguns jovens por mim
esse nascesse. Perseguida por essa ideia, certa atendidos que consideravam o suicídio exibiam
noite, Psique ilumina a face de Eros, que dormia quadros de ansiedade e depressão diante de de-
a seu lado, com uma lamparina a óleo, a fim safios típicos dessa fase da vida – como passar
de cortar-lhe o pescoço. O espanto de Psique é no vestibular e obter uma inserção entre seus
tamanho ao se defrontar com a beleza do deus pares, ou lidar com mudanças de escola e/ou
que ela deixa cair no ombro dele um pouco do bairro, ou ainda com a separação dos primeiros
óleo escaldante. Acordado, Eros se sente traído namorados. Outros apresentam uma desolação
e a abandona imediatamente, dizendo que ela mais melancólica, que os acompanha desde a
nunca mais o veria. pré-adolescência e é marcada pela falta de sen-
tido em suas existências, independentemente outros profissionais da área da saúde; em algu-
de eventos externos. Os sintomas apresentados, mas situações, como no segundo caso acima re-
em geral, são: depressão, ansiedade, negativis- latado, o paciente havia chegado na psicoterapia
mo, baixa autoestima, vazio existencial, abuso por meio do encaminhamento de um psiquiatra,
de drogas e automutilação, acompanhados, em sendo que já se encontrava diagnosticado e me-
diferentes níveis, de certa ideação suicida, se- dicado. Nos outros dois casos relatados, houve a
guida ou não de tentativas de morte. tentativa de oferecer ao paciente e a seus fami-
Nesse sentido, é como se os jovens estives- liares um lugar para a criação de novos sentidos
sem simbolicamente às voltas com os desafios para o que já estava estabelecido na vida, embo-
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de Psique: desejam ardentemente encontrar algo ra paradoxalmente isso acontecesse enquanto se
divino, que pudesse magicamente esvaziar o in- travava um diálogo com a morte. Inconsciente-
sexualidade juvenil – e que essa se realiza inde- tram tomados por impulsos autodestrutivos ou
pendentemente dos impedimentos dos adultos, de suicidas, somos confrontados com uma questão
diferentes formas. No entanto, ainda parece im- central: qual o discurso que rege nossa prática
possível suportar que há um sujeito no adolescen- psicológica diante da adolescência, do suicídio
te que pode desejar a morte e que pode escolher e da morte? Refletir sobre essa questão/proble-
por ela, sem que seja prontamente diagnosticado ma talvez nos permita criar recursos para ajudar
ou internado para que sua vida seja protegida e/ou nossos pacientes, sejam eles jovens ou adultos,
mantida a qualquer custo. a descobrirem seus próprios significados para a
Se a alma segue caminhos desconhecidos vida e para a morte, independentemente de uma
e aparentemente loucos para a razão legisladora necessidade ilusória de se manter o controle e
sobre a vida e a morte, caminhos que nem sem- de estratégias para preservar o paciente em nome
pre coincidem com os caminhos prescritos pela de uma ética que autoritariamente se traveste de
norma coletiva, a nós, profissionais a serviço da boas intenções, muitas vezes em favor da manu-
alma, cabe sustentar esse encontro com a mor- tenção soberana de uma morte em vida.
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