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O suicídio e os apelos da alma: reflexões

sobre o suicídio na clínica junguiana com


pacientes adolescentes
Suicide and the appeals of the soul: reflections on suicide in
the Jungian clinic with adolescent patients
Santina Rodrigues de Oliveira*
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Reflexão sobre o Tema • Reflection on the Theme


O Mundo da Saúde, São Paulo - 2012;36(1):103-110
Resumo
O presente artigo aborda a autonomia do sujeito frente a decisões relativas à vida e à morte, problematizando as dificul-
dades encontradas pelo psicoterapeuta ao lidar com esse tema, que gera resistências e polêmicas na sociedade contempo-
rânea. A autora discorre sobre o manejo do suicídio partindo de conceitos da psicologia analítica, notadamente de C. G.
Jung e de autores pós-junguianos, que analisam a morte como experiência arquetípica ligada a necessidades iniciáticas de
transformação dos aspectos da personalidade que se encontram cristalizados, e que se apresentam por meio de sintomas
ligados à ideação suicida e a comportamentos autodestrutivos. Discute, também, a ambiguidade dos padrões sociais que
comunicam ao adolescente e ao jovem tanto a mensagem de que é autônomo para decidir sobre certas necessidades,
ao mesmo tempo em que veta sua liberdade a respeito de outros temas, como o sentido da vida e da morte. Questiona o
paradigma que orienta a prática do profissional da área da saúde, quando este encontra-se identificado com os ideais da
prática médica clássica, que toma para si a responsabilidade de decidir pelo paciente o que deve ser feito com suas pul-
sões, impedindo-o de ser ouvido como sujeito da experiência. Por fim, propõe uma abordagem ao suicídio que permita
ao paciente estabelecer uma relação metaforizada com a morte a partir dos símbolos observados nas atitudes e fantasias
inconscientes, com o objetivo de alcançar outros sentidos que se encontram impedidos tanto no discurso do paciente
como de seus familiares, por estarem tomados pelo medo e/ou alívio vislumbrados pela morte concreta.
Palavras-chave: Suicídio. Adolescente. Teoria Junguiana.

Abstract
The present paper discusses the autonomy of subjects regarding decisions about life and death, debating the difficulties
found by psychotherapists when dealing with this subject, which creates resistances and controversies in contemporary
society. The author talks about dealing with suicide according to concepts of analytical psychology, especially C. G. Jung
and some post-Jungian authors, which analyzes death as archetypal experience linked to initiatic necessities of transfor-
mation of crystallized aspects of personality, and that show up through symptoms connected with the suicidal conception
and with self-destructive behaviors. It discusses also the ambiguity of social standards that conveys adolescents and young
people both the message of their being autonomous to decide on certain necessities and hindrances to their freedom
as regards other subjects, as happens with the sense of life and death. The paper questions the paradigm that guides the
practice of health professionals when they identify with the ideals of the classic medical practice, which attributes to
itself the responsibility to decide in the patients’ behalf what they must do with their drives, preventing them from being
listened as the subjects of their own experience. Lastly, it proposes an approach of suicide allowing patients to establish a
metaphorical rapport with death on the basis of symbols observed in unconscious attitudes and fantasies, in order to reach
other senses censured both in patients’ discourse and that of their relatives, due to their being dominated by the fear and/
or release concrete death allows them to feel.
Keywords: Suicide. Adolescent. Jungian Theory.

* Psicóloga. Mestre pelo IPUSP. Supervisora clínica, com especialização em arteterapeuta. E-mail: santina.rodrigues.oliveira@gmail.com
Introdução idade. As orientações dadas no Estatuto para o
cuidado do adolescente são extensivas “à criança
A discussão sobre a autonomia do sujei-
e ao adolescente”, generalizando as necessida-
to frente a decisões relativas à vida e à morte – des e os cuidados sugeridos ao adolescente e à
seja ele um adolescente ou um adulto – esbarra, criança. Entretanto, nossas reflexões sobre qual-
usualmente, em tabus e, portanto, tende a gerar quer questão relacionada à infância e à adoles-
grande polêmica1. Os acalorados debates a que cência – sobretudo a questão do suicídio e de
assistimos sobre a eutanásia e a distanásia, espe- seus dilemas éticos – não podem ser generaliza-
cialmente sobre os limites aplicáveis aos proce- das, uma vez que um adolescente que tem entre
104 dimentos tecnológicos disponíveis para a poster- 12 e 15 anos de idade, como sabemos, apresenta
gação da vida, a partir de casos divulgados pela necessidades e dificuldades diferentes, tanto das
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mídia ou retratados pelo cinema ou literatura, só daqueles que estão entre os 16 e 18 anos, como
confirmam a complexidade do tema. das apresentadas por crianças que se encontram
Ao estender a questão da decisão sobre a na infância, até os 12 anos.
própria morte ao adolescente, surge mais um fa- A presente reflexão não tem como foco cen-
tor complicador, uma vez que há uma série de po- tral essa periodização; limitaremo-nos a discutir a
sicionamentos bastante ambivalentes em relação questão do suicídio entre aqueles que estão mais
ao que define temporalmente essa fase da vida próximos do final da adolescência, lidando com
na sociedade contemporânea. Se, por um lado, os desafios da passagem dessa fase para a seguin-
o jovem de 16, 17 anos é estimulado a ser livre te, a do jovem adulto propriamente dito.
e a assumir suas escolhas quanto a alguns assun- Observamos que essa tendência, de os adul-
tos da sua vida pessoal e social (por exemplo, a tos tutelarem os filhos, netos ou sobrinhos, torna-
escolha da profissão, o início da vida sexual, o -se ainda mais evidenciada quando precisam li-
direito de votar nas eleições), por outro, ele é fre- dar com os problemas afetivos do adolescente.
quentemente submetido a uma espécie de tutela Em geral, quando o jovem se fecha em seu mun-
tardia, até os 25, 26 anos, por parte dos adultos, do e indica que está tendo dificuldades para lidar
que se encontram, por sua vez, tomados por pre- com os novos desafios dessa fase da vida, apre-
ocupações com os perigos da vida moderna, es- sentando sintomas de depressão, ansiedade ou
pecialmente nas grandes cidades. Drogas, novas de outra ordem psicopatológica – especialmente
companhias, viagens estão entre as experiências quando associados à ideação suicida, ou mesmo
que oferecem ao adolescente novas descobertas a tentativas de suicídio –, os adultos se apavoram,
e que se fazem acompanhar da consequente ne- sentem-se inseguros, impotentes e, via de regra,
cessidade de criar respostas próprias, com mais culpados; e, antes de buscar ajuda profissional,
autonomia; entretanto, elas sempre geram algu- por estarem tomados de pânico, recorrem a me-
ma ansiedade nos familiares e, principalmente, didas de controle que tendem a reforçar as de-
nos responsáveis pelo jovem. fesas do adolescente. Há, também, responsáveis
Tal ambivalência ressoa, também, na área que não sabem o que fazer e, reféns do medo e
da psicologia, pois o código de ética que regula- da impotência, tendem a se distanciar, apostando
menta essa profissão, editado pelo CRP (Conselho que isso é “normal”, que se trata de “uma fase e
Regional de Psicologia), está em conformidade vai passar”. Mas essa, como toda regra, também
com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescen- tem suas exceções e, muitas vezes, aquilo em que
te), o qual atribui ao adolescente o mesmo status os adultos apostam que “passa” pode se agravar e
conferido à criança e às pessoas legalmente in- se aprofundar, pois o sofrimento de grande parte
terditadas. De acordo com o ECA, uma pessoa dos pacientes que chegam ao consultório (ado-
que tem até 12 anos de idade é considerada uma lescentes ou adultos) apresenta uma história pre-
criança, ao passo que as que têm entre 12 e 18 gressa, e o conflito que o produziu ainda persiste.
anos são tidas como adolescentes. Para efeito le- Na prática clínica, declarações tácitas de
gal, algumas determinações do Estatuto são tam- que “não vale a pena viver” e de que “a única sa-
bém aplicadas a pessoas entre 18 e 21 anos de ída é a morte” são comuns no discurso de jovens
que consideram o suicídio. A temática terapêuti- O suicídio é o problema mais alarmante da
ca principal trazida por eles era a morte, que se vida. Como se pode estar preparado para
apresentava tanto em comportamentos autodes- ele? Por que é cometido? Por que é evita-
trutivos quanto em ideias e fantasias de suicídio. do? Ele parece irremediavelmente destruti-
Havia, também, aqueles que, tanto antes de ini- vo, deixando atrás de si culpa e vergonha
ciar a psicoterapia como durante o processo, ti- e uma desalentada estupefação. O mesmo
nham empreendido atentados frustrados contra a ocorre na análise, para o analista; o suicí-
própria vida, por meio, por exemplo, de autome- dio é mais complexo ainda que a psicose,
dicação excessiva e de enforcamentos, sendo que a tentação sexual ou a violência física, por-
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alguns dos que não deram continuidade ao trata- que representa a síntese da responsabilidade
mento chegaram a consumar o suicídio. Então, o que um analista carrega. Mais ainda, é fun-

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que fazer diante do sofrimento do jovem? Insistir damentalmente insolúvel, porque não é um
que ele tem a vida toda pela frente e que deve problema de vida, mas de vida e de morte. A
vivê-la intensamente? Levá-lo ao psicoterapeuta, consideração do suicídio também acarreta
ao psiquiatra, ou, quem sabe, ao pai de santo, uma reflexão sobre princípios fundamentais.
como a mãe de uma paciente certa vez conside- Descobrindo sua posição face a este proble-
rou? Medicá-lo, interná-lo, vigiá-lo? Como ouvir ma, o analista estará, também, formando
os apelos de angústia e de dor que falam de certa sua atitude em relação às coisas primeiras e
insuportabilidade de existir, entre outras coisas, últimas, modelando e dando forma ao vaso
sem atropelar ou negligenciar as necessidades do de sua vocação (p. 25)2.
adolescente nessa fase difícil de sua vida? No atendimento a jovens, o psicoterapeuta,
quando identificado com um ideal salvacionista
Sobre o manejo terapêutico que nega a genuinidade da perspectiva suicida,
pode ser tomado por fortes sentimentos contra-
A questão da autonomia nas decisões so- transferenciais: mergulhado em uma impotên-
bre vida e morte tem, na discussão de um au- cia desesperadora, ele pode se identificar com
tor pós-junguiano chamado James Hillman, uma o anseio dos familiares do paciente e buscar a
contribuição bastante polêmica. Hillman2 toma o todo custo encontrar uma saída para o problema,
impulso suicida como um tema arquetípico, ou qualquer uma que não o obrigue a se relacionar
seja, como um atravessamento que pode acome- diretamente com a morte. Pode, também, apa-
ter qualquer ser humano, pois para alguns indi- rentemente, assumir uma postura de relação, mas
víduos só seria possível encontrar sentido para a encontrar-se unilateralmente identificado com o
vida indo de encontro à morte, já que o viver não discurso e as ferramentas da medicina, do direito
seria um alvo natural da existência para todos. ou da religião, ou seja, pode estar vendo a mor-
A questão central do suicídio é posta pelo autor te como um mal a ser tratado e combatido. Hill-
nos seguintes termos: “o que quer a alma (o ser) man questiona esse posicionamento terapêutico,
ao imaginar, ou ao realizar em ato irreversível, apontando principalmente suas bases médicas,
diante do mundo, essa possibilidade simultânea e coloca em dúvida a necessidade excessiva da
de matar e de morrer?”. prevenção do suicídio, quando não se dá uma
Hillman propõe reconhecer o suicídio como oportunidade ao paciente de elaborar os lutos
uma possibilidade genuína para qualquer ser hu- que estão em jogo. Sua crítica é endereçada à
mano, uma vez que cada um de nós tem a opção perspectiva clínica que enaltece apenas uma das
de pôr fim à vida que vive, já que “ninguém re- polaridades da díade morte-vida e privilegia a
almente pode dizer que se defrontou com a vida melhora do paciente em nome de valores que ne-
se não estiver disposto a se atracar com a morte” gam suas condições emocionais reais, sobretudo
(p. 23)2. O psicoterapeuta, por sua vez, deve su- quando ele não se encaixa ou não se adéqua ao
portar a presença da morte nos relatos e na pes- discurso vigente que preconiza ideais de saúde
soa do paciente, caso queira acompanhá-lo nessa ligados à produtividade, à negação de conflitos e
empreitada sofrida e desafiadora. à adaptação social.
Hillman problematiza, também, os aspectos capacidade de metaforização, tanto do paciente
sombrios do suicídio – agressividade, vingança, como de sua família, assim como da equipe que
chantagem emocional, sadomasoquismo, ódio- o está atendendo. Outra possibilidade advinda do
-ao-corpo –, apontando que os movimentos diálogo com a morte seria legitimar a aproxima-
suicidas oferecem pistas sobre uma espécie de ção desse personagem que pede passagem para
“assassino interior” que habita a psique. Quem entrar na vida do paciente. E nesse caso, em vez
seria esse personagem e o que ele poderia estar de adotar uma postura terapêutica que tenta he-
querendo daquela pessoa, ou de sua família, ou roicamente reverter a determinação da voz que
do entorno social? Como abordá-lo terapeutica- diz “eu quero morrer”, a questão seria deslocada
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mente? Como ouvi-lo? Como dialogar com suas para uma perspectiva simbólica: “o que em mim
demandas e necessidades, que podem não estar precisa morrer?” ou “quem em mim deseja mor-
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sendo ouvidas pelo eu dominante na constitui- rer?”. Seriam os sentidos prévios dados ao corpo
ção psíquica geral do sujeito? Se o eu, tanto para infantil ou as expectativas narcísicas depositadas
Hillman como para Jung, é apenas um dos perso- nas relações familiares? Ou, ainda, as necessida-
nagens que constituem a psique como um todo, des simbióticas vivenciadas nos relacionamentos
haveria uma oportunidade, mesmo em uma si- amorosos juvenis? Todos esses campos podem ser
tuação extrema como essa, de abrir espaço para reimaginados no contexto terapêutico, entretan-
que os demais personagens ganhassem corpo e to, o foco não seria salvar o paciente, tampouco
pudessem expressar suas necessidades ao eu, expulsar a morte dos espaços por ela habitados.
que é o sujeito da consciência, mas não de toda Pois, se a morte não pode ser considerada
a comunidade psíquica? em sua realidade psíquica, ela se lança concre-
O analista deve propor e sustentar a terapia tamente sobre o sujeito – e mesmo que não seja
como um espaço para se reimaginar a morte e considerada, ainda assim poderá ser consumada
o corpo em relação aos aspectos sombrios indi- –, como o ceifador que decepa impiedosamente
cados acima, de maneira que o paciente possa os ramos de trigo. Por mais paradoxal e angus-
trazer livremente suas fantasias e ideias a respeito tiante que essa abordagem pareça, transformar a
desse assassino que habita a psique e orbita em morte em metáfora permitiria dar um lugar para
torno do eu, tentando feri-lo e atacá-lo; ou que, as fantasias suicidas se apresentarem ao sujeito,
visto de outra perspectiva, talvez esteja fazendo seria um caminho para que ele pudesse falar de-
uma convocação para mudanças no modo como las e com elas a um outro, no caso, ao terapeuta,
a vida está sendo conduzida. Há que se tomar a à família, à sociedade, sem precisar negar essa
morte como um personagem, tal qual já foi feito pulsão. Ao contrário de evitar o tema, de desviar
diversas vezes no cinema (como em “O Sétimo a atenção e a libido do paciente para outros as-
Selo”, de Ingmar Bergman) e na literatura (“As In- suntos ou tarefas orientadas pelo ego (trabalho,
termitências da Morte”, de José Saramago), para viagem, estudos), o analista promoveria um en-
indagar dela o que precisa morrer ou o que não contro no setting com tal personagem, reconhe-
pode mais ser mantido vivo nos moldes que se cendo seu estatuto de um outro que precisa falar
encontra. Consideremos, também, que a morte e ser ouvido. Para isso, há que se considerar o
não pode ser tomada apenas como uma negação fato de existirem jovens que, apesar da idade cro-
da vida, pois inaugura novas perspectivas exis- nológica, têm condição de participar desse diá-
tenciais para o sujeito, que estão para além dessa logo, talvez muito mais do que os adultos e os
estreita oposição morte-vida. profissionais da área da saúde possam admitir, e
Dialogar com a morte, considerando-a uma que anseiam por um lugar para falar dos impulsos
personagem que tem voz ativa no setting, e falar autodestrutivos que se colocam como atravessa-
dela e de suas intenções com o eu do paciente, mentos poderosos, sem ter de se justificar ou ne-
poderia em alguns casos evitar sua literalização gar o que pensam e o que sentem. Desde que se
na passagem ao ato suicida, pois, nessa perspecti- possa identificar os recursos disponíveis ao eu do
va, o suicídio seria uma espécie de concretização jovem para empreender esse diálogo com algu-
das fantasias de morte, indicando a falência da ma clareza, é importante desvincular a adoles-
cência de um estado de total imaturidade, mais é uma morte simbólica, acompanhada de uma
ainda, é importante retirar nossas projeções sobre transformação tanto da consciência pessoal como
o adolescente ao considerá-lo incapaz de lidar do indivíduo, diante da consciência coletiva.
com certas figuras arquetípicas, como a morte. Sabemos que, no Ocidente, a adolescência
ganha outros sentidos, em função de seu con-
Sobre o caráter iniciático do suicídio texto histórico, cultural e social. O jovem está às
voltas com mudanças dramáticas que marcam
David Tacey3 – outra referência pós-jun- a passagem do mundo infantil para o mundo
guiana importante para essa discussão – apon- adulto, e essa passagem se reflete em dificulda-
ta as perspectivas espirituais (entenda-se éticas, 107
des quanto ao próprio corpo, à autoimagem e à
valorativas e morais) que podem ser observa-
sua presença no mundo familiar e social5. A falta

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das nos impulsos suicidas em jovens adultos,
de rituais que garantam ao jovem a passagem
em consonância com os aspectos psicológicos
para o mundo adulto com o amparo simbólico
estruturantes encontrados nos rituais de inicia-
do meio social gera ansiedade, angústia e senti-
ção. O autor postula que, para alguns jovens,
mentos de frustração e de baixa autoestima que
o suicídio pode ser entendido como uma ten-
são de difícil elaboração. É precisamente nessa
tativa inconsciente de ritualizar uma passagem
brecha que os impulsos suicidas podem ser vivi-
em termos psicológicos. Criticando a ausência
dos intensamente6.
no mundo atual de referências culturais e reli-
Possivelmente, o ritual mais claramente re-
giosas, assim como a falta de espaços para que
o jovem possa viver os desafios da experiência lacionado a essa passagem na atualidade seja a
de transformação da personalidade que estão entrada do jovem na universidade, que marca
presentes na adolescência, Tacey nos remete ao sua opção por uma futura carreira profissional.
pano de fundo arquetípico do suicídio. Não pode ser mero acaso que grande parte dos
pacientes que apresentam tendências autodestru-
As iniciações arcaicas são sempre testes,
tivas e/ou suicidas encontram-se nesse momento
envolvendo medos, mutilações, e grande
da vida ou um pouco antes dele, às voltas com a
dificuldade física ou mental. Em termos sim-
bólicos, tanto quanto físicos, o estado na- ansiedade e o estresse de ser aprovado e entrar
tural é superado para levar o jovem a um nesse novo universo. Na fase que antecede à en-
tipo diferente de realidade, que transforma trada na universidade, os impulsos autodestruti-
a condição herdada. (...) O movimento em vos ainda estão misturados a questionamentos de
direção à maturidade é numa certa extensão teor existencial: “quem ou o quê sou eu?”; “qual
um opus contra naturam, um trabalho con- meu lugar nesse mundo em que vivo?”; “preci-
tra o estado natural, e até mesmo uma viola- so de uma grande causa para acreditar, mas que
ção dele. É tomado como “natural” porque causa é grande o suficiente para meus esforços?”.
quer permanecer o mesmo e resiste à trans- O idealismo do jovem esbarra em uma grande
formação (p. 5, tradução nossa)3. frustração quando ele se dá conta de que vive
De acordo com Van Gennep4, a ideia funda- em um mundo em que os adultos parecem ter
mental da iniciação – que permanece ainda viva desistido de seus ideais e se mostram preocupa-
como ritual em algumas culturas – é a de que o dos exclusivamente em garantir sua subsistência
jovem precisa passar por provas que lhe assegu- ou angariar novos itens de consumo. No extre-
rem a entrada no mundo adulto. A essência do mo oposto, há também os jovens que se sentem
jovem só lhe será apresentada quando passar por impotentes para eleger qualquer objeto para seus
tais provas, já que, ao nascer, ele vem ao mundo investimentos libidinais. Ansiosos e angustiados,
como um ser incompleto. É comum, por exemplo, têm pouca condição de assumir qualquer respon-
a mudança de nome após passar por rituais de sabilidade que defina um caminho, em função de
iniciação, prova de que agora o jovem se apro- uma exigência brutal de sucesso que, apesar de
priou de seu verdadeiro ser, renascendo para uma autoimposta, reflete os padrões sociais da cultura
nova fase da vida comunitária. A iniciação, então, em que se encontram inseridos.
Eros & Psique: o Eu e os Outros Desesperada pela desgraça causada por
suas próprias mãos e loucamente apaixonada
Tomemos agora outra referência para pensar
pelo deus, Psique sente-se desolada e cai imersa
o suicídio entre jovens: o mito de Eros e Psique,
em profunda tristeza; decide, então, dar cabo da
como uma chave hermenêutica para refletir me-
própria vida jogando-se em um rio, mas esse a
taforicamente sobre os possíveis sentidos psicoló-
devolve à margem, sugerindo que ela vá em bus-
gicos para a experiência do suicídio em relação ca de Eros. Ela sai, então, pelo mundo, em busca
às fases de desenvolvimento, considerando seu do amado, e vai ter com a própria Afrodite. Furio-
caráter iniciático, em especial na adolescência. sa, a deusa entrega a jovem a suas escravas para
108 Por que esse mito? Porque nos fala dos percal- torturá-la: Inquietação e Tristeza são seus nomes.
ços da experiência do encontro com o outro e, A seguir, Afrodite indica a Psique quatro tarefas
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portanto, de deslocamentos narcísicos importan- que deveriam ser cumpridas se ela quisesse obter
tes que se dão na personalidade; e porque narci- o perdão de Eros e se juntar novamente a ele. As
sismo e alteridade são alguns dos conceitos fun- tarefas apresentam importantes significados sim-
damentais para se entender esse período crucial bólicos e representam capacidades que a jovem
chamado adolescência. deveria desenvolver. A cada tarefa cumprida, Psi-
O mito, conforme o poeta romano do século que adquiria uma habilidade que não tinha an-
II d.C. Apuleio7, trata de uma jovem mortal cuja tes, de modo que ia saindo de um estado mítico
beleza afrontava o reinado da própria Afrodite. marcado pelo que chamaríamos de uma profun-
Por conta disso, os templos da deusa haviam se da inconsciência a respeito de si mesma, para um
esvaziado, de modo que o oráculo orienta o pai estado mais diferenciado em relação ao outro.
de Psique a bani-la, entregando-a como esposa a Mas sempre que se defrontava com as tarefas, ela
um monstro que vive junto a um penhasco. desistia e tentava se matar – pulando no rio ou
Afrodite incumbe Eros, seu filho, de flechar atirando-se do alto de uma torre. Nessas horas
a jovem para que esta se apaixone pelo monstro de desespero, algo externo vinha invariavelmente
e não mais volte. Eros, no entanto, acaba ferido em seu socorro, normalmente um elemento da
pela própria flecha e, tomado de forte paixão, natureza: na primeira tarefa, por exemplo, formi-
faz com que o vento Zéfiro salve a moça, que é gas a ajudaram a separar diferentes sementes que
levada a um lugar encantado, onde tem todos os estavam misturadas; em outra, a águia de Zeus
seus desejos magicamente satisfeitos, além de ajudou-lhe a colher a água de um regato sagrado
gozar da presença do deus Eros em longas noites em meio aos dragões. No mito, Psique encarna a
de amor. Há apenas uma regra imposta por ele: imagem do desolamento, da desistência, da im-
Psique não deveria nunca ver o rosto do amado. potência e do impulso suicida diante de todas as
Ela o obedece religiosamente, até que recebe a tarefas que lhe foram atribuídas por Afrodite. Ao
visita de suas irmãs, que, invejosas da condição final, ela se une ao amado, tornando-se imortal
paradisíaca desfrutada pela jovem, agora grávi- como ele.
da, incutem nela a ideia de que não se encon-
trava casada com um deus, mas com o próprio
Um breve recorte clínico
monstro – por isso era proibida de ver sua face
– e que ele devoraria a ela e ao bebê assim que Assim como Psique, alguns jovens por mim
esse nascesse. Perseguida por essa ideia, certa atendidos que consideravam o suicídio exibiam
noite, Psique ilumina a face de Eros, que dormia quadros de ansiedade e depressão diante de de-
a seu lado, com uma lamparina a óleo, a fim safios típicos dessa fase da vida – como passar
de cortar-lhe o pescoço. O espanto de Psique é no vestibular e obter uma inserção entre seus
tamanho ao se defrontar com a beleza do deus pares, ou lidar com mudanças de escola e/ou
que ela deixa cair no ombro dele um pouco do bairro, ou ainda com a separação dos primeiros
óleo escaldante. Acordado, Eros se sente traído namorados. Outros apresentam uma desolação
e a abandona imediatamente, dizendo que ela mais melancólica, que os acompanha desde a
nunca mais o veria. pré-adolescência e é marcada pela falta de sen-
tido em suas existências, independentemente outros profissionais da área da saúde; em algu-
de eventos externos. Os sintomas apresentados, mas situações, como no segundo caso acima re-
em geral, são: depressão, ansiedade, negativis- latado, o paciente havia chegado na psicoterapia
mo, baixa autoestima, vazio existencial, abuso por meio do encaminhamento de um psiquiatra,
de drogas e automutilação, acompanhados, em sendo que já se encontrava diagnosticado e me-
diferentes níveis, de certa ideação suicida, se- dicado. Nos outros dois casos relatados, houve a
guida ou não de tentativas de morte. tentativa de oferecer ao paciente e a seus fami-
Nesse sentido, é como se os jovens estives- liares um lugar para a criação de novos sentidos
sem simbolicamente às voltas com os desafios para o que já estava estabelecido na vida, embo-
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de Psique: desejam ardentemente encontrar algo ra paradoxalmente isso acontecesse enquanto se
divino, que pudesse magicamente esvaziar o in- travava um diálogo com a morte. Inconsciente-

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tenso sofrimento pela perda de sentidos experi- mente, havia algo sendo anunciado nas atuações
mentada em suas vidas naquele momento. Não dos jovens. Não se tratava apenas de ouvir o dis-
têm forças para sustentar o desafio de descobrir curso racional do paciente ou da família, mas de
a si mesmos em meio ao desejo, às aspirações e acompanhar o discurso dos vários complexos in-
às expectativas do outro. O outro – representa- conscientes do sujeito e de seu grupo, aos quais
do pelo pai, pela mãe, pelo(a) namorado(a) – é Jung deu o status de “subpersonalidades”, que,
o grande destinatário dos apelos de amor, ódio e carregadas de afeto, podem se interpor às predis-
esperança que aparecem em cada uma das atua- posições da consciência e às diretrizes egoicas.
ções que os aproximavam da morte. Todos os envolvidos (pai, mãe, avós, irmãos, pa-
Houve uma jovem que pulou do 10º andar ciente, terapeuta), por sua vez, precisavam supor-
de um prédio e sobreviveu. Ela afirmou, diante tar a presença de um outro, dar-lhe voz e ouvi-lo,
dos pais, em uma sessão: falar-lhe sem garantias de ser por ele atendido. O
desafio terapêutico era lidar com manipulações,
Eu sei que vocês falam que eu devia viver,
traços exibicionistas e chantagens, para articu-
mas será que vocês não entendem que o
lar uma aproximação dos vivos, com a morte, a
que eu quero é morrer? Eu sei que não há
raiva, a impotência e o desamparo, evitando su-
nada na vida para eu viver, sempre foi assim
cumbir a certo furor sanandis, que pode assolar
e não vai mudar; eu não quero mais viver,
os que se encontram envolvidos com esse tipo de
porque dói demais, será que vocês podem
problemática na prática clínica – como já alerta-
aceitar isso?
ram Freud e Jung, entre outros autores da psico-
Outro jovem, levado pelos pais a apenas logia profunda.
duas entrevistas, atormentado por fantasias per-
secutórias devido a um surto psicótico, não podia
evitar fechar várias portas que levavam até seu
Considerações Finais
quarto e, mesmo medicado, em uma fuga imagi- As tarefas de Psique talvez nos falem do mo-
nária, pulou pela janela, vindo a falecer. vimento da alma para individuar-se, como diria
Outra jovem, tomada por uma profunda an- Jung. Individuação, aqui, implica um processo
gústia, dizia sentir suas forças dragadas por um psicológico de diferenciação da personalidade
imã que lhe minava todas as energias e não a em relação ao coletivo, implica a construção de
deixava sentir prazer com qualquer coisa em sua um lugar particular no mundo social, um lugar
vida, não importava o quanto os pais lhe apontas- sustentado pelos sentidos subjetivos de uma exis-
sem, do lado de fora, o que viam de lá: “uma jo- tência que suporte a presença e o encontro com
vem bonita e inteligente com tudo para ser feliz”. o outro, em si e fora de si8.
No acompanhamento desses jovens, era ne- Pensando nos dilemas éticos frente aos im-
cessário, em primeiro lugar, diferenciar as situa- pulsos suicidas do jovem, seria possível para nós,
ções em que ficava explícita uma condição psi- profissionais da área da saúde, apesar de todos os
copatológica que exigia outros cuidados além da percalços e angústias, reconhecer no adolescente
psicoterapia e, consequentemente, a procura de alguma competência para decidir sobre seu direito
a viver ou morrer? Sabemos como é difícil ofere- te, buscando abrir caminhos para dar espaço à
cer um espaço para esse questionamento, sobretu- dor e ao prazer de se descobrir e de ser o que
do porque o jovem se encontra em um momento é, ainda que tendo de suportar escolhas que se-
delicado: sua personalidade ainda está passando riam a princípio insuportáveis. Por que seriam
por transformações profundas. Mas a quem cabe- insuportáveis? Para pensar sobre essa questão,
rá, em uma equipe multidisciplinar, reconhecer teríamos de admitir que olhamos para a morte e
que o jovem, afinal, tem o direito de escolher o para o suicídio de um lugar marcado por uma
sentido que vai dar para a morte, sem lhe atestar ideia central – para não dizer que é marcado por
alguma condição psicopatológica, um diagnóstico uma ideologia –, ou, como diria Foucault9, de
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que justifique esse impulso, desqualificando sua um lugar sustentado por um discurso dominante.
escolha? Hoje já é possível admitir até mesmo a Nesse sentido, ao atender jovens que se encon-
O Mundo da Saúde, São Paulo - 2012;36(1):103-110
O suicídio e os apelos da alma: reflexões sobre o suicídio na clínica...

sexualidade juvenil – e que essa se realiza inde- tram tomados por impulsos autodestrutivos ou
pendentemente dos impedimentos dos adultos, de suicidas, somos confrontados com uma questão
diferentes formas. No entanto, ainda parece im- central: qual o discurso que rege nossa prática
possível suportar que há um sujeito no adolescen- psicológica diante da adolescência, do suicídio
te que pode desejar a morte e que pode escolher e da morte? Refletir sobre essa questão/proble-
por ela, sem que seja prontamente diagnosticado ma talvez nos permita criar recursos para ajudar
ou internado para que sua vida seja protegida e/ou nossos pacientes, sejam eles jovens ou adultos,
mantida a qualquer custo. a descobrirem seus próprios significados para a
Se a alma segue caminhos desconhecidos vida e para a morte, independentemente de uma
e aparentemente loucos para a razão legisladora necessidade ilusória de se manter o controle e
sobre a vida e a morte, caminhos que nem sem- de estratégias para preservar o paciente em nome
pre coincidem com os caminhos prescritos pela de uma ética que autoritariamente se traveste de
norma coletiva, a nós, profissionais a serviço da boas intenções, muitas vezes em favor da manu-
alma, cabe sustentar esse encontro com a mor- tenção soberana de uma morte em vida.

Referências
1. Cassorla RMS. Do Suicídio – estudos brasileiros. Campinas: Ed. Papirus; 1998.
2. Hillman J. Suicídio e Alma. Petrópolis: Vozes; 1993.
3. Tacey D. Spiritual Perspectives on Suicidal Impulses in Young Adults. In: Cox RH, Ervin-Cox B, Hoffman L, editors. Spiritua-
lity and Psychological Health. Colorado Springs: Colorado School of Professional Psychology Press; 2005. p. 107-28, chap 7.
4. Van Gennep A. Os ritos de passagem. 2a ed. Petrópolis: Vozes; 2011.
5. Cardoso MR, organizador. Adolescentes. São Paulo: Ed. Escuta; 2006.
6. Kovács MJ. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2002.
7. Brandão JS. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes; 2009. v. 2.
8. Jung CG. O Eu e o Inconsciente (1916). Petrópolis: Vozes; 1980.
9. Foucault M. A ordem do discurso. São Paulo. Loyola; 1996.

Recebido em: 10 de janeiro de 2012


Aprovado em: 2 de fevereiro de 2012

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