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A música de João Gilberto só pode ser compreendida como revolucionária quando

observada enquanto componente da tradição da música popular mais sofisticada do mundo:


João Gilberto foi profundamente brasileiro e conhecedor da música de seu país. A presença
de seu violão no disco ​Canção do Amor Demais​, como primeiro aparecimento da “batida da
bossa nova” em um fonograma, simboliza como esta sua revolução só poderia ser operada
como um elo ― modernizador, decerto ― na tradição da canção brasileira, ali encarnada
como acompanhamento aos versos de Vinícius e às melodias de Tom coroados pela voz da
Divina Elizeth.
Os ventos novos de sua arte advieram de uma gloriosa história da música brasileira,
a qual ele soube sintetizar: da batucada do samba organizada em sua milagrosa mão direita
à “domesticação” dos amores do samba-canção em seu canto privilegiando o fraseado e a
divisão natural, a emissão perfeita como em uma conversa de fim de noite, ou
apresentando-nos a si e o seu baiãozinho: “é só isso meu baião”, convidando-nos para nos
aproximarmos de seu delicado, simples e sofisticado trabalho nas novas e leves formas de
compor: “o meu coração pediu assim, só”. “Quem ouvir o ho-ba-la-lá/ terá feliz o coração”,
diz-nos outros versos de autoria daquele que merecidamente foi chamado “o Joãozinho”.
E esta história também se expressa no seu repertório de ourives, recolhidos ao seu
peito de artista desde seus anos como solista do conjunto vocal Garotos da Lua: Caymmi,
Noel Rosa, Wilson Baptista, Haroldo Barbosa, Herivelto Martins, Neuza Teixeira, Assis
Valente, Janet de Almeida, Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran, Ary Barroso… Uma
constelação brasileira que João deixa atravessar em seu canto translúcido, não como
passado, mas como matéria que abraça o porvir de Bôscoli e Menescal, Tom e Vinícius,
Carlos Lyra e Newton Mendonça, Chico Buarque, Gil, Rita Lee, Caetano... Este João do
Brasil inteiro ― muito mais que “uma pessoa conhecida” ― lançou ao mundo a novidade de
uma música jovem, inteligente e leve.
O abalo sísmico causado pelo LP Chega de Saudade e seus dois sucessores (​O
amor, o sorriso e a flor​; ​João Gilberto​) não coube somente entre nós, fez nosso país
exportar a última novidade em arte no Carnegie Hall, em Montreux, no Umbria Jazz… O
mundo rendeu-se à bossa de João Gilberto e ao projeto utópico de sua canção que se
erguia ao mesmo tempo que as linhas sinuosas de Niemeyer na moderna arquitetura:
tênues e sólidas, ambas. Outros discos vieram e o alcance da arte de João sempre
mostrou-se como acontecimento histórico, bem exemplificado pelo lançamento, no ano
passado, de seu ​blu-ray gravado em Tóquio em 2006. O que eterniza a arte do baiano de
juazeiro, munido tão somente de sua voz e o inseparável Tárrega?
A prova de sua eternidade está aqui: 62 anos após o início da revolução, João
Gilberto ainda nos reúne para ouvir suas lições. A sua herança? Uma nova forma de se
conceber e ouvir música: a voz e o acompanhamento num todo indivisível e complementar
― o intérprete como parte daquilo que canta, decantando o sentido profundo do texto
musical sem sobre ele se impor; a articulação em ​legatto de um canto que exprime na
união melodiosa de cada sílaba a profundidade de um mundo poético a ser reconhecido na
simples complexidade da fala coloquial; os blocos de acordes dissonantes delineados pela
anacruse de uma batida exata a enlaçar o Brasil moderno e a herança essencial africana de
nosso samba… por fim a exigência do silêncio para que se escute.― este silêncio levado
ao radicalismo de um João só música ― que, antes de nós, já vivia em perpétua
quarentena:
“Melhor do que isso
Só mesmo o silêncio
Melhor do que o silêncio,
só João”

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