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Sonia A.

Sigueira *

UMA RÉSTIA ENTRE OS MUROS INQUISITO-


RIAIS: AS PRISÕES DO SANTO OFÍCIO
PORTUGUÊS

O Sanro Ofícío, no desempenho de suas funções de zelador da


indegridade da ortodoxia, ondenava fossem presas pessoas contra
guem tinha acusações graves. À ordem de prisão era emitida
contra os gue estivessem indigitados em crimes. Procedimento
comum a todos os tribunais
- ciús ou eclesiásticos. O hereie,
talvez mais gue o criminoso conum era taÍnhãín considerado ele-
mento extremamente perigoso, pelo conüâgio das idéias heterodo-
xas de que podia ser Íoco. Àmeaça grave à coletividade, tanto
mais inquietante quanto antes do exame de sua conduta não estava
ainda bem definida sua periculosidade. Imperioso era pois segues-
trá-lo ao conúvio da família, dos amigos, da profissão ou de
seus bens, antes gue voluntária ou involuntariamente viesse a
causar males irremediáveis. Urgia seu confinamento, antes que
pudesse evadir-se.
Essa necessidade de identificaÍ-se os elementos que alteravam a
harmonia do panorama religioso do país, ditara, desde o início
do Santo Ofício, uma legislação preventiva. Proibia-se o afasta-
mento do Reino, principalmente aos cristãos novos. Desde logo,
mesmo antes da instituição do Tribunal da Fé, trataram disso,
por exemplo, as leis de 14.6.15321 revalidada por mais três anos
em I 535 2 e por outro triênio em 1547 3. Em I 567 publicou-se lei
para que não saíssem do Reino os cristãos novos sem licença tê.

* ProÍessor Assistente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


il da U.S.P.
íI
1. Herculano, Alexandre: "História da origem e estabelecimento da Ingui-
sição em Portugal" l3a ed. (Lisboa s/d) T Í, p. 289.
2. In Leis "Extravagantes" (1569) p. 292. Figueiredo, ]. A.: "Sinopsis"
T I p. 359.
3. Lei de 15.7.1547. Figueiredo, fosé Ànastácio de: "Sinopse cronológica
de subsídios, ainda os mais raros para a história e estudo crítico da legislação
portuguê.sa" (Lisboa, 1790\ I, p. 401.
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gia e sem darem fiança4, renovada em 1573s, 15806, €rÌt 15877,


16048, e 1610e. ExtendiaÍI-se os impedimentos de saída do
Reino às familias dos conversosr "filhos ou filhas ou netos ou
netas dos ditos convertidos do dito tempo para cá descendessem
posto gue dêles nascessem sendo já cristãos e de gualquer qua-
lidade e condição e idade que sejam" 10.
De certa Íorma, a simples proibição transformava o país em
presídio, sobretudo para aquêles que tinham o gue temer.
IJma série de cuidados presidia à expedição da ordem de prisão.
Os Inguisidores e demais componentes da Mesa Inguisitorial vota-
vam sôbre ela. Q.uando o caso era duvidoso ou grave deviam
ser consultados outros membros do Tribunal, como os deputados,
e atê o colegiado úais alto, o Conselho Geral.
Durante as Visitações da Inquisição a comarcas distantes da sede
do Tribunal, a autoridade do Visitador era bastanüe para ordenar
a prisão se houvesse possibilidade do réu evadir-se. Assim pro-
cedeu Heitor Furtado de Mendonça na Bahia em 1593, ülân-
dando prender a Belchior Francisco que andava difundindo pro-
posições errôneas sôbre a união carnal de pessoas solteiras, o que
podia conter desvio da doutrina da Igreja sôbre o sacramento do
matrimônio 11.

Ponderava-se muito os testemunhos antes de se determinar a de-


tenção de alguém. Um só testemunho era insuficiente quando
se tratava de pessoa de posição social de destaque. Não fôsse
a inveja armar cilada aos desaÍetos. O Santo Ofício esforçava-
-Se Pôfâ apurar a realidade.
Havia, no entanto, casos excepcionais, em que pela natureza da
f.alta, a Inguisição teria de contar com um testemunho apenas.

4. Lei de 30.6.1567. Azevedo, ]oão Lúcio de: "História dos cristãos novos
portuguêses" (Lisboa, l92t) p. 498.
5. Idem. Lei de 2.6.1573.
'6. Lei de 18.1.1580. Azevedo, I. L., Op. cit., p. 498.
7 . Idem.
8. Biblioteca Nacional de Lisboa (Reserwados).
9. Azevedq, ]. L.: Op. cit., loc. cit.
10. Autos das publicações que se Íizercm aos cristãos novos moradores na
província de entre Tejo e Guadiana para que não saissem de Port. sem licen-
ça. ANTT, Gaveta IÍ, l-41.
1l . Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo
ne 7 .917.
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Eram, em geral, os casos de ho,mo-sexualismo, como o de |oão


Freire, em que o Promotor exarou o seguinte parecer:
"Pou,cas razões há mister para mostrar que deve ser preso êste
foão Freire, réu pela culpa de sodomia, que conttu êle te-
sulta da confissão que fez André de Freitas, cúmplice, por-
gue demais de ser êste caso difícil para ser aprovado, que
aliás nem mesmo costuma ser praticado a não ser às €SCoR-
didas e com tôda circunspeção (gt" em uso ê. nefando e
muito dificil de f.azerl e a extirpação, e o afastamento dêste
caso é de primeira necessidade numa república cristã. E se
com uma testemunha não se houvesse de proceder à prisão
êstes casos nunca seriam castigados. E disso resultaria
grande dissolução neles. E por esta raz.âo ou, gue nos casos
de morte se procede no secular à prisão e até à tortura desde
que haja uma prova semiplena, V. M. deve mandar prender
êste réu e assim peço também aos executores da fustiça" 12.

Revestiam-s€ âS prisões de cautelas jurídicas, excluindo-se o arbí-


trio dos Inquisidores. A formação da culpa precedia as prisões
gue só se processavam mediante ordem judicial. Em princípio,
ninguém podia prender ninguém, sem presunção de culpa aferida
por juiz 13.
Prendiam-S€ oS réus para processá-los, isto é, antes da formação
da culpa. A prisão era, no caso, uma pré-condenação, visto que os
processos arrastavaln-se, com longa duração. Variável o tempo
de retenção dos réus. Dependia das circunstâncias. No contin-
gente de trabalho que tivesse o Tribunal. Do interêsse especial
pelo prêso. Do número de pessoas envolvidas na causa. Da
gravidade de matéria nela contida. Da capacidade de colabora-
ção das partes. Processos houve que duraram alguns meses.
Outros, anos. |oão Lúcio de Azevedo conta caso da Inquisição
de Coimbra que prendeu homens durante guatorze anos, para
depois concluir que eram inocentes. 14
Alguns processos arrastarafl-Se tão longamente que os presos
acabaram morrendo nos cárceres, sendo a sentença pronunciada
sôbre suas cinzas ou ossos. Agui um aspecto macabro da Insti-

12. Idem, processo no 2.557.


13. Cf. Ordenações Filipinas, L.iv. V tit. 119.
14. Azevedo, João Lúcio de: "História dos cristãos novo.s portuguêses" p, 142,

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- A.E.
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tuição: violação de sepulturas para execução de sentenças ls. A


prática não devia espantar muito a sensibilidade do tempo. O
pendor pelos temas que implicassem em dor física, ou na visão
da morte estava na ordem do dia do barroco. A pintura e a
escultura buscavam realçar o contraste da vaidade eÍêmera da
condição humana com a perenidade irreversível da morte. Para
isso deleitavam-se os homens com a representação da caveira e
tíbias descarnadas. O gôsto pela vida terrena submergia à lem-
brança da eternidade. A sugestão advinha da contemplação dos
despojos da natureza humana. O desenterramento de pessoas
para a sanção inquisitorial avivava a consciência da insignificân-
cia da carne ante os valores eternos.
Embora pudessem ser utilizados outros oficiais do Santo Ofício,
era ordinariamente o Meirinho o encarregado da prisão. A ele
devidamente se entregava, da parte dos Inquisidores, um €xpreS-
so mandado de prisão. No UltrErmar os mandados eram enüa-
dos aos Comissários da Inguisição, ou, na falta dêstes, à pessoa
mais grada da hierarquia do Santo O'ficio existente no lugar. O
réu era entregue à custódia do capitão do primeiro navio etle zart-
passe para o Reino. Êste se comprometia a levá-lo às portas do
Tribunal assim que ancorasse. Levava, efetivamente, mas mui-
tas vêzes, vendiam-se aos presos, combinando sua entrega nos
cárceres inquisitoriais após alguns dias de liberdade em Lisboa.
Assim sucedeu, por exemplo, com foão Nunes, cristão nôvo de
Pernambuco, gue foi prêso pata o Tribunal lisboeta, e, segundo
denúncia de Bento Teixeira, peitou com 300 cruzados o mestre
do navio gue o conduziu para que êste o deixasse andar por três
ou .quatro dias por Lisboa negociando seus papéis e pondo suas
cousas em ordem. O referido mestre temendo que o prêso lhe
escapasse andou com êle todos os dias em gue |oão Nunes punha
em ordem seus negócios e arregimentava amizades gue lhe Íacili-
taram depois o andamento do processo 16.
O caso de foão Nunes parece não Íoi exceção. Os comandantes
de navios
- principalmente das urcas flamengas
transporte de réus do Brasil para Lisboa
que Íaziarn o
estavam acostumados
a ser subornados pelos réus. Muitas vêzes- ajudavam-nos a fu-

15. Não era vindita nem apenas morbidez do Sto. Ofício gue inspira!'a o
extranho procedimento. Há que considerar-se gue as penitências ou frenas pu-
rificavam o condenado, mesmo depois de morto. E gue os eÍeitos da pena
transitavam para a descendência, o gue para a jurisprudência do temÍro, nem
a morte podia evitar.
16. AI\ffT, Inquisição de Lisboa, proc. ne 5 .206.
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gir. Bento Teixeira contou ao Santo Oficio que dois marinheiros


da urca Ílamenga que o levara prêso à Metrópole tinham-lhe
proposto levá-lo à noite à não levantina que estava de partida
para a ltália, em troca de 50 patacas ou de um escrito para
parentes seus, moradores em Lisboa 17.

O prêso era entregue ao Alcáide do Cárcere, juntamente com o


respectivo mandato. Do ato de entrega lavrava-se têrmo. O
réu era prêso em local determinado pelos Inquisidores. A seguir,
devia comparecer diante dêles para declarar sua f.azenda de
raiz e movel, suas dívidas e seus devedores quando a prisão
Íôra decretada com sequestro de bens 18. Dêsse rol encaminha-
vâ-s€ cópia ao luiz do Fisco. Um exemplo: o inventário dos
bens do cônego Baltazar Estácio, penitenciário da SC de Vizeu,
conforme declarações feitas pelo referido sacerdote à Inquisição de
Coimbra em l.c de agôsto de 1614.
"De raiz tinha uma morada de casas, em Évora, na rua Mou-
raria que sua irmã Luiza Estácia, freira de Santa Mônica, lhe
arrendava, não sabe ao certo por quanto".
Quanto aos móveis, citou o seguinte:
uma armação de guardamexins le de ouro verde. cinco com
duas guardaportas 4, e não dâ f.ê ao presente de quantas peles
são novas;
outra armação de panos de Raz, de figuras, também cinco
com duas guarda-portas já usados, de figuras;
sete ou oito painéis de santos;
um escritório de nogueira usado;
sete cadeiras de espaldas e duas rasas;
três arcas encouradas;
quatro ou cinco arcas de pau;
dois bufetes e duas mesas;
uma harpa e um manicórdio;
uns caixões e umas estantes de livros;
dois pavilhões, um de linho e outro de raxeta 21 verde € €scâ-
pelos dos mesmos;

. ÀN:fT. Inquisição de Lisboa, proc. 5.206.


17
18. À prisão era acompanhada de sequestro de bens, quando seu motivo hou-
vesse sido a heresia, mas só a condenação implicava em confisco deÍinitivo.
Essa era a lei, pelo menos.
19. Tapeçaria antiga, Íeita de couro com pintura e dourados.
20. Reposteiros em pano dc algodão grosseiro.
2I. Pano de algodão grosseiro.
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dois catres, um da India, outro da terra;


sete ou oito colchões;
uma colcha gue trouxe e um cobertor azul e outro de papazz;
um cobertor de cochonilha 23 com barras de veludo vermelho;
cobertores de papas que tinham os seus moços;
lençois, guardanapos, toalhas de mesa e toalhas de mão, tra-
vesseiros e almofadas, não sabe ao certo guantos tem;
três ou guatro sobrepelizes;
um vestido preto gue trouxe pelo caminho e tem-no no cár-
cere com outro de catasol2a, lôba 25 e um mantéu 26 debaeta2T
que lá tinha;
uma cadeia de aço com um crucifixo de ouro que ftaz consigo;
uma dúzia de colheres e garfos de prata pouco mais ou menos;
estanho e outras miudezas de cozinha, de que não se lembra;
uma duzia de porcelanas da India e de Lisboa.

Alem de 7 ou 8$000 em dinheiro, declarou várias quantias que


lhe eram devidas, para garantia das quais tinha como penhor
obletos de ouro e prata. Referiu-se também a uma viola metida
em sua caixa encourada, de cinco cordas de pau de freixo de
Alemanha, lavrada com laçarias de marfim e pau preto, guer nas
costas, quer no braço e tampão com três fios de marfim e pau
preto, ao redor; pertencia a Belchior Dias de Castela 28.
O inventário do cônego pos em evidência suas posses. A casa do
sacerdote era muito bem mobiliada para o tempo: cadeiras, arcas,
bufetes, mesas, tapeçarias. Possuía sete cadeiras de espaldar, o
gue significava privança com pessoas de qualidade gue tinham di-
reito de assentarem-se em tais cadeiras. Suas roupas eram finas:
linho e debruns de veludo. Colheres e garfos de prata revelavam
um trato especial, uma vez gue o uso de tais objetos só se vul-
garizou no fim do século seguinte. Curiosa a ausência de facas
e a pouca quantidade de roupa de uso pessoal relacionada: a
rigor apenas as que trajava no momento da prisão. Seria uma
compensação pelo requinte do interior de sua residência? Ou a

22. Cobertor de papa : cobertor de lã basta, muito espêsso e felpudo.


23. Cobertor de linho felpudo.
24. Tecido de lã fino e muito lustroso.
25. Túnica aberta usada como traje escolástico; batina.
26. Capa com colarinho estreito gue os padres usavam por cima das túnicas.
27. Pano de Iã felpudo.
28. Baião, Antonio: "Episódios dramáticos da Inquisição Portuguêsa" (Lisboa.
1936) I, p. 84-86.
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eterna preocupação com a aparên'cia -, humilde e reservada como


convinha a um padre - que parece ser comum ao tempo?
Quanto às suas rendas pessoais, nosso cônego aumentavã-ãs ãtÍã-
vés da penhora. Os ob;etos de ouro e prata gue guardava, em
troca de empréstimos feitos ficaram a indicar uma larguesa de
consciência ou um abrandamento da posição da Igreja em relação
aos problemas da usura.
O relatório de bens sequestrados pelo Santo Ofício a seus presos
ficararn como testemunho da condição social dos réus na Inguisi-
ção. Servem de amostragem de usos e costumes: condições de
habitação, móveis usados, roupas e tecidos do tempo. Indicam
as relações sociais e profissionais do prêso, nos elencos de deve-
dores e credores. Dão informações sôbre passatempos e distra-
ções preferidas: na casa de Balta zar Estâcio, por exemplo, havia
uma harpa, um monicórdio e uma viola, além de caixões e estan-
tes de livros.
Nos casos de prisão sem seguestro de bens os presos deviam
levar até 20$000 para seu sustento, se fossem pessoas de pos-
ses. Não o sendo, levariam o que pudessem, ou até nada, sendo
sustentados integralmente pelos cofres da Inquisição 2e. E houve
muitos presos nestas condições. Os repertórios dos presos po-
bres, que constituem vários livros dos arquivos do Santo Ofício,
ficaram como prova 30.
Os cárceres do Santo OÍicio por certo eram temíveis como todas
as prisões de todos os tempos, particularmente naquêles, guando
se cuidava de f.azer sofrer os que a justiça marcava.
Perseguido e prisioneiro na Torre Velha descrevia, no meado do
século XVIII o Íidalgo Francisco Manoel de Melo, num so-
neto, a célula em que vivia:
"casinha desprezível, mal forrada: furna lá dentro mais que
inferno escura; fresta pequena, grade bem segura; porta só
para entrar, logo fechada; cama gue é potro, mesa clestron-
cada..." 31

As prisões do Santo Oficio não seriam piores gue os demais cár-


ceres do tempo. Se eram incômodas, anti-higiênicas, pouao ilumi-

29. Regimento da Inquisição de 1613 tit. IV $ 9.


30. Refiro-me aos Livros de Despesas com os Presos gue se encontram dis-
persos nas çárias estantes do Arguivo da Torre do Tombo.
31. In "Obras Métricas" soneto XI da Tuba de Calíope. Apud Prestage, E.:
D. Francisco Manoel de Melo (Coimbra, l94l) p. 218.
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nadas, não haveria nisso deliberada maldade do Tribunal. Nas


construções de então, a falta de funcionalidade, o mínimo de con-
fôrto permitem imaginar-se o gue teriam sido os cárceres. prin-
cipalmente quando constituiam lugares de expiação de culpas co-
metidas contra Deus e contra a sociedade. Muitas vêzes usõr-
rêrÌr-se as prisões do Estado para os réus da Inguisição. Não
seriam melhores as prisões do Estado. Na segunda metade do
século XIX (1860), o dr. foão Maria Batista Calisro publica-
va no "Instituto" 32 exptobações clamando às autoridades públicas
portuguêsas pela reforma das prisões:
"EncontrâE-se muito frequentemente cadeias cuja capacida-
de não está em proporção com o número de indivíduos que
as leis e o govêrno determinam nelas encarcerar. Algumas
nem ianelas têm e em muitas elas são tão pequenas, elevadas
e abertas em paredes de tal grossura que a luz do sol não
pode ou mal pode por ela penetrar. . .
É obleto digno da maior atenção e cuidado a grave influência
dos vasos de despejo, indispensâveis nas prisões, principal-
mente quando aquelas são mal construidas. . . vasos sobretu-
do de pau, frequentemente descobertos, nunca despeiados
mais do que uma vez cada dia e ainda com mais longos inter-
valos..." 3l

Nada parece indicar fossem os cárceres inquisitoriais enxovias


ou tumbas sem ar e sem luzsa. Hipólito da Costa gue os expe-
rimentou não os descreve terrificantes:
"LIm pequeno quarto de doze pés por oito, com uma porta
para o corredor, e nesta porta duas grades de ferro distan-
tes uma da outra a grossura da paredê, que é de quatro pal-
mos, e por fóra destas grades hâ outra porta de táboa; no
cimo desta porta de táboa fica uma bandeira ou fresta, por
onde entra no cárcere a claridade reflexa, que lhe pode vir,
-fóra
da luz do corredor, a qual o corredor de tecebe das

32. Vol. VIII, p. 204-2A6.


33. Vol. cit. do "Instituto", p. 2A5.
34- O próprio Llorente, no seu acrimonioso iulgamento sôbre o Santo Ofício,
nega gue os cárceres fôssem"calabouços fundos, húmidos, imundos, insalubres,
como sem verdade escreveram alguns enganados por narrações incertas e exa-
geradas dos que padeciam neles, pois comumente são peças áltus, abobadadas.
com luz, enxutas e confortáveis". Llorente, I. A.i Histoire " critique rle
I'Inquisition d'Espagne depuis l'époque de son éiablissement par Ferdinand V
jusgu'à règne de Ferdinand VII" (Paris. 1818) II, pg. l8Z.
9l

janelas, que tem para os saguões. Neste pequeno quarto


havia um estrado de táboa com um enxergão gue servia de
cama, uma bilha com âgua, e um vaso para as necessidades
da natureza, gue se despojava de oito em oito dias. Este
cárcere é de abóbada por cima e por baixo; e o pavimento
de tijolo, e como as paredes são de pedra e mui grossas é o
aposento no inverno, sôbre muito frio. tão húmido, que as
paredes e grades estavam muitas vêzes cobertas de gotas
de água como de grosso orvalho" 35.
Os cárceres da Inquisição de GOa foram aliube do Arcebispo,
posteriormente aumentados com a compra de algumas casas e
adaptação de outros aposentos como as vinte prisões peguenas
e duas grandes feitas no palácio do Sabaio, que fôra até 1554
moradia dos governantes e vice-reis 36.
O desconfôrto certamente não era apanágio exclusivo dos câr.
ceres inquisitoriais. O que provocava revolta era antes o fato de
serem atirados a êle indiscriminadamente inocentes e culpados,
às vêzes durante anos inteiros antes de qualquer condenação. Os
Tribunais do Santo OÍício Íaziam prender os suspeitos para pro-
cessá-los, pela mera culpa de serem suspeitos. E assim muitas
condenações acabavam parecendo alívio paÍa os prisioneiros. A
pena resultava menos dura que a espera dela. Era lenta ê ÍrâÍ-
cha dos processos. E lentamente se morria de angústia nas
expectativas sem fim, purgando-se â própria inocência ofuscada
pela condição de suspeito. Menos que o desconfôrto dos cár,ce-
res, a injustiça da situação de prisioneiro podia doer em quem
não tinha, em conseguência, possibilidades de dispor sua própria
defesa, livrando-se solto.
Aos presos apenas tinham acesso o alcáide e os guardas da pri-
são, mas só lhes falavam com licença do Inquisidor 37. Nos pri-
meiros tempos incumbiu-se o alcáide de aconselhá-los sôbre as
vantagens da auto-acusação, No entanto, o costume deve ter

35. "Narrativa da perseguição de Hipolito |osé Pereira Furtado de Mendonça"


(Londres, 1881) vol. 1, p.37. A descrição foi feita ao findar do século XVIII,
mas os cárceres de Lisboa eram os mesmos de fins do XVI: os Estados.
36. Baião, Àntonio: "4 Inquisição de Gôa; tentativa de história de sua ori-
gem, estabelecimento. evolução e instituição". (Lisboa, 1949) p. 31 e 4.5.
37. Regimento do Santo Oficio da Inquisição de Portugal (1552) cap. IIL
Idem de 1613, tit. X $ l0 e 14 publ. respectivamente in "Arquivo Histórico
Português" V, p. 302 e segs. e "Coleção Cronológica da Legislação Portu-
guêsa" vol. 1613-19 p. 24 e seg:s.
92

apresentado desvantagens pois o Regimento de 1613 vedou tal


prática.
Homens e mulheres ficavam apartados nos cárceres. Geralmente
isolados, Cuidava-se que não se vissem os presos uns aos outros,
nem ficassem a distância de gue se pudessem ouvir ou entender.
Isto mandava as leis. A realidade, esta era muito outra.
Eventualmente, depois de longos meses decorridos da prisão, os
detidos identificavam seus vizinhos de celas e com êles passavam
a se comunicar através de pancadas na parede contadas pelas
letras do A.B.C. São significativas as denúncias feitas aos Inqui-
sidores de Lisboa por Bento Teixeira. Cristão novo que era, e
cripto-judeu, merecera êle a confiança dos demais cristãos fingi-
dos. Identificado no cárcere, passou a integrar, como elo, a ca-
deia de intercomunicação dos réus. Através dele, por exemplo,
Inês Lopes f.ez saber à irmã, Beatriz Gomes, que confessara numa
das audiências que tivera com os Inguisidores. O recado foi dado
a Diogo Dorta que o passou a Bento Teixeira, êste a Gaspar
Lopes que o transmitiu a Beatriz Gomes. Constava do seguinte:
"Sua irmã, Inês f.opes, que está na cela do corredor do meio,
Ihe beija as mãos e lhe faz saber que está jâ confessada e que
deu em todos seus irmãos e irmãs e só em seu marido não. Que
lhe pede pelo amor de Deus que vá sem mais detença nenhuma
confessar suas culpas" 38. Havia tôda uma política de conduta
dentro dos cârceres. Um conÍessado que acusasse outros fazia
saber o teor de sua conÍissão, para gue o implicado falasse, e
assim se lhe desse crédito e por sua vez se resguardasse. O
cripto-iudaismo continuava vivo mesmo dentro dos cárceres. Atra-
vés das batidas os presos se amparavam e consolavam mutua-
mente. Principalmente evitavam a angústia da solidão e do si-
lêncio.
Às vêzes um dos presos interrompia as comunicações. Resolve-
ra trair os companheiros, como o f.ez Bento 'Ieixeira, e a f.azer o
i_ôgo dos Inquisidores. Êste réu decidiu,se a pressionar Diogo
Dorta a confessar, e paÍa tal não mais lhe falou. É êle mesmo
quem o conta i "pvz-me em extremo de não lhe falar mais nem
de lhe bater ainda na parede. E êle vendo-se num caos € coÍr-
!u_são litigiosa, sem ter quem lhe falasse, nem respondesse, pediu
Mesa um dia à tarde. e vindo de lá me bateu na parede, pedin^
do-me pelas chagas de ]esus Cristo que lhe falasse" 3e. A so-
lidão devia pesar e muito na determinação dos presos!. . .

38. ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. ne 5.206.


39. ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. nç 5.206,
93

Lutando valorosamente para combater o isolamento, Íaziam os


presos buracos nas paredes das celas. "E depois gue os guardas
â noite visitavam uó casas, abriam os ditos buracos e se punham
a Íalar, com um acento tão brando e Sossegado, gue nem os pró-
prios que estavam na casa, SeuS companheiros, entendiam o que
Íalavam se não chegavam muito perto. E por êstes ffiesmos bu-
racos se casavam alguns com mulheres porgue eram buracos por
onde Se enxetgavam muito bem os rostos e Se davam e tomavam
pÍes€nte5" 4o. O relatório é ainda de Bento Teixeira, que contou
aos juizes da f.ê ter, através de um dêsses buracos, prometido
diante de cinco testemunhas que saindo dos cárceres casaf-se-iâ
com Maria Henriques de Salvaterra, obrigando-se ambos, com
solene juramento e promessas 41. Da mesma maneira combinaram
casamento Afonso Fidalgo com Margarida Lemos, o que ârrâÍr-
cou de Bento Teixeira comentário sôbre a bondade de Deus "como
ê aquí câsêr€Ír-sê mulheres em nada, que lâ f.ora, postas em
sua liberdade e com arrazoados dotes, não foram aceitadas" 42.
Pré-história das agências matrimoniais. . .
Apesar de todas as proibiçóes e vigilâncias, parece que os cris-
tãos novos principalmente os gue iam presos do Brasil
conseguiam comunicar-se com seus amigos e parentes dando-lhes
conta do têrmo em que andavam seus processos, escrevendo em
papel ou em panos de linho delgado ou lenço c,ue engoÍnavam,
entregando tais escritos aos gue deviam sair sentenciados proxi-
mamente. Êstes coziam-nos no gibão ou no colchão, e depois,
fora do Santo Oficio entregavaf,-Dos aos destilatários. Atra-
vés dêsses escritos, os réus aliciavam as testemunhas Çu€ nâs con-
traditas a3 poderiam depor a seu favor, combinando com elas o que
deviam dizer pata dar tôda a aparência de verdade em suas de-
clarações. Bento Teixeira confessou ter-se servido dêsse pro-
cesso, comunicando-se de Lisboa com Diogo Meireles e com o
Pe. Simão Proença, ambos cristãos novos de Pernambuco, sâ-
bendo depois, por êles (através de comunicações cozidas nos gi-
bões de outros réus que do Brasil chegaram presos a Lisboa)
quais as pessoas que o haviam acusado na Mesa aa. Caia dessa
Íorma por terra, pelo engenho humano, o segrêdo do nome das
testemunhas. Mais: através dessas comunicações os presos coÍr-

40. Ibidem.
41. Ibidem.
42. Ibidem.
43. Prova testemunhal da defesa, no processo inquisitorial.
+4. Proc. citado.
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fiavam aos amigos de fóra o nome dos Inquisidores que os ha-


viam de julgar, para as providências que fossem cabíveis: infor-
rrêvâlr-se sôbre o andamento dos pedidos de perdão geral gue
constantemente os da nação negociavam com o Rei e com o Papa.
A possibilidade da proclamação de um dêsses perdões, €râ rtro-
tivo para que se continuassem as negativas de confissão por
parte dos réus.
Algumas cautelas tinham os presos nesses documentos que envia-
vam dos cárceres. Llsavam linguagem tôda especial, que devia
ser compreendida apenas pelos judeus. Pelo menos assim o
criam, pâÍece-Íros gue com boa dose de ingenuidade. Um
exemplo:
"Título das palavras que usa a gente de nação de cá quando
escreve ao Brasil a seus parentes o que passa acêrca do Santo
Oflcio e do perdão gue esperavam.
Sabereis que o nosso Troiano é na realenga a negociar com
a Aguia de bico revolto aquilo de que menos temos, e de que
mais havemos necessidade. Temos esp€rança em Senhor
Deus que acabaram o que Manoel sem arte não pode levar a
nós. Temos para isso na nossa cevadeira a conserya das
azeitonas e a pedra alva que não é mau terço de Nápoles
para esta postema de tantos anos vir a furo, além dos sobre-
ditos temos por melhores terceiros Martim f.ouro e Pascoal
Branco que são os gue mais acabam no tempo de agora. Mas
sai-nos ao encontro a fonte seca de Castelo Branco, e Arriba
Eanes arriba com um Deus sem nosco que serviu no cano
real muitos anos. Estes escrevem a Aguia voante que ponha
os olhos no seu sol e gue não venda o cordeiro pascal por
respeito de Martim Louro, e Pascoal Branco: que se isto
não fôra já não houvera tomar tantos fardos por perdidos
como se tomam nessa alfândega real. E nas travas exterio-
res de Palestina e no cano real que tudo recolhe aonde presi-
dem por oficiais dêle e pelo dos maus ares e o chegado à
traidora casa que como vem os fardos pendurados diz que
os deçam que êle fica por seu fiador e assim move aos do-
nos dos fardos a dizerem que guardam tôda a sua vida a
palavra ao gago embelezado: o que é causa dos pobres far-
dos sairem todos lacrados com umas sarapilheiras por cima,
dando sinal que lhe cantaram Reis à porta. Na alfandega
real servem os seguintes
gue assim como é seca lava- a os
fonte seca de Castelo Branco
fardos de vagar e ê. um
mar de enfadamepfs primeiro que vos desembargue um.
-
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O outro é Deus sem nosco, que serviu como tenho dito no


cano real muito tempo. Este não sofre dilação para desem-
bargar, ou julgar por perdidos os fardos, mas tudo remoe
em breve tempo. É mecânico de seu ofício, e assim que-
rem os donos gue os fardos saiam lacrados mais da mão dêste
gue desembargados da mão da fonte de Castelo Branco. O
outro é arriba eanes arriba, Portugal o velho, algum tanto
mais inclinado ao desembargo dos fardos que o de Castelo
Branco. Mas no meio dêste rigor foi o senhor Deus nosso
servido dar-nos por provedor mór da alfândega real um mato
alegre, e aprazivel, que com sua verdura nos dá boas espe-
ranças e junto dêle um que se ousa a intitular de padroeiro
de Espanha, gue o não deixa de ser para os fardos.
E logo a par dêstes dois, os marcos tecidos na ponta de
Paris tendo por cabo de esguadra o esfolado da Arrábida,
diante de Castelo Branco serve o Aibexim de meia vista, que
ainda gue curto dela, e muito mais do que nós, não o pé
para o despacho dos fardos.
O gotoso Egroi está aposentado em uma das casas que foram
um fardo gue na alfândega saiu lacrado, e tinha por título
a Luis Rei de França, e o santo de Assis. Assistem tam-
bém com a fonte seca, e com Deus seu nosco e arriba eanes,
o benigno Sebasto pastor anular em quem adora toda Bealis
descanço do pastor Castrense e iunto do anular o Barro pa-
duense todos de boa feitura. Estes anos atrás mandou a
Aguia voante visitar a alfândega real as suas exteriores e o
cano real per o Begio manco, gue no tempo de Sebasto foi
letra vogal do A.B.C. português. E tal foi a sua vida e
saúde qual foi a visitação, que se muitos fardos se tomavam
por perdidos dantes, mais se tomam agora depois dêle visi-
tar. Perdemos muito no couce da porta se ir do Reino. Rogai
a Deus que enderece tudo suavemente".
Convertido em linguagem portuguêsa, quer dizer
"Havia de saber que o nosso Heitor Mendes é na terra de
Madri a negociar nossa liberdade com el-rei Felipe: temos
esperança em o Senhor Deus que acabará o que Manuel
Duarte não poude. Temos de nossa mão para efeito disso,
o Moura e Pedralvares que não são mais terceiros para
este negócio que ha tanto que se procura ter bom fim. E
alem destes tenceiros temos por melhores terceiros e que com
el Rei nosso dagora acabam tudo o ouro e prata. Mas
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desta nossa pretenção temos por contrários os Inquisidores


Bartolomeu da Fonseca natural de Castelo Branco, com o
Ribafria e Manoel Alvares Tavares gue serviu de Inquisi-
dor muitos anos em Évora. Estes escrevem a el-Rei que
ponha os olhos em o seu Deus e que não venda o sangue
de Cristo pelo ouro nem pela prata, que se isto não fora
jâ não houver prender tanta gente da nação nos carceres
de Lisboa como prendem a cada dia nem em Évora nem
em Coimbra. Em Évora são Inguisidores Lopo Soares, dom
foão de Bragança, o gual como nem os presos no tempo dos
tratos pendurados para lhes darem tratos diz decei-vos
gue eu fico por fiador, que êle confesse sua culpa, o gue é
causa de dizerem o confessarem gue toda a sua vida foram
judeus e de sairem sambenitados todos. Na Inquisição de
Lisboa servem os seguintes: Bartolomeu da Fonseca natural
como já disse de Castelo Branco, gue assim como tem nome
de fonte seca despacha os presos de vagar e ê um mar
calmoso sem vento e mui enfadonho primeiro gue faça um
auto. O outro ê Manoel Alvares gue serviu em Évora
como tenho dito muito tempo de Inquisidor. Êste ê dili-
gente e não sofre dilação e da digestão aos negócios de pres-
sa e assim os presos guerem sair antes de sua mão sanbe-
nitados pela brevidade de que usa, que livres da mão de
Bartolomeu Fonseca. O outro é o Inquisidor Ribafria ho-
mem de tempera velha e mais bem inclinado para o despa-
cho dos presos que o Fonseca Ílâs no meio de tanto ri-
gor como usa o Fonseca foi o- senhor Deus nosso servido
dar-nos um Dom Antonio Matos bispo de Elvas e um dorn
Diogo de Sousa junto dele logo com Marcos Teixeira. E
êste dom Antonio Matos nos dá apraziveis mostras e boas
esperanças com sua brandura. E Diogo de Sousa, com sua
nobreza e Marcos Teixeira com sua estrangeira facilidade.
E por notário serve diante dêstes Bartolomeu Fernandes gue
esteve recolhido na Arrábida. Diante do Fonseca senre Si-
mão Lopes de notário o qual inda que curta da vista e
pegueno de corpo não ê curto na diligência e cuidado no
gue toca a soltura e despacho dos presos. )orge Martins
que era notário diante do Fonseca por doente da gota estâ
aposentado em umas casas gue foram de Luis Francisco o
gual saiu penitenciado, perdeu as casas. Corn os três Ingui-
sidores a saber Fonseca, Manoel Alvares e Ribafria assis-
tem por acompanhados o benigno bispo de anel dom Se-
bastião e Antonio de Barros homens bem inclinados. No
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dom Sebastião bispo adora toda Lisboa por ser benigno e


bem inclinado e é todo o descanço e refrigerio em todo êste
arcebispado a dom Miguel de Castro arcebispo da Lisboa.
Estes anos atraz mandou el rei Felipe visitar as inquisições
deste Reino a de Lisboa, a de Évóra e a de Coimbra as
guais visitou Martim Gonçalves da Camara que em tempo
del rei D. Sebastião governou o Reino. E tal Íoi sua saúde
e vida gual foi a visita que êle Í.ez que se antes disso pr€n'
diam muita gente da nação muita mais prendem agora e
penitenciam. Perdemos muito em se ir o Cardeal do Reino.
Rogai todos ao senhor Deus gue encaminhe e ordene todas
as nossas coisas bem e favoravelmente" 45.
O documento ficou a testemunhar a luta heróica de homens que
ap€sar de todas as dificuldades tentavam sempre manterem-se
fiéis a sí próprios. Primordialmente manterem-se homens. Essas
tentativas de comunicação fugiam à regra da vida.
AÍastados quer do contacto com o exterior, quer do convívio
com os companheiros de reclusáo a maior parte dos detentos era
constituida por homens ilhados, condenados a serem companhias
de sí mesmos. Estavam impedidos de externar suas desventu-
ras, desconsôlos ou revoltas, cerceados em sua vida mental. Não
surpreende que cada vez se sentissem mais alheados ao universo
de seus carcereiros. Nos rápidos momentos de entrevista com
os Inguisidores falariam linguagem diferente da dêles. Eram
homens sós. Solidão que os tribunais prolongavam deliberada
ou involuntariamente. Quando chegava a hora do diálogo êste
não era mais possível. Tão pouco querido. Convencidos por
fim que sua presença podia ser danosa a outrém, acabavam te-
merosos do mal que suas palavras pudessem causar a êles pró-
prios. Às vê,zes calavam-se obstinadamente. Ou falavam sem
conta. Há os gue se punham a acusar desiquilibradamente a
todo o mundo. Ignorando que os denunciava, atingiam a to-
dos os prováveis delatores na esperança de acertar no autor de
su:rs desditas. Eventualmente aproveitavam os raros momentos
cm gue se lhes ordenavam que falassem, diante da Mesa, pata
damar urgência no despacho.
Não se conhecem, se existiram, relações escritas dessas angústias
íntimas geradas pelo isolamento, pela falta de calor humano,
atmosfera na gual os cárceres acondicionavam os seres. Os

At- fXaraçao prestada por Bento Teixeira aos 17 .12.1599 in proc.


5-ã5 dÈ

L
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gue de lâ egressavam prometiam silêncio. Possivelmente ÍIeÍÌ vor-


tade teriam de quebrá-lo. Abertas as portas do Santo Oficio, delas
saiam homens gue haviam de guardar a lembrança de suas prísões,
pela vida afora. Lembrança que eram nódoas para seus descen-
dentes. O desejo do esquecimento tanto quanto o temor de
voltar selava os'lábios. Podemos apenas imaginar através dos
documentos gue registram os processamentos inquisitoriais, os
dramas psicológicos que os cárceres deviam criar: os próprios
Regimentos proveem sôbre os gue se matam ou enlouquecem
nas prisões. . .

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