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MURILO MENDES
(1901 ‐ 1975)
Canção do exílio Minha filha é também Gilda,
Pro costume não perder
Minha terra tem macieiras da Califórnia É casada com o espelho
onde cantam gaturamos de Veneza. E amigada com o José.
Os poetas da minha terra Qualquer dia Gilda foge
são pretos que vivem em torres de ametista, Ou se mata em Paquetá
os sargentos do exército são monistas, cubistas, Com José ou sem José.
os filósofos são polacos vendendo a prestações. Já comprei lenço de renda
A gente não pode dormir Pra chorar com mais apuro
com os oradores e os pernilongos. E aos jornais telefonei.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda. Se Gilda enfim não morrer,
Eu morro sufocado Se Gilda tiver uma filha
em terra estrangeira. Não põe o nome de Gilda,
Nossas flores são mais bonitas Na menina, que não deixo.
nossas frutas mais gostosas Quem ganha o nome de Gilda
mas custam cem mil réis a dúzia. Vira Gilda sem querer.
Não ponha o nome de Gilda
Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade No corpo de uma mulher.
e ouvir um sabiá com certidão de idade!
O utopista
Reflexão n°.1
Ele acredita que o chão é duro
Que todos os homens estão presos
Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Que há limites para a poesia
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Que não há sorrisos nas crianças
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Nem amor nas mulheres
Deus de onde tudo deriva
Que só de pão vive o homem
E a circulação e o movimento infinito.
Que não há um outro mundo.
Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.
A mãe do primeiro filho
Carmem fica matutando
Gilda
no seu corpo já passado.
Não ponha o nome de Gilda
— Até à volta, meu seio
na sua filha, coitada,
De mil novecentos e doze.
Se tem filha pra nascer
Adeus, minha perna linda
Ou filha pra batisar.
De mil novecentos e quinze.
Minha mãe se chama Gilda,
Quando eu estava no colégio
Não se casou com meu pai.
Meu corpo era bem diferente.
Sempre lhe sobra desgraça,
Quando acabei o namoro
Não tem tempo de escolher.
Meu corpo era bem diferente.
Também eu me chamo Gilda,
Quando um dia me casei
E, pra dizer a verdade
Meu corpo era bem diferente.
Sou pouco mais infeliz.
Nunca mais eu hei de ver
Sou menos do que mulher,
Meus quadris do ano passado...
Sou uma mulher qualquer.
Ando à‐toa pelo mundo.
A tarde já madurou
Sem força pra me matar.
E Carmem fica pensando.
O filho do século Cartão postal
Nunca mais andarei de bicicleta Domingo no jardim público pensativo.
Nem conversarei no portão Consciências corando ao sol nos bancos,
Com meninas de cabelos cacheados bebês arquivados em carrinhos alemães
Adeus valsa ʺDanúbio Azulʺ esperam pacientemente o dia em que poderão ler o Guarani.
Adeus tardes preguiçosas Passam braços e seios com um jeitão
Adeus cheiros do mundo sambas que se Lenine visse não fazia o Soviete.
Adeus puro amor Marinheiros americanos bêbedos
Atirei ao fogo a medalhinha da Virgem fazem pipi na estátua de Barroso,
Não tenho forças para gritar um grande grito portugueses de bigode e corrente de relógio
Cairei no chão do século vinte abocanham mulatas.
Aguardem‐me lá fora
As multidões famintas justiceiras O sol afunda‐se no ocaso
Sujeitos com gases venenosos como a cabeça daquela menina sardenta
É a hora das barricadas na almofada de ramagens bordadas por Dona Cocota Pereira.
É a hora da fuzilamento, da raiva maior
Os vivos pedem vingança
Os mortos minerais vegetais pedem vingança
É a hora do protesto geral Corte transversal do poema
É a hora dos vôos destruidores
É a hora das barricadas, dos fuzilamentos A música do espaço pára, a noite se divide em dois pedaços.
Fomes desejos ânsias sonhos perdidos, Uma menina grande, morena, que andava na minha cabeça,
Misérias de todos os países uni‐vos fica com um braço de fora.
Fogem a galope os anjos‐aviões Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos.
Carregando o cálice da esperança Um anjo cinzento bate as asas
Tempo espaço firmes porque me abandonastes. em torno da lâmpada.
Meu pensamento desloca uma perna,
o ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa dos namorados.
Modinha do empregado de banco Eu sou o olho dum marinheiro morto na Índia,
um olho andando, com duas pernas.
Eu sou triste como um prático de farmácia, O sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força do homem.
sou quase tão triste como um homem que usa costeletas. A outra metade da noite foge do mundo, empinando os seios.
Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher Só tenho o outro lado da energia,
mas só ouço o tectec das máquinas de escrever. me dissolvem no tempo que virá, não me lembro mais quem sou.
Lá fora chove e a estátua de Floriano fica linda.
Quantas meninas pela vida afora!
Guernica
E eu alinhando no papel as fortunas dos outros.
Se eu tivesse estes contos punha a andar
Subsiste, Guernica, o exemplo macho,
a roda da imaginação nos caminhos do mundo.
Subsiste para sempre a honra castiça,
E os fregueses do Banco
A jovem e antiga tradição do carvalho
que não fazem nada com estes contos!
Que descerra o pálio de diamante.
Chocam outros contos para não fazerem nada com eles.
Também se o diretor tivesse a minha imaginação
A força do teu coração desencadeado
o Banco já não existiria mais
Contactou os subterrâneos de Espanha.
e eu estaria noutro lugar.
E o mundo da lucidez a recebeu:
O ar voa incorporando‐se teu nome.
Pré‐história
Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou‐se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, para ninguém!
Cai no álbum de retratos.