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Demétrio Magnoli (/colunas/demetriomagnoli/)

Consequência da morte de Bolsonaro seria sua


vida política eterna
Torcida por sua morte esconde desejo de borrar raízes do extremismo de direita

10.jul.2020 às 23h15

EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2020/07/11/)

Sempre leio Hélio Schwartsman, concordando e discordando, porque


aprecio a qualidade de seu texto e divirto-me com sua férrea lógica
consequencialista. Águias também fazem voos rasantes, mas dessa vez ele
passou do ponto: “Por que quero que Bolsonaro morra
(https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2020/07/por-que-torco-para-que-bolsonaro-morra.shtml)”

(Folha, 8 de julho) é uma traição a meus princípios e, mais importante, uma


dupla traição à filosofia do próprio Schwartsman.

O argumento de que a morte de Bolsonaro por Covid-19 salvaria vidas é uma


aplicação restritiva, quase infantil, do consequencialismo. Há mais entre o
céu e a terra do que a pandemia (https://aovivo.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/07/06/5916-
acompanhe-todas-as-informacoes-sobre-a-pandemia-de-coronavirus.shtml). O exame especulativo sobre
as implicações de hipotético falecimento presidencial não pode se cingir à
ótica exclusivista da epidemiologia.

Bolsonaro enfrenta a encruzilhada decisiva de seu (des)governo. Na base


social remanescente da extrema direita, que não é insignificante, sua morte
súbita teria o condão de salvá-lo da desmoralização, elevando-o a um
pedestal inexpugnável. O falso mito se tornaria, então, Mito.

A consequência mais ampla de sua morte biológica seria sua vida política
eterna. Em torno da tumba de um Messias de cartolina, se reuniriam novas
gerações de extremistas dispostos a assombrar a democracia brasileira.

Eu, que não sou consequencialista, não desejo a morte biológica de ninguém.
Schwartsman, o consequencialista, tem o dever lógico de torcer pela
completa recuperação clínica do presidente, para que a crise em curso
produza sua morte política. No horizonte do longo prazo, é isso que
pouparia mais sofrimentos e mais vidas.

A segunda traição reveste-se de maior gravidade. O consequencialismo


consequente precisa ser aplicado aos atos do próprio consequencialista. À
luz dessa lógica, Schwartsman não deveria ter dado publicidade ao seu
desejo íntimo. O erro, nesse caso, estende-se à Folha, que tem o dever de
proteger as fronteiras do discurso publicável.

Bolsonaro já torceu publicamente pela morte de FHC


(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0501200008.htm) (por fuzilamento) e de Dilma

Rousseff (por infarto ou câncer). Quando um articulista de peso do maior


jornal do país utiliza-se de linguagem paralela, está legitimando o discurso
da barbárie. A coluna faz o debate público retroceder mais um degrau, rumo
ao poço fétido habitado pelo olavo-bolsonarismo. Mas as consequências não
se limitam a isso.

Teoricamente, sob a inspiração do Código de Hamurabi, Bolsonaro poderia


invocar a lei de talião para declarar que torce pela morte de Schwartsman.
Ao contrário dos leitores de Schwartsman, os seguidores fieis de Bolsonaro
organizam-se como seita política, circulam armados por aí
(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/lider-de-atos-pro-bolsonaro-admite-armas-em-movimento-mas-apenas-

para-protecao.shtml) e pregam a cisão violenta com a ordem legal.

A previsível interpretação do desejo presidencial por alguns deles como uma


fatwa, mais ou menos nos moldes da proclamada pelo aiatolá Khomeini
contra o escritor Salman Rushdie, mudaria radicalmente o patamar das
ameaças oficiais à liberdade de imprensa.

Em “A morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”, sua obra mais sofisticada,


Jorge Amado reflete sobre a hipocrisia. O venerável Joaquim Soares da
Cunha, discreto funcionário público, morrera socialmente aos olhos de seus
familiares ao converter-se no cachaceiro boêmio Quincas Berro D’Água. A
morte biológica do protagonista propicia à família a vivência pública de um
luto simulado, que oculta o profundo alívio causado pelo desaparecimento
da fonte de desonra. Suspeito que, atrás da torcida pela morte de Bolsonaro,
esconda-se o desejo de borrar de nossas vistas as raízes da árvore do
extremismo de direita.

Quando torce para o vírus resolver o impasse político, o racionalista


Schwartsman exercita uma espécie peculiar de pensamento mágico.
Bolsonaro é, apenas, o pico emerso de uma montanha de dejetos históricos.
O Brasil deve carregar o fardo da desonra, para aprender a mirar sua imagem
no espelho —e matar politicamente a fonte do mal.

Demétrio Magnoli
Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em
geografia humana pela USP.

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