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Resumo
Deste a publicação da obra maior de Keynes, A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da
Moeda, em 1936, os economistas encontram-se diante de duas abordagens opostas da relação
entre investimento, poupança e taxa de juro, bem como de seus efeitos sobre a questão do
financiamento do investimento produtivo de longo prazo. Este trabalho apresenta um
panorama desse debate, visando mostrar como que a visão keynesiana enfatiza as restrições
financeiras sobre a demanda por investimentos, em contraste com a visão convencional, que
focaliza o comportamento dos poupadores como condição para a realização dos
investimentos.
Palavras-chave: Keynes; Teoria Geral; Financiamento de longo prazo.
Introdução
Desde a publicação da obra maior de Keynes, A Teoria Geral do
Emprego, do Juro e da Moeda, em 1936, os economistas encontram-se diante
de duas abordagens opostas a respeito da relação entre investimento,
poupança e taxa de juro, bem como de seus efeitos sobre a questão do
financiamento do investimento produtivo de longo prazo. A primeira delas é
a visão convencional baseada na hipótese da poupança prévia. A idéia geral é
simples: para que haja investimento, é necessário garantir previamente a
poupança correspondente. Já a segunda forma de abordar o problema foi
originalmente proposta por Keynes e Kalecki, sendo mais tarde desenvolvida
pelos chamados pós-keynesianos.
De acordo com essa segunda abordagem, a poupança, ao invés de se
constituir como pré-requisito do investimento, seria seu resultado. Isso
porque numa economia monetária, a decisão de investir dependeria não da
disponibilidade de produto não-consumido, mas de financiamento, isto é,
acesso a meios de pagamento. A produção de bens de investimento seria
efetuada em resposta a uma demanda por estes tipos de bens. Para tanto,
basta que o sistema financeiro seja capaz de gerar e colocar nas mãos dos
investidores os meios de compra necessários para que as encomendas possam
ser feitas junto aos produtores de bens de investimento.
Este trabalho busca mostrar, através da apresentação dos termos
gerais do debate, como a visão keynesiana enfatiza as restrições financeiras
sobre a demanda por investimentos, em contraste com a visão clássica, que
privilegia o comportamento dos poupadores como condição para a realização
dos investimentos. O texto que segue está organizado de acordo com esse
objetivo. Assim, as primeiras três seções apresentam as versões possíveis da
visão convencional baseada na teoria dos fundos emprestáveis. A idéia
central que liga estas versões relaciona-se aos pressupostos sobre o
comportamento dos poupadores que, mais ou menos diretamente, regularia e
restringiria a capacidade de investimento de uma economia. Em contraste
com essa idéia aparece a abordagem alternativa de Keynes baseada em sua
teoria da demanda efetiva e da preferência pela liquidez que será apresentada
na quinta seção deste texto. Por fim, além das considerações finais, recorre-se
ao expediente do apêndice para tornar mais abrangente o argumento deste
trabalho através de uma breve exposição da controvérsia teórica sobre a
“poupança externa” (déficit em transações correntes).
que se trata de uma escolha intertemporal entre estes agentes. O fato de que a
oferta de poupança e a demanda por fundos para investimento são
determinadas pela taxa de juros reflete tão somente essa característica básica.
Assim, no equilíbrio, a taxa de juros paga aos poupadores deverá ser idêntica
à produtividade marginal do capital, satisfazendo as condições de
maximização.
De acordo com essa perspectiva, a teoria clássica da intermediação
financeira tem então dois agentes representativos: poupadores (ofertantes de
capital), com preferências intertemporais dadas, e investidores (demandantes
de capital), com funções de produção e curvas de produtividade marginal do
capital bem definidas. Neste caso, o mercado de capitais e as instituições
financeiras são definidos, respectivamente, como lócus e agente pelos quais a
intermediação da poupança é realizada.2 Ou seja, de acordo com essa visão, o
sistema financeiro é um “intermediário passivo”, incapaz de determinar o
volume e a qualidade dos fundos de financiamento do investimento.
São duas as implicações centrais desta visão para o problema aqui
discutido. Em primeiro lugar, segundo essa teoria, a retomada do
investimento e do crescimento econômico não é possível enquanto a
poupança realizada pela sociedade não for grande o suficiente para apoiar o
esforço de acumulação. Nesse caso, a única saída seria apelar para o uso de
recursos vindos do exterior, através da geração de déficits em transações
correntes (poupança externa).
A segunda implicação desta visão é que o melhor estímulo aos
poupadores é uma taxa de juros adequada em um mercado de capitais o mais
livre possível. Aqui está subjacente a idéia de ajustamento auto-regulador do
mercado de capitais. Keynes (1936, p. 128), em sua crítica à teoria clássica
da taxa de juros, caracteriza bem esse tipo de argumento, segundo o qual
“sempre que um indivíduo realiza um ato de poupança faz algo que,
automaticamente, reduz a taxa de juros e que essa baixa estimula,
automaticamente, a criação de capital e de que a baixa na taxa de juros tem
lugar, precisamente, na proporção que se necessita para estimular a produção
2 Esse argumento está apoiado na chamada hipótese dos mercados eficientes. Essa hipótese
sustenta a idéia de que o mercado de capitais é eficiente quando todas as informações relevantes
disponíveis para a tomada de decisões são veiculadas pelos preços dos ativos. Ou seja, essa hipótese
implica que, apesar da possível volatilidade de curto prazo dos preços de ativos financeiros, estes preços
variam ao longo do tempo de acordo com seus “fundamentos”. Assim, um mercado financeiro eficiente
seria aquele no qual há plena distribuição de informações entre poupadores, investidores produtivos e
intermediários financeiros. Cf. Lima (2003).
3 Uma boa discussão sobre o caráter propriamente monetário da economia moderna pode ser
encontrada em Carvalho (1992), especialmente no capítulo 3 – The concept of a monetary economy.
4 Segundo Wicksell, nesse processo “commodity prices rise continuously, business requires
greater cash holdings, bank loans increase without corresponding deposits, bank reserves, and often
bullion reserves, begin to fall and the banks are compelled to raise their rates somewhat, though this does
not prevent the continuos rise in prices, until the interest rates have reached the level of the normal rate”
(Apud Amadeo, 1989: 162).
5 De acordo com Carvalho (s/d: 26-7), “autores como Wicksell mostraram que embora a
dinâmica das modernas economias monetárias fosse mais complicada (e mais frágil, sujeita à ocorrência
de processos de desequilíbrios cumulativos), a atividade de investimento continuava, em ultima análise,
sujeita aos limites colocados pela disposição do público em poupar e colocar parcela do produto gerado
pela sociedade à disposição dos investidores. Mercados de crédito obscureciam o modo pelo qual este
processo fundamental operaria, mas não teriam o poder de transformá-lo”.
6 A teoria dos fundos emprestáveis tal como Ohlin apresenta é seguida também em grande
medida por Hicks e Robertson. Para um debate em torno da idéia desses autores, ver Keynes (1937b).
7 Na verdade, Ohlin questionava até mesmo a originalidade de Keynes neste aspecto. Segundo
ele (1937: 236), “the central thesis in Keynes’ theory is that the volume of employment depends upon the
volume of investment. As most theories of business fluctuations, in their explanation of changes in
employment, concentrate attention on this latter point is not new. The novelty lies in his construction of an
equilibrium, governed by the quantity of money, the propensity to consume, the marginal efficiency of
capital, and the liquidity preference”. Neste contexto, a maior crítica de Ohlin a Keynes era a hipótese
deste de constância da propensão a consumir, que supostamente dava um caráter estático à teoria.
8 Uma outra tentativa de seguir na mesma linha mas tentando compatibilizar os resultados com a
teoria da preferência pela liquidez de Keynes foi feita por Tsiang (1956). Esse autor procura identificar as
teorias da oferta e demanda por crédito e oferta e demanda por moeda (teoria da preferência pela liquidez),
como sendo duas maneiras diferentes de abordar o mesmo problema. Assim, a teoria de Keynes, apesar de
parecer revolucionária, de fato não traria nenhum elemento novo à discussão. Entretanto, Kregel coloca a
discussão numa outra perspectiva (que pode ser encarada como uma resposta a Tsiang). Segundo este
autor (1988, p. 242): “we must conclude that the novelty of the multiplier cannot be separated from the
theory of liquidity preference without losing what Keynes considered to be his main difference form the
traditional theory the determination of the rate of interest by monetary factors representing the direct
influence of money on real factors, rather than vice versa”. O ponto essencial para Kregel era defender a
idéia de Keynes de que “it is changes in liquidity preference that will bring changes in the rate of interest;
it is the change in the rates of interest which affect the prices of capital assets and their marginal
efficiencies, the change in marginal efficiency leading to decisions to increase or decrease holdings of
capital goods, i.e., to investment decisions. Changes in investment in their turn affect the rate of return on
capital assets as they set in motion the multiplier process which produces the savings required to balance
the changes in investment. It is in this sense that money is a 'real' phenomenon: changes in the price of
money, the rate of interest, will bring about changes in the rates of return on capital goods and thus cause
investment and income adjust. At the same time, this argument shows clearly that Keynes's theory of
interest is simply the other side of the multiplier medal” (Idem, p. 237). Portanto, ainda de acordo com
Kregel (1984 p. 142), “the contrast between loanable funds and liquidity preference thus represents
different conceptions of the nature of the price and quantity constraints on the expansion of output. In the
former it is real saving and real relative prices; in the latter it is liquidity and relative money prices, with
the money rate of interest playing the dominant role”.
(…) faithful to the Wicksellian spirit, Ohlin’s approach was thus to postulate that the
rate of interest was determined by the supply and demand for credit, and, thus,
ultimately, by productivity and thrift.
9 De acordo com Keynes (1936, p. 143), “a incerteza das futuras variações na taxa de juros é a
única explicação inteligível da preferência pela liquidez, que justifica a conservação de recursos líquidos”.
10 Segundo Keynes (1936, p. 122), “deveria ser óbvio que a taxa de juros não pode ser um
rendimento da poupança ou da espera enquanto tal. (...) Pelo contrário, a simples definição da taxa de juros
diz-nos, literalmente, que ela é a recompensa da renúncia à liquidez por um período determinado, pois a
taxa de juros não é, em si, outra coisa senão o inverso da relação existente entre uma soma de dinheiro e o
que se pode obter desistindo, por um período determinado, do poder de comando da moeda em troca de
uma dívida. (...) A taxa de juros não é o “preço” que equilibra a demanda de recursos para investir e a
propensão de abster-se do consumo imediato. É o “preço” mediante o qual o desejo de manter a riqueza
em forma líquida se concilia com a quantidade de moeda disponível”.
Uma vez que a demanda por finance,11 por parte das empresas não-
financeiras, seja atendida, principalmente pelos bancos, a realização dos
investimentos que deram origem àquela demanda expande a renda agregada
e, com ela, a própria poupança. Esse aumento da poupança, por sua vez, é
necessariamente igual ao dos investimentos realizados, já que a parcela do
consumo agregado fica inalterada. Portanto, de acordo com a perspectiva
keynesiana, o investimento jamais pode ser restringido por insuficiência de
poupança. Na verdade, o que pode restringi-lo é a insuficiência de moeda ou,
dizendo de outra forma, o “excesso relativo” de preferência por liquidez dos
11 No que diz respeito à relação entre demanda por finance e taxa de juros, a questão se coloca da
seguinte forma: no momento em que se concretiza a decisão de investir, há uma demanda de liquidez, o
que pode concorrer para elevar a taxa de juros, dependendo da disposição dos possuidores de riqueza (em
especial os bancos) em se tornarem menos líquidos. Sobre isto Keynes (1937b: 247) diz que “a pressure to
secure more finance than usual may easily affect the rate of interest through its influence on the demand
for money; and unless the banking system is prepared to augment the supply of money, lack of finance may
prove an important obstacle to more than a certain amount of investment decisions being on the tapis at
the same time”.
12 De acordo com Davidson (1986, p. 110), “the solution to any scenario in which liquidity
constraints limit investment no matter how much the public desires to save out of income ex ante, ex post,
or ex anything else is for the monetary authority to provide, via the banking system, all the liquidity the
public desires. Ultimately, in a monetary economy, where money matters, that is, money is never neutral,
it is liquidity constrains and never an income (or savings) constraint that limits expansion before full
employment”.
Considerações finais
Na primeira seção do texto foi apresentado como, na teoria da
intermediação financeira neoclássica, o volume de investimento e de
poupança são determinados simultaneamente, sendo a taxa de juros a variável
de ajuste neste mercado. Esta relação de simultaneidade se deve à crença do
nível de produto ser determinado ao nível do pleno emprego, graças à lei de
Say. Para manter-se o equilíbrio macroeconômico, um aumento no
investimento só poderia ocorrer se houvesse um aumento concomitante da
poupança, seja porque a remuneração pelo capital (a taxa de juros) se
elevaria, seja porque os poupadores mudariam suas preferências
intertemporais.
Foi visto também que, na teoria dos fundos emprestáveis em sua
versão wickselliana, esta relação entre investimento e poupança pode mudar,
mas somente no curto prazo e com o custo de inflação ou deflação, ou seja,
numa situação de desequilíbrio macroeconômico que leva a um processo
cumulativo de instabilidade monetária. No longo prazo, a poupança continua
sendo a grande restrição à expansão do investimento. Já a teoria dos fundos
emprestáveis, na versão de Ohlin, não admite que o ato de poupar seja
idêntico ao de investir, mas sim que a decisão de poupar, junto com a decisão
de ofertar crédito, regula o investimento através da taxa de juros. Mas isso
resulta, em última instância, no mesmo: as condições de oferta da poupança
determinam as condições de realização do investimento.
Na apresentação da teoria de Keynes, entretanto, deve ter ficado claro
como este autor insistiu em diversas passagens da sua Teoria Geral do
Emprego, do Juro e da Moeda e em artigos posteriores a ela que o
investimento era a causa causans na determinação da renda e da poupança.
De fato, Keynes operou uma reversão de causalidade em relação à visão
convencional, que é conseqüência lógica de seu principio da demanda
efetiva.
Esta reversão, por sua vez, deve indicar uma hierarquia de agentes
dentro dos mercados de financiamento, em economias monetárias, bastante
diferente da apresentada nos modelos neoclássicos. Em primeiro lugar, são os
bancos, e não os poupadores, os agentes fundamentais na determinação da
oferta agregada de fontes de financiamento do investimento e, portanto, na
transição entre uma escala mais baixa e uma mais alta de atividade. A
poupança, então, deve ser vista como resultado do investimento e não um
pré-requisito para o investimento. No entanto, deve-se ter claro que a
alocação das poupanças geradas no processo de multiplicação da renda é
importante no processo de administração dos problemas resultantes do
crescente descasamento de vencimentos ao longo do crescimento econômico.
Por fim, o volume e os prazos de financiamento do investimento devem ser
entendidos como resultantes das preferências por liquidez dos bancos e dos
aplicadores em títulos, ao invés das preferências intertemporais dos
consumidores.
Uma forma tradicional de lidar com esse problema seja pela absorção
de capitais externos.14 De fato, é amplamente aceita a idéia de que a absorção
de capitais externos pelos países em desenvolvimento representaria um meio
de complementar os escassos recursos domésticos, a fim de elevar a
formação de capital e acelerar o crescimento econômico. Mesmo correntes de
pensamento que não vêem a poupança como uma variável limitante do
investimento aceitam esta proposição quando se trata da questão do
desenvolvimento econômico.15
A questão relevante aqui é o sentido de determinação dos fluxos de
capitais que formam a poupança externa (déficit em transações correntes).
Geralmente, os modelos de growth-cum-debt se baseiam na idéia de que a
14 Uma abordagem crítica a esse tipo de saída é encontrada em Kalecki (1983b, p.155-159).
15 Este parece ser o caso, por exemplo, de Foley (2001). Trata-se de reconhecer que ao abordar
uma economia nacional aberta como uma unidade financeira, Foley acaba por considerar a poupança
interna como uma restrição ao crescimento acelerado a ser financiado pela poupança externa (igual ao
déficit em conta corrente).
16 De acordo com Kalecki (1983b, p. 144), “deve-se notar que apesar do pequeno volume do
equipamento de capital em relação à força de trabalho, nos países subdesenvolvidos, tal equipamento
existente é frequentemente subutilizado”.
17 Um detalhamento desse argumento pode ser encontrado em Carvalho (s.d.).
18 Ver Coutinho e Belluzzo (1996).
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