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GUERRA DO PARAGUAI

Francisco Doratioto: historiador brasileiro, especialista em história militar e das relações do Brasil
com os países da América Meridional (Cone Sul: Paraguai, Argentina, Uruguai e Chile).

A Guerra do Paraguai foi o conflito internacional de maior duração e, possivelmente, o mais


mortífero travado na América do Sul. Teve características inéditas, quer devido às condições
geográficas do território paraguaio, onde ocorreram os combates a partir de 1866; quer pela
utilização de novos tipos de arma e munição, resultado de inovações tecnológicas decorrentes do
avanço da industrialização na Europa e nos Estados Unidos; quer, ainda, pelas condições políticas
em que se desenvolveu a guerra. Nesse aspecto, destacam-se as dificuldades de relacionamento no
alto comando aliado e o caráter ditatorial do Estado paraguaio, o que permitiu a Francisco Solano
López vincular o destino da sociedade paraguaia à sua trajetória pessoal. Os cinco anos de guerra
influenciaram a configuração e o destino das sociedades que a travaram.
A partir da década de 1970, predominou a teoria de que a Guerra do Paraguai fora causada
pelo imperialismo britânico. Por essa explicação, o Paraguai era um país governado, desde a sua
Independência, por homens autoritários — José Gaspar Rodríguez de Francia, Carlos Antonio
López e Francisco Solano López —, que não se submeteram ao domínio das grandes potências e
promoveram o bem-estar do povo. A Grã-Bretanha seria a responsável pela guerra, quer para pôr
fim a um precedente perigoso, de desafio a seu domínio sobre a América do Sul, quer para abrir o
mercado paraguaio, tanto o consumidor para os produtos industriais britânicos quanto o fornecedor
de algodão para a indústria têxtil britânica. Portanto, o governo britânico teria usado o Império do
Brasil e a Argentina para levar a guerra ao Paraguai e destruir a tentativa de desenvolvimento
autônomo paraguaio. Nas palavras de um dos autores que defendem essa teoria, “o modelo de
libertação que nos propunha com grande eficiência o Paraguai da metade do século XIX , os
sabujos do imperialismo inglês destruíram”.
Essa teoria carece de lógica, além de não ter relação com a realidade histórica e inventar um
Paraguai que se desenvolvia sob a liderança de um ditador “progressista”, Francisco Solano López,
em desafio ao domínio britânico. Tal teoria é resultado do momento histórico das décadas de 1960 e
1970, quando o mundo vivenciava a Guerra Fria e o Cone Sul tinha governos militares.
Predominou, então, na análise da Guerra do Paraguai, uma vertente de pensamento marxista que
desprezava a democracia (“burguesa”), por associá-la ao capitalismo, e tinha como referências as
ditaduras “socialistas” (União Soviética, China e Cuba).
Compreende-se, portanto, o ataque dessa teoria à “ação imperialista” e a crítica ao
desempenho dos chefes militares, pois um deles, Bartolomé Mitre, foi expoente do liberalismo
argentino e, no Brasil, Caxias e Tamandaré tornaram-se, respectivamente, patronos do Exército e da
Marinha. Por outro lado, a apresentação positiva do Paraguai totalitário, supostamente progressista,
quase “socialista”, de Solano López, tem paralelismo na Cuba da ditadura de Fidel Castro, isolada
no continente americano e hostilizada pelos Estados Unidos. O regime cubano, naquelas duas
décadas, contava com a simpatia de boa parte dos intelectuais da esquerda latino-americana, a qual
via quase exclusivamente na exploração imperialista a causa da pobreza da América Latina.
Essa interpretação não se sustentou, diante de pesquisas de diferentes historiadores. Em
1983, os paraguaios Juan Carlos Herken Krauer e Maria Isabel Gimenez de Herken demonstraram
que, ao contrário, a Grã-Bretanha se beneficiara do limitado processo de modernização paraguaio,
implementado a partir de fins da década de 1850 e restrito a aspectos militares. O Paraguai
importava produtos manufaturados e técnicos britânicos para operar a única ferrovia do país —
ligava Assunção, a capital, ao grande acampamento militar de Paraguari —, e para outras
construções de caráter militar (arsenal, fundição e obras de defesa).
Os governos de Carlos Antonio López e de seu filho Francisco Solano López tinham
contratado a empresa inglesa Blyth & Co. como seu agente para comprar armamento na Europa, a
fim de nela treinar jovens paraguaios e recrutar técnicos europeus para irem ao Paraguai. Por meio
dela, o Estado paraguaio contratou, entre 1850 e 1870, cerca de 250 técnicos europeus, dos quais
200 britânicos. Destes, William K. Whytehead tornou-se engenheiro-chefe do Estado paraguaio,
enquanto, no Exército, William Stewart se tornou cirurgião-chefe, e George Thompson engenheiro
chefe. Já o Império do Brasil rompeu, em maio de 1863, relações diplomáticas com a Grã-Bretanha
devido à chamada Questão Christie, restabelecendo-as somente após receber pedido de desculpas da
rainha Vitória, oito meses após o início da guerra. Como se vê, carece de lógica responsabilizar o
imperialismo inglês pelo desencadear do conflito.
Na realidade, o Paraguai era um país agrícola atrasado; o regime autoritário não tinha
“sentido social”, mas, sim, o de uma ditadura para manter no poder Solano López. Este, com a
família, utilizava o Estado como propriedade pessoal e, ainda, se apropriava de parte dos lucros
gerados pelas atividades agropecuária e extrativista de particulares. O isolamento anterior do país,
sob a ditadura de José Gaspar Rodríguez de Francia (1814-1840), resultou da recusa de Buenos
Aires em aceitar sua independência, pois a burguesia mercantil dessa cidade almejava ser o pólo
rearticulador, na forma de uma república centralizada, do território do antigo Vice- Reino do Rio da
Prata. O isolamento facilitou a manutenção da ditadura de Francia, mas seu sucessor, Carlos
Antonio López, outro governante ditatorial, pôs fim ao isolamento absoluto do Paraguai,
aproximando-se do Império do Brasil e, com o apoio deste, obteve o reconhecimento internacional
da independência paraguaia. O início da abertura do Paraguai para o mundo foi facilitada por esse
reconhecimento e pela liberação de navegação do rio Paraná pela Confederação Argentina, após a
queda, em 1852, do ditador Juan Manuel de Rosas.
A partir de meados da década de 1850, o governo de Carlos Antonio López buscou
modernizar o Paraguai. A modernização ocorreu basicamente no plano militar, utilizando-se
principalmente da Grã-Bretanha, onde contratava técnicos e comprava equipamentos com libras
obtidas pela exportação de produtos primários. A preocupação defensiva de López era em relação a
seus dois maiores vizinhos, a República Argentina, Estado centralizado criado em 1862, e o Império
do Brasil. Com esses dois países, o Estado paraguaio disputava territórios, além de existir um
abismo político-ideológico a separá-los. Na Argentina e no Brasil, funcionavam instituições liberais,
embora acessíveis apenas a parcelas minoritárias das respectivas populações. No Paraguai, nem esse
mínimo, pois era impossível o indivíduo divergir do governo e inexistiam imprensa privada,
partidos políticos, juízes independentes, e o Legislativo era uma ficção. Este não se reunia por anos
a fio e, quando o fazia, era por convocação do Executivo para ratificar decisões governamentais.

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