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Intervenções Psicossociais No Sistema Carcerario Feminino PDF
Intervenções Psicossociais No Sistema Carcerario Feminino PDF
Intervenções
Psicossociais no
Sistema Carcerário
Feminino
Marcela
Ataide Guedes
Artigo
O presente trabalho baseia-se em um projeto abusos que ocorrem em seu interior, parece
que integrou atividades de ensino, pesquisa ser apenas mais um elo na cadeia de múltiplas
e extensão. violências que conformam a trajetória de uma
parte da população feminina. Na melhor das
Teve início em agosto de 2004, como atividade hipóteses, ela não favorece em nada a
de pesquisa e intervenção, através da interrupção da violência e da criminalidade. Na
aproximação com o sistema prisional de Belo pior, ela reforça e contribui para que a violência
Horizonte/MG, que nos apresentou uma se consolide como a linguagem predominante
realidade que demandava e permitia o na vida das presas e daqueles que as cercam.
1
desenvolvimento de um projeto de extensão O ciclo da violência, que se inicia na família e
que incluiu uma intervenção terapêutica através nas instituições para crianças e adolescentes,
“(...) o que os
dados mostram é do atendimento de plantão psicológico, perpetua-se no casamento, desdobra-se na ação
que a prisão, tanto orientado e supervisionado pela Profª Drª Ingrid tradicional das polícias e se completa na
pela privação de 2
Faria Gianordoli-Nascimento. penitenciária, para recomeçar, provavelmente,
liberdade quanto
pelos abusos que na vida das futuras egressas” (p. 126).
ocorrem em seu Tal demanda surge de uma delegacia situada
interior, parece ser na Capital mineira, que solicitou nossa
apenas mais um A partir do exposto, um aspecto fundamental
participação junto a um projeto que buscava
elo na cadeia de a ser ressaltado diz respeito ao contexto de
múltiplas violências contribuir para o processo de inclusão,
violência que muitas dessas mulheres
que conformam a recuperação e construção de cidadania das
trajetória de uma vivenciaram e continuam a vivenciar, que inclui,
mulheres que se encontram detidas, através
parte da além das agressões físicas, sexuais e
população do trabalho em atividades internas e cursos
psicológicas diretamente sofridas ao longo da
feminina. de trabalhos manuais, o que permitiu uma
existência, perdas violentas de parentes
profissionalização, já que visava à reinserção
próximos e/ou de parceiros conjugais.
social e no mercado de trabalho.
Destacamos ainda outras especificidades do
A articulação entre a vivência do plantão
cárcere feminino. Assis e Constantino (2001)
psicológico e a revisão da literatura nos
descrevem que existe um imaginário social
permitiu descrever algumas das
construído em torno da criminalidade feminina,
particularidades da realidade institucional e da
que é acolhido inclusive por autoridades como
vida dessas mulheres, que se revelaram
juízes, delegados, carcereiros, advogados, etc.
informações fundamentais para a
3 Concebe-se que as mulheres são fortemente
compreensão deste trabalho .
influenciadas por estados fisiológicos e que seus
1 CENEX/UFMG.
É consenso entre especialistas, opinião pública crimes são, em grande escala, cometidos no
2 Professora do e o próprio governo que o sistema espaço privado, já que o espaço público ainda
Departamento de
Ps i c o l o g i a / FA F I C H / penitenciário do País vive uma crise aguda, lhes é muito negado. Muitas vezes se
UFMG.
seja pelas péssimas condições de vida nos envolvem em crimes passionais ou naqueles
3 O presente tra-balho, presídios e carceragens, seja em decorrência cometidos sob violenta emoção. Quando
também orien-tado pela
Profª Drª Ingrid Faria dos casos de corrupção que envolvem cometem crimes de outra natureza, como a
Gianordoli-Nascimento
policiais, funcionários e juízes e que aparecem participação no tráfico de drogas, esses estão
(Dep.de Psicologia/
FAFICH/UFMG), contou freqüentemente nos jornais. vinculados a uma posição subalterna justificada
com a colaboração do
psicólogo Alessandro
como uma extensão natural de suas relações
Vinícius de Paula No que tange à carceragem feminina, Soares afetivas. Acredita-se que participem dos delitos
(mestrando do Programa
de Pós-graduação em e Ilgenfritz (2002) apontam: em número menor que os homens e sejam
Ps i c o l o g i a / FA F I C H /
UFMG), que participou
postas à margem das atividades importantes.
ativamente das “(...) o que os dados mostram é que a prisão, São consideradas perigosas e não confiáveis,
atividades de co-
orientação e intervenção. tanto pela privação de liberdade quanto pelos capazes de traição, com exceção das que
Tabela 1: Nível de escolaridade das mulheres Tabela 2: Estado civil autodeclarado pelas
atendidas mulheres
crianças estão sob a responsabilidade dos avós; mesmas. Em se tratando das mulheres
24% estão sob os cuidados de outros familiares, aprisionadas, o que se observa é que, se, por
vizinhos e conhecidos, e 15% permanecem um lado, se sentem culpadas pelo não
com o pai. Ressalta-se que muitos pais cumprimento dessas exigências, por outro,
também se encontram presos, ou as mulheres acreditam se tornarem passíveis de um
não sabem de seu paradeiro, por estarem tratamento diferenciado pelo aparato judicial,
foragidos, o que, de certa maneira, explica a merecendo inclusive “serem absolvidas”
baixa incidência de permanência das crianças quando presas por serem “mães de família”,
com seus progenitores. principalmente quando seus delitos estão
relacionados com o sustento da casa e das
Tabela 4: Cuidadores dos filhos das mulheres “necessidades” dos filhos.
aprisionadas
A análise temática das questões abordadas
Cuidadores % espontaneamente pelas mulheres referiu-se
Os avós 61,0 % principalmente a três categorias: cotidiano
Outros familiares, vizinhos, prisional, maternidade e relações familiares,
24,0 % vivências amorosas e relações de gênero.
conhecidos
O pai 15,0 %
Cotidiano prisional
Uma das maiores preocupações apresentadas
Uma das maiores pelas mulheres é a ausência de contato com O desrespeito aos direitos humanos,
preocupações encontrado em muitas instituições penais,
apresentadas os filhos, principalmente aquelas cujos filhos
pelas mulheres é a estão com parentes ou vizinhos, o que faz evidencia a múltipla penalização imposta aos
ausência de com que tenham poucas informações e visitas criminosos. Além da privação da liberdade, são
contato com os ainda penalizados com castigos corporais,
filhos, das crianças. Isso acarreta um sentimento de
principalmente medo e culpa por terem “abandonado” os exposição ao uso de drogas e ao contágio a
aquelas cujos filhos filhos em condições que fogem ao seu várias enfermidades. Soma-se a isso o
estão com descumprimento dos dispositivos legais que
parentes ou controle ou por eles poderem vir a sofrer maus
vizinhos, o que faz tratos. Descrevem também o receio da perda regulamentam a privação de liberdade, no que
com que tenham do vínculo materno, perda da guarda legal, diz respeito ao andamento do processo e
poucas também no que toca à questão da superlotação,
informações e privação material e alimentar,
visitas das crianças. acompanhamento escolar e cuidados com a da possibilidade de trabalho e da educação
saúde. Destacamos ainda que essas mulheres formal do detento. Essas privações
se declaram “mães de família” que cumprem desconstroem o valor da dignidade humana,
o seu papel social, motivo pelo qual não assim como a possibilidade de reinserção social
poderiam estar presas. (Frinhani, 2004).
Trindade (1998; 1999) indica que as mulheres Deve-se ressaltar que, em comparação com a
são defensoras de um modelo de maternidade realidade dos presídios, as detentas citadas
inventada pelos homens, no qual são tanto neste estudo possuem uma importante
opressoras quanto oprimidas. Nesse modelo particularidade, devido ao “caráter provisório”
de maternidade, construído a partir do que a instituição possui. Por ser uma delegacia,
conceito de “instinto materno”, as mulheres e não um presídio, é esperado que as detentas
se sentem responsáveis pela total assistência permaneçam pouco tempo até que sejam
aos filhos, o que inclui cuidados com a saúde sentenciadas e transferidas para outras
física, emocional e moral das crianças, além unidades. O que se observou, entretanto, é
de atenção ao processo educacional das que algumas detentas já haviam sido
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Há relatos das dificuldades enfrentadas pelas Tais observações assemelham-se aos dados de
detentas para se incluírem em determinados Lemgruber (1999), ao tratar da solidariedade
grupos, o que faz com que passem a nas prisões. Segundo a mesma, a solidariedade
diferenciar entre “elas” e “eu”, ou entre nunca é total entre populações de presos, mas
“aquele grupo” e o “meu grupo”. Atribuem às também não chega a deixar de existir.
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Outro dado significativo diz respeito às duas 3) o cuidado com própria aparência ou com o
divisões básicas que foram apontadas pelas espaço da cela; 4) apego aos filhos e demais
detentas: 1) divisão entre “presas flagradas” familiares e 5) participação no grupo de
(detentas que ainda não foram condenadas) alfabetização ou grupos de oração organizados
e as “presas sentenciadas” (detentas já por entidades religiosas diversas. Os grupos
condenadas), e 2) entre presas condenadas de oração são bem recebidos pelas detentas;
que trabalham e as que não trabalham. algumas participavam de vários grupos,
independentemente da religião que os
As “presas flagradas” são apontadas como mais promovia, afirmando que o principal é “ouvir
barulhentas, “folgadas, agitadas e nervosas”. o que Deus diz”. Tais atividades também são
O espaço a elas destinado é sempre o pior vistas como uma oportunidade de sair mais
dentro da cela, conforme já observado no vezes de dentro das celas, e, em alguns casos,
trabalho de Bastos (1997). Já o espaço das uma alternativa para ficar livre de
“presas sentenciadas” é apontado como medicamentos.
melhor, com mais conforto e mais calmo. A
diferença entre os dois grupos está na Também foi possível trabalhar com as
perspectiva que elas controem sobre aquele expectativas das mulheres em relação ao
espaço. Por um lado, até a sentença, as futuro. Os projetos futuros apresentam um
“presas flagradas” acreditam que poderão ser composto de medo, ansiedade e expectativas
absolvidas, o que faz com que elas não se que coincidem com os projetos das detentas
sintam parte do espaço. Por outro, a dúvida pesquisadas por Soares & Ilgenfritz (2002).
sobre qual será a condenação, o “tamanho” Geralmente, as detentas desejam recomeçar
da mesma e a falta de informação sobre sua a vida e (re)iniciar atividades como cuidar dos
situação processual geram grande ansiedade. filhos, estudar, afastar-se do mundo das drogas
Observou-se que as “presas sentenciadas”, por e trabalhar - mesmo sabendo que terão
terem melhor previsão do tempo de dificuldades em encontrar um trabalho por
permanência no espaço prisional, procuram estarem com a “ficha suja” ou “marcadas”
transformar tal espaço em um ambiente devido ao estigma de ex-presidiárias. As
personalizado. mulheres sabem que não é fácil o retorno à
sociedade, e algumas detentas percebem que
A ociosidade é outro aspecto que provoca a vida na delegacia, apesar de apresentar
desgaste entre as detentas, por não possuírem muitas restrições e arbitrariedades, representa
atividade recreativa ou de trabalho. Em alguns também uma proteção contra as incertezas da
casos, relataram que só saíam para o vida futura ou uma forma de proteção contra
atendimento médico ou psicológico. Para a vida que tinham antes de serem presas -
muitas mulheres, a falta de liberdade para sobretudo para aquelas envolvidas com o crime
fazer o que desejam, na hora que desejam e organizado. Observa-se, em algumas mulheres,
a dificuldade de ficarem sozinhas, “sem que o medo de serem soltas é tão grande
ninguém por perto para perturbá-las”, são quanto era o medo de serem presas.
algumas das principais limitações da
coletividade forçada. Nesse sentido, o atendimento psicológico
passa a ser um espaço valorizado pelas
Em relação às estratégias utilizadas pelas mulheres na medida em que oferece um
detentas para “suportar” o encarceramento, espaço de reflexão e visibilidade social que,
observou-se: 1) realização de trabalho na até o momento, não havia sido vivenciado por
limpeza (com a possibilidade de obterem a elas. Além disso, o atendimento, nesse
remição da pena); 2) atividades de artesanato; contexto, contribui para proporcionar um
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projetos que atendam essa população, ou avanço da Psicologia, à medida que tais
ainda, a implementação de políticas públicas atividades permitem a construção de reflexões
que favoreçam a reinserção social dos egressos. e ações acerca da percepção sobre as diversas
práticas institucionais, sociais e políticas que
Assim, seria de fundamental importância negligenciam as formas de construção de
agregar esforços, recursos e idéias para cidadania, visando a contribuir com subsídios
desenvolver atividades de extensão, ensino e que possam favorecer os programas de redução
pesquisa em frentes vinculadas ao campo da de violência e reinserção social das egressas
Psicologia social. Através de projetos desse tipo, do sistema prisional.
pretende-se oferecer aos psicólogos em
formação excelentes espaços de atuação, que Por fim, admitimos, mais uma vez, os limites
favoreçam o aprendizado com seriedade ética de nosso trabalho, muitas vezes decorrentes
e possibilitem a aquisição das competências da própria situação estudada. Entretanto,
exigidas para o desenvolvimento de atividades consideramos também a importância do que
desse porte. foi aqui discutido, sua relevância para a
investigação e o entendimento de questões
Sob esse ponto de vista, trabalhar com sujeitos que só podem ser validadas no cotidiano de
encarcerados se torna um dos desafios para o cada sujeito e através da sua fala.
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