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O ANTIMONUMENTO COMO IMAGEM DA

CONTEMPORANEIDADE: WALTER BENJAMIN,


ROBERT POLIDORI E AS IMAGENS DE UM
PENSAMENTO

SARAH CATÃO DE LUCENA

Universidade Federal de Pernambuco


Av. Professor Moraes Rêgo, 1235 – 50670-420 – Recife – PE – Brasil
sarahcatao@gmail.com

Resumo. Este artigo objetiva debater a memória contemporânea erigida


sob a ótica do antimonumento. Examinando imagens do fotógrafo Robert
Polidori, discute-se o caráter de arquivo na linguagem fotográfica. A
narrativa das suas fotografias, já que se constrói com imagens de espaços
em ruínas, dialoga com conceitos de Walter Benjamin sobre história e
tempo. Problematiza-se, então, se o antimonumento, por não ocultar a
catástrofe e a ruína, demonstra mais fidelidade à história e à realidade.
Palavras-Chave. Contemporaneidade. Antimonumento. Imagem. Memória.
Abstract. The purpose of this article is to discuss contemporary memory
under the perspective of the anti-monument. It discusses the conception of
archive in photography by examining images of photographer
Robert Polidori. The narrative of his photographs is built with images
of ruined spaces, enabling a dialogue with Walter Benjamin's concept of
history and time. This raises the question of whether the anti-monument
shows more fidelity to history anreality since it does not intend to hide ruin
and disaster.
Keywords. Contemporaneity. Antimonument. Image. Memory.

1. As Imagens do Pensamento de Robert Polidori


Robert Polidori apropria-se da ruína por meio da fotografia. Canadense de
Montreal, nascido em 1951, passou a fotografar a partir da década de 1980. Suas
imagens mais conhecidas são as que capturam o ambiente interior de espaços destruídos
por catástrofes. O que restou de salas, quartos e cozinhas de casas de Nova Orleans após
a passagem do furacão Katrina; salas de aula, lanchonetes, berçários, alas de um hospital
em Pripyat, na Ucrânia, após o acidente nuclear da usina de Chernobyl. Imagens,
também, de interiores de apartamentos de Nova York devastados por vândalos ou
interiores de moradias em Havana devastados pela pobreza. E ainda fotos externas de
cidades como Amã, capital da Jordânia, demonstrando na desordenada construção civil
do local aspectos sórdidos de um aparente desenvolvimento econômico. Fotos de
conteúdo temático perverso em diálogo com uma estética fotográfica harmônica. Pode-

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se ver aí uma estética da destruição, ao se utilizar de rastros e ruínas para construir uma
narrativa visual? Haveria aí uma estetização da catástrofe ao transformar a miséria em
arte?
Todos os ambientes capturados por Polidori foram construídos pelo homem,
porém este raramente aparece nas imagens. É uma presença-ausente (ou ausência-
presente), contudo, porque os sujeitos estão lá, fatalmente, nos rastros arruinados das
casas destruídas pelo furacão ou no manuscrito em uma lousa de uma escola em Pripyat
que diz: ―Não há retorno: adeus. Pripyat, 28 de abril de 1986‖. Esta foto,
especificamente, foi tirada 15 anos depois de o aviso ter sido escrito. Chega até nós 25
anos depois; o passado se atualiza no presente através da imagem capturada, pois o
tempo como que nos fala: não há mesmo retorno. São imagens estáticas (porque fotos),
mas em movimento, já que — como nos ensina Didi-Huberman — estar diante de uma
imagem é estar diante do tempo.

Sala de aula, Pripyat, Ucrânia, 2001: “Não há retorno: adeus”

Em muitos aspectos é possível vislumbrar uma perspectiva benjaminiana nas


imagens de Polidori, no porquê de elas serem feitas. Na introdução do livro Robert
Polidori Fotografias, o arquiteto Fernando Serapião identifica Polidori como inserido
―na produção de artistas que utilizam a imagem fotográfica para documentar a tragédia
humana, tendo como protagonista o espaço [...]‖, produção esta derivada de uma
―tradição de retratar a transformação [...] pautada pelo progresso‖. De fato, a foto da
sala de controle do reator 4 de Chernobyl ou do desenvolvimento urbano de Amã seriam
documentos alusivos a um progresso — enquanto partícula de uma concepção linear de
história (e de progresso) — não fosse a perspectiva de observação que Polidori nos
oferece: uma sala de reator em certo sentido ―autodestruída‖, arruinada por aquilo que
ela própria ajudava a erigir, e uma cidade de Amã constituída por uma ―proliferação
anárquica de moradias‖, fruto daquela promessa de futuro do industrialismo que passou
a se delinear como algo não tão justo e bom. Dois tipos diferentes de catástrofes como

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consequência do que linearmente se consideraria progresso, mas também num sentido
―reversamente‖ benjaminiano de progresso.

Amã, Jordânia, 1996: uma narrativa fotográfica do ponto de vista dos vencidos

Ao provocar o choque da ruptura do linear com imagens de catástrofes, Polidori


parece que mostra nas suas fotografias aquilo para o que o Angelus Novus de Paul Klee
parece estar olhando. No amontoado dos escombros nas fotografias, está mostrado
mesmo o passado, a história, como uma sedimentação de ruínas sobre as quais se ergue
o presente. Polidori, tal como a descrição de Benjamin a respeito do que olha o anjo,
―nos faz ver com o olho da mente, da memória e da imaginação as imagens de outros
quadros e de outras cenas que terminam contando uma outra história, não a História
oficial do Progresso e da Redenção‖ (Rosenfield, 2006, p. 201). O progresso,
textualmente em Benjamin, visualmente em Polidori, é uma tempestade que sopra do
paraíso e arrasta o anjo, de costas, para o futuro. Nessa metáfora da tempestade do
progresso,

[assinala-se] a irrupção do horror no qual se desvendam a fragilidade e o


desamparo da vida humana que ele vê se decompondo: e o que está diante
dos olhos arregalados do anjo somos nós, os espectadores do quadro.
(Rosenfield, 2006, p. 199.)

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Sala de controle, reator 4, Chernobyl, Ucrânia, 2001: a história a contrapelo

Nós enquanto espectadores, mas também enquanto engenheiros do progresso


catastrófico.

2. Imagem: arquivo, lugar de memória, lápide de papel


Como consequência do que foi a crise da narrativa e, portanto, da experiência (a
Erfahrung), o movimento chamado por Martín-Barbero de boom da memória levanta a
possibilidade da fotografia como um lugar de memória. No esforço de se criar
dispositivos de memorialização, juntam-se à fotografia os vídeos, os museus e até mesmo
a própria restauração arquitetônica de velhos centros urbanos. Sofrendo de uma noção
de duração de tempo cada vez mais comprimida/sufocante, de forma que o tempo é feito
somente de agoras, não resta tempo para pensar no que passou – o que cria a
necessidade de restauração da memória a fim de evitar a presença de um presente cada
vez mais desconectado do passado. Pierre Nora também permite pensar a fotografia
como um local de memória quando diz que ―um lugar de memória [...] vai desde o objeto
mais material e mais concreto, eventualmente geograficamente situado, ao objeto mais
abstrato e intelectualmente constituído‖. De fato, a fotografia com o propósito de
―conservar um passado em via de desaparecer‖ (Sontag, 2004, p. 71), utilizando como
objeto o desaparecimento/destruição da cidade, é tema constante, presente desde 1850
em fotos das cidades de Paris, Londres ou Nova York. É sob essa ótica que a fotografia
toma a forma de arquivo.
Se a fotografia acolhe partes de uma totalidade fragmentada, tal como uma
narrativa estruturada por citações, nela o fotógrafo é aquele trapeiro/catador já
identificado por Baudelaire, que recolhe e cataloga os restos, detritos urbanos, lixos,
dejetos, mas que é também aquele colecionador que ―se transforma em alguém engajado
num consciencioso trabalho de salvamento‖ (Sontag, 2004, p. 91), que ―pode agora sair
a escavar os fragmentos mais seletos e emblemáticos‖ de um passado histórico em vias
de desaparecer.
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Há muito, quando a fotografia adquiriu um status de prova irrefutável de um
fato, elevando o sentido do olhar como incontestabilidade do acontecido, tudo o que era
belo e exótico deveria ser clicado, como prova de sua existência e como possibilidade de
se possuir, de se levar um pouco desse tema para si e para os outros. Como
desdobramento dessa ideia, o fotógrafo passou a ser requisitado também como o
denunciador de catástrofes. Assim, as fotos adquiriram o poder não só de mobilizar, mas
de interferir na opinião pública ao revelar, por meio de imagens, a real situação de
episódios como guerras, trabalho infantil, situações em comunidades pobres, etc.
Quando se fotografa, registra-se, denuncia-se, escancara-se uma situação,
arquiva-se, mesmo que inconscientemente, algo, e algo também é sempre denunciado: a
passagem do tempo; o esquecimento, a ausência; a ruína do que sobrou, seja um alguém,
seja um espaço; o constante movimento desconstrutivo-reconstrutivo das cidades. A
observação a posteriori de uma imagem evidencia todos os futuros que poderiam vir a
ser a respeito do seu tema.

Nova Orleans, Louisiana, EUA, 2005

Em seu texto Antimonumentos: estratégias de memória (e da arte) numa era de


catástrofes, Maria Angélica Melendi nos diz o seguinte:

A fotografia, que sempre esteve perturbadoramente ligada à morte, ao


desaparecimento do corpo vivo e do tempo vivido, cria o paradoxo visual de
um efeito de presença do vivo que se encontra eternamente negado pelo
congelamento num tempo morto. (Melendi, 2006, p. 238)

Se estamos à procura de imagens onde possamos ler textos de Benjamin, parece


que Polidori tem algo a nos oferecer quando nos coloca em contato com a ruptura no
caminhar linear do continuum histórico. Se suas imagens podem ser vistas como lugares
de memória e arquivo por acolherem as ruínas de um passado histórico recente, são
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antes antimonumentos, porque não querem monumentalizar ―realidades oficiais‖, mas
sim os ―recantos escuros e sórdidos‖ da história.

3. Pensamentos da Imagem em Walter Benjamin


Vemos com Benjamin que a fotografia traz, entre outras coisas, o fim da aura.
Assim, causa o choque quando promove o abalo da tradição, rompendo a continuidade
de um tempo. Na sua discussão sobre fotografia, ele parte dela enquanto
refuncionalizadora da obra de arte. Nesse sentido, parece que a fotografia se encontra na
posição do meio, isto é, entre o esfacelamento de uma perspectiva de obra de arte
única/aural e cultual e uma perspectiva outra de obra de arte, feita para ser reproduzida,
modificada tecnicamente, exposta – tal como o cinema, a arte técnica por excelência.
A fotografia, nesse entremeio, ao surgir, como que rompe com uma produção
artística que não dava mais conta dos anseios modernos da sociedade e passa a sugerir e
estabelecer novas necessidades, decorrentes mesmo da modificação do próprio modo de
recepção da obra de arte. Se antes o homem se recolhia diante da obra de arte aurática,
como se fora um objeto de devoção, agora, nesse momento em que a obra de arte é
parte de um contexto do qual o ritual e a tradição estão em vias de desaparecer, ela é
―emancipada‖, sendo recebida coletivamente, como uma forma de distração, sem
pretensão de eternidade.
No século XIX, quando Atget fotografava ruas vazias de Paris, escrevia no verso
das fotos ―Va disparaître‖ (Vai desaparecer). Como um colecionador, catava espaços
que logo mais não estariam ali, perdendo-se no esquecimento, e congelava-os em
imagens. Era a captura da história em arquivo. Porém não a história monumentalizada da
narrativa tradicional, linear, que traz somente o triunfo dos vencedores, mas sim uma
história que, documentada, arquivada, servia como um testemunho da barbárie. O que
comporia esse arquivo seriam os detritos de outrora, as ruínas do passado sob o qual se
erige o presente.
Como afirmou Seligmann-Silva, Benjamin não ultrapassou o umbral da Segunda
Guerra, mas, quando se vê em sua obra a crítica ao modelo de evolução da história como
um avanço linear, constante e positivo, percebe-se como a sua atualidade reside em sua
obra. Benjamin parece que soube antever onde desaguaria a corrente do fascismo. Se aí
estava contida a ideia de progresso, como ele poderia desembocar naquele tipo de
nacionalismo ―mortífero‖ que o fascismo estava promovendo? Para Benjamin, o
progresso é nada mais que o avanço da destruição, e a história é o acúmulo dessas
catástrofes.
Depreende-se então de sua obra a necessidade de um novo modo de ver a
história. Era preciso paralisar o tempo, interromper o curso desse progresso destruidor, e
recomeçar uma outra temporalidade. Abandonar o historicismo burguês e, por meio do
materialismo histórico, ―remodelar o fazer e o pensar históricos‖ (Benjamin, 1994, p.
225). Romper com o método da empatia que o historicista mantém com o vencedor,
―escovar a história a contrapelo‖, nos dizeres de Benjamin (1994, p. 225).

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4. Para o que olha o Angelus Novus
Nesse momento de travessia que se chama de contemporaneidade, a história
move-se, rapidamente. Talvez a longo prazo, com o exercício de explicação e
problematização desse conjunto caótico de eventos e fenômenos em movimento, poder-
se-á esclarecer se a representação da memória contemporânea sob a ótica do
antimonumento demonstra ser mais condizente com o que se entende por realidade, uma
vez que, na sua concepção própria, o antimonumento demanda estratégias de
memorização coerentes com o que aconteceu de fato. Ao não ocultar a catástrofe e a
ruína, o antimonumento as ressignifica: não vistas mais como restos, agora são mesmo
testemunhos da história. Um conceito que se pretende reverso à ideia de enaltecimento
patriótico. É a construção da história do ponto de vista dos vencidos.
Nesse movimento de história a contrapelo que acompanha o conceito de
antimonumento, resgata-se a imagem do Angelus Novus, quadro de Paul Klee descrito
por Benjamin na sua Tese IX, o qual o denomina de anjo da história. Benjamin descreve
apenas o olhar do anjo. E o quadro de Klee mostra também apenas o olhar, e não o que
ele olha. Mas como seriam essas imagens que ele vê, que o fazem querer se afastar e
arregalar os olhos? Talvez as imagens capturadas por Polidori, bem como as
manifestações realizadas sob o signo do antimonumento, sinalizem para o que olha o
Angelus Novus.

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo


que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos
estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história
deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós
vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que
acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele
gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma
tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que
ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para
o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce
até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (Benjamin, 1994,
p. 226)

Referências
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense. 7 ed. 1994.
MARTIN-BARBERO, Jésus. Dislocaciones del tiempo y nuevas topografías de la
memoria. In HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Artelatina: cultura, globalização
e identidades. Rio de Janeiro: Aeroplano. 2000.
MELENDI, Maria Angélica. Antimonumentos: estratégias da memória (e da arte)
numa era de catástrofes. In SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). Palavra e imagem,
memória e escritura. Chapecó: Argos. 2006.

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Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin
ROSENFIELD, Kathrin H. Broch, Musil e Benjamin: três abordagens da imagem e
da história. In SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). Palavra e imagem, memória e
escritura. Chapecó: Argos. 2006.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W.
Adorno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2009.
SERAPIÃO, Fernando. O silêncio de Robert Polidori. In Instituto Moreira Salles.
Robert Polidori Fotografias. 2009.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo:
Companhia das Letras. 2004.

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