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Fillipa Silveira∗
RESUMO
O tema da “antropologização do saber”, um dos mais centrais em As palavras e as
coisas (1966) de Michel Foucault, parece já se ter delineado antes em sua Tese
Complementar, redigida no final da década de 50 e publicada tardiamente (2008).
Nesta, já se encontram elementos que tornarão possível, mais tarde, a tematização da
antropologia como a atribuição de valor transcendental, por parte dos saberes, aos
conteúdos empíricos das práticas e atividades humanas. A antropologia seria um
acontecimento epistemológico a partir do qual a verdade sobre o Homem teria
passado a conferir limites de direito ao conhecimento, o que invariavelmente faria
recair o pensamento numa subjetividade constituinte. Foucault empreende uma crítica
a este movimento que parece se refletir ao longo de toda sua obra. No texto da tese,
encontra-se a referência a um termo que, apesar de pouco tematizado expressamente,
parece evidenciar o cerne de toda oposição de Foucault ao saber sobre o Homem:
trata-se da constituição de uma espécie de “fisiologia moral” ou “ética” que ele extrai
das relações entre filosofia e medicina, através da qual os saberes médicos,
psicológicos e jurídicos teriam sintetizado uma norma do corpo a uma norma da alma.
O objetivo desta comunicação é relacionar os fundamentos da crítica de Foucault à
antropologia a partir da ideia de uma “fisiologia moral”, mostrando a repercussão
desta problemática também em outros momentos da obra do autor.
Introdução
∗
Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos. Bolsista CAPES. Endereço eletrônico:
fillipasilveira@gmail.com.
1
Expressão tomada de Nietzsche emPara além de bem e mal, aforismo 210. Cf. M. Foucault. Gênese e
estrutura da Antropologia de Kant. São Paulo, Loyola: 2011, p. 96.
2
Constitui uma etapa ainda a ser realizada nesta pesquisa a investigação acerca de uma contra-
antropologiafoucauldiana em ditos e escritos da década de 80. De toda maneira, e não por acaso,
observa-se um retorno ao pensamento kantiano e um estudo da Aufklärung nos quais está presente o
tema de uma crítica do humanismo, assim como uma espécie de tensão entre a liberdade dos sujeitos
de governarem-se a si mesmos e a obediência a normas de comportamento associadas a uma norma de
governo. Cf. Foucault [1984], M. Qu’est-ce que les lumières. In: Dits et écrits II. Paris: Gallimard, 2001, p.
1391 e Foucault, M. O governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.6.
3
Cf. Introdução da tradutora Clélia Martins da versão brasileira de Kant [1798], I. Antropologia de um
ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.
4
Cf. Introdução da tradutora da versão portuguesa de Kant [1798], I. Antropologia de um ponto de vista
pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.
5
De um ponto de vista weltbürgerlicher (como “cidadão do mundo”), o campo da filosofia se desdobra
em quatro questões: 1) O que posso saber? ; 2) O que devo fazer? ; 3) O que posso esperar? ; 4) O que é
o homem. À primeira pergunta, responderia a Metafísica, à segunda, a Moral, à terceira a Religião, à
quarta, a Antropologia. Em suma, se poderia fazer decorrer todas as outras da última, pois que todas se
relacionam com ela. Cf. I. Kant. Logik, 1923, p. 25.
6
Foucault identifica uma diferença entre o significado de apercepção e sentido interno na Crítica da
Razão Pura e na Antropologia: “A apercepção que a Crítica reduzia à simplicidadedo Eu penso é agora
aproximada da atividade originária do sujeito, enquanto o sentido interno que a Crítica analisava
segundo a forma a priori do tempo é aqui dado na diversidade primitiva de um Gedankenspiel [jogo de
representações], que se joga fora do domínio mesmo do sujeito, e que faz do sentido interno mais o
signo de uma passividade primeira do que de uma atividade constitutiva. Foucault, M. Introduction à
l’Anthropologie. Tradução: pp. 31-32
7
Uma antropologia do homem enquanto “pertencente a uma cidade moral dos espíritos”. Foucault, M
(2008), op. cit. p. 36.
8
Foucault, M (2008). op. cit. pp.28-44.
Enquanto livre pelo uso de sua razão e mestre de sua saúde corporal, o
homem se torna objeto de uma Univerzalmedizin onde se conjugam ordenamento
medical e preceito filosófico prático (ou, no caso, pragmático). (FOUCAULT, [2008]
2011, p. 29). Sob a Univerzalmedizin repousa uma “fisiologia moral”, o que Kant
chamará de um "sumo bem físico e moral” (KANT, [1789] 2006,p. 74; §88).
A relação entre moral e fisiologia encerra em si uma das grandes dificuldades
com as quais se depara a Antropologia kantiana: “como articular uma análise do que é
o homo natura com uma definição do homem como sujeito de liberdade?” (FOUCAULT
[2008] 2011, p. 43). Dificuldade esta que, segundo Foucault, Kant pretenderia superar
remetendo-se ao sentido pragmático do uso (Gebrauch) de sua condição natural de
que o homem é capaz enquanto ser de liberdade.
Uma vez que não seria possível sintetizar no espaço desta comunicação o
feixe de reverberações que tal conjuntura do problema antropológico fará no
desenrolar da obra doautor, identifico aqui algumas problemáticas pontuais a título de
indicadores. Em primeiro lugar, destaca-se no seio da própria História da Loucura ao
que a tese sobre a antropologia vem complementar, a verdade do homem tornada
objeto e passível de exame científicoé associada ao empenho de uma psiquiatria
moralizante. Foucault se refere à denominação de um conjunto de perversões das
afecções morais, designadas por moral insanity, pela qual responde o psiquiatra
Esquirol (FOUCAULT, [1961] 1972, p. 570).
O fato de, a partir da década de 70 e, sobretudo, após sua admissão no
Collège de France, os escritos de Foucault se terem voltado para fenômenos mais
diretamente ligados às relações de poder, sobretudo no sistema jurídico europeu e na
formação dos saberes em torno do sexo e suas transformações, deve-se, ao que
parece, a uma espécie de aplicação do método e de uma questão investigativa comum
a campos determinados de ação do poder inerente aos saberes identificados na
arqueologia. Isto quer dizer que, ao menos do ponto de vista da questão
antropológica, a análise da formação de verdades em torno da sexualidade, do
encarceramento, do controle e da otimização de subjetividades e suas forças
Porque foi criado sob o viés de uma copertença entre corpo e alma, entre
natureza e liberdade, foi possível ao homem moderno se torar, ao mesmo tempo, alvo
e fonte da legitimação das práticas de saber-poder. Como ente privilegiado na posse
de um corpo físico singular tornou-se corpo-objeto de uma economia de suas pulsões.
Como ente privilegiado na posse de uma liberdade, tornou-se alvo de um exame de
suas faculdades morais e de seus apetites mais íntimos. Como ente privilegiado na
posse de uma linguagem como característica essencial tornou-se lugar da extenuação
do discurso e das técnicas de poder.
O anormal, figura moderna simetricamente oposta ao modelo herdeiro dessa
antropologia sintetiza em si algo do indivíduo a ser corrigido clássico com o monstro
moral onanista jurídico-biológico moderno. Desde Kant, o lampejo da referência ao
interior do homem em relação a sua alma e seu corpo são elementos julgáveis,
passíveis de exame e compondo um espaço de atuação da norma, onde quase que
inacreditavelmente o mais íntimo e interior é trazido ao discurso dito científico sem
que nele haja, entretanto, um único lastro de cientificidade. O discurso da psiquiatria
jurídica moderno, diz Foucault, é risível e é efetivo. É ridículo, e tem valor de norma
(FOUCAULT, [1975], 2001: 8).
Parece estar vivo o homem que coube à denúncia da ausência de fundamento
dos saberes das ciências humanas matar. O saber antropológico que do ponto de vista
epistemológico havia gerado uma verdade sem fundamento, gera, do ponto de vista
jurídico-científico a aplicação do modelo de normalidade universal do homem ao
conhecimento em detalhe por parte do sistema jurídico. Um humano é o que, em
Referências Bibliográficas