Você está na página 1de 13

Antropologia e “fisiologia moral” em Foucault

Fillipa Silveira∗

RESUMO
O tema da “antropologização do saber”, um dos mais centrais em As palavras e as
coisas (1966) de Michel Foucault, parece já se ter delineado antes em sua Tese
Complementar, redigida no final da década de 50 e publicada tardiamente (2008).
Nesta, já se encontram elementos que tornarão possível, mais tarde, a tematização da
antropologia como a atribuição de valor transcendental, por parte dos saberes, aos
conteúdos empíricos das práticas e atividades humanas. A antropologia seria um
acontecimento epistemológico a partir do qual a verdade sobre o Homem teria
passado a conferir limites de direito ao conhecimento, o que invariavelmente faria
recair o pensamento numa subjetividade constituinte. Foucault empreende uma crítica
a este movimento que parece se refletir ao longo de toda sua obra. No texto da tese,
encontra-se a referência a um termo que, apesar de pouco tematizado expressamente,
parece evidenciar o cerne de toda oposição de Foucault ao saber sobre o Homem:
trata-se da constituição de uma espécie de “fisiologia moral” ou “ética” que ele extrai
das relações entre filosofia e medicina, através da qual os saberes médicos,
psicológicos e jurídicos teriam sintetizado uma norma do corpo a uma norma da alma.
O objetivo desta comunicação é relacionar os fundamentos da crítica de Foucault à
antropologia a partir da ideia de uma “fisiologia moral”, mostrando a repercussão
desta problemática também em outros momentos da obra do autor.

PALAVRAS-CHAVE: Antropologia. Fisiologia moral. Alma. Corpo. Foucault.

Introdução

Aantropologização dos saberes tal qual abordada em As palavras e as coisas


(1966) parece reverberar também nos movimentos da arqueologia, da genealogia e da
ética de Foucault. Encontramos neste autor uma preocupação crítica global com o
fenômeno da antropologia de maneira que arriscaríamos considerar o seu esforço
intelectual como uma espécie de contra-antropologia. Isto quer dizer que uma vez
identificada no pensamento ocidental europeu a antropologização dos saberes no
âmbito da arqueologia, tanto a genealogia como a ética se teriam insurgido e
desenvolvido sobre o pano de fundo da crítica a qualquer tentativa de fundamentação


Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos. Bolsista CAPES. Endereço eletrônico:
fillipasilveira@gmail.com.

Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar


ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417
VIII Edição (2012)
203
do ser humano como um ser moral, possuidor de uma “alma”, dotado de um corpo
físico peculiar com relação aos outros entes físicos, caracterizado pelo uso da razão e
da linguagem, e sujeito e objeto de normas jurídicas, médicas e psíquicas.
O principal problema em torno da pergunta da antropologia não é, talvez, que
ela seja o lugar da verdade do homem. A dificuldade maior da pergunta antropológica
reside na via de fundamentação que ela engendra ao enraizar o saber naquele que é,
ao mesmo tempo, sujeito e objeto deste saber. Em uma palavra: o conhecimento
acerca do homem assume a forma do saber dos saberes – a verdade da verdade
(Foucault [1966], 2002: 472) – uma vez que suas práticas e a positividade de sua
experiência no mundo são, paradoxalmente, erigidas em condições transcendentais do
saber sobre ele. O Conhecer o Homem, a partir do pensamento que se engendra no
final do século XVIII segundo a arqueologia de Foucault, significará conhecer o próprio
conhecimento.
A partir de então, o pensamento moderno, diz Foucault, cairá numa ilusão,
num “sono antropológico” que

Consiste em desdobrar o dogmatismo, reparti-lo em dois níveis


diferentes que se apoiam um no outro e se limitam um pelo outro: a
análise pré-crítica do que é o homem em sua essência converte-se na
analítica de tudo o que pode dar-se em geral à experiência do
homem. (FOUCAULT, [1966], 2002, 472).
Esse duplo dogmatismo congrega a dobrareduplicadora de acordo com a qual
o homem da natureza, da troca e do discurso faria as vezes de transcendental, de
condição de possibilidade do fundamento de sua própria finitude. Eis o solo
arqueológico onde Foucault vê se desenrolar as nascentes ciências humanas. Ora,
reside precisamente aqui a ligação estreita entre o cerne do texto de 66 com a tese
complementar intitulada Gêneseeestruturada Antropologia de Kant: é que a tese da
tese complementar é justamente a de que está em formação, desde os textos pré-
críticos de Kant, de uma espécie de homo criticus. Em uma palavra: a revolução
copernicana é também o acabamento de uma virada antropológica que é característica
não só da obra do “velho chinês de Königsberg”1, mas do pensamento ocidental como

1
Expressão tomada de Nietzsche emPara além de bem e mal, aforismo 210. Cf. M. Foucault. Gênese e
estrutura da Antropologia de Kant. São Paulo, Loyola: 2011, p. 96.

Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar


ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417
VIII Edição (2012)
204
um todo desde o final do século XVIII. Kant teria, de acordo com Foucault, ainda que
não expressamente, ensaiado o estudo crítico sobre o homem, superando o
dogmatismo.
O principal propósito desteartigo é apontar que, para além desta constatação
expressa em As palavras e as coisas, a crítica de Foucault ao movimento de
antropologização e sua ascensão enquanto verdade sub-reptícia das ciências humanas
– sedimentado e tornado possível em sua forma mais elaborada no pensamento de
Kant – ultrapassa o domínio da arqueologia dos saberes e se mostra presente em todo
o modo no qual estão assentadas as práticas humanas, seja no âmbito jurídico,
médico, psíquico, sexual ou ético-político. Em uma palavra: temos nos governado2 à
medida de um modelo de Homem, nascido como “condição de possibilidade” desde a
modernidade.
Por volta de cinco anos antes da publicação de As palavras e as coisas,
Foucault defendia sua tese complementar à História da loucura na Idade Clássica
(1961). Intitulada Introdução à Antropologia – Gênese e estrutura da Antropologia de
Kant, a tese complementar de Foucault foi redigida durante sua estadia em Hamburg,
Alemanha, como diretor do instituto francês. Na Tese Complementar, Foucault traduz
e introduzA Antropologia de um ponto de vista pragmático de Kant,texto que parece
constituir um ícone, um exemplomaior, no âmbito do processo de formação de um
modelo humano de comportamento, de normalidade e de postura diante do próprio
corpo e de sua “alma”. Com efeito, é possível erigir um modelo que é ao mesmo
tempo, um modelo de homem a ser conhecido e um modelo de homem a se tornar,
por parte de todos os sujeitos, pois que este homem é dotado, diferentemente de
todos os outros seres, de um duplo caráter: ele tem um corpo, passível de objetivação,
e ele possui uma alma, passível de enquadramento por um conjunto de normas
moraisdiretoras, propedêuticas. Estaria aí o cerne da empreitada antropológica sob o

2
Constitui uma etapa ainda a ser realizada nesta pesquisa a investigação acerca de uma contra-
antropologiafoucauldiana em ditos e escritos da década de 80. De toda maneira, e não por acaso,
observa-se um retorno ao pensamento kantiano e um estudo da Aufklärung nos quais está presente o
tema de uma crítica do humanismo, assim como uma espécie de tensão entre a liberdade dos sujeitos
de governarem-se a si mesmos e a obediência a normas de comportamento associadas a uma norma de
governo. Cf. Foucault [1984], M. Qu’est-ce que les lumières. In: Dits et écrits II. Paris: Gallimard, 2001, p.
1391 e Foucault, M. O governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.6.

Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar


ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417
VIII Edição (2012)
205
olhar de Foucault: a ciência de um homem modelo, objeto tanto de uma epistemologia
como de uma moral. Este homem modelo seria objeto de uma fisiologia ética ou
moral.

Em torno de uma antropologia pragmática

O texto de Foucault examina muito detidamente o contexto e as condições da


redação da última das obras publicadas de Kant. Ele seria o produto final de uma série
de aulas e pesquisas empreendidas pelo filósofo desde o início da década de 1770. De
dentro da problemática da metafísica, mais especificamente no âmbito da psicologia
empírica, objetos de seus cursos no período referido, Kant teria destacado o lugar da
antropologia3. Se a psicologia empírica seria o ramo da ciência metafísica sobre a
experiência do homem, a antropologia dela se destacaria pelo viés pragmático
atribuído a esta experiência (FOUCAULT [2008] 2011, p. 55).
Duas coisas são bastante notáveis na introdução de Foucault. A primeira é que
este texto tenha sido redigido como tese complementar à História da Loucura, obra
em que o autor dirige um olhar crítico e incisivo ao nascimento da psicologia,
abordando a loucura como um acontecimento histórico, como um objeto construído
no seio de uma psicologia e de uma psiquiatria científicas. A segunda é que, enquanto
uma tese complementar – escrita paralelamente (e mesmo marginalmente,
poderíamos dizer) – o objeto deste escrito seja um texto de Kant que se ocupe do
conhecimento do homem (uma antropologia) de um ponto de vista pragmático.
Tomando as duas teses em conjunto, poderíamos dizer que enquanto a preocupação
em torno psicologia e da tentativa de se encontrar seus fundamentos aparece
dissolvida em História da loucura, a problemática antropológica inclinada ao seu
sentido pragmático parece igualmente caminhar no sentido da recusa de qualquer
pretensão fundacionista.
Isto fica mais claro se se esclarece o sentido do pragmático na Antropologia
de Kant. O primeiro elemento que se destaca é o da liberdade, aqui em oposição à

3
Cf. Introdução da tradutora Clélia Martins da versão brasileira de Kant [1798], I. Antropologia de um
ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.

Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar


ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417
VIII Edição (2012)
206
determinação fisiológico-natural: “O conhecimento fisiológico do ser humano trata de
investigar o que a natureza faz do homem; o pragmático, o que ele faz de si mesmo,
ou pode e deve fazer como ser que age livremente” (KANT [1798] 2006, 21). Se é
marcado pela liberdade, o homem além de não estar aqui preso a uma determinação
natural, tampouco à definição última de sua essência metafísica. Este é possivelmente,
um fator que teria tornado o texto tão interessante aos olhos de Foucault.
Em linhas gerais, o texto de Kant Antropologia de um ponto de vista
pragmático (1798), objeto da Tese Complementar de Foucault, seria o produto final de
uma série de aulas e pesquisas empreendidas pelo filósofo desde o início da década de
1770.De dentro da problemática da metafísica, mais especificamente no âmbito da
psicologia empírica, objetos de seus cursos no período referido, Kant teria destacado o
lugar da antropologia4. Se a psicologia empírica seria o ramo da ciência metafísica
sobre a experiência do homem, a antropologia nasce com o caráter pragmáticode um
estudo do homem enquanto aquele que faz, livremente, algo de si mesmo (KANT,
[1798] 2006,p. 21).
Dessa maneira, no intuito de Kant, a Antropologiadeve se ater ao seu
domínio, qual seja, o da experiência da vida do homem e suas práticas:

Enquanto na filosofia pura devem suceder princípios a priori de


definição clara e segura de uma fundamentação última e suficiente,
para a Antropologia é precedente não a fundamentação última, mas
a utilização do conhecimento do homem sobre a práxis da vida; como
‘conhecimento geral’, a Antropologia deve abranger a experiência da
vida do homem na totalidade e é ‘ordenada e conduzida pela
filosofia’ (KANT, 1798, p.120).

Foucault,no entanto, defende a tese de que paralelamente e de maneira


“obscura e obstinada” (FOUCAULT [2008] 2011, p.17), a crítica e sua propedêutica
repousam estruturalmente sob a empreitada antropológica. Seu textorevela um
exame muito detido sobre o contexto e as condições da redação da
Antropologia.Segundo Foucault, o texto de Kant se teria construído e modificado
bastante antes da sua apresentação e publicação como texto final em 1798. A tese de

4
Cf. Introdução da tradutora da versão portuguesa de Kant [1798], I. Antropologia de um ponto de vista
pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.

Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar


ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417
VIII Edição (2012)
207
Foucault é precisamente a seguinte: “Haveria uma certa verdade crítica do homem,
filha da crítica das condições de verdade”(FCOUAULT, [2008] 2011, p.12-13). Em uma
palavra, haveria no intento de Kant não a resposta à última das quatro questões
elencadas na Lógica5, mas uma constituição pragmática do homem como cidadão do
mundo.
A consequência principal da tese de Foucault éque, não estando
desvinculadas antropologia e crítica, o projeto da primeira traria em seu escopo a
descrição de um Eude duplo caráter: a atividade originária do sujeito (apercepção), e a
passividade do sentido interno na sua capacidade de ser afetado de fora para dentro6.
É no exame do texto de Kant que permaneceu inédito, ainda que cotejado com a
versão publicada que Foucault vê se delinear o espaço de possibilidade de uma
antropologia comouma

Região na qual a observação de si não acede nem a um sujeito em si,


nem ao Eu puro da síntese, mas a um eu que é objeto e está presente
apenas em sua única verdade fenomenal. Entretanto, esse eu-objeto,
oferecido ao sentidona forma do tempo, não é estranho ao sujeito
determinante, pois, afinal, ele não é outra coisa senão o sujeito tal
como é afetado por si mesmo. (FOUCAULT [2008] 2011, p. 33).

A ideia de interioridade em relação a uma exterioridade do homem remete ao


caráter pragmático de que é dotado seu sentido interno no texto de 1798. A
Antropologia seria uma espécie de repetição da crítica tanto pura como prática
(FOUCAULT [2008] 2011, p. 92-93), mas numa antropologia de cunho pragmático, mas
não ético7, sob pena de invalidação de seu caráter universal.

5
De um ponto de vista weltbürgerlicher (como “cidadão do mundo”), o campo da filosofia se desdobra
em quatro questões: 1) O que posso saber? ; 2) O que devo fazer? ; 3) O que posso esperar? ; 4) O que é
o homem. À primeira pergunta, responderia a Metafísica, à segunda, a Moral, à terceira a Religião, à
quarta, a Antropologia. Em suma, se poderia fazer decorrer todas as outras da última, pois que todas se
relacionam com ela. Cf. I. Kant. Logik, 1923, p. 25.
6
Foucault identifica uma diferença entre o significado de apercepção e sentido interno na Crítica da
Razão Pura e na Antropologia: “A apercepção que a Crítica reduzia à simplicidadedo Eu penso é agora
aproximada da atividade originária do sujeito, enquanto o sentido interno que a Crítica analisava
segundo a forma a priori do tempo é aqui dado na diversidade primitiva de um Gedankenspiel [jogo de
representações], que se joga fora do domínio mesmo do sujeito, e que faz do sentido interno mais o
signo de uma passividade primeira do que de uma atividade constitutiva. Foucault, M. Introduction à
l’Anthropologie. Tradução: pp. 31-32
7
Uma antropologia do homem enquanto “pertencente a uma cidade moral dos espíritos”. Foucault, M
(2008), op. cit. p. 36.

Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar


ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417
VIII Edição (2012)
208
Foucault examina uma série de elementos que oraaproximam a Antropologia
a outros textos e temáticas sobre as quais se debruçava Kant no mesmo período, ora a
torna herdeira, em seu produto final, de interlocuções através de correspondências
com intelectuais seus contemporâneos. Dentre estas, destaca-se aquelas travadas com
o médicoalemão Cristoph Hufeland na segunda metade da década de 1790 sobre a
saúde, a doença e a capacidade do homem de intervir nelas pelo uso do espírito8.
Segundo Foucault, os escritos de Cristoph Hufeland se inscrevem no contexto
de uma “medicina moralizante” que teria marcado a Alemanha do final do século XVIII
na qual “o que está em questão é ‘tratar moralmente o que há de físico no homem’ e
mostrar que ‘a cultura moral é indispensável à realização física da natureza humana’”.
(2008, p. 39).Desenvolve-se aí, de acordo com Foucault, na maneira como ele lê o
texto kantiano em suas manifestações “marginais”, se é que se pode chamar assim o
conteúdo de cartas de cunho intelectual, uma espécie de relação profunda entre
Filosofia e medicina na qual

Prescrição médica e preceito filosófico se encaixam


espontaneamente na lógica de sua natureza: em um sentido, uma
filosofia moral e prática é uma “Univerzalmedizin”, na medida em
que, sem servir em tudo nem para tudo, não deve faltar em nenhuma
prescrição [...] A filosofia é o elemento de universalidade em relação
ao qual se situa sempre a particularidade da ordem médica. Ela
constitui seu imprescritível horizonte, envolvendo em sua totalidade
as relações entre a saúde e a doença (FOUCAULT [2008] 2011, p. 41).
Na relação com a doença e na propedêutica de uma manutenção das funções
vitais, a filosofia traz o homem para diante de sua finitude, pois que a doença, no seio
desta filosofia moralizante se avizinha ao fenômeno inexorável da morte se constitui
como uma tentativa racional de prolongamento da existência (2008, p.42). Mas de que
maneira uma tal relação entre filosofia e medicina recairiam no horizonte de uma
moral? E ainda: uma vez que a Antropologia de Kant se quer não uma filosofia prática,
mas pragmática, como é possível que haja aí uma moralidade fisiológica? A resposta a
estas questões liga-se diretamente ao fator “equilíbrio” de que é sujeito o homem
enquanto senhor de sua saúde, de seu corpo, dos “movimentos naturais e regulares”
do organismo; de sua dietética:

8
Foucault, M (2008). op. cit. pp.28-44.

Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar


ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417
VIII Edição (2012)
209
Sobre estes movimentos, ou antes, sobre suas alterações, o espírito
tem poder de reequilíbrio: dono de seu pensamento, ele é dono
deste movimento vital que é a versão orgânica e o correspondente
indispensável do pensamento [...] e se o movimento da vida corre
risco de se desequilibrar e bloquear-se no espasmo, o espírito deve
poder lhe restituir uma justa mobilidade (FOUCAULT [2008] 2011, p.
43).

No interior de uma tal mobilidade a ser regulada pelo espírito no equilíbrio


orgânico de seu corpo reside uma moralidade distinta daquela visada no imperativo
categórico, já que o princípio de equilíbrio pressupõe uma síntese com o corpo e sua
estrutura orgânica, marcada aqui pelo fenômeno da doença.
Tal associação repousa naquilo que é a tese de Foucault sobre a antropologia
kantiana, qual seja a da gestação de um homo criticus, um homem filho das condições
de verdade. Uma fisiologia moral seria aqui o produto da propedêutica desta
Univerzalmedizin expressa na Antropologia em passagens como:

Jovem homem! Evita a saciedade (da diversão, do excesso, do amor e


semelhantes), se não com o propósito estóico de se abster
completamente dela, ao menos com o fino propósito epicurista de
ter a perspectiva de uma fruição sempre crescente. Essa parcimônia
com o pecúlio de teu sentimento vital te fará realmente mais rico
pelo retardamento do prazer [...] (KANT, [1781] 2001, p. 64; §25).

Enquanto livre pelo uso de sua razão e mestre de sua saúde corporal, o
homem se torna objeto de uma Univerzalmedizin onde se conjugam ordenamento
medical e preceito filosófico prático (ou, no caso, pragmático). (FOUCAULT, [2008]
2011, p. 29). Sob a Univerzalmedizin repousa uma “fisiologia moral”, o que Kant
chamará de um "sumo bem físico e moral” (KANT, [1789] 2006,p. 74; §88).
A relação entre moral e fisiologia encerra em si uma das grandes dificuldades
com as quais se depara a Antropologia kantiana: “como articular uma análise do que é
o homo natura com uma definição do homem como sujeito de liberdade?” (FOUCAULT
[2008] 2011, p. 43). Dificuldade esta que, segundo Foucault, Kant pretenderia superar
remetendo-se ao sentido pragmático do uso (Gebrauch) de sua condição natural de
que o homem é capaz enquanto ser de liberdade.

Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar


ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417
VIII Edição (2012)
210
Outras tantas indicações de Foucault apresentarão distintos blocos de
questões que se congregam na formação deste que é um homo criticus, modelo
estrutural de um homem cuja antropologia se desenrola enquanto uma espécie de
“ciência do normal por excelência” (FOUCAULT [2008] 2011, p. 73). Uma antropologia
humanista do homem como modelo do próprio homem, mas também da natureza:
uma ciência particular, passível de produzir, na ordem dos saberes, ciências e práticas
ordenadoras que assujeitarão aos poucos, na ordem do saber ocidental, o indivíduo
moderno.

Antropologia e fisiologia moral nas questões foucauldianas

Uma vez que não seria possível sintetizar no espaço desta comunicação o
feixe de reverberações que tal conjuntura do problema antropológico fará no
desenrolar da obra doautor, identifico aqui algumas problemáticas pontuais a título de
indicadores. Em primeiro lugar, destaca-se no seio da própria História da Loucura ao
que a tese sobre a antropologia vem complementar, a verdade do homem tornada
objeto e passível de exame científicoé associada ao empenho de uma psiquiatria
moralizante. Foucault se refere à denominação de um conjunto de perversões das
afecções morais, designadas por moral insanity, pela qual responde o psiquiatra
Esquirol (FOUCAULT, [1961] 1972, p. 570).
O fato de, a partir da década de 70 e, sobretudo, após sua admissão no
Collège de France, os escritos de Foucault se terem voltado para fenômenos mais
diretamente ligados às relações de poder, sobretudo no sistema jurídico europeu e na
formação dos saberes em torno do sexo e suas transformações, deve-se, ao que
parece, a uma espécie de aplicação do método e de uma questão investigativa comum
a campos determinados de ação do poder inerente aos saberes identificados na
arqueologia. Isto quer dizer que, ao menos do ponto de vista da questão
antropológica, a análise da formação de verdades em torno da sexualidade, do
encarceramento, do controle e da otimização de subjetividades e suas forças

Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar


ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417
VIII Edição (2012)
211
produtivas, está diretamente ligada ao nascimento do homem e da antropologização
do saber.
A economia da punição tem maior eficiência e eficácia se se identificam na
interioridade do indivíduo a “vontade do sujeito”:

Sob o nome de crimes e delitos, julgam-se, com efeito, os objetos


jurídicos definidos pelo Código, mas julgam-se, ao mesmo tempo,
paixões, instintos, anomalias, enfermidades, inadaptações, efeitos do
meio ou de hereditariedade; punem-se agressões, mas, através delas,
as agressividades; estupros, mas, ao mesmo tempo, as perversões;
assassinatos, que são também pulsões e desejos“[...] não são elas
que são julgadas, [as agressividades, pulsões e desejos]; se elas são
invocadas, é para explicar os fatos a julgar, e para determinar até que
ponto estava implicada no crime, a vontade do sujeito. Reposta
insuficiente. Pois são elas, as sombras por detrás dos elementos da
causa que são perfeitamente julgadas e punidas (FOUCAULT, 1975, p.
22-23).

A insuficiência da resposta ignoraria os efeitos de uma antropologia moderna


do interior e do exterior do homem. Uma fisiologia do comportamento e da história
moral do criminoso se funda sobre a possibilidade de uma consideração do interior e
do exterior do indivíduo, sendo seu corpo a linha delimitadora entre seu sentido
interno ou sua alma e a capacidade de sofrer efeitos do meio. De dentro da norma
antropológica da harmonia entre mente e corpo, surge uma fisiognomonia – a ordem
da determinação do caráter do indivíduo a partir de traços característicos de seu corpo
– como elemento identificador do interior do homem a sua dimensão interna.
Fisiognomonia esta que à antropologia pragmática kantiana também coube ilustrar,
sob a salvaguarda ante os olhos da sociedade, de um bom caráter expresso através do
olhar sereno do homem vítima de bexigas e deformidades no rosto, por exemplo
(KANT [1789], 2006, p. 195).
No tocante ao fenômeno da sexualidade, a vontade dos discursos, a vontade
de saber se expressa na confissão que se pode extrair da própria carne. Das nervuras
da psique advém a verdade inteiramente dita, extenuada. Do crime ao sexo, o interno
no homem é posto do avesso e sobre ele se deverá falar. Pune-se mais através dos
movimentos de exame das continuidades do corpo e da alma, fala-se mais, produz-se
mais discursos. É preciso que tudo seja dito. Não só na expressão do diagnóstico

Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar


ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417
VIII Edição (2012)
212
psiquiátrico-jurídico. É preciso que o dono do corpo fale, é necessária a confissão da
carne:

Examine, então, diligentemente, todas as faculdades de sua alma, a


memória, o entendimento, a vontade. Examine também com
exatidão todos os seus sentidos... Examine ainda todos os seus
pensamentos, todas as suas palavras, e todas as suas ações. Examine
mesmo os seus sonhos, saber si, estando ele acordados, você não
deu a eles seu consentimento [...] um discurso obrigado e atento
deve assim seguir, segundo todos os seus desvios, a linha de junção
do corpo e da alma (FOUCAULT [1976], 2011, p.28-29).

Porque foi criado sob o viés de uma copertença entre corpo e alma, entre
natureza e liberdade, foi possível ao homem moderno se torar, ao mesmo tempo, alvo
e fonte da legitimação das práticas de saber-poder. Como ente privilegiado na posse
de um corpo físico singular tornou-se corpo-objeto de uma economia de suas pulsões.
Como ente privilegiado na posse de uma liberdade, tornou-se alvo de um exame de
suas faculdades morais e de seus apetites mais íntimos. Como ente privilegiado na
posse de uma linguagem como característica essencial tornou-se lugar da extenuação
do discurso e das técnicas de poder.
O anormal, figura moderna simetricamente oposta ao modelo herdeiro dessa
antropologia sintetiza em si algo do indivíduo a ser corrigido clássico com o monstro
moral onanista jurídico-biológico moderno. Desde Kant, o lampejo da referência ao
interior do homem em relação a sua alma e seu corpo são elementos julgáveis,
passíveis de exame e compondo um espaço de atuação da norma, onde quase que
inacreditavelmente o mais íntimo e interior é trazido ao discurso dito científico sem
que nele haja, entretanto, um único lastro de cientificidade. O discurso da psiquiatria
jurídica moderno, diz Foucault, é risível e é efetivo. É ridículo, e tem valor de norma
(FOUCAULT, [1975], 2001: 8).
Parece estar vivo o homem que coube à denúncia da ausência de fundamento
dos saberes das ciências humanas matar. O saber antropológico que do ponto de vista
epistemológico havia gerado uma verdade sem fundamento, gera, do ponto de vista
jurídico-científico a aplicação do modelo de normalidade universal do homem ao
conhecimento em detalhe por parte do sistema jurídico. Um humano é o que, em

Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar


ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417
VIII Edição (2012)
213
relação a sua interioridade ele faz de si mesmo e de que maneira este fazer o situa de
alguma maneira com algo mensurável, controlável por dentro e por fora. Porque o
homem é livre em sua ação é que ele se torna também objeto de punição.
No encaminhamento para uma conclusão, deixaríamos um questionamento
que é ainda propósito desta pesquisa investigar: haveria nos escritos da dita terceira
fase do pensamento Foucault, voltados para um exame crítico do presente e pautados
numa investigação ética na qual o homem pode não apenas ser governado, mas cuidar
de si mesmo, um espaço de ruptura com a norma antropológica. Numa palavra: é
possível uma liberdadede ação efetiva no âmbito de uma contra-antropologia?

Referências Bibliográficas

FOUCAULT, Michel. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Gallimard, 1972.


________________ . [1961] História da loucura na Idade Clássica. Tradução de José T.
Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 1978.
_________________. [1966]. Lesmotsetleschoses. Paris, Gallimard, 2007.
________________.[1966]. As palavras e as coisas. Tradução de Salma Muchail. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
________________.[1975]. Surveiller et punir: naissance de la prison. Paris: Gallimard,
2004.
________________. [1975] Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de R.
Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
________________.[1976]. Histoire de la sexualité I: La volonté de savoir. Paris,
Gallimard, 2011.
________________[1999]. Os anormais. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
________________. [2008] O governo de si e dos outrosI (1983-1984). Tradução de
Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
________________. [1984] Qu’est-ce que leslumières. In : Dits et écrits II(1976-1988).
Paris, Gallimard, 2001.

Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar


ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417
VIII Edição (2012)
214
________________. [2008] Gênese e estrutura da Antropologia de Kant. Tradução
deMárcio A. da Fonseca e Salma T. Muchail. São Paulo: Loyola, 2011.
FOUCAULT, M; KANT, I. Anthropologie d’um point de vue pragmatique &Introduction à
l’anthropologie. Paris, J. Vrin, 2008.
KANT, Immanuel. [1798] Anthropologie in pragmatischerHinsicht.In : Kant's
gesammelteSchriften, Bd. 7. Berlin, G. Reimer, 1907.
______________. [1798] Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução de
C. Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.
_______________. [1800] Logik.In : Kant's gesammelteSchriften, Bd. 7. Berlin, W.
deGruyter, 1914.

Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar


ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417
VIII Edição (2012)
215

Você também pode gostar