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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Índice

Sinopse/Autores

PRÓLOGO

FUGA

A OPERAÇÃO ARCO-ÍRIS

A CIDADE DE ESMERALDA

GUERRA EM RAMA

DE VOLTA A NODO
Contracapa

Depois da aparição da imensa e deserta espaçonave RAMA, uma segunda nave chega,
para tornar-se moradia para os colonizadores humanos. Mas a colônia transforma-se numa
ditadura, aterrorizando seus vizinhos alienígenas e seus próprios habitantes.
Este é o começo da maior aventura de todo o ciclo RAMA, que começou com o
ENCONTRO COM RAMA, seguindo-se de O JARDIM DE RAMA. Mais um clássico de
Arthur C. Clarke e Gentry Lee que conquistou os prêmios mais importantes da literatura de
ficção científica.
Aba 1 - Sinopse

Anos depois da aparição no sistema solar da imensa e deserta espaçonave RAMA, uma
segunda nave chega, destinada a se tornar a moradia para os colonizadores humanos. Mas
agora a colônia se transformou numa ditadura brutal, que comete o genocídio contra seus
pacíficos vizinhos alienígenas e aterroriza seus próprios habitantes.
Nicole Wakefield, condenada à morte por traição, consegue escapar e cruza o Mar
Cilíndrico até a ilha dos misteriosos arranha-céus, que os humanos chamam de Nova York. Lá,
ela se reúne com seu marido, e logo os dois se juntam a outros familiares e amigos. Mas a
perseguição inicia-se, e eles são forçados a fugir para os corredores subterrâneos de Nova
York, habitados por ameaçadoras criaturas, as octoaranhas.
Assim começa a maior aventura de todo o ciclo RAMA, uma história de grande alcance e
revelações extraordinárias - e um clímax soberbo para a série que começa com o clássico de
Arthur C. Clarke ENCONTRO COM RAMA, o único romance de ficção científica que
conquistou os prêmios mais importantes da literatura de ficção científica.

Aba 2 - Sobre os Autores


ARTHUR C. CLARKE é provavelmente o autor de ficção científica mais conhecido e
mais vendido em todo o mundo. O seu 70º aniversário foi marcado pela inauguração de uma
placa em sua terra natal, Somerset. Ele ganhou inúmeros prêmios internacionais por sua
ficção, sua escrita científica e seu papel inspirativo como um dos mais importantes profetas da
era espacial. Sua colaboração com STANLEY KUBRICK em 2001: UMA ODISSÉIA NO
ESPAÇO estabeleceu novos modelos para os filmes de ficção científica. Como apresentador
da série de TV ARTHUR C. CLARKER'S MYSTERIOUS WORLD, Clarke se tornou um
nome popular. Vive no Sri Lanka. Seu romance mais recente foi The Hammer of God.
GENTRY LEE foi engenheiro chefe do PROJETO GALILEO da NASA e diretor científico da
MISSÃO VIKING para Marte. Ele foi parceiro de Carl Sagan na criação, desenvolvimento e
implantação da série de TV COSMOS e foi co-autor, junto com Arthur C. Clarke, de
CRADLE, RAMA II e o JARDIM DE RAMA.
PRÓLOGO

Em um dos distantes braços espiralados da galáxia da Via-Láctea, uma discreta estrela


amarela solitária orbita lentamente o centro galáctico a trinta mil anos-luz de distância. Essa
estrela estável, o Sol, leva 225 milhões de anos para completar uma revolução em sua órbita
galática. A última vez em que o Sol esteve na sua posição presente, répteis gigantescos de
poderes assustadores tinham começado a estabelecer seu domínio na Terra, um pequeno
planeta azul que é um dos satélites do Sol.
Dentre os planetas e outros corpos da família do Sol, foi apenas nessa Terra que se
desenvolveu algum tipo de vida complexa e duradoura. Apenas nesse mundo especial as
substâncias químicas evoluíram até uma consciência e então perguntaram, quando começaram
a compreender as maravilhas e dimensões do universo, se milagres semelhantes àqueles que
as criaram teriam acontecido em alguma outra parte.
Afinal de contas, argumentavam essas sensíveis criaturas terrestres, há cem bilhões de estrelas
somente na nossa galáxia. Estamos bem certas de que pelo menos vinte por cento dessas
estrelas têm planetas em suas órbitas, e que um número pequeno mas significativo desses
planetas teve, em alguma época de sua história, condições atmosféricas e térmicas capazes de
formar aminoácidos e outras substâncias químicas orgânicas que são o sine qua non de
qualquer biologia que podemos imaginar. Pelo menos uma vez na história, aqui na Terra, esses
aminoácidos descobriram a auto-replicação, e o milagre da evolução que veio a produzir os
seres humanos foi posto em movimento. Como podemos presumir que essa seqüência ocorreu
apenas naquela única vez em toda a história? Os átomos mais pesados necessários para a
nossa criação foram forjados nos cataclismos estelares que explodiram por todo esse universo
durante bilhões de anos. É provável que somente aqui, neste único lugar, esses átomos tenham
se concatenado em moléculas especiais e evoluído para um ser inteligente capaz de fazer a
pergunta: "Estamos sozinhos?"
Na sua busca por seus companheiros cósmicos, de início os seres terrestres construíram
telescópios que lhes permitissem ver seus vizinhos planetários imediatos. Mais tarde, quando
sua tecnologia atingiu um nível mais avançado, sofisticadas espaçonaves robóticas foram
enviadas para examinar esses outros planetas e verificar se neles havia ou não algum sinal de
vida. Através dessas explorações, constatou-se que não havia qualquer tipo de vida inteligente
em nenhum outro corpo de nosso sistema solar. Se houver alguém por lá, concluíram os
cientistas humanos, alguma espécie semelhante à nossa com a qual pudéssemos nos comunicar,
deve estar além do vazio que separa nosso sistema solar de todas as outras estrelas.

No final do século 20 do sistema humano de tempo, as grandes antenas da Terra começam a


procurar sinais coerentes no céu, a fim de determinar se por acaso alguma outra inteligência
estaria nos enviando uma mensagem de rádio. Essa busca continuou por mais de cem anos,
tendo se intensificado durante os dias fulgurantes da ciência internacional no início do século
21, e diminuído mais tarde, nas últimas décadas do século, depois que o quarto conjunto
sucessivo de técnicas sistemáticas de escuta não conseguiu localizar nenhum sinal alienígena.

Por volta do ano 2130, quando o estranho objeto cilíndrico foi identificado pela primeira vez
vindo do espaço interestelar na direção do nosso sistema solar, a maioria dos seres humanos
pensantes concluíra que a vida devia ser escassa no universo e que a inteligência, se é que
jamais existiu fora da Terra, era excessivamente rara. De que outra forma, diziam os cientistas,
poderíamos explicar a falta de resultados positivos em toda a nossa cuidadosa busca
extraterrestre durante o século passado?
Portanto, todos na Terra se assombraram quando, depois de uma inspeção minuciosa, o objeto
que entrou no nosso sistema solar em 2130 foi considerado, incontestavelmente, um artefato de
origem alienígena. Era uma prova inegável de que existia uma inteligência avançada, ou pelo
menos tinha existido em alguma época anterior, em outra parte do universo. Quando uma
missão espacial foi desviada para encontrar-se com o pardacento gigante cilíndrico, com
dimensões maiores que as maiores cidades da Terra, os pesquisadores cosmonautas
encontraram um mistério atrás do outro. Mas eles não foram capazes de responder a algumas
das questões mais fundamentais sobre a enigmática espaçonave alienígena. O intruso objeto
proveniente das estrelas não fornecia explicações definitivas sobre sua origem ou finalidade.
Aquele primeiro grupo de exploradores humanos não só catalogou as maravilhas de Rama
(nome dado ao gigantesco objeto cilíndrico antes de se saber que era um artefato
extraterrestre), mas também explorou e mapeou seu interior. Depois que o grupo de
exploração deixou Rama e a espaçonave alienígena desapareceu em volta do Sol, saindo do
sistema solar em velocidade hiperbólica, os cientistas analisaram detalhadamente todos os
dados coletados durante a missão. Todos reconheceram que os visitantes humanos de Rama
não tinham encontrado as verdadeiras criaturas da misteriosa espaçonave. Contudo, a
cuidadosa análise realizada depois da sua passagem revelou um princípio imutável de sua
redundante engenharia. Cada sistema principal e cada subsistema do veículo tinham duas
cópias. Os navegantes de Rama projetavam tudo em triplos. Os cientistas concluíram que era
muito provável que em breve surgiriam duas outras espaçonaves semelhantes.
Os anos que se seguiram imediatamente à visita de Rama I, em 2130, foram anos de
expectativa na Terra. Estudiosos e políticos proclamavam que uma nova era da história
humana havia começado. A Agência Espacial Internacional (ISA), trabalhando em cooperação
com o Conselho de Governos (COG), criou cuidadosos procedimentos a serem utilizados na
próxima visita dos ramaianos. Todos os telescópios foram voltados para os céus, competindo
entre si pela aclamação que receberia o indivíduo ou o observatório que primeiro localizasse
a próxima espaçonave Rama. Mas não houve outra aparição.
Na segunda metade da década de 2130, o boom econômico, cujos últimos estágios foram, em
parte, alimentados pelas reações internacionais a Rama, terminou abruptamente. O mundo
mergulhou na maior depressão de sua história, conhecida como o grande caos, que gerou a
anarquia e a miséria por toda parte. Todas as pesquisas científicas foram abandonadas durante
essa triste era, e, depois de várias décadas de atenção aos problemas do mundo, o povo da
Terra quase se esqueceu do inexplicável visitante das estrelas.
Em 2200, um segundo intruso cilíndrico chegou no sistema solar. Os cidadãos da Terra tiraram
a poeira dos antigos procedimentos desenvolvidos depois da partida da primeira Rama e
prepararam-se para o encontro com Rama II. Foi escolhida para a missão uma tripulação com
doze integrantes. Logo depois do encontro, os doze declararam que a segunda espaçonave
Rama era quase idêntica à anterior. Os humanos encontraram novos mistérios e maravilhas,
inclusive alguns seres alienígenas, mas continuaram incapazes de responder às questões sobre
a origem e finalidade de Rama.

Três mortes estranhas entre os tripulantes criaram uma grande preocupação na Terra, onde
todos os aspectos da missão histórica foram assistidos pela televisão. Quando o gigantesco
cilindro realizou uma manobra de meio curso, colocando-se na trajetória que impactaria a
Terra, todos ficaram alarmados e apavorados. Os líderes mundiais concluíram com relutância
que, na ausência de qualquer outra informação, não tinham escolha a não ser, concluir que
Rama II era hostil. Não podiam permitir que uma espaçonave alienígena se chocasse com a
Terra, ou se aproximasse o suficiente para utilizar as armas que devia possuir. Tomaram a
decisão de destruir Rama II enquanto ela ainda se encontrava a uma distância segura da Terra.
A equipe de exploração teve ordem de voltar, mas três de seus membros, dois homens e uma
mulher, ainda se encontravam a bordo de Rama II quando a espaçonave alienígena desviou-se
da falange nuclear enviada da Terra. Rama afastou-se da Terra hostil e partiu em alta
velocidade do sistema solar, carregando seus segredos intactos e três passageiros humanos.
Foram necessários treze anos de velocidades relativísticas para que Rama II viajasse da
vizinhança da Terra até seu destino, um imenso complexo de engenharia chamado Nodo,
localizado em uma órbita distante em torno da estrela Sírius.
Os três humanos a bordo do gigantesco cilindro tiveram cinco filhos e tornaram-se uma
família. Enquanto investigava as maravilhas de sua casa espacial, a família encontrou-se de
novo com as espécies extraterrestres que tinha visto anteriormente. Porém, quando chegaram a
Nodo, os humanos já haviam se convencido de que aqueles outros alienígenas eram, como
eles, passageiros de Rama.
A família humana permaneceu em Nodo durante pouco mais de um ano. Durante esse tempo, a
espaçonave Rama foi remodelada e preparada para a sua terceira e última viagem ao sistema
solar. A família soube pela Águia, uma criação não-biológica da Inteligência Nodal, que o
objetivo das espaçonaves Rama era adquirir e catalogar o máximo possível de informações
sobre passageiros espaciais na galáxia. A Águia, com cabeça, bico e olhos de uma águia e
corpo humano, informou também que a última espaçonave, Rama III, conteria um habitat
cuidadosamente projetado com capacidade para duas mil pessoas.
Um vídeo foi transmitido de Nodo para a Terra, anunciando a volta iminente da terceira
espaçonave Rama. Esse vídeo explicava que uma elaborada espécie extraterrestre desejava
observar e estudar as atividades humanas durante um longo período, e solicitava que dois mil
representantes humanos fossem enviados ao encontro de Rama III na órbita de Marte.

Rama III realizou a viagem de Sírius para o sistema solar em uma velocidade correspondente
a mais da metade da velocidade da luz. No interior da espaçonave, dormindo em beliches
especiais, encontrava-se grande parte da família humana que tinha estado em Nodo. Na órbita
de Marte, essa família acolheu os outros humanos da Terra e o habitat primitivo no interior de
Rama foi rapidamente organizado. A colônia resultante, chamada Novo Éden, foi
completamente encerrada e isolada do restante da espaçonave alienígena por meio de grossas
paredes.

Quase imediatamente, Rama III acelerou de novo a velocidades relativísticas, deslocando-se


para fora do sistema solar na direção da estrela amarela Tau Ceti. Três anos se passaram sem
qualquer interferência externa na vida dos humanos. Os cidadãos do Novo Éden tornaram-se
tão envolvidos em sua vida diária que mal prestavam atenção ao universo fora de sua colônia.
Quando uma série de crises se abateu sobre a frágil democracia do paraíso criado para os
humanos pelos ramaianos, um líder oportunista subiu ao poder na colônia e começou a
suprimir impiedosamente toda e qualquer oposição. Um dos exploradores originais de Rama II
fugiu do Novo Éden nessa ocasião, e acabou fazendo contato com um casal simbiótico de uma
espécie alienígena que vivia encerrado no habitat adjacente. Sua esposa permaneceu na
colônia humana e tentou em vão conscientizar a comunidade, mas foi aprisionada depois de
alguns meses, condenada por traição, e sua execução foi marcada.

Enquanto as condições ambientais e de vida dentro do Novo Éden continuavam a se


deteriorar, tropas humanas invadiram a área adjacente ao Hemicilindro Norte da espaçonave
Rama, e entregaram-se a uma guerra de aniquilamento contra o casal simbiótico de espécie
alienígena. Nesse meio-tempo, os misteriosos ramaianos, conhecidos somente através de suas
geniais criações de engenharia, continuaram sua observação detalhada a distância, certos de
que dentro de pouco tempo os humanos entrariam em contato com a avançada espécie que
vivia na região ao sul do mar Cilíndrico...
FUGA

"Nicole"
De início, a voz mecânica e suave parecia parte de um sonho. Mas quando seu nome foi
repetido um pouco mais alto, Nicole acordou num sobressalto.
Uma onda de medo intenso varreu seu corpo. Eles estão atrás de mim, pensou Nicole
imediatamente. É de manhã. Vou morrer dentro de poucas horas.
Nicole respirou fundo, tentando dominar o medo crescente. Um instante depois, abriu os olhos.
Estava completamente escuro dentro da cela. Intrigada, olhou em volta, para ver se conseguia
ver a pessoa que a chamara.
— Estamos aqui, no seu catre, ao lado do seu ouvido direito — disse a voz suavemente. —
Richard mandou que ajudássemos você a fugir... mas temos de agir depressa.
Por um instante, Nicole achou que devia estar dormindo, mas então ouviu uma segunda voz,
muito semelhante à primeira, porém mais nítida.
— Vire para o seu lado direito que nós vamos nos iluminar.
Nicole se virou e viu sobre o catre, ao lado de sua cabeça, duas figuras mínimas, com oito a
dez centímetros de altura no máximo, ambas femininas, iluminadas por um brilho momentâneo
de alguma fonte interna de luz. Uma delas tinha cabelo curto e usava uma armadura européia
do século 15. A segunda figura tinha uma coroa na cabeça e vestia uma roupa plissada de
rainha medieval.
— Eu sou Joana d'Arc — disse a primeira figura.
— Eu sou Eleonor de Aquitânia.
Nicole deu um riso nervoso e olhou assombrada para as duas figuras. Instantes depois, quando
as luzes internas robóticas se extinguiram, Nicole finalmente teve forças para falar.
— Então Richard mandou que vocês me ajudassem? — perguntou num sussurro. — E como
vocês pretendem fazer isso?
— Já sabotamos o sistema monitor — disse a pequena Joana com orgulho. — E
reprogramamos uma biota Garcia... que deve estar chegando para soltar você.— Temos um
pequeno plano de fuga, com várias alternativas — disse Eleonor. — Richard vem trabalhando
nele há meses... desde que acabou de nos criar.
Nicole riu de novo, completamente atordoada.
— Verdade? — perguntou. — E eu posso perguntar onde meu genial marido está nesse
momento?
— Richard está em sua antiga toca debaixo de Nova York — respondeu Joana. — Pediu para
dizermos a você que nada mudou por lá. Está seguindo nosso progresso com um farol de
navegação... A propósito, ele mandou lembranças. Não se esqueceu...
— Fique quieta um instante, por favor — interrompeu Eleonor quando Nicole levou
automaticamente a mão à orelha, do lado direito, com uma sensação de coceira. — Estou
colocando seu farol pessoal agora; ele é muito pesado para mim.
Um instante depois, Nicole tocou o minúsculo instrumento próximo da sua orelha e sacudiu a
cabeça.
— E ele pode nos ouvir também? — perguntou.
— Richard decidiu não arriscar a transmissão das vozes — respondeu Eleonor. — Elas
podem ser facilmente interceptadas por Nakamura... Mas ele vai monitorar nossa localização
física.
— Pode levantar agora — falou Joana — e vestir sua roupa. Queremos estar prontas quando a
Garcia chegar.
Será que as fantasias nunca cessam?, pensou Nicole enquanto lavava o rosto no escuro, na
bacia rudimentar. Durante alguns segundos, ficou imaginando que os dois robôs talvez fossem
parte de um plano do astuto Nakamura, e que ela seria morta quando tentasse fugir. Impossível,
disse consigo mesma. Mesmo que um dos minions de Nakamura pudesse criar robôs assim,
só Richard saberia o suficiente sobre mim para criar uma Joana d'Arc e uma Eleonor de
Aquitânia... de qualquer forma, não faz diferença se me matarem enquanto eu estiver
tentando fugir. Minha eletrocução está marcada para as oito da manhã.
Ouviu-se o som de um biota aproximando-se da cela. Nicole ficou tensa, ainda sem saber ao
certo se suas duas amigas mínimas estavam falando a verdade.
— Sente-se no catre — disse Joana atrás dela — para que Eleonor e eu possamos subir para
dentro dos seus bolsos.
Nicole sentiu os dois robôs passando por cima da sua camisa, e sorriu. Você é incrível,
Richard, pensou. E estou pasma de você ainda estar vivo.
A biota Garcia entrou na cela de Nicole com uma lanterna, mostrando um ar autoritário.
— Venha comigo, sra. Wakefield — ordenou bem alto. — Tenho ordens de levá-la para a sala
de preparação. Nicole ficou assustada mais uma vez. A biota não estava agindo de forma
amistosa. E se... mas não teve muito tempo para pensar. A Garcia levou-a pelo corredor do
lado de fora da cela a passos rápidos. Vinte metros adiante, passaram pela guarda regular de
biotas e por um oficial humano em comando, um jovem que Nicole nunca tinha visto.
— Espere — gritou o homem por trás, quando Nicole e a Garcia estavam quase subindo as
escadas. Nicole ficou congelada.
— Você se esqueceu de assinar os papéis de transferência — disse o homem, entregando um
documento para a Garcia.
— É mesmo — disse a biota, escrevendo de forma floreada seu número de identificação nos
papéis.

Depois de menos de um minuto, Nicole encontrou-se fora da casa grande onde ficara presa
durante meses. Respirou o ar fresco com vontade e seguiu a Garcia por um caminho que dava
na Cidade Central.

— Não — disse Eleonor de dentro do bolso de Nicole. — Nós não vamos com a biota. Siga
para o oeste, na direção daquele moinho de vento com um farol no alto. E é melhor ir
correndo. Temos de chegar na casa de Max Puckett antes do amanhecer.

Sua prisão ficava a quase cinco quilômetros da fazenda de Max. Nicole foi correndo a um
passo regular, sendo apressada a todo instante por um dos robôs, que cuidavam
meticulosamente do tempo. Em breve o dia estaria raiando. Ao contrário da Terra, onde a
transição entre a noite e o dia era gradual, no Novo Éden o amanhecer acontecia de forma
súbita e descontínua. A uma certa hora estava escuro e no instante seguinte o sol artificial se
inflamava e começava seu miniarco pelo teto do habitat da colônia.
— Só mais doze minutos até clarear — disse Joana, quando Nicole chegou na ciclovia que
seguia pelos últimos duzentos metros até a fazenda de Puckett. Estava quase exausta, mas
continuou a correr. Por duas vezes, durante a corrida até a fazenda, ela havia sentido uma
dorzinha no peito. Estou definitivamente fora de forma, pensou, arrependida de não ter se
exercitado regularmente na cela. E também com quase sessenta anos.
A fazenda estava escura. Nicole parou à entrada, respirou fundo e a porta abriu-se alguns
segundos depois.
— Eu estava à sua espera — disse Max, com uma expressão séria que acentuava a gravidade
da situação. Depois de abraçar Nicole com força, saiu andando rapidamente na direção do
celeiro. — Siga-me.
— Até agora não apareceu nenhum carro de polícia na estrada — disse Max quando os dois
entraram no celeiro. — Provavelmente ainda não descobriram que você fugiu. Mas em pouco
tempo descobrirão. O galinheiro ficava do outro lado do celeiro. As galinhas eram colocadas
numa divisória, isoladas dos galos e do resto do edifício. Quando Max e Nicole entraram na
área das galinhas, houve uma grande movimentação. As aves correram em todas as direções,
cacarejando e batendo as asas. O cheiro forte do galinheiro fez com que Nicole se sentisse
mal.
Max sorriu.
— Eu me esqueci de que o cheiro de galinheiro incomoda muito as pessoas — disse. — Já
estou acostumado. — Deu um tapinha nas costas de Nicole e continuou. — De qualquer forma,
aqui você estará protegida, e não vai conseguir sentir o cheiro do lugar onde ficará escondida.
Max andou até o canto do galinheiro, afastou umas galinhas do caminho e ajoelhou-se.
— Quando aqueles robozinhos esquisitos de Richard apareceram pela primeira vez — disse
ele, afastando o feno e a ração das galinhas —, eu não tinha idéia de onde arrumar um
esconderijo para você. Mas logo depois pensei neste lugar. — Levantou duas tábuas que
cobriam um buraco retangular no chão do celeiro. — Espero que esteja certo.

Fez um sinal para Nicole segui-lo e enfiou-se pelo buraco. Os dois foram se movimentando de
quatro pelo chão. A passagem, paralela ao chão por uns metros e depois descendo em um
ângulo fechado, era absolutamente exígua. Nicole foi dando encontrões em Max, à sua frente,
nas paredes e no teto de terra à sua volta. A única luz que iluminava o caminho era uma
lanterninha que Max carregava na mão direita. Depois de quinze metros, o pequeno túnel dava
num quarto escuro. Max pisou cuidadosamente na escada de corda e virou-se para ajudar
Nicole a descer. Um instante depois, os dois se viram no meio do quarto, e Max foi tateando
até acender uma lâmpada.

— Não é bem um palácio — disse ele quando Nicole olhou em volta —, mas imagino que seja
muito melhor do que a sua prisão.
No quarto havia uma cama, uma cadeira, duas prateleiras cheias de alimentos, outra prateleira
com livros eletrônicos, umas roupas penduradas num armário aberto, material de toalete, um
grande tambor de água que devia ter entrado com dificuldade pela passagem do túnel e um
vaso sanitário quadrado e fundo colocado num canto.
— Você fez tudo isso sozinho? — perguntou Nicole.
— Fiz — respondeu Max. — De noite... nessas últimas semanas. Não tive coragem de pedir a
ninguém para me ajudar.
Nicole ficou comovida.
— Como posso lhe agradecer?
— Não sendo apanhada — disse Max, dando uma risadinha. — Eu também não tenho a menor
vontade de morrer... Oh, aliás — continuou, passando para Nicole um ledor eletrônico para
ela colocar os discolivros —, espero que o material de leitura seja do seu agrado. Talvez os
manuais sobre criação de porcos e galinhas não sejam tão bons quanto os romances do seu
pai, mas eu não quis chamar atenção indo a uma livraria. Nicole atravessou o quarto e lhe deu
um beijo no rosto.
— Max — disse suavemente —, você é um amigo e tanto. Não consigo imaginar como...
— É de madrugada lá fora agora — interrompeu Joana d'Arc de dentro do bolso de Nicole. —
Segundo nosso cronograma, estamos atrasados. Sr. Puckett, precisamos inspecionar nossa
saída de emergência antes que o senhor vá embora.
— Droga — disse Max. — Lá vamos nós de novo receber ordens de um robô do tamanho de
um cigarro. — Tirou Joana e Eleonor dos bolsos de Nicole e colocou-as na prateleira de
cima, por trás de uma lata de ervilhas. — Estão vendo aquela portinha? — perguntou. — Há
um cano do outro lado... que sai logo adiante dos porcos através... Por que vocês não vão
experimentar?
Durante os dois minutos em que os robôs se afastaram, Max explicou a situação para Nicole.
— A polícia vai procurar você por toda parte. Especialmente aqui, pois eles sabem que sou
amigo da família. Por isso vou selar a entrada do seu esconderijo. Tudo isso de que você
precisa terá de durar pelo menos algumas semanas.
— Os robôs podem ir e vir à vontade, a menos que sejam comidos pelos porcos —, continuou
Max, dando uma risada. — Eles serão seu único contato com o mundo lá fora. E eles é que
avisarão quando chegar a hora de você passar para a segunda fase do nosso plano de fuga.

— Então eu não vou ver você de novo? — perguntou Nicole.

— Pelo menos durante umas semanas não — respondeu Max. — É muito perigoso... Mais uma
coisa: se a polícia aparecer no prédio, eu desligo a sua luz. Isso será um sinal para você se
manter absolutamente quieta.
Eleonor de Aquitânia estava de volta, de pé na prateleira, ao lado da lata de ervilhas.
— Nossa saída de emergência é excelente — anunciou ela. — Joana vai ficar fora uns dias.
Ela pretende sair do habitat e se comunicar com Richard.
— Agora eu também preciso ir embora — falou Max para Nicole, ficando depois em silêncio
por um instante. — Mas antes tenho de lhe dizer uma coisa, minha amiga... Como você
provavelmente sabe, sempre fui um cínico. Não são muitas as pessoas que me impressionam.
Mas você me convenceu de que talvez alguns de nós sejam superiores às galinhas e aos
porcos. — Fez uma pausa e sorriu. — Não todos nós, mas pelo menos alguns.
— Obrigada, Max — falou Nicole.
Max foi até a escada, virou-se e deu um adeus antes de começar a subir.
Nicole sentou-se na cadeira e respirou fundo. Pelo ruído que vinha do túnel, ela supôs
corretamente que Max estava selando a entrada do seu esconderijo com as grandes sacas de
ração de galinhas colocadas em cima do buraco.
E o que vai acontecer agora?, perguntou-se Nicole. Então percebeu que, durante os cinco
dias após a conclusão do seu julgamento, ela não tinha pensado em quase nada a não ser na
proximidade da morte. Sem o medo da execução iminente moldando seus pensamentos, Nicole
pôde soltar sua cabeça à vontade.
Pensou primeiro em Richard, seu marido e sócio, de quem estava separada agora a quase dois
anos. Nicole lembrou-se nitidamente da última noite que passaram juntos, uma terrível "noite
de Walpurgis" de crime e destruição, que tinha começado com o auspicioso casamento de sua
filha Ellie com dr. Robert Turner. Richard tinha certeza de que nós também estávamos
marcados para morrer, lembrou-se Nicole. E provavelmente ele tinha razão... pois fugiu,
tornou-se inimigo e me deixou sozinha durante esse tempo.
Pensei que você tivesse morrido, Richard, pensou Nicole. Eu teria tido mais fé... mas como é
que foi parar em Nova York de novo?
Sentada na única cadeira do quarto subterrâneo, Nicole começou a sentir uma saudade imensa
do marido. Enquanto sorria, as lágrimas escorriam pelo seu rosto, à medida que as lembranças
lhe vinham à memória. Primeiro se viu de novo na toca das aves em Rama II, muitos anos
antes, temporariamente aprisionada pelas estranhas criaturas com forma de pássaro, que
matraqueavam e guinchavam. Foi Richard quem a encontrou lá. Ele arriscara sua própria vida
para voltar a Nova York e saber se Nicole ainda estava viva. Se Richard não tivesse chegado,
Nicole teria ficado abandonada na ilha de Nova York para sempre.

Richard e Nicole tinham se tornado amantes na época em que tentavam descobrir como
atravessar o mar Cilíndrico e voltar para seus colegas cosmonautas da nave espacial Newton.
Nicole sentiu-se ao mesmo tempo surpresa e contente com a emoção de suas lembranças dos
seus primeiros dias de amor. Nós sobrevivemos juntos ao ataque do míssil nuclear. E
sobrevivemos também à minha tentativa mal-sucedida de criar uma variação genética em
nossa descendência.

Nicole estremeceu ao lembrar-se de sua própria ingenuidade de muitos anos atrás. Você me
desculpou, Richard, o que não deve ter sido fácil. E então nós nos tomamos ainda mais
íntimos em Nodo durante nossas sessões de projeto com a Águia.
O que era realmente a Águia? Nicole ficou entregue aos seus pensamentos. E quem ou o quê
a criou? Na sua cabeça estava gravada uma imagem nítida da criatura bizarra, que tinha sido o
único contato deles na época em que ficaram em Nodo, durante a remodelação da nave Rama.
O ser alienígena, com cara de águia e corpo de homem, lhes tinha informado que ele era um
aperfeiçoamento da inteligência artificial, especialmente projetado para fazer companhia aos
humanos. Seus olhos eram incríveis, quase místicos, lembrou-se Nicole. E eram tão intensos
quanto os de Omeh.
Seu bisavô Omeh estava usando o manto verde de xamã tribal de Senoufo quando foi ver
Nicole em Roma, duas semanas antes do lançamento da nave espacial Newton. Ela se
encontrara com Omeh duas vezes antes, ambas no vilarejo onde nasceu sua mãe, na Costa do
Marfim, uma vez na cerimônia Poro, quando Nicole tinha sete anos, e depois três anos mais
tarde, no enterro de sua mãe. Durante aqueles breves encontros, Omeh começara a preparar
Nicole para uma vida extraordinária, conforme lhe assegurara o velho xamã. Omeh é quem
insistira que Nicole era de fato a mulher que as Crônicas de Senoufo haviam predito que
espalharia sua semente tribal "até mesmo nas estrelas".
Omeh, a Águia, e até mesmo Richard, pensou Nicole. Um grupo e tanto, para ficar só por
aqui. O rosto de Henry, o príncipe de Gales, juntou-se aos outros três homens, e Nicole
lembrou-se por um instante da grande paixão do seu breve caso amoroso logo depois de ter
ganho a medalha de ouro nas Olimpíadas. Nicole estremeceu ao lembrar-se da dor da
rejeição. Mas sem Henry não teria havido uma Geneviève, pensou ela. Enquanto Nicole se
recordava do amor que tinha compartilhado com sua filha na Terra, deu uma olhada pelo
quarto, na prateleira contendo os livros eletrônicos. De repente distraiu-se, foi até a prateleira
e começou a ler os títulos. É claro que Max havia deixado alguns manuais sobre criação de
porcos e galinhas. Mas não deixara só isso. Parecia ter deixado para Nicole toda a sua
biblioteca particular.
Nicole sorriu ao tirar um livro de contos de fadas e inseri-lo no esquadrinhador. Pulou as
primeiras páginas e parou na história da Bela Adormecida. Quando leu em voz alta "e eles
viveram felizes para todo o sempre", veio-lhe à memória outra lembrança aguda, desta vez
dela própria quando criança de seis ou sete anos, sentada no colo do pai na casa do subúrbio
parisiense de Chilly-Mazarin.
Quando eu era criança ansiava por ser uma princesa e viver feliz para todo o sempre,
pensou. Não havia como saber então que a minha vida seria ainda mais extraordinária do
que os contos de fadas.
Nicole recolocou o livro na prateleira e voltou para a sua cadeira. E agora, pensou,
observando o quarto a esmo, quando achava que essa vida incrível tivesse terminado, ao que
parece ainda vou viver pelo menos mais alguns dias.

Pensou de novo em Richard e sentiu de novo uma grande vontade de vêlo. Nós vivemos muita
coisa juntos, Richard. Espero sentir mais uma vez suas mãos, ouvir sua risada, ver seu
rosto. Mas se não conseguir, vou tentar não reclamar. Na minha vida já vi muitos milagres.

Eleonor Wakefield Turner chegou ao grande auditório da Cidade Central às sete e meia da
manhã. Embora a execução só estivesse marcada para as oito horas, já havia umas trinta
pessoas nas cadeiras da frente, algumas conversando, outras quietas. Uma equipe de televisão
andava em volta da cadeira elétrica do palco. Embora a execução fosse transmitida ao vivo,
os policiais do auditório contavam que a casa ficasse lotada, pois o governo encorajara os
cidadãos do Novo Éden a assistir pessoalmente à morte de sua ex-governadora.
Ellie tivera uma pequena discussão com seu marido, Robert Turner, na noite anterior.
— Poupe-se um pouco, Ellie — ele dissera, quando lhe contou que pretendia assistir à
execução. — Ver sua mãe uma última vez não vale o horror de ficar assistindo à sua morte.
Mas Ellie sabia uma coisa que Robert não sabia. Enquanto ela se sentava no auditório, tentava
controlar os fortes sentimentos dentro de si. Meu rosto não pode deixar entrever nada, dizia
consigo mesma, ou os meus gestos. Nem o mais leve indício. Ninguém deve suspeitar que sei
alguma coisa sobre a fuga. Vários olhos viraram-se de repente para ela. Ellie sentiu o
coração bater forte até perceber que alguém a reconhecera, e que era absolutamente natural
que os curiosos olhassem para ela.
Ellie só conhecera os robozinhos de seu pai, Joana d'Arc e Eleonor de Aquitânia, umas seis
semanas antes, quando estava do lado de fora do habitat principal, no vilarejo de quarentena
de Avalon, ajudando seu marido médico, Robert, a cuidar dos pacientes condenados pelo
retrovírus RV-41 que invadira seus corpos. Ela acabara de fazer uma visita de consolo à sua
amiga e exprofessora Eponine. Saíra do quarto de Eponine e estava andando pela estrada de
terra, esperando ver Robert a qualquer instante, quando de repente ouviu umas vozes estranhas
chamando seu nome. Ellie olhou em volta e finalmente localizou as duas figurinhas no telhado
de um prédio próximo.
Depois de atravessar a estrada para poder ver e ouvir melhor os robôs, a assustada Ellie foi
informada por Joana d'Arc de que seu pai Richard ainda estava vivo. Logo que se recobrou
desse primeiro choque, começou a fazer perguntas e ficou logo convencida de que Joana e
Eleonor estavam dizendo a verdade; porém, antes de saber por que seu pai havia mandado os
robôs procurála, viu que seu marido se aproximava. As figuras do telhado lhe disseram que
voltariam em breve, e aconselharam Ellie a não falar com ninguém sobre elas, nem mesmo
com Robert, pelo menos por enquanto.

Ellie ficara felicíssima ao saber que seu pai estava vivo. Era quase impossível manter aquela
notícia em segredo, embora tivesse consciência da importância política da informação.
Quando, duas semanas mais tarde, encontrou-se novamente em Avalon com os pequenos robôs,
estava pronta para fazer uma torrente de perguntas. Entretanto, naquela ocasião Joana e
Eleonor estavam programadas para discutir outro assunto: uma possível tentativa de tirar
Nicole da prisão. Os robôs contaram a Ellie no segundo encontro que Richard sabia que essa
fuga era uma tarefa perigosa.

— Nós nunca tentaríamos — disse o robô Joana — se a execução de sua mãe não estivesse
absolutamente certa. Mas, se não nos prepararmos a tempo, não será possível uma fuga de
última hora.
— O que eu posso fazer para ajudar? — perguntou Ellie.
Joana e Eleonor lhe entregaram um pedaço de papel com uma lista de artigos incluindo
comida, água e roupas. Ellie tremeu ao reconhecer a letra do pai.
— Guarde essas coisas neste lugar — disse o robô Eleonor, entregando um mapa para Ellie.
— No máximo dentro de dez dias, a partir de hoje. — Um instante depois apareceu outro
colono, e os dois robôs desapareceram.
Dentro do mapa havia um bilhete de seu pai: "Querida Ellie, desculpe a brevidade deste
bilhete. Estou em segurança e com saúde, mas muito preocupado com sua mãe. Por favor,
reúna esses artigos e leve-os ao lugar indicado na planície Central. Se você não puder fazer
tudo isso sozinha, por favor peça ajuda a uma única pessoa. Mas esteja certa de que a pessoa
que você escolher é tão leal e dedicada a Nicole como nós somos. Eu amo você."
Ellie logo viu que iria precisar de ajuda. Mas quem poderia escolher para ser seu cúmplice?
Seu marido Robert era uma má escolha, por duas razões. Primeiro, ele já mostrara que sua
dedicação aos seus doentes e ao hospital do Novo Éden lhe era mais importante do que
qualquer sentimento político que pudesse ter. Segundo, qualquer um que fosse apanhado
ajudando Nicole a fugir seria certamente executado. Se Ellie envolvesse Robert no plano de
fuga, a filha deles, Nicole, acabaria ficando órfã de pai e mãe.
E que tal Nai Watanabe? Não havia dúvida quanto à sua lealdade, mas Nai criava sozinha seus
filhos gêmeos de quatro anos. Não seria justo pedir que ela corresse aquele risco. Sobrava
portanto apenas Eponine. Qualquer preocupação que Ellie tivesse quanto à sua amiga doente
foi rapidamente desfeita por ela.
— É claro que vou ajudar você. — disse Eponine imediatamente. — Não tenho nada a perder.
Segundo seu marido, esse vírus RV-41 vai me matar dentro de um a dois anos.
Em uma semana, Eponine e Ellie juntaram clandestinamente os artigos pedidos, um de cada
vez. Embrulharam tudo com cuidado num pequeno lençol e esconderam a trouxa no canto do
quarto bagunçado de Eponine, em Avalon. No dia combinado, Ellie saiu do Novo Éden e foi
até Avalon, pretensamente para monitorar com cuidado durante doze horas os dados
biométricos de Eponine. Na verdade, explicar a Robert por que ela queria passar a noite com
Eponine tinha sido muito mais difícil do que convencer o único guarda humano e a biota
Garcia na saída do habitat quanto à sua necessidade de um passe noturno.

Logo depois da meia-noite, Ellie e Eponine pegaram a pesada trouxa de lençol e saíram a pé
pelas ruas de Avalon. Evitando com cuidado os biotas ambulantes que a polícia de Nakamura
usava para patrulhar o pequeno vilarejo à noite, as duas mulheres passaram pelas imediações
da cidade e foram dar na planície Central. A partir daí, andaram vários quilômetros e
depositaram a trouxa no local indicado. Uma biota Tiasso as tinha parado na saída do quarto
de Eponine, um pouco antes do amanhecer artificial do vilarejo, e perguntado o que as duas
estavam fazendo por ali em hora tão absurda.

— Essa mulher tem RV-41 — disse Ellie rapidamente, ao sentir o pânico de sua amiga. — É
uma das pacientes do meu marido... Está com muita dor e não consegue dormir, e nós achamos
que uma volta bem cedinho iria lhe fazer bem... Agora, com licença...
A Tiasso deixou-as passar. Ellie e Eponine ficaram tão assustadas que nenhuma das duas falou
durante uns dez minutos.
Ellie não tinha visto mais os robôs. Não tinha idéia se a fuga fora tentada ou não. Como a hora
da execução de sua mãe estava chegando e os lugares no auditório em volta dela começaram a
ser ocupados, o coração de Ellie começou a pular no peito. E se nada aconteceu?, pensou. E
se minha mãe vai realmente morrer daqui a vinte minutos?
Ellie olhou para o palco. Ao lado da grande cadeira havia uma pilha de dois metros de altura
de equipamentos eletrônicos de cor cinza metálica. Além disso, o único outro objeto no palco
era um relógio digital marcando as horas: 0742. Ellie olhou para a cadeira. Pendurado no alto
via-se um capuz para ser colocado na cabeça da vítima. Ellie sentiu um tremor no corpo e foi
tomada de náusea. Que coisa bárbara, pensou. Como uma espécie que se considera
adiantada pode tolerar esse espetáculo revoltante?
Sua cabeça tinha acabado de se livrar das imagens da execução quando alguém bateu em seu
ombro. Ellie virou-se e viu um policial grande inclinado sobre ela.
— Você é Eleanor Wakefield Turner? — perguntou ele.
Ellie ficou tão assustada que mal pôde responder. Fez que sim com a cabeça.
— Quer me acompanhar, por favor? — disse o policial. — Preciso lhe fazer umas duas
perguntas.
As pernas de Ellie tremiam quando ela passou pelas três pessoas na sua fila para chegar ao
corredor. Aconteceu alguma coisa, pensou ela. A fuga foi descoberta. Eles encontraram a
trouxa e alguém sabe que estou envolvida.
O policial levou-a para uma sala de reuniões ao lado do auditório.
— Sou o capitão Franz Bauer, sra. Turner — disse ele. — É meu dever cuidar do corpo de sua
mãe depois que ela for executada. Naturalmente nós encomendamos a cremação de sempre ao
agente funerário. Mas — e o capitão Bauer parou, como se estivesse escolhendo as palavras
com cuidado —, em vista dos serviços prestados por sua mãe à colônia, pensei que talvez a
senhora, ou alguém de sua família, desejasse cuidar pessoalmente dos arranjos finais.
— É claro, capitão Bauer — respondeu Ellie, extremamente aliviada. — Certamente. Muito
obrigada — acrescentou depressa.
— Isso é tudo, sra. Turner — disse o policial. — Agora a senhora pode voltar ao auditório.
Ellie ficou de pé e viu que ainda estava tremendo. Colocou uma das mãos na mesa em frente
do capitão Bauer.

— Capitão? — disse ela.

— Sim?
— Seria possível eu ver minha mãe sozinha, só por um instante, antes da...? O policial
examinou Ellie a distância.
— Acho que não, mas vou fazer o pedido em seu nome.
— Muito obrigada...
Ellie foi interrompida pela campainha do telefone. Saiu o mais devagar possível da sala de
reuniões para ver a expressão chocada no rosto do capitão Bauer.
— Tem certeza disso? — ouviu-o dizer quando saía da sala.

A multidão estava ficando indócil. O grande relógio digital do palco marcava 0836.
— Vamos, vamos — disse o homem por trás de Ellie. — Vamos acabar logo com isso.
Mamãe conseguiu fugir. Eu sei, disse Ellie para si mesma, tomada de alegria e forçando-se a
se manter calma. É por isso que tudo aqui está tão confuso.
Cinco minutos depois das oito horas, o capitão Bauer informara a todos que as atividades
seriam retardadas em alguns minutos, mas na última meia hora ninguém anunciara mais nada.
Na fileira da frente de Ellie circulava um boato de que os extraterrestres tinham tirado Nicole
da cela.
Algumas pessoas já começavam a sair quando o governador Macmillan apareceu no palco.
Ele tinha um ar preocupado, mas assim que se dirigiu à multidão conseguiu dar aquele sorriso
oficial.
— Senhoras e senhores, a execução de Nicole des Jardins Wakefield foi adiada. O governo
descobriu algumas pequenas irregularidades nos documentos relacionados ao caso dela; nada
realmente importante, é claro, mas achamos que esses pontos deviam ser esclarecidos
primeiro, para que não houvesse nenhuma possibilidade de erro. A nova data da execução será
anunciada proximamente. Todos os cidadãos do Novo Éden serão informados dos detalhes.
Ellie ficou sentada na cadeira até o auditório ficar vazio. Ela achava que seria detida pela
polícia quando tentasse sair, mas isso não ocorreu. Ao se ver do lado de fora, foi difícil
controlar-se para não gritar de alegria. Mãe, mãe, pensou Ellie, com lágrimas nos olhos. Estou
tão feliz por você!
De repente Ellie sentiu que várias pessoas a olhavam. Oh, oh, pensou ela. Será que estou me
entregando? E olhou para aquela gente com um sorriso nos lábios. Agora, Ellie, vem seu
maior desafio. Você não pode, em circunstância alguma, se portar como se não estivesse
surpresa.

Como sempre, Robert, Ellie e a pequena Nicole pararam em Avalon para visitar Nai Watanabe
e os gêmeos, depois de terminarem as visitas semanais dos setenta e sete pacientes de RV-41.
Era quase hora do jantar. Galileu e Kepler estavam brincando na rua de terra em frente à casa
quase em ruínas. Quando os Turner chegaram, os dois menininhos estavam brigando.

— Ela também está! — dizia Galileu, de quatro anos, de forma acalorada.

— Não está — respondia Kepler com igual paixão. Ellie baixou-se para falar com os gêmeos.
— Meninos, meninos — disse com uma voz suave. — Por que vocês, estão brigando?
— Oi, sra. Turner — disse Kepler com um sorriso encabulado. — Não foi nada. Galileu e
eu...
— Eu disse que a governadora Wakefield já morreu — interrompeu Galileu. — Um dos
meninos do centro me contou, e ele deve saber porque seu pai é da polícia.
Por um instante, Ellie foi tomada de pânico. Depois percebeu que os gêmeos não tinham feito
correlação entre Nicole e ela.
— Vocês estão lembrados de que a governadora Wakefield é minha mãe, e avó da pequena
Nicole? — perguntou docemente. — Você e Kepler a viram várias vezes antes de ela ir para a
prisão.
Galileu franziu a sobrancelha e depois sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro dela... acho que sim — disse Kepler solenemente. — Ela está morta, sra.
Turner? — perguntou com ingenuidade o garoto, depois de uma breve pausa.
— Não sabemos ao certo, mas esperamos que não — respondeu Ellie, quase se traindo. Seria
tão fácil contar para aquelas crianças... Mas seria um erro. Provavelmente havia um biota por
ali ouvindo a conversa.
Quando Ellie pegou Kepler para lhe dar um abraço, lembrou-se de seu encontro casual com
Max Puckett no supermercado eletrônico, três dias antes. No meio da conversa, Max tinha dito
de repente:
— A propósito, Joana e Eleonor estão muito bem e mandaram lembranças.
Ellie ficara agitada e fizera uma pergunta-chave, mas Max ignorou-a completamente. Dois
minutos depois, quando Ellie ia dizer alguma coisa, a biota Garcia, encarregada do mercado,
apareceu subitamente ao lado deles.
— Alô, Ellie. Alô, Robert — disse Nai da porta da casa. Estendeu os braços e pegou a
pequena Nicole dos braços de seu pai. — E como vai você, minha coisa linda? Não vejo essa
boneca desde sua festa de aniversário na semana passada.
Os adultos entraram em casa. Depois que Nai verificou que não havia biotas-espiões na área,
chegou mais perto de Robert e Ellie.
— A polícia me interrogou de novo na noite passada — disse ela num sussurro para os
amigos. — Estou começando a pensar que talvez haja alguma verdade nos boatos.
— Que boatos? — perguntou Ellie. — Eles são tantos!

— Uma das mulheres que trabalha na nossa fábrica — disse Nai — tem um irmão no serviço
especial de Nakamura. Ele lhe disse, numa noite em que estava bêbado, que quando a polícia
apareceu na cela de Nicole, na manhã da execução, encontrou-a vazia. Uma biota Garcia a
tirou de lá. Eles acham que é a mesma Garcia que foi destruída na explosão do lado de fora da
fábrica de munição.

Ellie sorriu, mas seus olhos não disseram nada em resposta ao olhar inquiridor de sua amiga.
Não posso contar nada a ela, pensou.
— A polícia também me interrogou — disse Ellie num tom despreocupado. — Várias vezes.
Segundo eles, as perguntas são todas programadas para esclarecer o que chamam de
irregularidades no caso da mamãe. Até mesmo Katie foi procurada pela polícia. Ela apareceu
sem avisar na semana passada e disse que o adiamento da execução de mamãe foi certamente
estranho.
— O irmão de minha amiga — disse Nai depois de um pequeno silêncio — disse que
Nakamura suspeita de uma conspiração.
— Isso é ridículo — falou Robert. — Não há nenhuma oposição ativa ao governo em parte
alguma da colônia.
Nai chegou mais perto de Ellie.
— E o que você acha que está realmente acontecendo? — perguntou baixinho. — Acha que
sua mãe realmente fugiu? Ou que Nakamura mudou de idéia e executou-a em particular para
que ela não se tornasse uma mártir?
Ellie olhou primeiro para o marido e depois para a amiga.
Diga a eles, diga a eles, dizia uma voz dentro dela. Mas resistiu. — Não tenho a menor idéia,
Nai. É claro que considerei todas as possibilidades que você mencionou. E também algumas
outras. Mas não temos meios de saber... Embora eu não seja bem o que se chama de religiosa,
tenho rezado a meu modo para que mamãe esteja bem.

3
Nicole terminou de comer os damascos e atravessou o quarto para jogar o pacote vazio na lata
de lixo, que já estava quase cheia. Tentou empurrar o lixo com o pé, mas o nível continuou
praticamente o mesmo.
Meu tempo está se escoando, pensou ela, dando uma olhada para os alimentos que restavam na
prateleira. Só posso agüentar aqui mais uns cinco dias. Depois disso vou precisar reforçar
meus suprimentos.
Joana e Eleonor estavam fora há quarenta e oito horas. Durante as duas primeiras semanas da
permanência de Nicole no quarto subterrâneo do celeiro de Max Puckett, um dos robôs ficara
com ela o tempo todo. Conversar com os robôs era quase como conversar com o próprio
Richard, pelo menos no início, antes de Nicole esgotar todos os assuntos que os robozinhos
tinham armazenados na memória.
Aqueles dois robôs são as maiores criações dele, disse Nicole a si mesma, sentada na
cadeira. Ele deve ter gasto meses para fabricá-los. E lembrou-se dos robôs shakespearianos
de Richard, nos dias na nave Newton. Joana e Eleonor são muito mais sofisticadas do que o
príncipe Hal e Falstaff. Richard deve ter aprendido muito com a engenharia dos biotas-
humanos do Novo Éden.

Joana e Eleonor tinham mantido Nicole informada dos acontecimentos mais importantes
ocorridos no habitat. Era uma tarefa fácil para elas, pois parte da instrução programada desses
robôs era observar e dar as notícias via rádio para Richard durante suas saídas periódicas do
Novo Éden; portanto, essas mesmas informações eram passadas para Nicole. Ela sabia, por
exemplo, que a polícia especial de Nakamura vasculhara todos os prédios da colônia nas duas
primeiras semanas após a fuga, buscando ostensivamente alguém que pudesse lhes dar alguma
pista. Tinham ido à fazenda de Puckett, é claro, e durante quatro horas Nicole teve de ficar
absolutamente imóvel no esconderijo, em completa escuridão. Ela ouvira uns ruídos acima de
sua cabeça, mas quem conduziu a busca não ficou muito tempo no celeiro.

Mais recentemente, Joana e Eleonor tiveram de se ausentar ao mesmo tempo do esconderijo,


dizendo que estavam coordenando a próxima fase da fuga. No dia em que Nicole perguntou
aos robôs como pensavam em passar pelo posto policial na entrada do Novo Éden, Joana
respondeu:
— É muito fácil. Os caminhões de carga atravessam um portão doze vezes ao dia, em geral
levando e trazendo material para as tropas e pessoal de construção para o outro habitat, alguns
indo para Avalon. É impossível que alguém nos note no meio de uma dessas cargas grandes.
Joana e Eleonor também informaram Nicole sobre toda a história da colônia desde que ela
fora presa. Nicole sabia que os humanos tinham invadido o habitat ave/séssil e desalojado
seus ocupantes. Richard não gastara espaço na memória dos robôs nem seu próprio tempo
passando muitos detalhes para Joana e Eleonor sobre as aves e os sésseis; porém Nicole sabia
que Richard conseguira fugir para Nova York com dois ovos de aves, quatro melões-maná
contendo embriões de espécies sésseis bizarras, e uma fatia de um verdadeiro séssil adulto.
Ela também sabia que as duas aves tinham nascido alguns meses antes, e que Richard andava
extremamente ocupado com elas.
Nicole tinha dificuldade em imaginar seu marido Richard servindo de pai e mãe para dois
seres alienígenas. Ela lembrou-se de que, quando seus próprios filhos eram pequenos, Richard
não mostrava muito interesse no desenvolvimento deles, e que se mostrava extremamente
insensível às necessidades emocionais das crianças. É claro que ele fora maravilhoso
ensinando-lhes coisas, especialmente os conceitos abstratos da matemática e da ciência. Mas
Nicole e Michael O'Toole observaram muitas vezes, durante sua longa viagem na nave Rama
II, que Richard não parecia capaz de lidar com crianças no nível delas.
A infância dele foi sofrida, pensou Nicole, recordando-se de suas conversas com Richard
sobre seu pai violento. Ele deve ter crescido sem capacidade de amar ou confiar nos outros...
Todos os seus amigos eram fantasias ou robôs criados por ele próprio... Nicole parou de
pensar por um instante. Mas durante nossos anos no Novo Éden ele mudou definitivamente...
Nunca tive oportunidade de lhe dizer como me sentia orgulhosa dele. Por isso eu quis deixar a
carta especial...
A luz do quarto apagou-se de repente e Nicole ficou na escuridão. Sentouse quieta na cadeira
e ficou prestando atenção aos ruídos. Embora soubesse que a polícia estava novamente por
ali, não conseguia ouvir nada. Foi ficando mais assustada, e só então percebeu como Joana e
Eleonor tinham se tornado importantes para ela. Na primeira vez em que a polícia especial foi
à fazenda de Puckett, os dois robôs estavam no quarto para acalmá-la.

O tempo passou muito lentamente. Nicole podia ouvir as batidas de seu coração. Depois do
que lhe pareceu uma eternidade, ela ouviu vozes lá em cima, como se houvesse muita gente no
celeiro. Nicole respirou fundo e tentou acalmar se. Alguns segundos depois, quase morreu de
susto quando ouviu uma voz suave ao seu lado recitando um poema:

Invada-me agora, meu amigo implacável


E me deixe encolhida no escuro.
Lembre-me de que estou sozinha
E deixe sua marca no meu rosto.
Como conseguiu me capturar,
Se todos os meus pensamentos negam sua força?
Será o réptil no meu cérebro
Que deixa o seu terror seguir seu curso?

O medo infundado nos anula


Apesar da nossa busca por metas elevadas
Nós os pretensos Galahads não morremos
O medo só congela nossa alma.
E nos emudece quando sentimos o amor,
Lembrando-nos o que podemos perder
E se por acaso conhecermos o sucesso
O medo nos diz qual o caminho seguro a seguir.

Nicole reconheceu aos poucos que aquela voz pertencia ao robô Joana, e que ela estava
recitando as duas famosas estrofes de Benita Garcia sobre o medo, escritas depois que Benita
foi politizada pela pobreza e destruição do grande caos. A voz familiar do robô e os versos
familiares do poema atenuaram temporariamente o pânico de Nicole. Por um instante, ouviu
com mais calma os ruídos vindos lá de cima, embora eles estivessem aumentando.
Quando Nicole ouviu que as grandes sacas de ração colocadas na entrada do seu esconderijo
estavam sendo retiradas, seu medo aumentou subitamente. É isso aí, disse para si mesma.
Agora vou ser capturada.
Nicole ficou pensando se a polícia especial a mataria assim que a encontrasse. Depois ouviu
uma batida metálica forte na extremidade da passagem para o seu quarto, e não conseguiu mais
se manter sentada. Ao se levantar, sentiu fortes dores no peito e teve dificuldade para respirar.
O que está me acontecendo? pensou, quando Joana falou ao seu lado.
— Depois da primeira busca, Max teve medo de não ter camuflado bem a entrada do
esconderijo. Uma noite, enquanto você dormia, ele construiu no alto do buraco um sistema de
escoamento para o galinheiro, com os canos de descarga correndo por cima deste quarto.
Aquele som metálico que você ouviu foi alguém batendo nos canos.
Nicole prendeu a respiração para tentar ouvir a conversa abafada por cima do quarto. Depois
de um minuto, ouviu de novo as sacas do galinheiro sendo mexidas. Pobre Max, pensou,
relaxando. A dor no peito diminuiu. Passados mais alguns minutos, os ruídos cessaram
completamente. Nicole deu um suspiro e sentou-se na cadeira, mas só conseguiu dormir
quando a luz voltou a acender.

O robô Eleonor estava de volta quando Nicole acordou. Ela explicou que Max ia começar a
retirar o sistema de drenagem nas próximas horas, e que Nicole finalmente iria sair do
esconderijo. Nicole ficou surpresa quando, depois de rastejar pelo túnel, encontrou Eponine
ao lado de Max. As duas se abraçaram.

— Ça va bien? Je ne t'ai pas vue depuis si longtemps — disse Eponine para Nicole.
— Mais mon amie, pourquoi es-tu ici? J'ai pensé que...
— Ei, vocês duas, já chega — interrompeu Max. — Vão ter muito tempo para conversar mais
tarde. Agora precisamos nos apressar. Já estamos atrasados porque levei muito tempo
retirando essa droga de canos... Ep, leve Nicole lá dentro e lhe dê a roupa. E pode ir
explicando o plano enquanto ela se veste... Tenho de tomar uma ducha e fazer a barba.
Quando as duas iam andando no escuro, do celeiro até a casa de Max, Eponine contou para
Nicole que tudo estava preparado para ela fugir do habitat.
— Nos últimos quatro dias Max escondeu o equipamento de mergulho, peça por peça, em
volta das margens do lago Shakespeare. Ele também tem outro conjunto guardado num
armazém em Beauvois, caso alguém tenha tirado sua máscara ou seu tanque de ar de onde
estavam escondidos. Enquanto você e eu estivermos na festa, Max vai dar um jeito para que
tudo corra bem.
— Que festa? — perguntou Nicole, confusa. Eponine deu uma risada quando elas entravam em
casa.
— Oh, meu Deus, eu me esqueci que você não está seguindo o calendário. Esta noite é o
Mardi Gras. Há uma grande festa em Beauvois e outra em Positano. Quase todo mundo vai
estar na rua à noite. O governo está animando as pessoas a tomarem parte das festividades,
provavelmente para afastarem da cabeça os outros problemas da colônia.
Nicole olhou de forma estranha para a amiga, e Eponine riu de novo.
— Você não entende? Nossa maior dificuldade é saber como fazer você atravessar a colônia
até o lago Shakespeare sem ser vista. Todos em Novo Éden a conhecem. Até mesmo Richard
acha que essa era a única oportunidade razoável. Você vai fantasiada e mascarada...
— Então você falou com Richard? — perguntou Nicole, começando a compreender pelo
menos o esboço do plano.
— Não diretamente, mas Max comunicou-se com ele através dos robozinhos. Richard foi
quem teve a idéia de construir o sistema de drenagem que tapeou a polícia na última vez em
que estiveram na fazenda. Ele estava com medo de que você fosse descoberta...
Obrigada mais uma vez, Richard, pensou Nicole, enquanto Eponine continuava a falar. A essa
altura, já lhe devo minha vida pela terceira vez.
As mulheres entraram no quarto e viram sobre a cama um lindíssimo vestido branco.
— Você vai à festa fantasiada de rainha da Inglaterra — disse Eponine.
— Venho trabalhando neste seu vestido há duas semanas sem parar. Com essa máscara
cobrindo seu rosto todo, as luvas brancas compridas e as polainas, ninguém vai ver seu cabelo
nem sua pele. Não teremos de ficar na festa muito mais que uma hora, e você não vai ter de
conversar muito com as pessoas; mas se alguém perguntar, diga simplesmente que você é
Ellie. Ela vai ficar em casa hoje à noite com o bebê.

— Ellie sabe que eu fugi? — perguntou Nicole um instante depois,

sentindo uma vontade louca de ver sua filha e a pequena Nicole, que ela ainda não conhecia.
— Provavelmente — disse Eponine. — Pelo menos ela sabia que haveria uma tentativa... Foi
Ellie a primeira pessoa que me envolveu na sua fuga. Ellie e eu escondemos seus suprimentos
para a planície Central.
— Então você não vê Ellie desde que eu saí da prisão?
— Já vi sim. Mas não falamos sobre isso. Nessa fase ela tem de ser extremamente cuidadosa.
Nakamura a está vigiando como um falcão...
— Há mais alguém envolvido? — perguntou Nicole, segurando o vestido para ver se ele lhe
serviria.
— Não. Só Max, Ellie e eu... e, naturalmente, os pequenos robôs de Richard.

Nicole ficou em frente ao espelho durante alguns minutos. Aqui estou eu, finalmente a rainha
da Inglaterra, pelo menos por uma a duas horas. Ela estava certa de que a idéia daquela
fantasia específica fora de Richard. Ninguém mais teria feito uma escolha tão apropriada,
pensou Nicole ajustando a coroa na cabeça. Com esse rosto branco, Henry talvez me tivesse
tornado uma rainha.
Nicole estava afundada em seus pensamentos quando Max e Eponine apareceram. Começou a
rir assim que viu Max vestido numa sumária roupa verde, segurando um tridente. Estava
fantasiado de Netuno, o rei do mar, e Eponine era sua princesa-sereia sensual.
— Vocês dois estão ótimos! — exclamou Nicole, piscando para Eponine.
— Puxa, Max — acrescentou logo depois, num tom de brincadeira —, eu não tinha idéia de
que seu corpo fosse tão imponente.
— Isso é ridículo — resmungou Max. — Eu tenho cabelo por todo lado, no peito, nas costas,
nas orelha, até mesmo...
— Só que está ficando um pouco escasso aqui — disse Eponine, dando uma batidinha na
cabeça de Max quando ele tirou a coroa.
— Merda — disse Max. — Agora sei por que nunca vivi com uma mulher... Vamos embora,
vocês duas aí. A propósito, o tempo está instável de novo esta noite. É melhor levarem um
xale ou uma jaqueta para a viagem de carruagem.
— Carruagem? — perguntou Nicole, olhando para Eponine. A amiga riu e disse:
— Você vai ver daqui a pouco.

Quando o governo do Novo Éden requisitou todos os trens para converter as ligas metálicas
extraterrestres, muito leves, em aviões de guerra e outros armamentos, a colônia do Novo
Éden foi deixada com um sistema de transporte deficiente. Por sorte, grande parte dos
cidadãos tinha comprado bicicletas, e um sistema completo de ciclovias fora desenvolvido
nos três primeiros anos depois do assentamento inicial. De outra forma, teria sido muito difícil
para as pessoas se deslocarem na colônia.

Na época em que Nicole fugiu, os antigos trilhos de trem tinham sido retirados, dando lugar a
estradas de rodagem. Essas estradas eram usadas pelos carros elétricos (restritos aos líderes
do governo e militares graduados), caminhões de transporte (que também rodavam por
eletricidade) e por outros veículos criativos e variados, construídos pelos cidadãos do Novo
Éden. A carruagem de Max era um destes. Na frente era uma bicicleta, mas na parte de trás
havia dois bancos macios, quase como poltronas, pousados sobre duas rodas e um forte eixo,
mais ou menos como as carruagens puxadas por cavalos usadas uns trezentos anos antes na
Terra.

O rei Netuno foi lutando com os pedais à medida que o trio fantasiado passava pela estrada na
direção da Cidade Central.
— Merda — disse Max, fazendo esforço para acelerar —, por que eu fui concordar com esse
plano absurdo?
Nicole e Eponine ficaram rindo no banco traseiro.
— Porque você é um homem maravilhoso — disse Eponine — e queria que nos sentíssemos
confortáveis... Além disso, você poderia imaginar uma rainha andando de bicicleta por quase
dez quilômetros?
A temperatura estava realmente mais baixa. Eponine levou uns minutos explicando a Nicole
que o tempo estava ficando cada vez mais instável.
— Houve uma reportagem recente na televisão dizendo que o governo pretende assentar mais
colonos no segundo habitat, onde o ambiente ainda não foi desgastado... Ninguém tem
confiança de que um dia cheguemos a resolver os problemas aqui no Novo Éden.
Ao se aproximarem da Cidade Central, Nicole achou que Max poderia estar sentindo frio.
Ofereceu o xale que Eponine lhe havia emprestado, e ele aceitou.
— Você devia ter arranjado uma fantasia mais quente — disse Nicole, brincando.
— Vestir Max de Netuno também foi idéia de Richard — disse Eponine. — Assim, se ele
precisar carregar algum equipamento de mergulho para você, a coisa vai parecer
perfeitamente natural.
Nicole ficou emocionada quando a carruagem foi diminuindo a marcha no tráfego crescente e
serpenteando pelos prédios principais da colônia na Cidade Central. Lembrou-se da noite,
anos atrás, em que ela era o único ser humano acordado no Novo Éden. Naquela mesma noite,
depois de dar mais uma olhada em sua família, Nicole, apreensiva, subiu no seu beliche e
preparou-se para dormir durante a viagem que duraria vários anos, de volta ao sistema solar.
Uma imagem da Águia, aquela estranha manifestação de inteligência alienígena que fora a guia
deles em Nodo, apareceu na sua frente. Você podia ter previsto tudo isso? Nicole ficou
pensando, sintetizando rapidamente toda a história da colônia, desde aquele primeiro encontro
com os passageiros da Terra a bordo da Pinta. E o que você pensa de nós agora?, pensou ela,
balançando a cabeça com raiva, vivamente constrangida com o comportamento de seus
companheiros humanos.
— Eles nunca substituíram aquilo — disse Eponine ao lado dela, quando a carruagem entrou
na praça principal.

— Desculpe — falou Nicole. — Acho que eu estava sonhando acordada.

— Aquele belíssimo monumento projetado pelo seu marido, que representava o ponto em que
Rama estava na galáxia... Lembra-se de que ele foi destruído na noite em que a multidão
queria linchar Martínez?... Bem, ele nunca foi substituído.
Mais uma vez, Nicole afundou em suas lembranças. Talvez seja esse o significado da velhice.
Muitas lembranças sempre atropelando o presente. Recordou-se da multidão turbulenta e do
menino de cabelos vermelhos gritando: "Matem aquela puta negra..."
— O que aconteceu com Martínez? — indagou Nicole com cuidado, com medo da resposta.
— Foi eletrocutado logo depois que Nakamura e Macmillan tomaram o poder. O julgamento
ficou nas manchetes durante vários dias.
Eles tinham atravessado a Cidade Central e continuavam para o sul, na direção de Beauvois, o
vilarejo onde Nicole, Richard e o resto da família tinham vivido antes do golpe de Nakamura.
Tudo podia ter sido diferente, pensou Nicole olhando para o Monte Olimpo que se elevava à
sua esquerda. Nós poderíamos ter tido um paraíso aqui. Devíamos ter tentado mais...
Era sempre uma seqüência de pensamentos que Nicole seguira centenas de vezes desde aquela
noite terrível, a mesma noite em que Richard fugira apressadamente do Novo Éden. Havia
sempre a mesma tristeza profunda em seu coração, as mesmas lágrimas em seus olhos.
Nós humanos, lembrou-se ela de ter dito um dia para a Águia em Nodo, somos capazes de
comportamentos paradoxais. Às vezes, quando há amor e compaixão, parecemos estar logo
abaixo dos anjos. Mas na maior parte das vezes a cobiça e o egoísmo se sobrepõem às nossas
virtudes, e nos tornamos indistinguíveis daquelas criaturas más das quais nos originamos.

Max tinha deixado a festa há quase duas horas, e Eponine e Nicole estavam alarmadas.
Quando as duas tentaram atravessar a pista de dança apinhada de gente, dois homens vestidos
de Robin Hood e Frei Tuck as detiveram.
— Você pode não ser a Donzela Marian mas é a Donzela do Mar, o que dá quase no mesmo —
disse Robin Hood para Eponine. Ele riu de sua própria piada, estendeu os braços e começou a
dançar com ela.
— Será que um frade menos graduado poderá dançar com sua majestade? — perguntou o outro
homem. Nicole riu para si mesma. Qual é o mal de dançar um pouquinho?, pensou. Caiu nos
braços de Frei Tuck e começou a rodopiar lentamente pelo salão.

Ele era um homem tagarela. Depois de alguns compassos, ele se afastou um pouco de Nicole e
lhe fez uma pergunta. Como planejado, Nicole respondeu com um movimento de cabeça ou um
gesto. No final da música o frade começou a rir.

— Realmente, acho que estou dançando com uma muda. Muito graciosa, sem dúvida, mas
mesmo assim uma muda.
— Estou com um terrível resfriado — disse Nicole baixinho, tentando disfarçar a voz.
Depois de ter falado, ela sentiu uma mudança drástica nos modos do frade. Sua preocupação
aumentou quando, no final da dança, o homem continuou a segurá-la nos braços e a olhá-la
durante vários segundos.
— Já ouvi sua voz antes — disse ele, sério. — É uma voz muito especial... Será que a
conheço? Sou Wallace Michaelson, o senador da zona oeste de Beauvois.
É claro, pensou Nicole em pânico. Agora me lembro. Você era um dos americanos do Novo
Éden que apoiava Nakamura e Macmillan.
Nicole não ousou dar mais nenhuma palavra. Felizmente Eponine e Robin Hood se
aproximaram dela e do frade fantasiado antes que o silêncio entre os dois ficasse longo
demais. Eponine sentiu o que acontecera e agiu rapidamente.
— A rainha e eu — disse, puxando Nicole pela mão — estávamos indo ao toalete quando os
bandidos da floresta de Sherwood nos encontraram. Se nos derem licença, agradecemos a
dança e seguiremos nosso destino.
Enquanto elas se afastavam, os dois homens as observavam atentamente. Ao chegarem ao
toalete, Eponine primeiro abriu todas as portas dos banheiros para ter a certeza de que
estavam sozinhas.
— Alguma coisa aconteceu — disse Eponine baixinho. — Provavelmente, Max teve de ir ao
armazém para substituir seu equipamento.
— Frei Tuck é um senador de Beauvois — falou Nicole. — Ele quase reconheceu minha voz...
Não estou me sentindo segura aqui.
— Tudo bem — disse Eponine nervosa, depois de um instante de hesitação. — Vamos seguir o
plano alternativo... Sairemos pela porta da frente e esperaremos debaixo da árvore grande.
As duas viram a pequena câmera instalada no teto ao mesmo tempo, fazendo um pequeno ruído
quando mudava de orientação para segui-las em volta do toalete. Nicole tentou lembrar-se de
todas as palavras que ela e Eponine haviam dito. Será que dissemos alguma coisa que
sugerisse quem nós somos? Ela preocupou-se mais com Eponine, pois a amiga iria continuar a
viver na colônia depois que ela conseguisse fugir ou fosse capturada.
Quando Nicole e Eponine voltaram para o salão de baile, Robin Hood e seu frade favorito
fizeram sinal para que elas fossem até eles. Mas Eponine seguiu na direção da porta, pôs os
dedos nos lábios para indicar que estava saindo para fumar e atravessou a sala com Nicole.
Ao abrir a porta da saída, olhou por trás dos ombros.
— Os homens de verde estão nos seguindo — cochichou para Nicole. A uns vinte metros da
entrada do salão de baile, que era na realidade o ginásio da Escola Secundária de Beauvois,
havia um grande olmo que fora uma das poucas árvores ]á grandes transportadas da Terra para
Rama. Quando Eponine e a rainha Nicole chegaram à árvore, Eponine abriu sua bolsa, pegou
um cigarro e acendeu-o rapidamente. Soprou a fumaça para longe de Nicole. — Desculpe-me
— sussurrou para a amiga.
— Eu compreendo — Nicole respondeu, e, mal acabara de falar, Robin Hood e Frei Tuck já
estavam ao seu lado.
— Bem, bem — começou Robin Hood —, então nossa princesa-sereia é fumante. Não sabe
que está perdendo anos da sua vida?
Eponine ia começar a dar a resposta costumeira, a dizer ao homem que iria morrer muito antes
pelo vírus do RV-41, mas decidiu não falar nada que pudesse encorajar os homens a ficar ali.
Deu apenas um sorriso, tragou fundo e soltou a fumaça acima da cabeça, para os galhos da
árvore.
— O frade aqui e eu gostaríamos que as senhoras tomassem um drinque conosco — disse
Robin Hood, ignorando o fato de que nem Eponine nem Nicole tinham respondido ao
comentário dele.
— É — acrescentou Frei Tuck —, gostaríamos de saber quem são as senhoras... — falou,
olhando fixo para Nicole. — Tenho certeza de que já nos encontramos antes. Sua voz me é
muito familiar.
Nicole fingiu tossir e olhou em volta. Havia três policiais num raio de cinqüenta metros. Aqui
não, pensou ela. Agora não. Não agora que estou tão perto de me libertar.
— A rainha não está se sentindo bem — disse Eponine. — Talvez tenhamos de ir embora
cedo. Se não, voltaremos para nos encontrar com vocês...
— Eu sou médico — interrompeu Robin Hood, aproximando-se de Nicole. — Talvez possa
ajudar.
Nicole estava muito tensa. Sua respiração ficou curta e difícil. Ela tossiu novamente e virou-
se de costas para os dois homens.
— É uma tosse terrível, majestade — disse uma voz familiar. — É melhor que a levemos para
sua casa.
Nicole olhou para cima e viu outro homem de verde. Era Max, ou melhor, o rei Netuno,
sorrindo para ela. Por trás dele, Nicole pôde ver a carruagem estacionada a menos de dez
metros de distância. Nicole sentiu-se feliz e aliviada. Deu um grande abraço em Max e quase
se esqueceu do perigo que estava correndo.
— Max — falou, antes que ele pusesse o dedo em seus lábios.
— Sei que vocês duas estão encantadas em ver que o rei Netuno terminou seu trabalho por
hoje — disse, num tom floreado — e pode agora acompanhá-las ao seu castelo, longe dos
bandidos e de outros elementos desagradáveis.
Max olhou para os dois homens, que estavam apreciando o seu desempenho, embora ele
tivesse estragado os planos que tinham para a noite.
— Obrigado, Robin. Obrigado, Frei Tuck — continuou Max, enquanto ajudava as duas
senhoras a entrar na carruagem. — Foi muito gentil a atenção dispensada às minhas amigas.
Frei Tuck aproximou-se da carruagem, obviamente para fazer mais uma pergunta, mas Max
saiu pedalando.

— É uma noite de fantasias e mistério — disse ele, dando adeus aos homens. — Mas não
podemos nos demorar, pois o mar nos chama. — Você foi fantástico — disse Eponine
beijando Max. Nicole fez que sim.

— Talvez você tenha errado de profissão. Devia ter sido ator e não fazendeiro.
— Eu fiz o papel de Marco Antônio na nossa peça do ginásio em Arkansas
— disse Max, passando a Nicole a máscara de mergulho para que ela a ajustasse. — Os
porcos adoravam meus ensaios... "Amigos, romanos, compatriotas... emprestem-me seus
ouvidos... Vim aqui para enterrar César, não para elogiá-lo."
Os três riram ao mesmo tempo. Estavam de pé em uma pequena clareira a uns cinco metros da
margem do lago Shakespeare, escondidos da estrada próxima e da ciclovia por algumas
árvores e uns arbustos altos. Max levantou o tanque de ar e ajudou Nicole a colocá-lo nas
costas.
— Está tudo pronto então? — perguntou. Nicole fez que sim.
— Os robôs vão encontrar com você no esconderijo — continuou ele. — Pediram-me para
lembrá-la de não descer rápido demais... Você não mergulha há muito tempo.
Nicole ficou em silêncio durante uns segundos.
— Não sei como agradecer a vocês dois — disse, sem jeito. — Nada que eu pense em dizer
parece adequado para o momento.
Eponine andou na sua direção e abraçou-a.
— Fique em segurança, minha amiga. Nós amamos muito você.
— Eu também — disse Max, um instante depois, engasgando ao abraçála. Os dois acenaram
para Nicole quando ela entrou no lago.
Lágrimas corriam de seu rosto e juntavam-se no fundo da máscara de mergulho. Nicole acenou
pela última vez quando a água chegou até sua cintura.

A água estava mais fria do que Nicole supunha. Ela sabia que as variações de temperatura no
Novo Éden tinham sido muito maiores desde que os colonos tomaram a seu cargo a
administração de seu próprio tempo, mas não tinha pensado que as mudanças nos padrões de
temperatura pudessem alterar a temperatura do lago.
Nicole mudou a quantidade de ar no seu colete para diminuir a velocidade da descida. Não se
apresse, aconselhou a si própria. E relaxe. Você vai ter de nadar um bocado agora.
Joan e Eleonor tinham treinado Nicole várias vezes quanto aos procedimentos que ela deveria
seguir para localizar o longo túnel por baixo da parede do habitat. Ela ligou a lanterna e
examinou a flora aquática à sua esquerda. Trezentos metros do centro do lago, diretamente
perpendicular à parede do fundo da área de alimentação dos salmões, lembrava-se. Desça a
uma profundidade de vinte metros até ver a plataforma de concreto abaixo de você.

Nicole nadou com facilidade, mas cansou-se rapidamente. Lembrou-se de uma discussão que
tivera com Richard uns anos antes, quando os dois pensavam em nadar juntos pelo mar
Cilíndrico para fugir de Nova York.
— Mas eu não nado tão bem assim — dissera Nicole. — Talvez não consiga atravessar.
Richard lhe assegurara naquela época que, como ela era uma atleta excepcional, não teria
problema em nadar uma grande extensão. Agora aqui estou, nadando para sobreviver,
seguindo o mesmo caminho que Richard usou dois anos atrás, pensou Nicole. Só que já
tenho uns sessenta anos e estou fora de forma.
Ela encontrou a plataforma de concreto, desceu outros quinze metros, observando com
cuidado todos os seus instrumentos de medida, e rapidamente localizou uma das grandes
estações de bombeamento espalhadas no fundo do lago para manter a água em permanente
circulação. Agora a entrada do túnel deve estar escondida logo abaixo de um desses motores
grandes. Mas não a encontrou com facilidade. Primeiro, passou sem vê-la, por causa da nova
vegetação que havia crescido em volta do complexo de bombeamento.
O túnel era um tubo de quatro metros de diâmetro, absolutamente cheio de água. Fora incluído
como uma saída de emergência no projeto original do habitat por insistência de Richard, cuja
formação de engenharia lhe ensinara a pensar sempre nas contingências não-previstas. Da
entrada do lago Shakespeare até a saída na planície Central, para além das paredes do habitat,
era preciso nadar por cerca de um quilômetro. Nicole levara dez minutos mais do que
planejara para encontrar a entrada, e já estava muito cansada quando começou atravessar a
última etapa a nado.
Durante seus dois anos de prisão, o único exercício que fazia era andar, sentar e levantar, e se
alongar, o que fazia com intervalos irregulares. Seus músculos desgastados pela idade não
conseguiam mais enfrentar uma grande fadiga sem ter cãibras. Três vezes durante a travessia
pelo túnel sentiu cãibras nos músculos da perna. E todas as vezes lutou contra isso, forçando-
se a relaxar até a cãibra passar de todo. Seu progresso daí por diante foi muito lento. No final
do percurso a nado, Nicole ficou assustada, com medo de perder o ar antes de alcançar a
saída do túnel.
Nos últimos cem metros, seu corpo começou a doer muito. Os braços não conseguiam mais se
mover na água, e as pernas não tinham força para bater. Foi então que começou a sentir a dor
no peito. Uma dor surda, desconcertante, que a perseguiu até mesmo depois que o medidor de
profundidade indicou que o túnel estava subindo um pouco.
Quando finalmente Nicole chegou no fim e ficou de pé, quase desmoronou. Durante alguns
minutos, tentou em vão controlar sua respiração e seu pulso, e não teve forças para levantar a
tampa de metal da saída, acima de sua cabeça. Com medo de ter ultrapassado seu limite físico
de resistência, Nicole resolveu ficar no túnel e tirar um cochilo.
Acordou duas horas depois, ao ouvir um ruído estranho vindo de cima. Ficou de pé,
diretamente embaixo da tampa, e escutou com atenção. Eram vozes, mas ela não conseguia
perceber o que estavam dizendo. O que está acontecendo?, perguntou a si mesma, com o
coração aos pulos. Se fui descoberta pela polícia, por que eles não levantam a tampa?
De repente, ouviu uma forte batida na tampa.

— Você está aí, Nicole? — perguntou o robô Joana. — Se estiver, identifique-se


imediatamente. Trouxemos umas roupas quentes para você trocar, mas não temos força para
levantar a tampa.

— Sim, sou eu — gritou Nicole aliviada. — Vou subir assim que puder. Com a roupa
molhada, Nicole ficou morrendo de frio ao se ver no ar revigorante de Rama, onde a
temperatura era de poucos graus acima de zero. Seu queixo batia fortemente enquanto ela
caminhava os oitenta metros no escuro, à procura do esconderijo onde iria encontrar comida e
roupas secas.
Quando o trio pegou os suprimentos, Joana e Eleonor disseram a Nicole que ela devia vestir o
uniforme do exército que Ellie e Eponine haviam deixado ali. Nicole perguntou por quê, e os
robôs explicaram que para chegar a Nova York teriam de passar por um segundo habitat.
— Caso eles nos descubram — disse Eleonor, sentada em segurança dentro do bolso da
camisa de Nicole —, será mais fácil escaparmos se você estiver usando um uniforme de
soldado.
Nicole vestiu as ceroulas e o uniforme. Só quando seu frio passou é que percebeu que estava
com muita fome. Enquanto comia, colocou todas as outras coisas que estavam embrulhadas no
lençol dentro da mochila que havia trazido por baixo do colete.

Foi difícil entrar no segundo habitat. Nicole e os dois robôs que estavam dentro do seu bolso
não haviam encontrado nenhum ser humano na planície Central, mas a entrada para a antiga
casa das aves e dos sésseis estava guardada por uma sentinela. Eleonor tinha saído para
pesquisar a área e falou sobre a dificuldade. O trio parou a uns quatrocentos metros da rua
principal entre os dois habitats.
— Deve ser uma nova medida de segurança, criada depois de sua fuga — disse Joana para
Nicole. — Nós nunca tivemos qualquer dificuldade para ir e vir.
— Não há outras ruas dando lá para dentro? — indagou Nicole.
— Não — respondeu Eleonor. — O ponto original de inspeção era aqui. Depois, ele foi
consideravelmente ampliado, é claro, e construíram uma ponte por cima do fosso, para que as
tropas pudessem se movimentar mais depressa. Mas não há outras entradas.
— E é absolutamente necessário atravessar esse habitat para nos encontrarmos com Richard
em Nova York?
— É — replicou Joana. — Aquela imensa barreira cinza ao sul, a que forma o muro do
segundo habitat e que tem muitos quilômetros, evita a movimentação para dentro e para fora
do Hemicilindro Norte de Rama. Nós poderíamos voar por cima dele se tivéssemos um avião
que alcançasse uma altitude de dois quilômetros e um piloto muito esperto, mas não temos...
Além do mais... Richard está contando que cheguemos através do habitat.
Ficaram esperando longo tempo no escuro. De quando em vez, um dos robôs ia checar a
entrada, mas havia sempre uma sentinela. Nicole foi ficando cansada e irritada, e disse, a
certa altura:
— Não podemos ficar aqui para sempre. Deve haver algum outro plano.

— Não temos conhecimento de nenhum plano ou de uma alternativa nessa situação — disse
Eleonor, fazendo Nicole lembrar-se de que elas eram apenas robôs.

Durante um breve cochilo, Nicole sonhou que estava dormindo nua, no alto de um enorme
cubo de gelo muito plano. As aves desciam do céu para bicála, e centenas de robôs como
Joana e Eleonor a rodeavam na superfície do gelo, cantando alguma coisa em uníssono.
Quando Nicole acordou, sentiu-se um pouco descansada. Falou com os dois robôs, e pensaram
num outro plano. As três decidiram só sair dali quando houvesse uma folga no tráfego em
direção à entrada para o segundo habitat. Então, os robôs distrairiam a sentinela para que
Nicole pudesse entrar, passando com cuidado para o outro lado da ponte e virando à direita na
margem do fosso.
— Depois, espere por nós — disse Eleonor — no pequeno abrigo a uns trezentos metros da
ponte.
Vinte minutos depois, Joana e Eleonor criaram uma grande confusão junto do muro, a mais ou
menos cinqüenta metros da entrada. E Nicole caminhou livremente para o interior do habitat
quando a sentinela saiu do posto para saber que barulhada era aquela. Uma vez lá dentro, ela
viu uma longa escada sinuosa descendo a centenas de metros, desde o alto da entrada até o
fundo do fosso largo que circundava todo o habitat. Na escada havia umas tantas luzes a
intervalos regulares, e Nicole percebeu mais luzes na ponte à sua frente, mas a iluminação
ambiental era bastante escassa. Ela ficou tensa ao ver dois operários subindo as escadas na
sua direção. Mas eles passaram por ela sem reconhecê-la, e ela ficou feliz por estar usando o
uniforme.
Enquanto esperava no fosso, Nicole olhou para o centro do habitat alienígena e tentou ver
todos os fascinantes detalhes que os robôs lhe haviam descrito: a imensa estrutura cinzenta e
cilíndrica erguendo-se a mil e quinhentos metros, que já servira de abrigo às colônias das
aves e dos sésseis; a grande esfera coberta, pendurada no teto do habitat para fornecer luz; e o
anel de prédios brancos misteriosos, ao longo de um canal cercando o cilindro.
A esfera coberta não era iluminada há meses, desde a primeira incursão humana ao reino .das
aves e dos sésseis. As únicas luzes que Nicole pôde ver eram pequenas e espalhadas aqui e
ali, obviamente colocadas no habitat pelos invasores humanos. Assim, ela só conseguiu
perceber uma vaga silhueta do grande cilindro, uma sombra com extremidades muito
indistintas. Richard deve ter se sentido glorioso quando entrou aqui pela primeira vez,
pensou Nicole, movida pelo sentimento de estar num lugar que abrigara até pouco tempo uma
outra espécie senciente. Aqui também, continuou a pensar, estendemos a nossa hegemonia,
dominando todas as formas de vida que não são tão poderosas quanto nós.

Eleonor e Joana levaram mais tempo do que o esperado para se encontrarem com Nicole, e as
três enfim seguiram lentamente ao longo do fosso. Um dos robôs caminhava sempre na frente,
examinando tudo, para evitar o contato com outros seres humanos. Por duas vezes, na parte do
habitat que se assemelhava a uma floresta da Terra, Nicole esperou quieta que um grupo de
soldados ou operários passassem pela estrada à sua esquerda. Nas duas vezes, ficou
observando as interessantes plantas novas à sua volta, completamente fascinada. A um certo
momento viu uma criatura, misto de sanguessuga e minhoca, tentando entrar no pé direito da
sua bota. Apanhou o bichinho e colocou-o no bolso.

Fazia quase setenta e duas horas que Nicole entrara no lago Shakespeare quando ela e os dois
robôs finalmente chegaram ao lugar especificado para o encontro. Elas estavam na
extremidade oposta à entrada do segundo habitat, onde a densidade normal de seres humanos
era muito baixa. Um submarino emergiu pouco depois de sua chegada. Um lado do submarino
se abriu e Richard Wakefield, com um enorme sorriso na cara barbada, correu para sua amada
esposa. O corpo de Nicole tremeu de alegria quando sentiu seus braços em torno dela.
5

Tudo era tão familiar. Exceto pela quantidade de coisas que Richard acumulara durante seus
meses de solidão, e pela conversão do quarto das crianças em dormitório para as duas aves-
filhotes, a toca subterrânea de Nova York era exatamente a mesma que fora quando Richard,
Nicole, Michael O'Toole e seus filhos tinham partido de Rama anos atrás.
Richard estacionou o submarino em uma baía natural ao sul da ilha, em um lugar que ele
batizara de O Porto.
— Onde você arranjou esse submarino? — indagou Nicole enquanto caminhavam na direção
da toca.
— Foi um presente — disse Richard. — Ou pelo menos considerei um presente. O superchefe
das aves me mostrou como manobrar o submarino, depois desapareceu e deixou-o aqui.
Andar em Nova York era uma experiência esquisita para Nicole. Mesmo no escuro os arranha-
céus lhe lembravam os anos em que ela vivera naquela ilha misteriosa no meio do mar
Cilíndrico.
Há quantos anos saímos daqui?, ia pensando Nicole, quando Richard, de mão dadas com ela,
parou ao lado do celeiro onde Francesca Sabatini a largara para que ela morresse no fundo de
um poço. Mas Nicole sabia que aquela pergunta não tinha como ser respondida. Aquele tempo
intermediário não podia ser medido de forma normal, pois eles tinham feito duas longas
viagens interestelares a velocidades relativistas, a segunda delas dormindo num beliche
especial, com uma tecnologia extraterrestre retardando seu processo de envelhecimento
através de cuidadosa manipulação de suas enzimas e de seu metabolismo.
— As únicas alterações feitas na nave Rama em cada visita a Nodo — dissera Richard
quando eles se aproximavam de sua antiga casa — foram as necessárias para acomodar a
missão seguinte. Portanto, nada mudou na nossa toca. A tela preta ainda está lá na Sala Branca,
e também nosso teclado. Os procedimentos para fazer solicitações aos ramaianos, ou qualquer
outro nome que dermos aos nossos hospedeiros, também estão intactos.
— E as outras tocas? — perguntou Nicole, quando eles desciam a rampa para chegar ao nível
em que viviam. — Você esteve neles?

— A toca das aves virou um túmulo — disse Richard. — Estive lá várias vezes. Uma vez
entrei com cuidado na toca das octoaranhas, mas só cheguei até a sala da catedral, com os
quatro túneis levando para...

Nicole o interrompeu, rindo:


— Os túneis que nós chamávamos de Mindinho, Seu Vizinho, Pai de Todos e Fura-Bolos...
— Isso mesmo — continuou Richard. — O fato é que eu não me senti bem lá. Tive uma
sensação, embora não pudesse identificar nada de específico, de que a toca ainda estava
habitada. E que as octoaranhas, ou qualquer outra coisa que esteja morando lá, vigiavam meus
passos. — Daquela vez foi Richard quem riu. — Acredite ou não, eu também me preocupei
com o que poderia acontecer com Tammy e Timmy se por algum motivo eu não voltasse mais.
A primeira apresentação de Nicole a Tammy e Timmy, os filhotes de aves que Richard tinha
criado desde que nasceram, foi indescritível. Richard construíra uma meia porta para o quarto
das crianças e fechara-a bem quando saiu para encontrar-se com Nicole dentro do segundo
habitat. Como aquelas criaturas com aspecto de pássaros ainda não sabiam voar, não
conseguiram sair do quarto durante a ausência de Richard. Mas assim que ouviram a voz dele
na toca, começaram a matraquear e a grasnar até Richard abrir a porta e colocá-las no colo.
— Eles estão me dizendo — gritou Richard para Nicole por cima daquela barulhada — que
eu não devia tê-los deixado aqui sozinhos.
Nicole ria tanto que seus olhos se encheram de lágrimas. Os dois filhotes esticaram o pescoço
até o rosto de Richard, interrompendo seus guinchos de vez em quando para acariciar com o
bico as suas bochechas barbudas. As aves ainda eram pequenas, com cerca de setenta
centímetros de altura quando ficavam de pé, mas tinham o pescoço tão comprido que pareciam
ser muito maiores.
Nicole ficou observando com admiração seu marido cuidar daquelas aves alienígenas. Ele
limpava seus excrementos, não as deixava sem comida fresca e água, e via se suas camas de
feno do canto do quarto estavam bem macias. Você se aprimorou muito, muito, Richard
Wakefield, pensou Nicole, lembrando-se da relutância dele no passado para assumir suas
obrigações de pai. Ela ficou muito comovida com a dedicação àqueles filhotes de aves. Será
possível que cada um de nós tenha dentro de si esse tipo de amor altruísta? E que tenhamos
de superar todos os problemas criados pela hereditariedade e pela sociedade para
descobrir esse amor?
Richard guardara os quatro melões-maná e a fatia do séssil em um quarto do Salão Branco, e
explicou a Nicole que não havia observado qualquer mudança nos melões nem no material
séssil desde que chegara em Nova York.
— Talvez os melões possam ficar hibernados por longo tempo, como as sementes — disse
Nicole ao ouvir a explicação de Richard sobre o complexo ciclo de vida da espécie séssil.
— Foi isso que pensei — falou Richard. — É claro que não tenho idéia das condições em que
os melões possam germinar... Essa espécie é tão estranha e tão complicada que eu não me
surpreenderia se o processo fosse controlado por aquele pequeno pedaço de séssil.

Na primeira noite que passaram juntos, Richard teve dificuldade em fazer com que os filhotes
dormissem.

— Eles estão com medo de que eu os deixe sozinhos de novo — explicou, ao voltar para o
Salão Branco depois da terceira vez em que os guinchos enfurecidos de Tammy e Timmy
interromperam seu jantar com Nicole. Finalmente, Richard programou Joana e Eleonor para
divertir as aves. Foi a única forma de mantê-las quietas para que pudesse ficar um pouco
sozinho com Nicole.
Eles fizeram amor com muita suavidade antes de dormir. Richard admitira, quando estava se
despindo, que não tinha certeza se conseguiria... mas Nicole lhe disse que o fato de conseguir
ou não não teria nenhuma importância. Ela insistiu que ficaria felicíssima só de ter o corpo
dele junto ao seu, e que qualquer estímulo sexual seria um prêmio magnífico. Mas é claro que
os dois se saíram muito bem, como tinham se saído desde a primeira vez em que dormiram
juntos. Depois que fizeram amor, continuaram na cama de mãos dadas, lado a lado, sem dar
palavra. Os olhos de Nicole encheram-se de lágrimas, que rolaram pelo seu rosto lentamente,
chegando a entrar nos seus ouvidos. Ela sorriu no escuro, sentindo-se por um instante
gloriosamente feliz.
Pela primeira vez na vida os dois não tinham pressa. Conversavam toda noite, às vezes até
mesmo enquanto faziam amor. Richard contou a Nicole muito mais sobre sua infância e
adolescência do que jamais contara, inclusive suas sofridas lembranças da violência paterna,
e os detalhes de seu primeiro desastroso casamento com Sarah Tydings.
— Agora percebo que Sarah e meu pai tinham uma coisa fundamental em comum — disse
Richard certa noite. — Os dois foram incapazes de me dar a aprovação que eu buscava com
tanta sofreguidão; mas de certa forma eles sabiam que eu continuaria tentando até conseguir
aquela aprovação, mesmo que tivesse de abandonar tudo na vida.
Nicole contou a Richard pela primeira vez todo o drama de seu caso de quarenta e oito horas
com o príncipe de Gales, logo depois de ela ter ganho a medalha de ouro nas Olimpíadas.
Contou até mesmo que tinha tido vontade de se casar com Henry, e que ficara completamente
arrasada ao perceber que o príncipe não a incluíra como candidata ao trono da Inglaterra
basicamente por causa da cor de sua pele. Richard ficou extremamente interessado e até
mesmo fascinado com aquela história, e não demonstrou em nenhum instante estar se sentindo
ameaçado ou enciumado.
Ele está mais maduro, pensou Nicole várias noites depois, enquanto seu marido terminava sua
tarefa de fazer os filhotes dormirem.
— Querido — disse ela quando Richard chegou no quarto da toca —, quero contar uma
coisa... que esperei para contar na hora certa...
— Oh, oh — disse Richard fingindo fechar a cara. — Está parecendo um assunto sério...
Espero que não leve muito tempo, pois tenho uns planos para nós hoje à noite.
Atravessou o quarto e começou a beijar Nicole.
— Por favor, Richard, agora não... — disse ela, afastando-o com delicadeza. — Isso é muito
importante para mim.

Richard deu uns passos atrás.

— Quando eu achei que ia ser executada — disse Nicole devagar —, percebi que todos os
meus assuntos pessoais estavam em ordem, menos dois. Eu ainda tinha uma coisa para contar a
você e a Katie. Cheguei a perguntar ao policial que me explicou o procedimento da execução
se ele podia me arranjar papel e caneta para eu escrever as duas últimas cartas da minha vida.
Nicole fez uma pausa, como que procurando as palavras certas.
— Durante aqueles dias terríveis, eu não conseguia me lembrar, Richard, se dissera
explicitamente a você como tinha sido feliz por vivermos como marido e mulher... E eu
também não queria morrer sem...
Nicole parou pela segunda vez, olhou um instante em volta do quarto e depois olhou
diretamente nos olhos de Richard.
— Eu queria dizer mais uma última coisa naquela minha última carta. Naquela hora, eu achei
que isso era preciso para completar a minha vida, para poder partir deste mundo sem deixar
coisas para trás... Richard, eu queria me desculpar pela minha insensibilidade no passado,
quando você e Michael e eu... eu cometi um erro quando fui para a cama com Michael porque
tive medo de que...
Nicole respirou fundo e continuou:
— Eu devia ter tido mais fé. Não que, mesmo por um minuto, eu pensasse que Patrick ou
Benjy podiam não ter nascido, mas posso perceber agora que me rendi cedo demais à solidão.
Eu gostaria...
Richard pôs o dedo nos lábios dela.
— Não precisa se desculpar, Nicole — disse suavemente. — Eu sei que você me amou
direito.

Eles instalaram um ritmo fácil em sua vida simples. De manhã andavam por Nova York, em
geral de braço dado, explorando novamente cada canto da ilha que tinham, em anos idos,
considerado sua casa. Como estava quase às escuras, a cidade parecia diferente. Só as
lanternas deles iluminavam os enigmáticos arranha-céus cujos detalhes estavam
indelevelmente impressos em suas memórias.
Em geral, caminhavam ao longo dos muros da cidade, olhando as águas do mar Cilíndrico.
Certa manhã passaram várias horas de pé num lugar, o mesmo lugar onde tinham entregue suas
vidas às três aves, muitos anos antes. Ambos relembraram-se do medo e da excitação que
sentiram quando as grandes criaturas-pássaro os elevaram do chão para carregá-los através do
mar.
Todo dia depois do almoço Nicole, que sempre precisava de mais sono que seu marido, tirava
um cochilo. Richard usava o teclado para pedir mais comida ou suprimentos aos ramaianos,
ou levava os filhotes de aves para fazer um pouco de exercício, ou então trabalhava em um
dos seus inúmeros projetos espalhados pela toca. A noite, depois do jantar, deitavam-se lado a
lado e conversavam durante horas antes de fazer amor ou simplesmente cair no sono.
Conversavam sobre tudo, inclusive sobre Deus, a Águia, os ramaianos, a política do Novo
Éden, livros de todos os tipos, e principalmente seus filhos.

Embora falassem com entusiasmo sobre Ellie, Patrick, Benjy e até mesmo Simone, a quem não
viam havia anos, era muito difícil para Richard falar sobre Katie. Ele se arrependia de na
infância não ter sido mais severo com sua filha favorita, e achava que o comportamento
irresponsável dela em adulta era fruto de sua permissividade. Nicole tentava consolar o
marido, lembrando-lhe que as circunstâncias que viveram em Rama eram inusitadas e que,
afinal de contas, nada na formação dele o preparara para uma disciplina adequada, necessária
a um pai.

Uma tarde, quando Nicole acordou de seu sono, ouviu Richard falando consigo mesmo pelo
corredor. Curiosa, levantou-se em silêncio e foi até o quarto que tinha sido de Michael
O'Toole. Ficou de pé na porta e viu Richard dando os toques finais em um grande protótipo
que ocupava quase todo o quarto.
— Voilà — disse ele, virando-se para ver se era Nicole quem vinha arrastando os pés. —
Não vou ganhar nenhum prêmio de estética — disse, com uma careta, encaminhando-se para o
protótipo —, mas é uma representação razoável da nossa parte do universo, e certamente me
deu muito o que pensar.
Uma forma chata retangular cobria a maior parte do chão. Varas finas verticais de diversas
alturas tinham sido inseridas em vinte pontos em volta da plataforma. Na extremidade de cada
vara havia uma esfera colorida representando uma estrela.
A vara vertical do centro do protótipo, que tinha uma esfera amarela presa na ponta, elevava-
se a um metro e meio da plataforma.
— Isso, é claro — disse Richard para Nicole —, é nosso Sol... E nós estamos aqui, ou
melhor, Rama é aqui... neste quadrante, mais ou menos a um quarto do caminho entre o Sol e
nossa estrela semelhante mais próxima, Tau Ceti... Sírius, onde nós ficamos quando estávamos
em Nodo, está ali...
Nicole andou em volta do protótipo que representava a vizinhança estelar do Sol.
— Há vinte sistemas estelares dentro de doze anos e meio anos-luz da nossa casa — explicou
Richard —, incluindo seis sistemas binários e um grupo triplo, nossos vizinhos mais
próximos, Centauris. Repare que as três Centauris são as únicas estrelas dentro da esfera de
cinco anos-luz.
Richard apontou para as três bolas separadas representando as Centauris, cada uma com um
tamanho e uma cor. O trio, preso entre si por finos arames, estava pousado no alto da mesma
vara vertical, dentro de uma esfera aberta de arame localizada no centro do Sol e marcada
com um grande número 5.
— Nos meus dias de solidão aqui — continuou Richard —, eu ficava imaginando por que
Rama segue nessa direção. Será que nós temos um destino específico? Parece que sim, pois
nossa rota não variou desde nossa aceleração inicial... E se estivermos indo para Tau Ceti, o
que encontraremos lá? Outro complexo como Nodo? Ou será que mesmo Nodo se moveu
nesse meio-tempo?...
Richard parou de falar e olhou para Nicole, na ponta do protótipo e esticando os braços na
direção de duas estrelas vermelhas na extremidade de uma vara de três metros.
— Eu imagino que você tenha variado o comprimento dessas varas para demonstrar a
completa relação tridimensional de todas essas estrelas, não é? — perguntou ela.

— É... Aliás, aquele grupo binário onde está a sua mão chama-se Struve

2398 — disse Richard com a voz de quem faz uma catalogação. — Elas têm uma declinação
muito alta e estão a pouco mais de dez anos-luz de distância do Sol.
Ao ver a careta que Nicole fazia, Richard riu de si mesmo e, atravessando o quarto, pegou a
mão dela.
— Venha aqui comigo para lhe mostrar uma coisa muito interessante. Os dois foram até a outra
ponta do protótipo e ficaram de frente para o
Sol, entre as estrelas Sírius e Tau Ceti.
— Não seria fantástico se nosso Nodo tivesse realmente se movido — observou Richard com
entusiasmo — e nós o fôssemos ver outra vez aqui, do lado oposto ao nosso sistema solar?
Nicole riu.
— É claro — disse —, mas não temos qualquer prova...
— Mas temos cérebros e imaginação — interrompeu Richard. — E a Águia nos disse que o
Nodo inteiro era capaz de mover-se. Parece-me que... — Richard parou a frase no meio e
mudou ligeiramente de assunto. — Você nunca se perguntou aonde a nossa espaçonave foi,
depois que partimos de Nodo, durante todos aqueles anos em que dormimos? Imagine, por
exemplo, que as aves e os sésseis foram apanhados em algum lugar, próximo às binárias de
Procio, ou talvez aqui, em torno da Épsilon Eridani, por onde podemos perfeitamente ter
passado em nossa trajetória. Sabemos que há planetas em volta da Eridani. A uma
significativa fração da velocidade da luz, Rama poderia facilmente ter contornado o Sol...
— Espere aí, Richard — disse Nicole. — Você está muito adiante de mim nesse assunto. Por
que não começamos do início... — disse, sentando-se na plataforma com as pernas cruzadas,
no interior do protótipo, próximo a uma bola vermelha elevada a uns poucos centímetros por
uma vara bem curta. — Se entendi sua hipótese, nossa viagem atual vai terminar em Tau Ceti?
Richard fez que sim.
— A trajetória é perfeita demais para ser uma coincidência. Chegaremos em Tau Ceti dentro
de uns quinze anos, e então nossa experiência deverá estar concluída.
Nicole deu um suspiro.
— Eu já estou velha. E até lá, se ainda estiver viva, estarei tão enrugada como uma passa...
Mas por mera curiosidade, o que você acha que irá nos acontecer quando nossa experiência
for concluída, como você falou?
— É ainda que entra a imaginação... Creio que seremos retirados de Rama, mas o que nos
acontecerá depois é imprevisível... Talvez nosso destino vá depender, de certa forma, do que
foi observado durante todo esse tempo...
— Então você concorda comigo que a Águia e seus companheiros de Nodo vêm nos
observando?

— Concordo plenamente. Eles fizeram um imenso investimento nesse projeto... Tenho certeza
de que estão monitorando tudo o que acontece aqui em Rama... Mas o que me surpreende é
eles terem nos deixado completamente livres para agir, não terem interferido jamais nos
nossos assuntos, mas esse deve ser o método deles.

Nicole ficou em silêncio por um instante, brincando distraidamente com a bola vermelha ao
seu lado (Richard dissera que representava a estrela Épsilon Indi).
— Pensando bem — disse ela sombriamente —, temo o que qualquer extraterrestre razoável
concluiria sobre nós, com base em nosso comportamento no Novo Éden.
Richard deu de ombros.
— Nós não agimos pior em Rama do que agimos durante séculos na Terra... Além do mais,
não posso aceitar que algum alienígena realmente avançado faça julgamentos tão subjetivos.
Se esse processo de observar viajantes espaciais existe há dezenas de milhares de anos, como
sugeriu a Águia, então os ramaianos devem ter desenvolvido medidas quantitativas para
avaliar todos os aspectos das civilizações que encontraram... É quase certo que estejam mais
interessados na nossa natureza exata e no que isso significa num sentido mais amplo do que no
fato de sermos bons ou maus.
— Acho que você tem razão — disse Nicole. — Mas é deprimente que nós, como espécie,
nos comportemos de forma tão bárbara, mesmo quando temos certeza de estarmos sendo
observados. — Fez uma pausa e ficou pensando. — Então, na sua opinião, nosso longo
intercâmbio com os ramaianos, desde aquela primeira nave espacial há mais de cem anos, está
chegando ao fim?
— Creio que sim. Em algum lugar no futuro, possivelmente quando chegarmos em Tau Ceti,
nossa parte da experiência será concluída. Meu palpite é que depois que todos os dados sobre
as criaturas que vivem atualmente em Rama tenham entrado no Grande Banco Galático de
Dados, Rama será evacuada. Pode ser que logo depois disso essa grande nave espacial
cilíndrica apareça em outro sistema planetário onde viva um viajante espacial diferente, e
assim tenha início um outro ciclo.
— E isso nos faz voltar à minha pergunta anterior, que você não chegou a responder... O que
nos acontecerá então?
— Talvez nós, ou nossa descendência, sejamos mandados de volta para a Terra em uma lenta
viagem... Ou talvez eles pensem em nos sacrificar depois que todos os dados forem coletados.
— Nenhuma dessas possibilidades é interessante — disse Nicole. — E, embora eu concorde
com você que estamos indo na direção de Tau Ceti, o resto das suas hipóteses me parece uma
simples conjectura.
Richard fez uma careta.
— Aprendi muito com você, Nicole... Essas minhas hipóteses são intuitivas. Sinto que estou
certo, baseado em tudo o que aprendi sobre os ramaianos.
— Mas não seria mais coerente imaginar que os ramaianos simplesmente têm estações
espalhadas por toda a galáxia, e que as duas mais próximas de nós estão em Sírius e Tau Ceti?

— É, mas sinto que isso não é provável. Nodo foi uma espantosa criação de engenharia. Se
existissem outros semelhantes a cada vinte anos-luz na galáxia, haveria bilhões deles... E
lembre-se que a Águia disse bem claramente que Nodo podia se mover.

Nicole reconheceu para si mesma que não era provável que uma criação tão fantástica como
Nodo tivesse sido duplicada bilhões de vezes em algum grande processo cósmico de
montagem. A hipótese de Richard fazia mais sentido. Mas, ela pensou depressa, era muito
triste que nossa entrada no Banco Galático de Dados contivesse tantas informações
negativas.
— Então onde as aves, os sésseis e nossas velhas amigas, as octoaranhas, se encaixam nesse
cenário? — perguntou Nicole um pouco depois. — São apenas parte da mesma experiência,
como nós?... E se for assim, você está sugerindo que há também um colônia de octos a bordo,
só que ainda não topamos com ela?
Richard fez que sim.
— Essa conclusão é inevitável. Se a fase final de cada experiência for observar uma amostra
representativa dos viajantes espaciais sob condições controladas, faz sentido as octos estarem
aqui também... — disse ele, dando um sorriso nervoso. — Talvez até alguns dos nossos
amigos de Rama II estejam na nave espacial conosco neste exato momento.
— Como você tem idéias incríveis antes de dormir — disse Nicole sorrindo. — Se você
estiver certo, nós dois temos mais quinze anos para passar em uma nave espacial habitada não
só por seres humanos que querem nos capturar e matar, mas também por aracnídeos
possivelmente inteligentes, cuja natureza não compreendemos.
— Lembre-se — disse Richard dando uma risadinha — que eu posso estar errado.
Nicole levantou-se e caminhou para a porta.
— Para onde você está indo? — perguntou Richard.
— Para a cama — respondeu ela rindo. — Acho que vou ter uma dor de cabeça. Só consigo
contemplar o infinito durante um tempo finito.
6

Na manhã seguinte, quando Nicole abriu os olhos, Richard estava a seu lado segurando duas
mochilas.
— Vamos explorar e procurar octoaranhas — disse ele animado — por trás da tela preta...
Deixei comida e água para Tammy e Timmy para dois dias, e programei Joana e Eleonor para
entrarem em contato conosco em caso de emergência.
Nicole ficou observando o marido enquanto tomava o café da manhã. Os olhos dele estavam
cheios de energia e de vida. Este é o Richard de quem me lembro melhor, pensou consigo
mesma. Aventura sempre foi a coisa mais importante para ele.
— Voltei aqui duas vezes — disse Richard, assim que se enfiaram por baixo da tela levantada.
— Mas nunca cheguei ao final dessa primeira passagem.
A tela se fechou por trás deles, deixando-os no escuro.

— Não há perigo de ficarmos presos aqui desse lado, há? — perguntou Nicole, enquanto eles
checavam suas lanternas.

— De jeito nenhum. A tela só se levanta ou abaixa a cada minuto mais ou menos. Mas se
alguém ou alguma coisa ainda estiver nessa área daqui a um minuto, a tela se levanta
automaticamente.
— Quero avisar antes de começarmos a andar — continuou ele um pouco depois. — Essa
passagem é muito longa. Já segui um quilômetro por aqui antes, mas não encontrei nada. Nem
mesmo um desvio. Não há luz de espécie alguma. Portanto, a primeira parte vai ser muito
monótona, mas tem de nos levar a alguma coisa; os biotas que trazem nossas provisões devem
passar por esse caminho.
Nicole pegou a mão dele:
— Lembre-se, Richard, que não somos mais tão moços como antes. Richard iluminou com a
lanterna o cabelo de Nicole, que estava completamente grisalho, e depois sua própria barba
grisalha.
— Nós somos um casal de velhos medrosos, não é? — perguntou, contente.
— Fale por você mesmo — disse Nicole, apertando a mão dele.
A passagem tinha muito mais de um quilômetro. Richard e Nicole iam andando e conversando
sobre suas assombrosas experiências no segundo habitat.
— Fiquei absolutamente apavorado quando a porta do elevador abriu e eu vi os myrmigatos
pela primeira vez — disse Richard.
Ele descreveu para Nicole sua estada com as aves, e começou a contar sobre a hora em que
desceu até o fundo do cilindro.
— Fiquei literalmente congelado de medo. Os myrmigatos estavam a três ou quatro metros de
distância, olhando fixamente para mim. O líquido cremoso de seus enormes olhos inferiores
ovais movia-se de um lado para o outro, e os dois olhos superiores nos pedículos giravam em
redor para me verem de outra perspectiva. Nunca me esquecerei daquele momento.
— Agora vou ver se entendi bem a biologia — disse Nicole um instante depois, quando eles
se aproximaram do que parecia ser uns galhos no corredor subterrâneo. — Os myrmigatos se
desenvolvem nos melões-maná, vivem pouco, mas sua vida é muito ativa, e morrem dentro de
um séssil, onde todas as suas experiências de vida, como diz você em teoria, são
acrescentadas à base da rede neural do conhecimento. O ciclo vital se completa quando os
melões-maná crescem no interior dos sésseis. Essas criaturas são então colhidas na época
apropriada pela população myrmigática ativa.
Richard fez que sim.
— Talvez não seja exatamente assim, mas deve ser quase isso.
— Então o que nos falta são apenas as condições necessárias para que os melões-maná
comecem seu processo de germinação?
— Eu gostaria que você me ajudasse nesse quebra-cabeça — disse Richard. — Afinal,
doutora, você é a única de nós que tem treinamento formal em biologia.

O corredor abriu-se em um Y, cada uma das extremidades formando um ângulo de quarenta e


cinco graus com a passagem longa e reta que saía da toca deles.

— Qual é o caminho, Cosmonauta dos Jardins? — perguntou Richard com um sorriso,


iluminando com a lanterna as duas direções. Os dois túneis não apresentavam nenhuma
diferença.
— Vamos primeiro à esquerda — disse Nicole, um instante depois de Richard desenhar um
mapa em seu computador portátil. O caminho da esquerda começou a mudar umas centenas de
metros depois. O corredor se alargou formando uma rampa, que descia em espiral em torno de
um poste muito grosso, até pelo menos uns cem metros de profundidade na concha de Rama. A
medida que eles desciam, iam vendo as luzes lá embaixo. No fundo encontraram um canal
longo e amplo com margens planas e largas. A esquerda viram um par de biotas-caranguejos
fugindo deles no lado oposto do canal, e também uma ponte a distância, para além dos biotas.
A direita, uma barcaça passava pelo canal, levando uma carga de objetos desconhecidos e
variados, cinzentos, pretos e brancos, para algum destino naquele mundo subterrâneo.
Richard e Nicole observaram a cena em volta e depois se entreolharam.
— Chegamos ao mundo encantado de Alice — disse Richard com uma risadinha. — Por que
não comemos alguma coisa enquanto eu estudo toda essa área no meu fiel computador?
Enquanto os dois comiam, um biota-centopéia aproximou-se do lado do canal onde eles
estavam, parou um instante como que examinando-os e afastouse, subindo a rampa que Nicole
e Richard tinham acabado de descer.
— Você viu algum biota-caranguejo ou centopéia no segundo habitat? — perguntou Nicole.
— Não — respondeu Richard.
— E nós os tiramos propositalmente dos planos para o Novo Éden, não foi? Richard riu.
— Foi mesmo. Você convenceu a Águia e a mim que os seres humanos comuns não saberiam
lidar bem com eles.
— Então a presença deles aqui significa que há um terceiro habitat? — perguntou Nicole.
— Possivelmente. Afinal de contas, não temos idéia do que há agora no Hemicilindro Sul.
Não vamos lá desde que Rama foi remodelada. Mas pode haver uma outra explicação. Talvez
caranguejos, centopéias e outros biotas ramaianos simplesmente façam parte do território, se é
que você me compreende. Talvez estejam funcionando em todas as partes de Rama, em todas
as viagens, a menos que tenham sido especificamente proscritos por um determinado viajante
espacial.
Quando Richard e Nicole terminaram a refeição, uma outra barcaça apareceu à esquerda.
Como a anterior, estava carregada de objetos brancos, pretos e cinzentos.
— Esses objetos são diferentes dos primeiros — observou Nicole. — Aquelas pilhas me
fazem lembrar as peças sobressalentes dos biotas-centopéias que foram guardadas na minha
cova.

— Talvez você esteja certa — falou Richard ficando de pé. — Vamos seguir

o canal para ver onde ele vai dar. — Olhou em volta, primeiro para o teto arqueado de dez
metros e depois para a rampa que ficara para trás.
— A não ser que eu tenha cometido um erro no computador ou que o mar Cilíndrico seja muito
mais fundo do que eu pensava, esse canal corre do sul para o norte, por baixo do próprio mar.
— Então, se seguirmos a barcaça, voltaremos para o Hemicilindro Norte? — perguntou
Nicole.
— Creio que sim — respondeu Richard.
Os dois seguiram o canal durante mais de duas horas. Exceto três biotasaranhas que se
moviam rapidamente juntas na margem oposta, Richard e Nicole não viram nada de novo.
Duas outras barcaças passaram com o mesmo tipo de carga, e eles de vez em quando
encontravam biotas-centopéias e biotascaranguejos, com os quais não estabeleceram qualquer
interação. Então caminharam ao longo de mais uma ponte sobre o canal.
Richard e Nicole descansaram duas vezes, para beber água ou fazer um lanche enquanto
conversavam. Na segunda parada, Nicole sugeriu que seria melhor voltarem. Richard olhou e
relógio e falou:
— Vamos ficar mais uma hora. Se meu senso de direção estiver certo, já devemos estar
debaixo do Hemicilindro Norte. Mais cedo ou mais tarde, vamos descobrir para onde aquelas
barcaças estão carregando todas aquelas coisas.
Richard estava certo. Depois de caminharem mais um quilômetro ao longo do canal, viram, a
distância, uma grande estrutura pentagonal. Ao chegarem mais perto, notaram que o canal
seguia diretamente para o centro do pentágono. O prédio em si tinha seis metros de altura, com
um telhado chato, sem janelas, e o lado de fora pintado de um branco cremoso. Cada uma das
suas cinco seções ou alas estendia-se uns vinte a trinta metros a partir do centro da estrutura.
A calçada ao longo do canal terminava em uma escada que subia para uma pista que
circundava todo o pentágono. Do outro lado do canal havia uma configuração semelhante; um
biota-centopéia estava usando a pista como ponte para mudar de um lado do canal para o
outro.
— Onde você acha que ele está indo? — perguntou Nicole quando os dois chegaram para o
lado a fim de dar passagem ao biota.
— Talvez para Nova York. Nas minhas longas caminhadas antes das aves saírem da casca, eu
às vezes via uma delas a distância.
Os dois pararam em frente à única porta que dava para o pentágono, que ficava do lado do
canal.
— Nós vamos entrar?

Richard fez que sim e empurrou a portinha. Nicole abaixou-se e entrou no prédio. Os dois se
viram em uma sala grande e bem iluminada, com um total aproximado de mil metros cúbicos e
um teto de cinco metros de altura. O passadiço ficava uns dois ou três metros acima do chão,
de modo que Richard e Nicole podiam observar a atividade que ocorria lá embaixo.
Operários biotas robôs que eles nunca haviam visto antes, programados para uma tarefa
especializada, descarregavam as duas barcaças na sala e separavam a carga de acordo com
um plano predefinido. Muitas peças separadas das pilhas eram colocadas em caminhões-
biotas, que desapareciam por uma das portas do fundo assim que ficavam lotados.

Depois de observarem tudo por um instante, Richard e Nicole continuaram andando pelo
passadiço até onde ele se cruzava com outro caminho, logo acima do centro da sala. Richard
parou e fez umas anotações no computador.
— Espero que a planta do prédio seja simples como parece — disse a Nicole. — Seguindo à
direita ou à esquerda, chegaremos em outra ala do pentágono.
Nicole resolveu ir pela direita, porque os caminhões-biotas que ela achava que carregavam
peças para o biota-centopéia tinham seguido naquela direção. Suas observações estavam
corretas. Logo depois que ela e Richard entraram na segunda sala, exatamente do mesmo
tamanho da primeira, perceberam que os biotas-centopéias e caranguejos eram fabricados no
chão abaixo deles. Os dois pararam durante uns minutos para observar o processo.
— Absolutamente fascinante — disse Richard, terminando o diagrama da fábrica de biotas no
computador. — Você está pronta para continuar?
Quando Richard se virou para Nicole, ela viu que os olhos dele estavam arregalados.
— Não olhe agora — disse ele logo depois —, mas temos companhia. Nicole girou nos
calcanhares e deu uma olhada em volta. Do outro lado da sala, a quarenta metros de distância,
um par de octoaranhas aproximava-se lentamente pelo passadiço. Richard e Nicole não tinham
ouvido o barulho característico delas, semelhante a escovas metálicas sendo arrastadas,
devido ao barulho da fábrica de biotas.
As octoaranhas pararam quando notaram que os humanos as tinham visto. O coração de Nicole
começou a bater forte quando ela se lembrou do seu último encontro com uma octoaranha,
quando teve de tirar Katie da toca delas em Rama II. Naquele dia, como agora, seu primeiro
impulso tinha sido fugir.
Ela agarrou a mão de Richard e os dois ficaram olhando para os alienígenas.
— Vamos embora — disse Nicole.
— Estou com tanto medo quanto você — disse Richard —, mas vamos ficar mais um pouco.
Elas não estão se mexendo. Quero ver o que vão fazer.
Richard concentrou-se na octoaranha de chumbo e tentou gravar na cabeça a forma dela. Seu
corpo principal, quase esférico, era cinza-grafite, com cerca de um metro de diâmetro, tendo
como único detalhe um corte de alto a baixo, de vinte a vinte e cinco centímetros, onde o
corpo se abria em oito tentáculos pretos e dourados, com dois metros de comprimento cada,
espalhados pelo chão. Dentro do corte vertical viam-se muitos botões e dobras desconhecidos
(certamente sensores, pensou Richard), sendo o maior deles uma grande lente retangular
contendo uma espécie de líquido.

Quando os dois seres se olharam pela sala, uma larga faixa de um roxo brilhante clareou a
cabeça da octoaranha de chumbo. Essa faixa de luz, saída de uma das pontas paralelas do
corte vertical, moveu-se em torno da cabeça da octoaranha e desapareceu no lado oposto do
corte. Uns segundos depois apareceu uma faixa colorida formada de vermelho, verde e umas
faixas sem cor, que seguiu o mesmo trajeto em volta da cabeça da octoaranha.

— Foi exatamente o que aconteceu quando aquela octoaranha confrontouse comigo e com
Katie — disse Nicole nervosa. — Ela disse que estava falando conosco.
— Mas não temos como saber o que ela está dizendo — retrucou Richard. — O fato de ela
poder falar não quer dizer que não vai nos agredir...
Enquanto a ocotoaranha de chumbo continuava com sua conversa colorida, Richard lembrou-
se de repente de um episódio ocorrido com ele anos antes, durante sua odisséia em Rama II.
Naquela dia, ele estava deitado numa mesa, rodeado de cinco a seis octos com as luzes
coloridas por cima da cabeça. Ele se recordava bem do pânico que sentira ao ver umas
criaturazinhas, aparentemente sob controle das octoaranhas, rastejarem pelo seu nariz.
A cabeça de Richard começou a latejar.
— Elas não foram muito gentis comigo — disse ele para Nicole. — Quando... Naquele
instante a porta do outro lado da sala se abriu e mais quatro octoaranhas entraram.
— Já chega — disse Richard, sentindo a tensão de Nicole. — É bom irmos embora.
Os dois caminharam depressa pelo centro da sala, onde o passadiço, como na sala anterior,
cruzava Com o caminho que dava do lado de fora do prédio. Viraram na direção da saída,
mas, depois de darem alguns passos, pararam. Mais quatro octoaranhas estavam entrando pela
porta da saída também.
Não havia muito o que fazer. Os dois giraram nos calcanhares, voltaram para o passadiço
interno principal e correram na direção da terceira ala do pentágono sem olhar para trás, até
entrarem na terceira ala. Essa parte do prédio estava absolutamente às escuras. Richard parou
um instante para examinar a área com sua lanterna. Viram no chão abaixo deles um
equipamento de aspecto sofisticado, mas não notaram nenhuma atividade.
— Será que devemos tentar sair de novo? — perguntou Richard guardando sua lanterna no
bolso.
Ao ver Nicole fazendo que sim, pegou a mão dela e os dois correram para o cruzamento, onde
viraram à direita e seguiram na direção da saída do pentágono.
Alguns instantes depois, encontraram-se em um corredor escuro, um território absolutamente
desconhecido. Ambos estavam muito cansados, e Nicole sentia dificuldade para respirar.
— Richard, eu preciso descansar. Não posso continuar correndo assim. Richard e Nicole
andaram uns cinqüenta metros pelo corredor escuro e vazio até que viram uma porta à
esquerda. Richard abriu a porta com cuidado, olhou para dentro e examinou a sala com a
lanterna.
— Deve ser uma espécie de depósito — disse. — Mas no momento está vazio.
Richard entrou na sala, olhou pela porta dos fundos e viu outra sala vazia. Voltou para onde
Nicole estava e os dois se sentaram de costas para a parede.

— Quando voltarmos para nossa toca, querido — disse Nicole um pouco depois —, quero
que você me ajude a checar meu coração. Tenho sentido umas dores esquisitas ultimamente.

— Está se sentindo bem agora? — perguntou Richard com voz preocupada.


— Estou — disse ela, sorrindo no escuro e beijando o marido. — Tão bem quanto se pode
esperar depois de fugir de um bando de octoaranhas.
7

Nicole dormiu encostada na parede, com a cabeça reclinada sobre o ombro de Richard. Teve
um pesadelo atrás do outro, acordando assustada e dormindo de novo. No último pesadelo, ela
estava numa ilha no meio do mar com os filhos, quando foram cobertos por uma imensa onda,
que espalhou as crianças por toda a ilha. Nicole ficou em pânico, sem saber como conseguiria
salvar seus filhos, e acordou com um tremor pelo corpo. Aconchegou-se ao marido no escuro
e falou:
— Richard, acorde. Há alguma coisa errada aqui.
De início, Richard não se mexeu, mas, quando Nicole tentou acordá-lo pela segunda vez, abriu
os olhos.
— O que aconteceu? — perguntou finalmente.
— Tenho a sensação de que não estamos seguros aqui — disse Nicole. — É melhor irmos
embora.
Richard acendeu sua lanterna e examinou a sala.
— Não há ninguém aqui. Pelo menos eu não estou ouvindo nada... Não é melhor descansarmos
mais um pouco?
Os dois permaneceram sentados em silêncio, mas o medo de Nicole foi aumentando.
— Tenho um forte pressentimento de que estamos em perigo. Sei que você não acredita nessas
coisas, mas minhas premonições quase sempre deram certo ao longo da minha vida.
— Tudo bem — concordou Richard. Levantou-se, atravessou a sala, abriu a porta dos fundos
que dava para uma peça semelhante e deu uma olhada lá dentro. — Aqui também não há nada.
— Voltou para onde estava e abriu a porta do corredor pelo qual tinham saído do pentágono.
No momento em que a porta foi aberta, os dois ouviram o inconfundível barulho de arrastar de
escovas.
Nicole deu um pulo. Richard fechou a porta sem fazer ruído e correu para onde ela estava.
— Vamos — falou num sussurro. — Temos de encontrar um meio de sair daqui.

Passaram para a próxima sala, depois para outra e mais outra, todas escuras e vazias. À
medida que iam correndo naquele território desconhecido foram perdendo o sentido de
direção. Depois, chegaram a uma porta grande e dupla nos fundos de uma das salas idênticas.
Richard disse para Nicole ficar atrás, enquanto ele empurrava com cuidado o lado esquerdo
da porta.

— Meu Deus! — exclamou ele quando olhou dentro da sala. — Que diabo será isso?
Nicole ficou ao seu lado e seguiu a luz da lanterna que iluminava os objetos bizarros
amontoados na sala. O que estava mais perto da porta parecia uma ameba grande sobre uma
prancha de skate; perto dele havia uma bola gigantesca de fio torcido com duas antenas saindo
do meio. A sala estava em silêncio, e nada se movia. Richard levantou a lanterna e moveu-a
rapidamente em volta da sala entulhada.
— Venha cá — disse Nicole, vendo uma coisa que lhe pareceu familiar. — Olhe ali, um pouco
à esquerda da outra porta.
Alguns segundos depois a lanterna iluminou quatro figuras humanas, com capacetes e roupas
espaciais, sentadas contra a parede do lado oposto.
— São os biotas-humanos — disse Nicole agitada. — Aqueles que vimos antes de encontrar
Michael O'Toole no fundo do elevador de cadeira.
— Norton e companhia? — perguntou Richard incrédulo, sentindo um arrepio na espinha.
— Aposto que sim — respondeu Nicole.
Eles entraram na sala na ponta dos pés e passaram pelos objetos até chegarem às figuras
humanas e se ajoelharem perto delas para ver melhor.
— Esse deve ser um biota que não presta mais — disse Nicole, depois de verificar que o
rosto por trás do capacete transparente era uma cópia do comandante Norton, que chefiou a
primeira expedição Rama.
Richard levantou-se e sacudiu a cabeça.
— Absolutamente inacreditável. O que eles estão fazendo aqui? — falou, examinando a sala
com sua lanterna.
Um instante depois, Nicole deu um grito. A menos de quatro metros de distância, vira uma
octoaranha se movendo, ou pelo menos achou que estava se movendo naquela luz mortiça.
Mas, ao verem que era apenas um biotaoctoaranha, começaram a rir.
— Richard Wakefield — disse Nicole quando conseguiu conter seu ataque de riso —, posso
voltar para casa agora? Para mim já chega.
— Acho que sim — respondeu Richard com um sorriso. — Assim que encontrarmos a saída.

À medida que os dois iam penetrando cada vez mais no labirinto de salas e túneis em torno do
pentágono, Nicole ia se convencendo de que nunca sairiam dali. Depois de algum tempo,
Richard diminuiu o passo para digitar informações no seu computador; com isso, evitou pelo
menos que andassem em círculos, mas não conseguiu ligar o mapa que ia se formando a
nenhum referencial que eles tinham visto antes de fugirem das octoaranhas.
Quando os dois começavam a se desesperar, deram de encontro com um pequeno caminhão-
biota carregando uma estranha coleção de pequenos objetos por um corredor estreito. Richard
relaxou um pouco.

— Essas coisas parecem ter sido fabricadas segundo especificação de alguém — disse para
Nicole. — Como aqueles objetos que nos foram entregues no Salão Branco. Se caminharmos
na direção de onde veio o biota, talvez possamos descobrir onde esses objetos são fabricados.
De lá deve ser fácil encontrar a passagem para a nossa toca.

Era uma grande caminhada, e depois de algumas horas Nicole e Richard estavam
absolutamente exaustos. De repente o corredor se alargou, e surgiu à frente deles uma enorme
fábrica com teto muito alto. No meio da fábrica havia doze cilindros grossos parecendo
antiquadas caldeiras da Terra, com quatro a cinco metros de altura e um metro e meio de
largura no centro, distribuídas em quatro fileiras de três.
Esteiras rolantes, ou pelo menos o equivalente às de Rama, entravam e saíam das caldeiras,
duas das quais estavam em funcionamento na hora em que Nicole e Richard chegaram. Richard
ficou fascinado.
— Olhe ali — disse, apontando para o chão de um grande depósito, com pilhas de objetos de
todos os tamanhos e aparências. — Aquela deve ser a matéria-prima. Um pedido enviado para
a central do computador, que provavelmente está naquele compartimento por trás das
caldeiras, é processado e passado para uma dessas máquinas. Os biotas saem, juntam os
componentes adequados e os colocam nas esteiras. Dentro das caldeiras, essa matéria-prima é
substancialmente modificada, e o que sai de lá é o objeto programado pela espécie inteligente
que estiver usando o teclado ou seu equivalente para se comunicar com os ramaianos.
Richard chegou perto da caldeira ativa mais próxima.
— Mas a verdadeira pergunta é que tipo de processamento ocorre dentro dessas caldeiras. Um
processamento químico? Ou talvez nuclear, com transmutação dos elementos? Ou será que os
ramaianos têm alguma tecnologia de fabricação completamente além do nosso entendimento?
Bateu várias vezes na parede externa da caldeira.
— As paredes são muito grossas — disse. Depois, inclinou-se no ponto onde a esteira entrava
na caldeira e enfiou a mão dentro.
— Richard — gritou Nicole —, você não devia fazer isso.
Richard olhou para Nicole e deu de ombros. Quando ele se inclinou de novo para examinar a
interface caldeira, um biota bizarro, parecendo uma câmera de filmar com pernas, veio
correndo dos fundos do salão. O biota enfiouse rapidamente entre Richard e a esteira em
atividade e aumentou de tamanho, forçando Richard a afastar-se da máquina.
— Bela manobra — disse Richard entusiasmado, virando-se para Nicole.
— O sistema tem uma excelente proteção contra falhas.
— Richard, será que podemos continuar o que estávamos fazendo? Ou você já se esqueceu de
que não sabemos como voltar para a nossa toca?
— Só mais um instante — respondeu ele. — Quero ver o que vai sair dessa caldeira em
atividade perto de nós; Talvez vendo o produto, depois de ver a matéria-prima, eu possa
concluir que tipo de processo foi usado.
Nicole sacudiu a cabeça.

— Eu tinha me esquecido da sua mania de querer saber tudo. Você é o único ser humano que
conheço capaz de parar para estudar uma nova planta ou animal mesmo estando perdido numa
floresta.

Nicole encontrou outra passagem longa do lado oposto da imensa sala, e uma hora depois
finalmente convenceu Richard a sair da fascinante fábrica alienígena. Não havia meio de
saberem aonde essa passagem chegaria, mas era a única chance que tinham. Continuaram
andando, e cada vez que Nicole dizia estar cansada ou desanimada, Richard a animava,
exaltando tudo o que eles haviam visto desde que haviam saído da toca.
— Este lugar é absolutamente fantástico, estupendo — disse ele a um certo ponto, sem
conseguir se conter. — Não consigo avaliar o que isso tudo quer dizer... não só não estamos
sozinhos no universo... como não estamos perto do topo da pirâmide, em termos de
capacidade...
Mesmo com todo o entusiasmo de Richard, os dois estavam à beira da exaustão, quando
finalmente viram uma bifurcação no corredor. Em função dos ângulos, Richard teve certeza de
que haviam voltado ao Y, que ficava a apenas uns dois quilômetros da toca.
— Viva! — gritou, apressando o passo. — Olhe, estamos quase em casa — avisou a Nicole,
iluminando o caminho à frente deles.
Naquele instante, Nicole ouviu alguma coisa que a deixou apavorada.
— Richard, desligue a lanterna.
Ele deu meia-volta quase caindo e desligou a lanterna. Um instante depois não havia mais
dúvida. O ruído de arrastar de escovas estava cada vez mais alto.
— Vamos correr para lá — gritou Nicole, dando um salto para junto do marido.
Richard chegou à encruzilhada menos de quinze segundos antes da primeira das octoaranhas
que vinham do canal. Enquanto fugia, Richard iluminou o caminho atrás e viu pelo menos
quatro tipos coloridos movendo-se na escuridão. Richard e Nicole pegaram todos os móveis
que encontraram no Salão Branco e fizeram uma barreira na parte de baixo da tela preta.
Ficaram ali durante várias horas, com medo de que a qualquer instante a tela se levantasse e
sua toca fosse invadida pelas octoaranhas. Mas nada aconteceu. Joana e Eleonor foram
colocadas como sentinelas no Salão Branco e passaram a noite no quarto com Tammy e
Timmy.
— Por que será que as octoaranhas não nos seguiram? — perguntou Richard no dia seguinte.
— Elas devem saber que a tela se levanta automaticamente. Se chegaram no final do
corredor...
— Talvez não quisessem nos amedrontar mais — interrompeu Nicole gentilmente.
Richard franziu as sobrancelhas e olhou para Nicole com ar intrigado.
— Ainda não temos prova de que as octoaranhas são hostis — continuou Nicole —, embora
elas tenham maltratado você quando o prenderam anos atrás... Talvez também não quisessem
fazer mal a Katie ou a mim, e podiam facilmente ter feito. E elas acabaram entregando você
para nós.

— Só que quando entregaram eu estava em coma profundo — retrucou Richard. — E não


servia mais para elas a não ser para testes... E o que dizer de Takagishi? E dos ataques ao
príncipe Hal e Falstaff?

— Os dois incidentes têm uma explicação plausível, que não envolve hostilidade. Por isso a
coisa é tão confusa. Imagine que Takagishi morreu de um ataque cardíaco e que as octoaranhas
tenham preservado e empalhado o corpo dele para exibi-lo em uma aula a outras
octoaranhas... Talvez nós fizéssemos a mesma coisa...
Nicole fez uma pausa e continuou:
— E o ataque, como você diz, ao príncipe Hal e a Falstaff pode ter sido um mal-entendido... E
se os seus robozinhos estavam andando por um lugar importante, talvez um ninho, ou uma
igreja das octoaranhas... Seria natural que elas defendessem seu território.
— Eu não entendo — disse Richard hesitante. — Aqui está você defendendo as octoaranhas...
Mas você correu delas ontem mais depressa do que eu.
— Corri sim — falou Nicole com um ar contemplativo. — E admito que estava aterrorizada.
Meu instinto animal foi pensar em hostilidade e fugir, e agora estou desapontada comigo
mesma. Nós humanos deveríamos usar a cabeça para superar reações instintivas...
Especialmente você e eu. Depois de tudo o que vimos em Rama e Nodo, deveríamos estar
completamente imunes à xenofobia.
Richard sorriu e fez que sim.
— Então está sugerindo agora que talvez as octoaranhas estivessem apenas tentando
estabelecer algum tipo de contato pacífico?
— Talvez — respondeu Nicole. — Não sei o que elas querem. Mas o que eu sei é que nunca
vi as octoaranhas fazerem nada que fosse definitivamente hostil.
Richard ficou olhando para as paredes durante um instante e depois esfregou a testa.
— Gostaria de me lembrar de mais detalhes daquela época em que estive com elas. Ainda
tenho dores de cabeça terríveis quando tento me lembrar daqueles dias; só quando eu estava
dentro do séssil é que minhas lembranças das octoaranhas não eram seguidas de dor.
— Essa sua odisséia ocorreu há muito tempo — falou Nicole. — Talvez as octoaranhas
também sejam capazes de aprender e agora adotem uma atitude diferente conosco.
Richard levantou-se.
— Tudo bem, você me convenceu. Da próxima vez em que virmos uma octoaranha não vamos
correr — disse rindo. — Pelo menos não imediatamente.

Passou-se um mês e Richard e Nicole não voltaram para trás da tela preta, nem vieram a ter
novos encontros com as octoaranhas. Passavam o dia cuidando dos filhotes de aves (que
estavam aprendendo a voar) e na companhia um do outro. Durante suas conversas, falavam
dos filhos e lembravam-se do passado.

— Acho que estamos velhos — disse Nicole um dia, quando ela e Richard passeavam por
uma das três praças centrais de Nova York.

— Como pode dizer isso? — perguntou Richard com uma risadinha. — Só porque passamos a
maior parte do tempo falando sobre o que aconteceu no passado, e porque nossas funções
diárias ocupam mais nossa atenção e energia do que nossa vida sexual, quer dizer que estamos
velhos?
Nicole riu.
— É tão ruim assim?
— Nem tanto — disse Richard em tom de brincadeira. — Eu ainda amo você como se fosse
um adolescente... Mas de vez em quando esse amor é posto de lado por umas dores que eu
nunca tinha sentido antes... Por falar nisso, você não pediu para eu examinar seu coração?
— Pedi, mas você não vai poder fazer grande coisa. Os únicos instrumentos médicos que eu
trouxe na minha maleta quando fugi foram o estetoscópio e o esfigmógrafo. Já usei os dois
várias vezes para me examinar... Não encontrei nada de mais, a não ser um certo problema na
válvula, mas minha falta de ar não apareceu mais. Provavelmente foi toda a excitação... e a
idade.
— Se nosso genro cardiologista estivesse aqui... poderia fazer um exame completo em você.
Os dois andaram em silêncio por algum tempo.
— Você sente muita falta dos nossos filhos, não é? — perguntou Richard.
— Sinto sim — disse Nicole suspirando. — Mas tento não pensar muito neles. Estou feliz em
estar viva e aqui com você; sem dúvida é muito melhor do que aqueles meses que passei na
prisão. E tenho muitas recordações maravilhosas das crianças...
— Deus, me dê a sabedoria de aceitar as coisas que não posso mudar — citou Richard. —
Essa é uma das suas maiores qualidades, Nicole... Sempre tive uma ponta de inveja desta sua
serenidade.
Nicole afastou-se de mansinho. Minha o quê?, pensou ela, lembrando-se claramente de como
ficara obcecada com a morte de Valeriy Borzov, logo depois que a nave Newton aportou em
Rama. Só consegui dormir quando me convenci de que ele não tinha morrido por minha
causa. Nicole ficou pensando naqueles anos intermediários. Qualquer serenidade, se isso é
possível, veio muito recentemente... A maternidade e a idade nos dão uma perspectiva
diferente com relação a nós mesmos e ao mundo.
Um instante depois, Richard parou e virou-se para Nicole.
— Eu te amo muito — disse de repente, abraçando-a com força.
— O que aconteceu? — perguntou Nicole um pouco depois, intrigada com aquela súbita
demonstração amorosa.
Os olhos de Richard estavam distantes.

— Na semana passada — disse ele entusiasmado —, um plano louco e estranho foi se


desenvolvendo na minha cabeça. Desde o começo, eu sabia que era perigoso e provavelmente
insano mas, como todos os meus projetos, tomou conta de mim... Cheguei a sair da cama duas
vezes no meio da noite para pensar nos detalhes... Queria ter contado a você antes, mas
precisei me convencer de que era possível mesmo...

— Não tenho idéia do que você está falando — disse Nicole impaciente.
— Os meninos. Tenho um plano para eles fugirem e se encontrarem conosco em Nova York.
Cheguei até a reprogramar Joana e Eleonor.
Nicole ficou olhando para o marido, a emoção lutando contra a razão, enquanto ele explicava
seu plano.
— Espere um instante, Richard — interrompeu, depois de um instante. — Primeiro temos de
fazer uma pergunta muito importante... O que faz você pensar que os meninos querem fugir?
Eles não estão refugiados no Novo Éden, nem presos. É verdade que Nakamura é um tirano e
que a vida na colônia é difícil e deprimente, mas ao que eu saiba nossos filhos são tão livres
quanto quaisquer outros cidadãos. E se tentassem se juntar a nós e falhassem, a vida deles
estaria em perigo... Além disso, nossa existência aqui, embora seja ótima para nós, não seria
um paraíso para eles.
— Eu sei... eu sei... e talvez esteja sendo levado pelo meu desejo de vê-los novamente... Mas
qual é o risco de mandarmos Joana e Eleonor falar com eles? Patrick e Ellie são adultos e
podem tomar uma decisão...
— E Benjy e Katie? — perguntou Nicole. Richard franziu a sobrancelha.
— É claro que Benjy não poderia vir por conta própria, e assim a sua participação depende
da vontade dos outros em ajudá-lo. Quanto a Katie, ela é tão instável e imprevisível... que
poderia até resolver contar tudo para Nakamura... Acho que não temos outra saída senão
deixar Katie fora disso...
— Um pai nunca perde a esperança — disse Nicole carinhosamente, tanto para si própria
como para Richard. — Aliás, o seu plano também inclui Max e Eponine? Eles são quase
membros da nossa família.
— Max é a pessoa perfeita para coordenar a fuga de dentro da colônia — continuou Richard,
cada vez mais entusiasmado. — Ele foi fantástico escondendo você e depois levando-a para o
lago Shakespeare sem ser apanhado. Patrick e Ellie precisarão de uma pessoa madura e de
cabeça fria para ajudá-los nos detalhes... No meu plano, Joana e Eleonor entram em contato
com Max primeiro. Além de ele já conhecer os robôs, poderá fazer uma boa avaliação do
plano. Se nos disser, através dos robôs, que a idéia é absurda, a gente arquiva o plano.
Nicole tentou imaginar sua alegria quando abraçasse um dos filhos de novo. Mas era
impossível.
— Tudo bem, Richard — disse ela, sorrindo. — Admito que estou interessada... Vamos
conversar sobre isso... Mas temos de nos prometer não fazer nada que possa pôr em risco a
vida das crianças.

Max Puckett e Ellie Turner deixaram Eponine, Robert e a pequena Nicole logo depois do
jantar e foram caminhar em volta da casa da fazenda de Max no Novo Éden. Assim que se
afastaram, Max começou a contar a Ellie sobre as recentes visitas dos robozinhos. Ellie não
podia acreditar no que estava ouvindo.

— Você deve estar enganado — disse em voz alta para Max. — Eles não podem estar
sugerindo que a gente saia de...

Max pôs o dedo nos lábios enquanto os dois caminhavam os últimos metros até o celeiro.
— Você mesma vai falar com eles — disse num sussurro. — Mas, segundo essas criaturinhas,
há lugar de sobra para todos nós na toca onde você viveu seus primeiros anos de vida.
Estava escuro no celeiro. Antes de Max acender a luz, Ellie já tinha visto os robozinhos
brilhando ao seu lado, no peitoril de uma das janelas.
— Alô, Ellie — disse Joana, ainda com sua armadura. — Sua mãe e seu pai mandaram
lembranças.
— Viemos ver você esta noite — acrescentou Eleonor — porque Max achou que seria melhor
você própria ouvir o que vamos dizer. Richard e Nicole estão convidando você e seus amigos
para irem morar na antiga toca deles em Nova York, onde estão vivendo uma vida espartana
porém pacífica.
— Tudo lá na toca — continuou Joana — continua igual a quando você era criança. Comida,
roupas e outros objetos continuam a ser fornecidos pelos ramaianos, solicitados através do
teclado do Salão Branco. Há água potável à vontade na cisterna perto do fundo da escada de
entrada.
Ellie ouvia fascinada à medida que Joana a lembrava de sua vida na cidade-ilha, ao sul do
segundo habitat. Tentou visualizar a toca, mas a imagem que vinha à cabeça era por demais
vaga. Lembrava-se claramente dos seus últimos dias em Rama, com os espetaculares anéis de
luz emanando do Grande Chifre e espraiando-se aos poucos ao norte do gigantesco cilindro.
Mas o interior de sua toca continuava nebuloso. Por que não lembrar ao menos do meu
quarto com mais nitidez? Será porque aconteceu muita coisa desde aquela época que ficou
mais fundo na minha memória?
Uma montagem de imagens da sua primeira infância passou pela cabeça de Ellie. Algumas
delas eram de Rama, mas a maioria se referia ao apartamento de sua família em Nodo. As
indeléveis características da Águia, uma figura divina para a pequena Ellie, pareciam presidir
a montagem.
Eleonor de Aquitânia perguntou alguma coisa a Ellie, mas de início a jovem não ouviu,
perdida nas suas reminiscências.
— Desculpe, Eleonor. Pode repetir a pergunta, por favor? Acho que eu estava
temporariamente perdida na minha infância.
— Sua mãe perguntou sobre Benjy. Ele ainda está na enfermaria em Avalon?
— Está. E está se saindo até muito bem. Sua melhor amiga agora é Nai Watanabe. Quando a
guerra terminou, ela se apresentou como voluntária para trabalhar com os que tinham sido
enviados para a enfermaria de Avalon por uma razão ou por outra. Ela passa algum tempo com
Benjy todos os dias e o tem ajudado muito. Os gêmeos dela, Kepler e Galileu, adoram brincar
com Benjy — que na verdade é uma criança —, embora Galileu às vezes seja cruel com ele e
Nai se sinta muito mal com isso.
— Como eu lhe falei — disse Max, voltando ao assunto principal —, Nicole e Richard
deixaram a nosso cargo decidir quem deveria partir conosco, caso tentemos uma saída em
massa. Benjy segue as orientações que lhe dão?

— Creio que sim, desde que confie na pessoa que o orienta. Mas não será

possível contar-lhe com antecedência sobre a fuga. Não poderíamos esperar que ele não
dissesse nada a ninguém. Segredo e astúcia não fazem parte da personalidade de Benjy. Ele
ficará maravilhado, mas...
— Sr. Puckett — interrompeu Joana d'Arc —, o que devo dizer para Richard e Nicole?
— Que droga, Joana, tenha um pouco de paciência... Aliás, é melhor você voltar dentro de
uma semana, depois que Ellie, Eponine e eu tivermos mais tempo para conversar sobre o
assunto e pudermos dar a você algum tipo de resposta... Diga a Richard que eu achei a coisa
toda interessante, embora bastante maluca.
Max colocou os dois robôs no chão do celeiro e eles desapareceram. Depois que saiu, por sua
vez, do celeiro com Ellie, Max tirou um cigarro do bolso.
— Espero que você não se ofenda se eu fumar aqui fora — disse, com uma risadinha.
Ellie sorriu.
— Você não quer contar para Robert, não é, Max? — disse ela um instante depois, enquanto
Max fazia rodinhas de fumaça no ar.
Max sacudiu a cabeça.
— Ainda não. Talvez só na última hora — respondeu, pondo o braço em volta de Ellie. —
Minha menina, eu gosto do seu marido médico, gosto mesmo, mas às vezes acho as atitudes e
prioridades dele um tanto estranhas. Não tenho certeza se ele não contaria nosso plano para
alguém...
— Você acha, Max, que talvez Robert tenha feito algum tipo de voto secreto de não se voltar a
contra a autoridade? É que ele tem medo de que...
— Que merda, Ellie, não sou psicólogo. Acho que nenhum de nós pode compreender o que
significou para ele matar duas pessoas a sangue-frio. Mas sei que é bem provável que ele não
guarde nosso segredo para evitar uma decisão pessoal penosa, entre outras coisas. — Max
tragou o cigarro e olhou para sua jovem amiga.
— Você não acredita que ele vá conosco, não é, Max? Nem mesmo se eu pedir.
Max sacudiu a cabeça mais uma vez.
— Não sei, Ellie. Vai depender de quanto ele precisa de você e da pequena Nicole. Robert
criou um espaço para vocês duas na vida dele, mas continua a esconder seus sentimentos por
trás do trabalho.
— E você, Max? — perguntou Ellie. — O que você realmente pensa desse esquema todo?
— Eponine e eu estamos prontos para ir, para termos um pouco de aventura — disse ele,
sorrindo. — Além disso, mais cedo ou mais tarde, vou ter sérios problemas com Nakamura.
— E Patrick?
— Ele vai adorar a idéia. Mas tenho medo que diga alguma coisa a Katie. Eles têm um
relacionamento especial...

Max parou no meio da frase quando viu Robert aparecer na frente da casa, carregando a
filhinha no colo.

— Ah, você está aí, Ellie — disse Robert. — Achei que você e Max tivessem se perdido no
celeiro... Nicole está muito cansada e eu tenho de sair muito cedo para o hospital amanhã...
— É claro, querido. Max e eu estávamos nos lembrando de alguns episódios com meu pai e
minha mãe...

Deve parecer um dia perfeitamente normal, pensou Ellie ao mostrar seu cartão de identidade à
biota Garcia, na entrada do supermercado de Beauvois. Devo me comportar exatamente como
se hoje fosse uma quinta-feira comum.
— Sra. Turner — disse a Garcia um instante depois, passando-lhe uma lista de computador
pregada na parede —, aqui está sua ração para a semana. Estamos sem brócolis e tomates de
novo, portanto, incluímos duas medidas extras de arroz... Agora pode entrar na fila para pegar
suas provisões.
A pequena Nicole entrou com Ellie na ala principal do supermercado. Do outro lado de um
biombo, onde nos primeiros dias da colônia os cidadãos do Novo Éden faziam suas próprias
compras, cinco a seis biotas Tiasso e Lincoln, todos de uma série de trezentos completamente
reprogramados pelo governo de Nakamura, andavam para baixo e para cima, preenchendo os
pedidos. Grande parte das prateleiras estava vazia. Embora a guerra já tivesse terminado há
algum tempo, a temperatura instável do Novo Éden e também o descontentamento da maioria
dos fazendeiros quanto aos métodos violentos de Nakamura tinham baixado a produção a um
nível mínimo. Por isso, o governo achara necessário supervisionar a distribuição de
alimentos. Somente os favoritos do governo tinham mais do que o essencial para comer.
Na fila havia uma meia dúzia de pessoas na frente de Ellie e de sua filhinha de dois anos.
Toda quinta-feira à tarde Ellie fazia compras com aquelas mesmas pessoas. Quando as duas
entraram na fila, algumas delas se viraram para trás.
— Aí está a linda menininha — disse uma senhora de cabelos grisalhos. — Como vai você,
Nicole?
Nicole não respondeu. Deu uns passos atrás e abraçou-se às pernas de sua mãe.
— Nicole ainda é muito tímida — disse Ellie. — Só conversa com gente que ela conhece.
Um biota Lincoln trouxe duas caixinhas de comida e entregou-as a um pai com seu filho
adolescente que estavam no primeiro lugar da fila.
— Não vamos usar o carrinho hoje — disse o pai para o biota Lincoln. — Por favor, anote
isso no nosso dossiê... Há duas semanas, quando nós também carregamos nossas compras,
ninguém notou que não havíamos pegado o carrinho. Fomos acordados no meio da noite por
uma Garcia pedindo que devolvêssemos o carrinho ao supermercado.

Não pode haver erros triviais, disse Ellie para si mesma. Não se pode deixar de devolver os
carrinhos, nada de que alguém possa suspeitar, antes de amanhã. Enquanto esperava na fila,
foi repassando os detalhes do plano de fuga que ela e Patrick haviam discutido com Max e
Eponine no dia anterior. Tinham escolhido uma quinta-feira porque era o dia em que Robert
fazia suas visitas regulares aos doentes de RV-41 em Avalon. Max e Eponine tinham pedido, e
recebido, um passe para irem jantar com Nai Watanabe. Eles cuidariam de Kepler e Galileu
enquanto Nai fosse à enfermaria buscar Benjy. Tudo estava em ordem. Havia apenas uma
grande incerteza.

Ellie tinha treinado centenas de vezes a conversa que teria com Robert. Sua reação inicial será
negativa. Ele vai dizer que é muito perigoso, que eu estou pondo em risco a segurança de
Nicole. E ficará zangado por eu não ter contado tudo para ele antes.
Na sua imaginação ela já tinha respondido a todas as suas objeções e descrito cuidadosamente
a vida que levariam em Nova York, sob uma perspectiva va positiva. Mas continuava muito
nervosa. Não conseguira se convencer de que Robert concordaria em partir com eles. E não
tinha idéia do que ele faria se ela declarasse que estava preparada para levar a filha e partir
sem ele.
Quando suas compras foram colocadas no carrinho que seria devolvido ao supermercado
depois de descarregar tudo em casa, Ellie apertou a mão da filhinha. Está quase na hora.
Preciso tomar coragem. Preciso ter fé.

— Como você espera que eu reaja? — disse Robert Turner. — Eu chego em casa depois de
um dia excepcionalmente trabalhoso no hospital, pensando em centenas de coisas que tenho de
fazer amanhã, e você me diz no jantar que quer que nós deixemos o Novo Éden para sempre. E
que aja hoje à noite...
— Sei que foi repentino, Robert — disse Ellie, cada vez com mais medo de ter subestimado a
dificuldade da sua tarefa —, mas eu não podia te dizer antes. Seria muito perigoso... E se você
se traísse e dissesse alguma coisa para Ed Stafford ou outro membro de sua equipe e um dos
biotas ouvisse?...
— Mas eu não posso simplesmente ir embora sem dizer nada a ninguém — falou Robert,
sacudindo a cabeça. — Você tem idéia de quantos anos de trabalho seriam jogados fora?
— Você não pode escrever o que tem de ser feito em cada projeto? — sugeriu Ellie. — Ou
fazer um resumo do que já foi realizado...
— Não numa noite — respondeu Robert com toda ênfase. — Não, Ellie, está fora de questão.
Nós não podemos ir. O plano de saúde a longo termo da colônia pode depender dos resultados
da minha pesquisa... Além do mais, mesmo que seus pais estejam vivendo confortavelmente
nesse lugar bizarro que você descreveu, seja lá onde for, não me parece um bom lugar para
criar uma criança... E você nem ao menos considerou o possível perigo para todos nós. Nossa
saída daqui será vista como uma traição. Nós dois poderíamos ser executados se fôssemos
apanhados. E o que aconteceria a Nicole então?
Ellie ouviu as objeções de Robert por mais algum tempo e de repente percebeu que havia
chegado a hora de sua declaração. Juntando toda a sua coragem, ela andou em volta da mesa e
pegou nas mãos do marido.

— Eu venho pensando nisso há quase três semanas, Robert... Você precisa compreender como
é difícil para mim tomar essa decisão... Eu te amo de todo meu coração, mas se for preciso
Nicole e eu iremos sem você... Sei que há muita incerteza nesse plano de partida, mas a vida
aqui no Novo Éden não tem nada de saudável para nenhum de nós...

— Não, não, não — disse Robert imediatamente, largando as mãos de Ellie e andando em
volta da sala. — Não acredito em nada disso. É tudo um pesadelo... — Fez uma pausa e olhou
para Ellie... — Você não pode levar Nicole — disse, de forma apaixonada. — Está me
ouvindo? Eu proíbo que você leve a nossa filha...
— Robert! — interrompeu Ellie com um grito, as lágrimas escorrendo pelo seu rosto. — Olhe
para mim... Eu sou sua mulher, a mãe de sua filha... Eu te amo. Pelo amor de Deus, ouça o que
vou dizer.
Nesse momento, Nicole entrou correndo na sala e começou a chorar ao lado da mãe. Ellie se
compôs e continuou:
— Não acredito que você seja o único desta família que possa tomar decisões. Eu tenho o
mesmo direito. Posso respeitar seu desejo de não ir embora, mas sou a mãe de Nicole. Se
tivermos de nos separar, acho que seria melhor para ela ficar comigo...
Ellie parou. O rosto de Robert estava contorcido de dor. Ele deu um passo na direção dela, e,
pela primeira vez na vida, Ellie teve medo de que Robert lhe batesse.
— O melhor para mim — gritou Robert, com o punho da mão direita levantado — seria que
você esquecesse toda essa bobagem.
Ellie recuou um pouco e Nicole continuou a chorar. Robert lutava para se controlar.
— Eu jurei — disse, com a voz tomada de emoção — que ninguém e nada iria fazer com que
eu magoasse alguém assim de novo...
As lágrimas escorriam-lhe dos olhos.
— Que droga! — continuou, dando um soco na mesa ao lado. Sem dizer mais nada, sentou-se
na cadeira e afundou o rosto nas mãos.
Ellie consolou Nicole e ficou calada um instante.
— Eu sei como foi doloroso para você perder sua primeira família. Mas Robert, essa situação
é inteiramente diferente. Ninguém vai fazer mal a mim e a Nicole.
Ellie atravessou a sala e pôs os braços em volta dele.
— Não estou dizendo que seja uma decisão fácil, Robert. Mas estou convencida de que é a
coisa certa para Nicole e para mim.
Robert retribuiu o abraço de Ellie, mas sem muito entusiasmo.
— Não vou impedir você e Nicole de irem — disse, resignado, depois de um instante. — Mas
não sei o que eu vou fazer. Gostaria de pensar nisso nas próximas horas enquanto estivermos
em Avalon.

— Tudo bem, querido — respondeu Ellie. — Mas, por favor, não se esqueça de que Nicole e
eu precisamos de você mais do que seus pacientes. Você é o único marido e pai que nós
temos.

Nicole não conseguia conter sua excitação. Quando deu os últimos retoques na decoração no
quarto das crianças, ficou imaginando como seria o quarto quando elas o dividissem com as
duas aves. Timmy, que estava quase do seu tamanho, chegou perto dela para inspecionar seu
trabalho e matraqueou um pouco, mostrando sua aprovação.
— Pense só, Timmy — disse Nicole, sabendo que a ave não podia entender suas palavras,
mas podia interpretar o timbre de sua voz. — Quando Richard e eu voltarmos, traremos seus
novos companheiros de quarto.
— Está pronta, Nicole? — perguntou Richard. — Está quase na hora de sairmos.
— Estou, querido. Estou aqui no quarto das crianças. Por que você não vem dar uma olhada?
Richard enfiou a cabeça pela porta e fez uma inspeção superficial na nova decoração.
— Ótimo, maravilhoso. Agora precisamos nos mexer. Essa operação vai requerer uma
cronometragem perfeita.
Quando os dois andavam para O Porto, Richard informou a Nicole que não tivera mais
notícias do Hemicilindro Norte. A falta de notícias podia indicar que Joana e Eleonor estavam
muito envolvidas na fuga, ou muito perto de um possível inimigo, ou então que a realização da
fuga estivesse sendo ameaçada. Nicole não se lembrava de ter visto Richard tão nervoso
assim, e tentou acalmálo.
— Até agora não sabemos se Robert está vindo? — perguntou ela um pouco depois, quando
eles se aproximavam do submarino.
— Não. E não sabemos nada da reação dele quando Ellie lhe expôs o plano. Eles apareceram
juntos em Avalon, conforme combinado, mas estavam cuidando dos pacientes. Joana e Eleonor
não tiveram oportunidade de conversar com Ellie depois que ajudaram Nai a tirar Benjy da
enfermaria.
Richard havia checado o submarino pelo menos duas vezes no dia anterior. No entanto, deu um
suspiro de alívio quando o sistema operacional funcionou e o submarino deslizou na água.
Quando submergiram nas águas do mar Cilíndrico, Richard e Nicole permaneceram em
silêncio, cada um deles pensando a seu modo na reunião emocionante que ocorreria dentro de
uma hora ou menos.
Haverá alegria maior, pensou Nicole, do que reunir os filhos depois de esperar não os ver
nunca mais? Imagens de seus seis filhos lhe vieram à cabeça. Pensou em Geneviève, sua
primeira filha, nascida na Terra em conseqüência de sua união com o príncipe Henry. Depois
pensou na serena Simone, que fora deixada em Nodo com um marido quase sessenta anos mais
velho. Depois das duas meninas mais velhas vinham mais quatro filhos ainda vivendo em
Rama: sua difícil filha Katie, sua meiga Ellie, e os dois filhos que tivera com Michael
O'Toole, Patrick e Benjy, este último com retardo mental. Eles são tão diferentes. Cada um
deles um milagre, a seu próprio modo.

Eu não acredito em verdades universais, refletiu Nicole, enquanto o submarino se aproximava


do túnel sob a parede que fora outrora um habitat ave/séssil, mas não pode haver muitos seres
humanos que tenham vivido a experiência singular de serem pais sem serem irrevogavelmente
modificados pelo processo. Certamente, todos nós pensamos, quando nossos filhos se tornam
adultos, o que fizemos ou deixamos de fazer, que contribuiu ou deixou de contribuir, para a
felicidade desses seres especiais que trouxemos ao mundo.

Nicole estava numa excitação enorme. Quando Richard checou o relógio e começou a
manobrar o submarino para a posição em que se daria o encontro, suas lembranças mais
recentes de Ellie, Patrick e Benjy dançaram entre as lágrimas que enchiam seus olhos. Nicole
apertou a mão de Richard quando a embarcação subiu à tona.
Pela janela, eles viram oito figuras de pé, à beira d'água, na localização indicada. Quando a
água parou de correr pelo vidro da janela, Nicole reconheceu Ellie, seu marido Robert,
Eponine, Nai segurando a mão de Benjy, e as três crianças pequenas, inclusive sua neta, que
recebera seu nome e que ela ainda não conhecia. Nicole bateu no vidro, embora soubesse que
ninguém poderia ouvir nem ver nada de tão longe.
Richard e Nicole ouviram os tiros assim que abriram a porta. Robert Turner, preocupado,
olhou para trás e levantou a filhinha Nicole do chão. Ellie e Eponine pegaram os gêmeos de
Nai Watanabe. Galileu reagiu a Eponine e foi repreendido pela mãe, que estava tentando guiar
Benjy para o submarino.
Houve outra rajada de balas, dessa vez mais perto, quando o grupo entrava no navio. Não
houve tempo para abraços.
— Max disse para sairmos assim que todos estiverem a bordo — disse Ellie apressada para
os pais. — Ele e Patrick estão agüentando os soldados enviados para nos capturar.
Richard estava se preparando para fechar a porta quando duas figuras armadas surgiram dos
arbustos próximos.
— Apronte-se para dar a partida — gritou Patrick, dando dois tiros com seu rifle. — Eles
estão logo atrás de nós.
Max caiu, mas Patrick carregou o amigo ferido pelos últimos cinqüenta metros até o
submarino. Três soldados da colônia atiraram no navio quando ele submergiu no fosso.
Durante um instante ninguém a bordo deu uma palavra. Depois, o compartimento mínimo
explodiu numa confusão de sons. Todos gritavam e choravam. Nicole e Robert debruçaram-se
sobre Max, que estava sentado contra a parede.
— Você está muito ferido? — perguntou Nicole.
— É claro que não — disse Max, impetuosamente. — Foi só uma bala solitária que me pegou
não sei onde. É preciso muita pólvora para matar um filho da puta como eu.
Quando Nicole virou-se para trás, viu Benjy ao seu lado.

— Ma-mãe — disse ele com os braços estirados e o corpo maciço tremendo de alegria.
Nicole e Benjy ficaram abraçados por longo tempo no centro do compartimento. Os suspiros
de felicidade do rapaz refletiam o sentimento de todas as pessoas do submarino.

Enquanto estavam a bordo do submarino, com os recém-chegados sentindo-se em trânsito


entre dois mundos alienígenas, eles trataram quase o tempo todo de assuntos pessoais. Nicole
conversou em separado com cada um dos filhos e segurou sua netinha pela primeira vez. A
pequena Nicole não sabia o que fazer com aquela mulher de cabelos grisalhos querendo
abraçá-la e beijá-la.
— Esta é sua avó — dizia Ellie, tentando persuadi-la a corresponder ao carinho de Nicole. —
Ela é minha mãe, Nikki, e tem o mesmo nome que você.
Nicole sabia o suficiente sobre crianças para compreender que a menina levaria algum tempo
para aceitá-la. De início houve uma certa confusão com a repetição do nome, e, toda vez que
alguém dizia Nicole, avó e neta olhavam em volta. Mas depois Ellie e Robert começaram a
chamar a filha de Nikki e o resto do grupo fez o mesmo.
Antes do submarino chegar a Nova York, Benjy mostrou à mãe que sua leitura havia
melhorado bastante. Nai era uma excelente professora. Benjy trouxera seus livros na mochila,
uma coleção dos contos de Hans Christian Andersen escritos havia três séculos. Sua história
favorita era "O patinho feio", que ele leu toda, para grande alegria da mãe e da professora,
sentada ao seu lado. Sua voz encheu-se de entusiasmo quando o patinho feio rejeitado
transformou-se num belo cisne.
— Estou muito orgulhosa de você, querido — disse Nicole secando as lágrimas quando Benjy
finalmente terminou a leitura. — E quero agradecer a você, Nai, do fundo do meu coração.
— Foi extremamente gratificante trabalhar com Benjy — respondeu a tailandesa. — Eu tinha
me esquecido como é emocionante ensinar um aluno atento e interessado.
Robert Turner limpou o ferimento de Max Puckett e retirou a bala. O curativo foi assistido
pelos gêmeos Watanabe, de cinco anos, que ficaram fascinados com as entranhas de Max. O
agressivo Galileu ficou empurrando para poder ver melhor, e Nai teve de interferir a favor de
Kepler em duas brigas.
O dr. Turner disse que o ferimento de Max não era sério, como o próprio Max já pressentira, e
prescreveu um curto período de repouso.
— Creio que vou ter de sossegar um pouco — falou Max, piscando para Eponine. — Aliás,
era exatamente isso que eu estava planejando fazer. Acho que não deve haver muitos porcos
ou galinhas nessa cidade alienígena de arranhacéus. E não conheço nada sobre biotas.
Nicole conversou um pouco com Eponine, logo antes da chegada do submarino em O Porto,
agradecendo à antiga professora de Ellie por tudo o que ela e Max haviam feito pela família.
Eponine aceitou os agradecimentos gentilmente, e disse a Nicole que Patrick fora
"absolutamente fantástico" nos preparativos da fuga.
— Ele é um rapaz maravilhoso — disse ela.
— E como está a sua saúde? — perguntou Nicole delicadamente. A francesa deu de ombros.

— Nosso bom médico diz que o vírus RV-41 ainda está lá, esperando uma oportunidade para
tomar conta do meu sistema imunológico. Quando isso acontecer, terei entre seis meses e um
ano de vida.

Patrick contou para Richard que Joana e Eleonor tinham tentado desviar a atenção dos
soldados de Nakamura fazendo uma barulhada, como combinado, e que certamente foram
capturadas e destruídas.
— Sinto muito sobre Joana e Eleonor — disse Nicole para Richard no único instante em que
os dois tiveram tempo para se falar a bordo do submarino. — Sei quanto esses robôs
significavam para você.
— Elas cumpriram a sua missão — observou Richard, forçando um sorriso. — Afinal de
contas, não foi você quem me disse um dia que elas não eram como gente de verdade?
Nicole levantou-se e deu um beijo no marido.

Nenhum dos foragidos estivera em Nova York quando adulto. Os três filhos de Nicole haviam
nascido na ilha e passado seus primeiros anos de vida lá, mas a criança vê os lugares de modo
muito diferente do adulto. Até mesmo Ellie, Patrick e Benjy ficaram perplexos quando
desceram do submarino e viram as silhuetas finas e altas elevando-se para o céu de Rama,
quase escuro agora.
Max Puckett ficou sem fala, o que raramente lhe acontecia, segurando a mão de Eponine,
assombrado com as altas torres subindo mais de duzentos metros acima da ilha.
— Isso é demais para um fazendeiro de Arkansas — disse ele depois de algum tempo,
sacudindo a cabeça.
Max e Eponine foram seguindo o cortejo que se encaminhava para a toca que Richard e Nicole
haviam transformado em um apartamento multifamiliar a ser compartilhado por todos.
— Quem construiu tudo isso? — perguntou Robert Turner para Richard quando o grupo fez
uma breve parada em frente a um gigantesco poliedro. Robert estava cada vez mais
apreensivo. De início relutara em acompanhar Ellie e Nikki, e agora estava tentando se
convencer de que cometera um grande erro.
— Provavelmente os engenheiros de Nodo — respondeu Richard. — Mas não se pode ter
certeza. Depois os seres humanos fizeram novas construções no seu habitat. É possível que as
pessoas ou as coisas que viveram aqui muito tempo atrás tenham construído alguns ou todos
esses fantásticos edifícios.
— Onde eles estão agora? — perguntou Robert de novo, um tanto assustado com a
possibilidade de encontrar seres com a tecnologia necessária para criar construções tão
impressionantes.
— Não há como saber. Segundo a Águia, essa espaçonave Rama tem feito viagens para
descobrir espécies que viajam pelo espaço há milhares de anos. Em algum lugar na nossa
parte da galáxia existe outro viajante espacial que se sentiria confortável num ambiente como
este. Quem era, ou é, essa criatura e por que ela queria viver no meio de arranha-céus
incríveis é um enigma que provavelmente nunca será decifrado.
— E as aves e as octoaranhas, tio Richard? — perguntou Patrick. — Ainda estão vivendo aqui
em Nova York?

— Eu não vi nenhuma ave na ilha desde que cheguei, com exceção, é claro, dos filhotes que
estamos criando. Mas ainda há umas octoaranhas por aí. Sua mãe e eu encontramos umas doze
quando explorávamos por trás da tela preta.

Naquele instante, um biota-centopéia aproximou-se do grupo, vinda de uma ruela lateral.


Richard iluminou o caminho com sua lanterna. Robert Turner congelou de medo, mas seguiu as
instruções de Richard e saiu do caminho para o biota passar.
— Arranha-céus construídos por fantasmas, octoaranhas, biotascentopéias — resmungou
Robert. — Que lugar encantador!
— Na minha opinião é muito melhor do que viver sob o jugo daquele tirano Nakamura —
disse Richard. — Pelo menos somos livres e podemos tomar nossas próprias decisões.
— Wakefield — gritou Max Puckett de trás da fila. — O que aconteceria se não saíssemos do
caminho daquele biota-centopéia?
— Não sei ao certo, Max. Mas provavelmente ele passaria por cima de nós, ou em volta,
como se fôssemos objetos inanimados.

Desta vez foi Nicole quem serviu de guia turístico quando chegaram à toca, mostrando as
acomodações reservadas para cada um do grupo. Havia um quarto para Max e Eponine, outro
para Ellie e Robert, um terceiro, onde fora colocada uma divisória, para Patrick e Nai, e um
outro grande para as crianças, Benjy e as duas aves. Em uma salinha pequena seriam feitas as
refeições comunitárias.
Enquanto os adultos tiravam das mochilas seus escassos pertences, as crianças tiveram seu
primeiro contato com Tammy e Timmy. As aves não sabiam como agir com esses seres
humanos, principalmente com Galileu, que insistia em puxar ou apertar qualquer coisa que
tocasse. Depois de uma hora desse tipo de brincadeira, Timmy deu um ligeiro arranhão em
Galileu com uma de suas garras, à guisa de aviso, e o menino fez um escândalo.
— Eu não entendo — disse Richard, desculpando-se com Nai. — As aves são sempre muito
mansas.
— Eu entendo — retrucou Nai. — Galileu deve ter feito alguma arte — completou ela,
suspirando. — É incrível. A gente educa duas crianças exatamente da mesma forma e elas
crescem tão diferentes. Kepler é tão bom que parece um anjo; preciso até ensiná-lo a se
defender. E Galileu não presta a menor atenção ao que lhe digo.
Quando todos terminaram de arrumar suas coisas, Nicole mostrou o resto da casa: dois
banheiros, os corredores, os tanques suspensos onde a família tinha ficado na época da alta
aceleração entre a Terra e Nodo, e finalmente o Salão Branco, com a tela preta e o teclado,
que também servia de quarto de dormir para Richard e Nicole. Richard demonstrou como a
tela preta funcionava quando acionada, e recebeu uma hora depois alguns brinquedinhos para
as crianças. Deu a Robert e a Max a cópia de um glossário de comando com instruções para o
teclado.

As crianças dormiram logo depois do jantar, e os adultos se reuniram no Salão Branco. Max
fez perguntas sobre as octoaranhas. Quando Nicole começou a descrever suas aventuras por
trás da tela preta e disse que tinha sentido dores no coração, Robert ficou preocupado e logo
depois foi examiná-la no quarto.

Ellie ajudou Robert no exame. Ele trouxera o máximo de equipamento que cabia na sua
mochila, inclusive todos os instrumentos e monitores em miniatura necessários para um
eletrocardiograma. Os resultados não foram bons, mas não tão ruins quanto Nicole pensava.
Robert informou ao resto da família que os anos tinham definitivamente desgastado o coração
de Nicole, mas não achava que ela precisaria ser operada num futuro próximo. Aconselhou
Nicole a levar a vida com calma, mesmo sabendo que sua sogra provavelmente ignoraria suas
recomendações.
Quando todos foram dormir, Richard e Nicole afastaram os móveis para colocar os
colchonetes no chão, e deitaram-se lado a lado, de mãos dadas.
— Você está feliz? — perguntou Richard.
— Estou, muito. É uma maravilha estar rodeada de todos os nossos filhos.
— Debruçou-se sobre Richard e lhe deu um beijo. — E estou também exausta, meu marido,
mas não vou dormir sem primeiro agradecer a você por ter conseguido tudo isso.
— Eles também são meus filhos.
— Eu sei, querido — falou Nicole, deitando-se de novo. — Mas sei também que você não
teria feito tudo isso se não fosse por mim. Você se contentaria em ficar aqui com os filhotes,
sua parafernália e os mistérios extraterrestres.
— Talvez, mas também estou felicíssimo por estar com todos na nossa toca... A propósito,
você teve oportunidade de falar com Patrick sobre Katie?
— Só ligeiramente — respondeu Nicole com um suspiro. — Pude ver pela expressão dele que
ainda está muito preocupado com a irmã.
— Assim como nós todos — acrescentou Richard. Os dois ficaram em silêncio por um
instante, e então Richard sentou-se apoiado nos cotovelos.
— Quero que você saiba que achei nossa neta absolutamente maravilhosa.
— E eu também — falou Nicole, dando uma risada.
— Ei, será que com Nikki aqui não vou poder chamar você de Nikki nem nos momentos
especiais?
Nicole virou-se para olhar Richard, que estava com um sorriso matreiro que ela conhecia de
longa data.
— Trate de dormir. Estou emocionalmente exausta para fazer qualquer outra coisa esta noite.

No começo, o tempo passou muito depressa. Havia muito a fazer, muito território fascinante a
ser explorado. Embora fosse eternamente escuro na misteriosa cidade acima deles, a família
fazia excursões regulares a Nova York. Quase todos os lugares da ilha tinham uma história
especial que Richard ou Nicole contavam.

— Foi aqui — disse Nicole numa tarde, iluminando com a lanterna a imensa treliça pendurada
entre dois arranha-céus como uma teia de aranha — que eu salvei uma ave que tinha sido
apanhada, estava presa, e que depois me convidou para ir à sua toca.

— Ali — disse ela em outra ocasião, quando estavam num grande celeiro com poços e esferas
estranhas —, fiquei presa muitos dias e achei que ia morrer.
A grande família desenvolveu um conjunto de regras para manter as crianças seguras. Essas
regras não eram necessárias para Nikki, que não saía de perto da mãe e do embevecido avô,
mas os gêmeos Kepler e Galileu eram difíceis de serem contidos. A energia deles parecia
infinita. Uma vez foram encontrados balançando-se nas redes dos tanques suspensos, como se
as redes fossem trampolins. Outra vez pediram emprestado as lanternas da família e saíram
sozinhos para explorar Nova York. Foram dez horas de tensão até eles serem localizados no
labirinto de ruas e vielas do outro lado da ilha.
As aves treinavam seu vôo quase diariamente. As crianças adoravam passear com elas nas
praças, onde Tammy e Timmy tinham mais espaço para mostrar seus progressos. Richard
sempre levava Nikki para ver as aves voando. Na verdade, ele levava a neta para todos os
lugares aonde ia. De vez em quando, ela andava, mas em geral Richard a carregava numa
trapizonga confortável que ele colocava nas costas. O casal sui generis era inseparável.
Richard também passou a ser professor de Nikki, e logo depois anunciou para todos que sua
neta era um gênio matemático.
À noite ele contava para Nicole as últimas façanhas de Nikki.
— Você sabe o que ela fez hoje? — perguntava, em geral quando os dois estavam sozinhos na
cama.
— Não, querido — dizia sempre Nicole, sabendo muito bem que nem ela nem Richard
dormiriam antes que ele contasse.
— Eu lhe perguntei quantas bolas ela teria se já tinha três e eu lhe desse mais duas (pausa
dramática). E sabe o que ela respondeu? (outra pausa dramática) Cinco! Ela disse cinco. E
essa menininha acabou de fazer dois anos...
Nicole estava encantada com o interesse de Richard por Nikki. Tanto para a menininha quanto
para aquele homem mais velho, a combinação era perfeita. Como pai, ele nunca conseguira
superar seus próprios problemas emocionais reprimidos nem seu agudo senso de
responsabilidade, portanto era a primeira vez na vida que ele sentia a alegria do amor
verdadeiramente inocente. O pai de Nikki, por outro lado, era um grande médico, mas não era
uma pessoa muito calorosa, e não dava muito valor a esses momentos de descontração que os
pais devem ter com os filhos.
Patrick e Nicole tiveram várias conversas sobre Katie que deixaram Nicole muito deprimida.
Patrick não escondeu da mãe que Katie estava envolvida nas maquinações de Nakamura, que
bebia muito e que era sexualmente promíscua. Mas não contou que Katie gerenciava o
prostíbulo de Nakamura, nem que achava que ela se tornara viciada em drogas.

10

Essa existência quase perfeita em Nova York foi interrompida numa manhã em que Richard e
Nikki passeavam juntos pelas muralhas ao norte da ilha. Aliás, foi a menina quem viu primeiro
a silhueta dos navios e apontou para a água escura.

— Olhe, vô. Nikki está vendo uma coisa.


Os olhos cansados de Richard não conseguiram distinguir nada no escuro, e a luz de sua
lanterna não alcançava a distância da coisa que Nikki estava vendo. Richard pegou os potentes
binóculos que sempre carregava e realmente viu dois navios no meio do mar Cilíndrico.
Colocou Nikki nas costas e correu para a toca.
Os outros membros da família estavam acordando, e levaram um certo tempo para
compreender por que Richard estava tão alarmado.
— Mas quem poderia estar no navio? — disse ele. — Especialmente no lado norte? Só pode
ser um grupo de exploração enviado por Nakamura.
Fizeram um concilio familiar à mesa do café e todos concordaram que estavam enfrentando
uma crise séria. Quando Patrick confessou que tinha visto Katie no dia da fuga para se
despedir dela, e que ela lhe fizera umas perguntas a partir de comentários seus, Nicole e os
outros ficaram em silêncio.
— Eu não disse nada específico — falou Patrick, desculpando-se —, mas foi burrice minha...
Katie é muito esperta. Depois que todos nós desaparecemos, ela deve ter juntado as peças do
quebra-cabeça.
— E o que vamos fazer agora? — perguntou Robert Turner com voz apreensiva. — Katie
conhece Nova York muito bem, pois era quase adolescente quando saiu daqui. E pode trazer
os homens de Nakamura diretamente para a nossa toca. Seremos presas fáceis para eles.
— Há algum outro lugar para onde possamos ir? — perguntou Max.
— Não — respondeu Richard. — A antiga toca das aves está vazia, mas não teríamos meios
de nos alimentar lá. A toca das octoaranhas também estava vazia quando estive lá há alguns
meses, mas não voltei mais ali desde que Nicole chegou em Nova York. Porém, de acordo
com o ocorrido comigo e com Nicole quando saímos para explorar a região em volta, nossas
amigas de tentáculos dourados e pretos ainda devem estar por aí. E mesmo que não estejam
vivendo na sua antiga toca, teríamos problemas para conseguir comida se nos mudássemos
para lá.
— E a área atrás da tela preta, tio Richard? — perguntou Patrick. — Você disse que é lá que
eles fabricam nossa alimentação. Talvez a gente consiga encontrar uns dois quartos por lá...
— Não tenho muita ilusão quanto a isso — falou Richard depois de algum tempo —, mas sua
sugestão é provavelmente a nossa única opção a essa altura.
A família decidiu que Richard, Max e Patrick fariam o reconhecimento da área por trás da tela
preta, para tentar descobrir onde a comida dos seres humanos era produzida e para determinar
se havia outro lugar adequado para morarem. Robert, Benjy, as mulheres e as crianças
ficariam na toca. A tarefa deles era começar a elaborar os preparativos para uma rápida
evacuação de seu quartel-general, caso se tornasse necessário.

Antes de partir, Richard terminou de testar um novo sistema de rádio que havia projetado nas
horas vagas. O rádio era forte o bastante para os exploradores e o resto da família se
manterem em contato durante todo o tempo em que estivessem separados. Em função da
possibilidade de comunicação por rádio, Richard e Nicole conseguiram convencer Max
Puckett a deixar sua espingarda na toca.

Os três homens não tiveram dificuldade para seguir o mapa do computador de Richard e
chegar à sala das caldeiras que Richard e Nicole haviam visto na sua exploração anterior.
Max e Patrick ficaram olhando assombrados para as doze caldeiras imensas, o amplo setor de
matérias-primas muito bem organizado e a variedade de biotas andando por ali. A fábrica
estava em grande atividade. Na verdade, cada uma das caldeiras estava ocupada com algum
tipo de processo de fabricação.
— Tudo bem — disse pelo rádio para Nicole lá na toca. — Estamos aqui e estamos prontos.
Faça o pedido do jantar para vermos o que acontece.
Menos de um minuto depois, uma das caldeiras mais próximas dos três homens terminou sua
atividade. Nesse meio-tempo, não longe da barraca por trás das caldeiras, três biotas
parecendo um vagão com mãos começaram a mexer na reserva de matéria-prima e a pegar
rapidamente pequenas quantidades de vários artigos diferentes. Depois convergiram para o
sistema da caldeira que estava desativado perto de Richard, Max e Patrick, e descarregaram
os containers na esteira rolante que entrava na caldeira. Imediatamente, os homens ouviram a
caldeira começar a funcionar. Um biota comprido e esguio, parecendo três grilos amarrados
em fila, cada um deles com uma carapaça arredondada, subiu na esteira rolante quando o curto
processo de fabricação estava quase no final. Passado um instante, a caldeira parou
novamente e o material processado saiu pela esteira rolante. O biota-grilo segmentado retirou
uma concha arredondada de sua parte traseira, colocou toda a comida humana nas costas e
saiu rapidamente.
— Que coisa incrível — disse Max ao ver o biota- grilo desaparecer pelo corredor por trás
da barraca. Antes que qualquer um deles dissesse alguma outra coisa, outro conjunto de
vagões com mãos carregaram as esteiras rolantes com varas grossas e longas, e, em menos de
um minuto, a caldeira que processara a comida funcionava com outra finalidade.
— Que sistema fantástico — exclamou Richard. — Deve haver um processo complexo de
interrupção, sendo o pedido de comida sempre prioritário. Não posso acreditar que...
— Pare um instante — interrompeu Max — e repita o que você acabou de dizer em inglês
normal.
— Nós temos sub-rotinas de tradução automática lá na toca, que eu programei quando
estivemos aqui uns anos atrás — disse Richard entusiasmado. — Quando Nicole digitava
galinha, batata e espinafre no seu computador, uma lista de comandos do teclado
correspondendo às complexas químicas daqueles alimentos específicos era registrada no seu
buffer. Quando eu fazia sinal de que estávamos prontos, ela digitava aquela seqüência de
comandos no teclado. Esses comandos eram imediatamente recebidos aqui, e o que
obtínhamos era a resposta a eles. Quando todos os sistemas de processamento estavam em
atividade, entretanto, o equivalente ramaiano de um computador desta fábrica reconhecia que
o pedido era de comida, e dava prioridade a ele.

— Você quer dizer, tio Richard — falou Patrick —, que o computador que controla isso aqui
interrompeu a operação daquela caldeira para ela fazer a nossa comida?

— É isso mesmo — respondeu Richard.


Max se afastara um pouco e estava observando as outras caldeiras da imensa fábrica. Richard
e Patrick foram juntar-se a ele.
— Quando eu era um menininho de oito ou nove anos — disse Max —, meu pai e eu fomos
acampar pela primeira vez nas montanhas Ozarks, a várias horas de distância da nossa
fazenda. A noite estava linda, com o céu todo estrelado. Eu me lembro que estava deitado de
barriga para cima no meu saco de dormir, olhando aquelas coisinhas brilhando no céu...
Naquela noite, tive um pensamento muito profundo para um menino de Arkansas daquela
idade. Fiquei pensando quantas crianças alienígenas, de alguma parte do universo, estariam
olhando as estrelas naquele exato momento e percebendo, pela primeira vez, como o domínio
delas era pequeno comparado à totalidade do cosmo.
Max virou-se e sorriu para seus dois amigos.
— Essa foi uma das razões para eu continuar fazendeiro — disse, com uma risada. — Com as
minhas galinhas e porcos, eu era sempre importante. Era eu que lhes dava comida. Era um
grande acontecimento quando o velho Max aparecia no galinheiro...
Max fez uma pausa e os outros ficaram em silêncio.
— Acho que no fundo eu sempre quis ser astrônomo — continuou — para ver se podia
entender os mistérios do universo. Mas toda vez que pensava nos bilhões de anos e trilhões de
quilômetros, ficava deprimido. Não conseguia agüentar a sensação de completa e total
insignificância que tomava conta de mim. Era como se uma voz dentro de mim dissesse sem
cessar: "Puckett, você é um cocô. Você é um zero absoluto."
— Mas conhecer essa insignificância, e especialmente ser capaz de medila, torna os seres
humanos muito especiais — disse Richard com serenidade.
— Agora estamos falando de filosofia — replicou Max —, e eu me sinto completamente fora
do meu elemento. Sinto-me bem com os animais da roça, com tequila e até mesmo com
aqueles temporais terríveis do centro-oeste. Essas coisas aí — disse Max, balançando os
braços na direção das caldeiras e da fábrica — me amedrontam muito. Se quando me inscrevi
para aquela colônia marciana soubesse que veria máquinas mais inteligentes do que os
homens...
— Richard, Richard — dizia Nicole pelo rádio, com voz aflita. — Temos uma emergência
aqui. Ellie acabou de voltar da costa norte e viu quatro barcos grandes prontos para
desembarcar... Ellie disse que tem certeza de ter visto um dos homens com uniforme de
polícia... E disse também que viu uma espécie de arco-íris grande no sul... Vocês podem voltar
para cá depressa?
— Não, não podemos — respondeu Richard. — Ainda estamos na sala das caldeiras.
Devemos estar a pelo menos três ou quatro quilômetros de distância... Ellie disse quantas
pessoas havia em cada barco?

— Acho que de dez a doze, papai — disse Ellie. — Não fiquei lá contando... Mas não foi só
os barcos que vi quando estava lá no alto. Quando eu vinha correndo para a toca, o céu do
lado sul iluminou-se com várias cores que deram lugar a um arco-íris gigantesco... Foi perto
de onde você disse que o Grande Chifre devia estar.

Dez segundos depois, Richard gritou no rádio:


— Prestem atenção, Nicole, Ellie, todos vocês. Saiam imediatamente da toca. Levem as
crianças, os filhotes de aves, os melões, o material séssil, as duas espingardas, toda a comida
e o máximo possível de coisas pessoais que vocês puderem carregar. Deixem as nossas coisas
aí; já temos o bastante nas costas para sobreviver em uma emergência. Vão diretamente para a
toca das octoaranhas e esperem por nós na sala grande, que costumava ser uma galeria de
fotografia... As tropas de Nakamura irão nos procurar primeiro na toca. Quando eles não nos
encontrarem e se Katie estiver junto, talvez nos procurem na toca das octoaranhas. Mas acho
que eles não vão atravessar todos aqueles túneis...
— E você, Max e Patrick? — perguntou Nicole.
— Nós vamos voltar o mais depressa possível. Se alguém... aliás, Nicole, deixe um
transmissor ligado no volume máximo no Salão Branco e outro no quarto das crianças. Assim,
saberemos se há alguém na toca... De qualquer forma, como eu ia dizendo, se nossa casa não
tiver sido invadida, nós nos encontraremos logo. Se os homens de Nakamura estiverem
ocupando nossa toca, tentaremos encontrar outra entrada aqui embaixo para a toca das
octoaranhas. Deve haver uma...
— Tudo bem, meu querido — interrompeu Nicole. — Temos de começar a arrumar as
coisas... Vou deixar o receptor ligado caso você precise de nós.
— Então você acha que estaremos mais seguros na toca das octoaranhas? — disse Max,
depois que Richard desligou o transmissor.
— É uma chance — respondeu Richard sorrindo. — Há muitos pontos desconhecidos por trás
da tela. E nós temos certeza de que não estaremos seguros se a polícia e as tropas de
Nakamura nos encontrarem... As octoaranhas talvez nem estejam vivendo mais na toca. Além
do mais, Nicole disse muitas vezes que não temos uma prova irrefutável de que elas sejam
hostis.

Os homens saíram dali o mais depressa possível. A certa altura, deram uma parada para
Patrick transferir um pouco da carga da mochila de Richard para a dele. Richard e Max
suavam muito quando chegaram no Y do corredor.
— Precisamos parar um instante — disse Max a Patrick, que ia na frente dos dois homens
mais velhos. — Seu tio Richard precisa descansar.
Patrick tirou uma garrafa de água de sua mochila e passou-a para o tio. Richard bebeu
avidamente, secou a testa com um lenço e um minuto depois começou a correr de novo na
direção da toca.
A uns quinhentos metros da pequena plataforma por trás da tela preta, o receptor de Richard
começou a captar ruídos indistintos do interior da toca.
— Talvez alguém da família tenha esquecido alguma coisa importante — falou Richard,
tentando ouvir melhor — e tenha voltado para pegar. Pouco depois, os três homens ouviram
uma voz que não conseguiram identificar. Ficaram parados e esperaram.

— Parece que algum tipo de animal estava vivendo aqui — disse uma segunda voz. — Por
que não vem dar uma olhada?

— Droga! — disse a segunda voz. — Eles estiveram aqui recentemente... Há quanto tempo
será que partiram?
— Capitão Bauer! — gritou alguém. — O que o senhor quer que eu faça com toda esse
material eletrônico?
— Deixe aí por enquanto — respondeu a segunda voz. — Quando os outros soldados
chegarem, dentro de alguns minutos, decidiremos o que fazer.
Richard, Max e Patrick sentaram-se quietos no túnel escuro. Durante cerca de um minuto não
ouviram nada no receptor. Aparentemente nenhum dos membros do grupo de busca estava no
Salão Branco ou no quarto das crianças naquela hora. Depois ouviu-se a voz de Franz Bauer
de novo.
— O que é isso, Morgan? — perguntou Bauer. — Mal consigo ouvir você... Há uma espécie
de ruído... O quê? Fogos de artifício? Cores?... O que você está dizendo? Tudo bem. Tudo
bem. Vamos subir imediatamente.
Durante uns quinze segundos o receptor ficou em silêncio.
— Ah, aí está você, Pfeiffer — disse o capitão Bauer. — Junte os outros homens e vamos
voltar lá para cima. Morgan disse que viu uns fogos incríveis no céu do lado sul. Os soldados
já estavam impressionados com os arranha-céus e o escuro. Eu vou subir para acalmar os
nervos deles.
— Esta é a nossa chance — sussurrou Richard, levantando-se. — Eles vão ficar fora da toca
alguns minutos. — Começou a correr e depois parou. — Talvez a gente precise se separar...
Vocês se lembram de onde fica a toca das octoaranhas?
Max sacudiu a cabeça.
— Eu nunca estive lá...
— Olhe aqui — disse Richard, passando seu computador portátil para Max. — Digite um M e
um P para ter uma vista geral de Nova York. A toca das octoaranhas está marcada com um
círculo vermelho... Se você apertar um L, seguido de outro L, vai aparecer um mapa do
interior da toca... Agora vamos, enquanto ainda temos algum tempo.
Richard, Max e Patrick não encontraram soldados dentro da toca. Porém dois guardas estavam
postados a poucos metros de distância da saída para Nova York. Felizmente os guardas
estavam tão embevecidos com os fogos no céu de Rama, que não ouviram os três homens
subirem as escadas por trás deles. Como medida de segurança, os três se separaram, cada um
tomando um caminho diferente para chegar à toca das octoaranhas.
Richard e Patrick chegaram ao seu destino com um minuto de diferença um do outro, mas Max
se atrasou. Por azar, o caminho que ele escolheu deu numa das praças onde cinco a seis
soldados estavam vendo os fogos. Max correu por uma viela e escondeu-se atrás de um dos
edifícios. Abriu o computador e estudou o mapa no monitor, tentando imaginar um caminho
alternativo para a toca das octoaranhas.

Enquanto isso, o show espetacular dos fogos continuava. Max olhou para cima e ficou
maravilhado quando uma grande bola azul explodiu, jogando centenas de raios de luz azul em
todas as direções. Durante quase um minuto, Max ficou olhando hipnotizado aquela exibição.
Era mais linda do que tudo que ele já tinha visto na Terra.

Quando ele finalmente chegou na toca das octoaranhas, desceu a rampa depressa e entrou na
sala da catedral, da qual saíam os quatro túneis que iam dar nas outras partes da toca. Max
digitou dois Ls no computador e o mapa do interior da toca apareceu no monitor minúsculo.
Ele ficou tão distraído com o mapa que não percebeu logo o barulho de arrastar de escovas
mecânicas, seguido de um gemido baixinho e agudo.
Max só olhou para cima quando o barulho ficou mais alto. Quando finalmente levantou a
cabeça, a octoaranha grande estava de pé a uns cinco metros dele. Ao ver aquela criatura, Max
sentiu um arrepio na espinha. Ficou imóvel e controlou-se para não sair correndo. O líquido
cremoso da lente única da octoaranha movia-se de um lado para o outro, mas o alienígena não
avançou para Max.
De um dos recortes paralelos nos dois lados da lente jorrou um jato roxo em torno da cabeça
esférica da octoaranha, seguido de jatos de outras cores, todas desaparecendo no segundo
corte paralelo. Quando a mesma cor foi repetida, Max, com o coração batendo tão forte que
parecia que ia pular pela boca, sacudiu a cabeça e disse:
— Eu não compreendo.
A octoaranha hesitou um instante e depois levantou dois tentáculos do chão, apontando
claramente na direção de um dos quatro túneis. Como se quisesse reforçar sua indicação, a
octo arrastou-se naquela direção e repetiu o gesto.
Max levantou-se e andou devagarinho na direção do túnel indicado, tentando não se aproximar
muito da octoaranha. Ao chegar na entrada, outra série de raios coloridos passou pela cabeça
do alienígena.
— Muito obrigado — disse Max gentilmente, virando-se e entrando pela passagem.
Ele só parou para olhar o mapa quando já tinha caminhado uns três a quatro metros no túnel.
Enquanto caminhava, as luzes se acendiam automaticamente à sua frente e se apagavam nos
segmentos do túnel pelos quais ele havia passado. Quando finalmente examinou o mapa com
cuidado, descobriu que não estava longe da sala indicada.
Alguns minutos depois, Max entrava com um riso nos lábios na câmara onde o resto da família
estava reunida.
— Vocês não vão acreditar quem eu acabei de ver — disse um instante antes de Eponine
abraçá-lo.
Logo depois que Max acabou de divertir o pessoal com a história de seu encontro com a
octoaranha, Richard e Patrick voltaram para a sala da catedral, parando a cada cem metros
para tentar ouvir atentamente os sons dos alienígenas. Mas não ouviram nada, nem viram ou
ouviram nada que indicasse que os soldados despachados do Novo Éden estivessem nas
vizinhanças. Quase uma hora depois, Richard e Patrick voltaram para junto do grupo a tempo
de participar da discussão sobre o que deveria ser feito em seguida.

A grande família tinha comida bastante para cinco dias, ou talvez seis, se as porções fossem
racionadas com cuidado. Água havia à vontade na cisterna, perto da sala da catedral. Todos
concordaram logo que o grupo de busca do Novo Éden, pelo menos o primeiro deles,
provavelmente não ficaria muito tempo em Nova York. Houve uma ligeira discussão sobre a
possibilidade de Katie ter indicado ou não ao capitão Bauer a localização da toca das
octoaranhas. Sobre um ponto crítico não havia o que discutir: durante um ou dois dias, eles
corriam grande risco de serem descobertos pelos outros humanos. Em conseqüência disso,
exceto para necessidades físicas, ninguém da família saía da sala grande, na qual já estavam
há trinta e seis horas.

No final daquele período, o grupo todo, especialmente os filhotes de aves e os gêmeos,


estavam com uma crise de claustrofobia. Richard e Nai levaram Tammy, Timmy, Benjy e as
crianças pequenas pela passagem, tentando em vão mantê-las quietas, e as afastaram da sala
da catedral, seguindo para o corredor vertical com as estacas salientes que desciam até o
fundo da toca das octoaranhas. Richard, com Nikki nas costas quase o tempo todo, alertou
várias vezes Nai e os gêmeos sobre o perigo da área da qual se aproximavam. Mesmo assim,
logo que o túnel se alargou e eles chegaram ao corredor vertical, o impetuoso Galileu subiu no
buraco em forma de barril antes que sua mãe o pudesse deter. Mas logo ficou paralisado de
medo, e Richard teve de tirar o menino do seu poleiro precário sobre duas estacas, logo
abaixo do nível do passadiço que rodeava a parte superior do imenso abismo. Os filhotes de
ave, felizes por poderem voar de novo, flutuaram livremente pela área e desceram vários
metros no abismo escuro, mas sem afundar demais a ponto de acionar a próxima fileira de luz.
Antes de voltar para o grupo, Richard levou Benjy para uma rápida inspeção do que ele e
Nicole chamavam de museu das octoaranhas. Essa sala grande, a centenas de metros do
corredor vertical, ainda estava completamente vazia. Algumas horas depois, por sugestão de
Richard, metade da grande família mudou-se para o museu, para que houvesse mais espaço
para todos.
No terceiro dia de sua estada na toca das octos, Richard e Max decidiram que alguém devia
tentar descobrir se as tropas da colônia ainda estavam em Nova York. Patrick foi a escolha
lógica para ser o explorador da família. As instruções de Max e de Richard a Patrick foram
bem objetivas: ele deveria ir com cuidado até a sala da catedral e depois subir a rampa para
Nova York. Dali, usando a lanterna e o computador portátil o mínimo possível, devia
atravessar para a costa norte da ilha e ver se os barcos ainda estavam lá. Qualquer que fosse o
resultado de sua investigação, ele deveria regressar diretamente à toca, para dar todas as
informações esperadas.
— Há outra coisa muito importante para você se lembrar — disse Richard. — Se a qualquer
hora você ouvir uma octoaranha ou um soldado, deve voltar imediatamente para cá. Mas deve
tomar um cuidado especial: em hipótese alguma um humano pode ver você descendo para a
toca. Você não pode fazer nada que nos ponha em perigo.

Max insistiu com Patrick para levar uma das duas espingardas. Richard e Nicole não
discutiram. Depois de todos lhe desejarem boa sorte, Patrick partiu para sua missão
exploradora. Mal tinha andado quinhentos metros pelo túnel quando ouviu um barulho à sua
frente. Parou para escutar, mas não conseguiu identificar nada. Algumas centenas de metros
adiante, alguns sons começaram a ficar mais distintos. Patrick ouviu definitivamente o ruído
de escovas se arrastando várias vezes. Ouviu também um barulho de objetos de metal batendo
uns nos outros ou contra a parede. Patrick ficou escutando durante alguns minutos e,
lembrando-se das instruções, voltou para onde estavam seus amigos.

Depois de uma longa discussão, Patrick foi despachado novamente para sua missão
exploratória. Desta vez disseram-lhe para se aproximar o mais possível das octoaranhas e
observá-las em silêncio o máximo que pudesse. Mais uma vez, ele ouviu o arrastar das
escovas à medida que se aproximava da sala da catedral. Mas quando realmente chegou à sala
grande no fundo da rampa, não viu nenhuma octoaranha por lá. Para onde elas foram?,
pensou. Seu primeiro impulso foi virar-se e seguir na direção de onde viera. Mas como não
havia encontrado, nenhuma octoaranha ainda, decidiu que talvez fosse melhor subir a rampa,
sair para Nova York e continuar sua missão.
Patrick ficou chocado ao descobrir, um instante depois, que a saída da toca das octos tinha
sido lacrada com uma espessa combinação de varas de metal e um material semelhante a
cimento. Ele mal podia ver através da tampa, tão pesada que todos os humanos juntos
certamente não conseguiriam levantá-la. Foram as octoaranhas que fizeram isso, pensou
imediatamente, mas por que será que nos prenderam aqui?
Antes de voltar com suas informações, Patrick inspecionou a sala da catedral e viu que um dos
quatro túneis de emergência também fora lacrado com uma espécie de porta grossa ou portão.
Esse deve ser o túnel que levava para o canal, pensou. Patrick permaneceu ali mais uns dez
minutos tentando ouvir o som das octoaranhas, mas não ouviu mais nada.

11

— Então as octoaranhas nunca agiram com hostilidade? E o que vocês dizem disso? Estamos
encurralados — disse Max zangado, sacudindo a cabeça com força. — Eu sabia desde o
começo que era uma burrice vir para cá.
— Por favor, Max — disse Eponine. — Não vamos discutir agora. Ficar brigando com todos
aqui não vai adiantar nada.
Todos os adultos, exceto Nai e Benjy, tinham seguido pela passagem de um quilômetro até a
sala da catedral, para ver o que as octoaranhas haviam feito. Os humanos estavam, na verdade,
trancados dentro da toca. Dois dos três túneis abertos que saíam da câmara davam no corredor
vertical, e eles logo descobriram que o terceiro dava em um depósito grande e vazio, sem
saída.
— É bom a gente pensar em alguma coisa depressa — disse Max. — Nossa comida só vai
durar mais quatro dias, e não temos a menor idéia de como sair daqui.
— Sinto muito, Max — disse Nicole —, mas ainda acho que a decisão de Richard foi certa.
Se tivéssemos ficado na nossa toca, teríamos sido capturados e levados de volta para o Novo
Éden, onde certamente seríamos executados...
— Talvez sim — interrompeu Max — e talvez não... Pelo menos as crianças teriam sido
poupadas. E acho que eles não matariam nem Benjy nem o médico...
— Tudo isso é retórica — falou Richard — e não resolve nosso problema principal. Temos de
pensar agora no que faremos.

— Tudo bem, gênio — disse Max em tom sarcástico. — Até agora o show está sendo seu. O
que você sugere?

Mais uma vez Eponine intercedeu.


— Você está sendo injusto, Max. Não é culpa de Richard estarmos nessa situação... E, como
eu já disse, não adianta...
— Ok, Ok — disse Max, andando na direção da passagem que levava para o depósito. — Vou
entrar nesse túnel para me acalmar e para fumar um cigarro — falou, olhando para Eponine.
— Quer dividir um comigo? Vão sobrar exatamente vinte e nove cigarros depois que
fumarmos este.
Eponine deu um sorriso sem graça para Nicole e Ellie.
— Ele está com raiva de mim porque eu não trouxe todos os nossos cigarros quando saímos
da toca — disse ela com calma. — Não se preocupem... Max tem gênio ruim, mas logo
melhora... Daqui a pouco a gente volta.
— Qual é o seu plano, querido? — perguntou Nicole a Richard, logo depois que Max e
Eponine saíram.
— Não temos muita escolha — disse Richard com ar sombrio. — Um número mínimo de
adultos deve ficar com Benjy, as crianças e as aves, e o resto sai para explorar essa toca o
mais rápido possível... Não consigo acreditar que as octoaranhas realmente pretendam nos
deixar aqui até morrermos de fome.
— Desculpe, Richard — Robert Turner falou pela primeira vez desde que Patrick contara que
a saída para Nova York estava barrada. — Mas você não está de novo partindo do princípio
de que as octoaranhas são de boa paz? Suponha que elas não sejam ou, o que é mais provável
na minha opinião, que a nossa sobrevivência lhes seja totalmente indiferente, e que elas
simplesmente nos trancaram nesta toca para se protegerem de todos os humanos que
apareceram recentemente...
Robert parou, pelo visto tendo perdido o fio da meada.
— O que eu estava tentando dizer — continuou um instante depois — é que as crianças,
inclusive sua neta, estão em perigo tanto psicológico quanto físico na nossa situação atual, e
eu seria contra qualquer plano que as deixasse desprotegidas e vulneráveis...
— Você está certo, Robert — interrompeu Richard. — Vários adultos", inclusive pelo menos
um homem, devem ficar com Benjy e as crianças. Na verdade, Nai deve estar bem ocupada a
essa altura... Por que você, Patrick e Ellie não voltam para junto das crianças agora? Nicole e
eu esperaremos por Max e Eponine e nos encontraremos com vocês.
Richard e Nicole ficaram sozinhos depois que os outros se foram.
— Ellie disse que Robert anda muito irritado — falou Nicole com voz calma —, mas não
sabe expressar sua raiva de forma construtiva... Ele disse a Ellie que acha que essa aventura
foi um erro desde o começo, e passa horas a fio pensando nisso... Ellie disse que está
preocupada com a estabilidade emocional dele.
Richard sacudiu a cabeça.
— Talvez tenha sido um erro. Talvez você e eu devêssemos ter ficado aqui sozinhos para o
resto da vida. Eu só pensei...
Naquele instante Max e Eponine voltaram para a sala.

— Quero me desculpar com vocês dois — disse Max, estendendo a mão. — Creio que fui
dominado pelo medo e pela raiva.

— Obrigada, Max — falou Nicole. — Mas não precisa se desculpar. Seria ridículo pensar
que toda essa gente vá passar uma experiência dessas sem que haja desentendimentos.
Todos estavam juntos no museu.
— Vamos examinar de novo o plano — falou Richard. — Nós cinco vamos descer pelas
estacas e explorar a área em volta da plataforma do metrô. Vamos investigar com bastante
cuidado todos os túneis que encontrarmos. Depois, se não encontrarmos uma saída e se o trem
grande do metrô estiver lá esperando, Max, Eponine, Nicole e eu entraremos nele. Então
Patrick voltará para cá.
— Você não acha que é perigoso nós quatro entrarmos no trem? — perguntou Robert. — Por
que não só dois de vocês primeiro? E se o trem do metrô sair e nunca mais voltar?
— Estamos correndo contra o tempo — respondeu Richard. — Se não tivéssemos tão pouca
comida poderíamos fazer um plano mais cauteloso. Nesse caso, só dois entrariam no trem do
metrô. Mas e se o trem for a mais de um lugar? Como já estava combinado que, por medida de
segurança, exploraremos a área sempre aos pares, poderíamos levar muito tempo para
encontrar o caminho da saída só com duas pessoas procurando.
Fez-se silêncio na sala até Timmy começar a grasnar para sua irmã. Nikki chegou perto das
aves e começou a fazer carinho nas suas asas aveludadas.
— Eu não pretendo ter todas as respostas — disse Richard. — Nem estou subestimando a
gravidade da situação, mas se houver uma forma de sairmos daqui, e Nicole e eu achamos que
deve haver, então é melhor começarmos a procurar logo.
— Presumindo que vocês quatro tomem o trem do metrô — perguntou Patrick —, quanto
tempo devemos esperar por vocês aqui no museu?
— Esta pergunta é difícil — respondeu Richard. — Vocês têm comida para mais quatro dias, e
a água da cisterna deve mantê-los vivos um pouco mais ... Eu não sei, Patrick. Acho que vocês
devem ficar aqui pelo menos dois a três dias... Depois disso, façam como acharem melhor...
Se for possível, pelo menos um de nós voltará para cá.
Benjy seguia a conversa com muita atenção. Ele compreendia mais ou menos o que estava
acontecendo, pois começou a chorar baixinho. Nicole foi confortá-lo.
— Não se preocupe, filho. Tudo vai acabar bem. O homem-criança olhou para a mãe e disse:
— Espero que sim, mamãe, mas estou com medo.
De repente, Galileu Watanabe deu um pulo para o outro lado da sala, onde os dois rifles
estavam encostados na parede.
— Se uma dessas octoaranhas entrar aqui — disse ele tocando no rifle mais próximo, antes de
Max tirá-lo de sua mão —, eu atiro nela. Bangue! Bangue!

Com aqueles gritos, as aves começaram a grasnar e a pequena Nikki a chorar. Depois que
Ellie secou as lágrimas da filha, Max e Patrick colocaram os rifles no ombro e os cinco
exploradores se despediram. Ellie foi até o túnel com eles.

— Eu não queria dizer isso na frente das crianças — falou —, mas o que nós devemos fazer se
virmos uma octoaranha enquanto vocês estiverem fora?
— Tente não entrar em pânico — respondeu Richard.
— E não seja agressiva — continuou Nicole.
— Segure Nikki e saia correndo — disse Max, dando uma piscadela.

Nada de mais aconteceu enquanto eles desciam pelas estacas. Como há anos, as luzes do nível
mais baixo se acendiam quando alguém se aproximava de uma área escura. Os cinco
exploradores chegaram à plataforma do metrô em menos de uma hora.
— Agora vamos ver se esses veículos misteriosos ainda estão funcionando — disse Richard.
No meio da plataforma circular havia um pequeno buraco, também redondo, com espetos de
metal saindo dos lados, descendo nas profundezas escuras. Nas duas extremidades opostas da
plataforma, noventa graus à direita e à esquerda de onde estavam os cinco, havia dois túneis
escuros, cortados na rocha e no metal. Um deles era grande, com cinco a seis metros de alto a
baixo, e o que ficava do lado oposto era bem menor. Quando Richard aproximou-se a vinte
graus do túnel maior, este de repente se iluminou, mostrando nitidamente todo o seu interior.
Parecia um grande cano de esgoto da Terra.
Os outros membros do grupo de exploração foram encontrar-se com Richard assim que
ouviram um ruído vindo do túnel. Em menos de um minuto, um veículo subterrâneo veio
velozmente de um canto distante e prosseguiu na direção deles, parando com a parte dianteira
a mais ou menos um metro do ponto onde o corredor com estacas continuava a descer.
O interior do trem também era iluminado. Não havia bancos, apenas uns canos verticais que
desciam do teto até o chão, espalhados a esmo pelo vagão do metrô. A porta de correr abriu-
se uns quinze segundos depois que o trem parou. Do lado oposto da plataforma, um veículo
idêntico, mas exatamente com um décimo do tamanho, parou uns cinco segundos depois.
Embora Patrick, Max e Eponine tivessem ouvido muitas vezes histórias sobre os dois metrôs-
fantasmas, a visão dos veículos deixou-os muito apreensivos.
— Você está falando a sério, meu amigo? — perguntou Max a Richard, depois que os dois
examinaram rapidamente a parte externa do trem grande. — Está pretendendo mesmo entrar
nessa coisa maldita se não tivermos outro jeito?
Richard fez que sim.
— Mas ele pode ir parar em qualquer lugar — falou Max. — Não temos a menor idéia do que
é essa coisa, de quem a construiu, ou o que ela está fazendo aqui. E depois que entrarmos
ficaremos à mercê dela.
— É verdade — falou Richard com um sorriso. — Max, você entendeu muito bem a situação.

Max sacudiu a cabeça.

— É bom encontrarmos alguma coisa nesse buraco dos infernos, pois não sei se Eponine e
eu...
— Tudo bem — disse Patrick ao aproximar-se dos dois homens. — Acho que chegou a hora
da próxima etapa da operação... Vamos, Max. Você está pronto para descer mais um pouco
pelas estacas?

Richard não tinha ali nenhum dos seus robôs inteligentes para colocar no trem menor. Mas
tinha uma máquina fotográfica em miniatura, com um precário sistema de mobilidade que ele
esperava que pesasse o suficiente para ativar o sistema do trem menor do metrô.
— Em nenhuma hipótese — disse ele aos outros — o túnel pequeno será uma saída para nós.
Só quero saber por mim mesmo se houve alguma mudança significativa nesses anos. Além do
mais, não há nenhuma razão, pelo menos por enquanto, para mais de dois de nós descermos lá
para o fundo.
Enquanto Max e Patrick escorregavam devagar pelas estacas, e Richard examinava pela
última vez sua máquina fotográfica, Nicole e Eponine ficaram passeando pela plataforma.
— Como você está indo, fazendeiro? — perguntou Eponine a Max, pelo rádio.
— Até agora muito bem — respondeu ele. — Mas estamos só uns dez metros abaixo de vocês.
Estas estacas não ficam tão juntas umas das outras como as de lá de cima, por isso temos de
ser mais cautelosos.
— Seu relacionamento com Max deve ter se desenvolvido enquanto eu estava na prisão —
comentou Nicole um pouco depois.
— É verdade — respondeu Eponine, com naturalidade. — Para ser franca, eu também me
surpreendi com isso. Não pensava que um homem fosse capaz de ter um caso sério com
alguém que... você sabe... mas eu subestimei o Max. Ele é realmente uma pessoa diferente. Por
baixo daquele interior rude e machista...
Eponine parou ao ver o vasto sorriso de Nicole.
— Acho que Max não engana ninguém, pelo menos não os que o conhecem bem. Aquele Max
durão, dos palavrões, é uma fachada criada por alguma razão naquela fazenda de Arkansas,
provavelmente como autoproteção.
As duas mulheres ficaram algum tempo em silêncio.
— Mas acho que também subestimei Max — acrescentou Nicole. — Ele merece ser admirado
por gostar tanto de você, mesmo sem vocês dois poderem...
— Oh, Nicole — falou Eponine de repente, muito emocionada. — Não pense que eu não quis,
que não sonhei com isso. E o dr. Turner nos disse muitas vezes que a possibilidade de Max
contrair o RV-41 é muito remota se tomarmos cuidado... Mas mesmo essa possibilidade muito
remota me preocupa. E se por acaso eu passasse para Max esse flagelo que está me matando?
Como eu poderia me perdoar por condenar o homem que amo tanto?
Os olhos de Eponine encheram-se de lágrimas.

— Nós somos íntimos, é claro — continuou ela —, e nos protegemos ao nosso modo... E Max
nunca se queixou. Mas posso dizer pelo seu olhar que ele sente falta...

— Tudo bem agora — disse Max pelo rádio. — Estamos vendo o fundo uns cinco metros
abaixo de nós. Parece um chão normal, de onde saem dois túneis: um do tamanho do túnel
maior aí de cima, e o outro muito pequeno. Vamos descer para inspecionar melhor.

Chegava a hora de os exploradores entrarem no trem do metrô. A máquina fotográfica de


Richard não encontrara nada de novo, e não havia definitivamente nenhuma saída que os
humanos pudessem usar no único nível da toca abaixo deles. Richard e Patrick terminaram sua
conversa particular, revendo em detalhes o que o rapaz iria fazer quando voltasse para se
encontrar com os outros. Depois eles se juntaram a Max, Eponine e Nicole, e os cinco foram
andando lentamente pela plataforma, à espera do trem.
Eponine estava sentindo dor de estômago, como sentira aos quatorze anos, pouco antes de
expor seus trabalhos artísticos no orfanato de Limoges. Ela respirou fundo e disse:
— Não tenho vergonha de dizer que estou com medo.
— Droga — falou Max —, você deve estar apavorada... Richard, como é que vamos saber se
esta coisa não vai despencar conosco por aquele penhasco que você disse que existe?
Richard sorriu mas não respondeu até eles chegarem ao lado do trem.
— Tudo bem — disse depois. — Como nós não sabemos exatamente como essa coisa é
ativada, temos de tomar muito cuidado. Vamos todos entrar mais ou menos ao mesmo tempo
para evitar que as portas se fechem e o trem parta antes de nós todos estarmos dentro.
Ninguém disse nada durante quase um minuto. Ficaram um ao lado do outro, Max e Eponine no
canto próximo ao túnel.
— Agora eu vou contar — disse Richard. — Quando eu disser três, todos nós entraremos
juntos.
— Posso fechar os olhos? — perguntou Max com um risinho. — Isso ajudava um pouco
quando eu era criança e andava na montanha-russa.
— Se preferir, pode — respondeu Nicole.
Os quatro entraram no trem e cada um deles segurou-se a um cano vertical, mas nada
aconteceu. Do outro lado da porta aberta, Patrick ficou olhando para eles.
— Talvez o trem esteja esperando Patrick — disse Richard com calma.
— Não sei não — resmungou Max —, mas, se essa droga de trem não se mexer em uns
segundos, vou pular fora.
A porta fechou-se devagar logo depois do comentário de Max, dando tempo para que cada um
deles respirasse antes que o trem começasse a mover-se velozmente pelo túnel iluminado.

Patrick acenou para eles e seguiu o trem com os olhos até ele desaparecer na primeira
esquina. Depois colocou o rifle no ombro e começou a descer pelas estacas. Por favor, voltem
depressa, pensou, antes que nós todos fiquemos tomados de incerteza.
Patrick voltou para o nível de onde viera em menos de quinze minutos. Depois de tomar um
gole d'água do seu cantil, foi andando rapidamente pelo túnel até o museu. Enquanto
caminhava, ia pensando no que iria dizer a todos.
Ele nem notou que a sala estava escura quando atravessou o portal. Mas, quando entrou e as
luzes se acenderam, ficou um pouco desorientado. Não estou no lugar certo, pensou de início,
devo ter seguido pelo túnel errado. Não, continuou a pensar, dando uma rápida olhada pela
sala. A sala deve ser esta. Estou vendo umas penas ali no canto, e as fraldas de Nikki...
A cada segundo que se passava seu coração batia mais forte. Onde estarão eles?, dizia
Patrick para si mesmo, vasculhando a sala com os olhos, desesperado. O que pode ter
acontecido com eles? Quanto mais olhava as paredes vazias, lembrando-se de tudo o que
haviam conversado antes da partida dos cinco, mais Patrick percebia que sua irmã e seus
amigos não poderiam ter saído dali por vontade própria. Senão teriam deixado um bilhete! E
Patrick ficou procurando em cada cantinho da sala, mas não encontrou bilhete algum. Então
alguém, ou alguma coisa, deve tê-los forçado a sair, pensou.
Patrick tentou refletir com clareza, mas não conseguiu. Seu pensamento mudava de uma coisa
para outra, entre o que deveria fazer e as terríveis imagens do que poderia ter acontecido. Aos
poucos, concluiu que talvez eles tivessem voltado para a primeira sala, aquela que sua mãe e
Richard chamavam de galeria de fotos, talvez porque as luzes do museu não estivessem
funcionando bem ou por alguma outra razão. Animado por essa idéia, saiu correndo pelo túnel.
Chegou à galeria de fotos três minutos depois. A galeria também estava vazia, e ele sentou-se
encostado na parede. Havia apenas duas direções que seus companheiros poderiam ter
seguido. Como Patrick não vira ninguém ao subir pelas estacas, eles deveriam ter ido para a
sala da catedral e para a saída trancada. Enquanto descia pelo longo corredor, com a mão
apertando seu rifle, ele foi se convencendo de que as tropas de Nakamura não tinham saído da
ilha, e que eles tinham conseguido de alguma forma invadir a toca e capturar todo mundo.
Logo antes de entrar na sala da catedral, Patrick ouviu Nikki gritando — "Mamãe, mamãe!"
—, e depois um chorinho triste. Patrick entrou no salão como uma bala e, não vendo ninguém,
subiu a rampa, na direção do grito da sobrinha.
Ao chegar perto da saída trancada, viu uma cena caótica. Nikki chorava sem parar, e Robert
Turner andava em círculo, como um louco, com os braços estirados e os olhos virados para
cima, dizendo sem parar: "Não, meu Deus, não!" . Benjy soluçava num canto e Nai tentava
confortar os gêmeos, sem muito sucesso.
Quando viu Patrick, Nai deu um pulo e correu para ele.
— Oh, Patrick — falou, com as lágrimas escorrendo pelo rosto. — Ellie foi levada pelas
octoaranhas.

12

Patrick levou várias horas para conseguir montar uma história coerente a respeito do que tinha
acontecido depois que seu grupo de exploração partira da sala do museu. Nai ainda estava em
estado de choque, Robert não conseguia falar mais do que um minuto sem cair no choro, e as
crianças e Benjy interrompiam com freqüência, dizendo coisas sem sentido. De início, Patrick
só conseguiu saber que as octoaranhas tinham entrado, levado Ellie e também as aves, os
melões-maná e o material séssil. Mais tarde, depois de muito perguntar, compreendeu melhor
como a coisa havia se passado.

Aparentemente, cerca de uma hora depois da partida dos exploradores, mais ou menos na hora
em que Richard, Patrick e os outros estavam na plataforma do metrô, os humanos que tinham
ficado na sala do museu ouviram o ruído de escovas arrastadas do lado de fora da porta.
Quando Ellie foi investigar e viu as octoaranhas aproximando-se nas duas direções, voltou
para a sala e tentou acalmar Benjy e as crianças.
Quando a primeira octoaranha apareceu no portal, os humanos se afastaram o máximo
possível, abrindo caminho para as nove ou dez criaturas passarem. No começo elas ficaram
em grupo, mexendo as cabeças brilhantes de onde saíam as mensagens coloridas com as quais
se comunicavam. Depois de um instante, uma delas deu um passo à frente, apontou diretamente
para Ellie, tirando do chão um dos tentáculos pretos e dourados, e expôs uma longa seqüência
de cores, que foi rapidamente repetida. Ellie achou (segundo Nai, mas Robert insistia em dizer
que Ellie sabia o que a octoaranha dizia) que os alienígenas estavam pedindo os melões-maná
e o material séssil. Foi apanhá-los no canto e entregou-os para a octoaranha-chefe, que pegou
os objetos com três dos seus tentáculos ("uma cena inesquecível", exclamava Robert, "como
elas usam aquelas coisas e os cílios que têm por baixo") e passou-os para suas subordinadas.
Ellie e os outros acharam que depois disso as octoaranhas sairiam, mas estavam muito
enganados. A octo-chefe continuou a encarar Ellie e passou sua mensagem colorida. Outras
duas octoaranhas começaram a mover-se lentamente na direção de Tammy e Timmy.
— Não! — gritou Ellie. — Não façam isso.
Mas era tarde demais. As duas octoaranhas enrolaram seus vários braços em torno dos
filhotes de aves e os levaram embora, indiferentes aos seus guinchos. Galileu Watanabe saiu
correndo e atacou a octoaranha que tinha três tentáculos em volta de Timmy, e ela
simplesmente usou um quarto tentáculo para levantar o garoto do chão e passá-lo para uma de
suas colegas. Galileu foi passado de mão em mão até ser colocado de volta no chão, no outro
canto da sala. As invasoras deixaram Nai consolar seu filho.
Àquela altura, três a quatro octoaranhas, as aves, os melões e o material séssil já tinham
desaparecido portal afora, mas ainda havia quatro octoaranhas na sala, que ficaram
conversando entre si por uns dez minutos. E durante esse tempo, segundo Robert ("Eu não
estava prestando muita atenção", dizia Nai. "Estava apavorada e preocupada com os meus
filhos"), Ellie observava as mensagens coloridas das octoaranhas. A certa altura, Ellie levou
Nikki para Robert e coloçou-a nos braços dele. "Acho que entendi alguma coisa do que elas
disseram", falou Ellie (citação também de Robert), absolutamente lívida. "Elas querem me
levar também."

Mais uma vez a octoaranha-chefe andou na direção deles e começou a falar através das cores,
parecendo focalizar Ellie. O que aconteceu exatamente nos dez minutos seguintes foi motivo
de discussão entre Nai e Robert, com Benjy em geral ficando do lado de Nai. A versão de Nai
era de que Ellie tentara proteger todos que estavam na sala, fazer uma espécie de trato com as
octoaranhas. Além de falar com elas, fazia vários gestos, para lhes dizer que iria com elas, se
garantissem que as outras pessoas da sala poderiam sair da toca em segurança.

— Ellie foi explícita — insistia Nai. — Explicou que estávamos trancados e que não nos
restava muita comida. Infelizmente as octoaranhas a pegaram antes que ela tivesse certeza de
que seu trato seria cumprido.
— Você é muito ingênua, Nai — disse Robert, com o olhar confuso e sofrido. — Não
compreende como essas criaturas são sinistras. Elas hipnotizaram Ellie. É verdade. Assim que
elas chegaram, quando Ellie ficou olhando com atenção aquelas cores. Sei que ela estava fora
de si. Toda aquela bobagem de garantir que todos sairiam em segurança foi um subterfúgio.
Ela queria ir com as octoaranhas. Sua personalidade foi alterada ali, naquele lugar, com
aquelas cores loucas. E ninguém notou isso, só eu.
Patrick deu um bom desconto à versão do marido de Ellie, pois ele estava enlouquecido. Mas
Nai concordou com dois pontos dessa versão: Ellie não reagiu nem protestou quando a
primeira octoaranha a envolveu, e antes de desaparecer da sala deixou instruções detalhadas
para quem fosse ficar cuidando de Nikki.
— Como é que uma pessoa em seu juízo normal — disse Robert —, depois de ter sido
agarrada por um alienígena, pode falar calmamente sobre o cobertor que sua filha segura
quando está dormindo, dizer quando Nikki foi ao banheiro pela última vez, ou coisa
parecida... É claro que Ellie estava hipnotizada ou drogada...
A explicação para o fato de todos estarem no patamar abaixo da saída trancada foi dada de
modo relativamente coerente. Depois que as octoaranhas levaram Ellie, Benjy saiu correndo
pelo corredor, gritando e atacando em vão as octoaranhas pelas costas. Robert foi ao seu
encontro e os dois seguiram Ellie e o contingente alienígena até a sala da catedral. O portão
estava aberto para o quarto túnel. Uma das octoaranhas barrou Benjy e Robert com quatro
grandes tentáculos, e depois que as outras foram embora ela trancou o portão e se foi também.

A viagem no metrô foi hilariante para Max, que se lembrou de um passeio que fizera aos dez
anos de idade a um grande parque de diversões perto de Little Rock. O trem corria pelo túnel
acima de uma espécie de cinta de metal e não tocava em nada, o que levou Richard a imaginar
que ele devia ser movido por magnetismo.
O trem parou depois de dois minutos e a porta abriu-se depressa. Os quatro exploradores
viram uma plataforma vazia, de um branco lei toso, por trás da qual havia um arco de cerca de
três metros de altura.
— Segundo o plano A, creio que Eponine e eu devemos descer aqui — disse Max.
— É verdade — falou Richard. — É claro que, se o metrô não continuar a viagem, Nicole e
eu nos encontraremos com vocês daqui a pouco.

Max deu a mão a Eponine e desceu para a plataforma. Assim que saíram do vagão, a porta se
fechou, e uns segundos depois o trem partiu em velocidade.

— Não é romântico? — perguntou Max, depois que eles deram adeus a Nicole e Richard. —
Aqui estamos nós dois, finalmente sozinhos. — Colocou os braços em volta de Eponine e
beijou-a. — Quero que você saiba, minha francesinha, que eu te amo. Não tenho idéia de onde
estamos, mas seja onde for, estou contente de estar com você.
Eponine riu.
— Uma amiga minha do orfanato tinha a fantasia de ficar sozinha numa ilha deserta com um
famoso ator francês chamado Marcel duBois, que tinha um peito colossal e braços como
troncos de árvores. Eu me pergunto agora como ela teria se sentido num lugar como este. —
Olhou em volta e continuou: — Acho que é melhor passarmos por baixo daquele arco.
Max deu de ombros.
— A menos que um coelho branco apareça e a gente caia numa espécie de buraco...
Do outro lado do arco havia uma grande sala retangular de paredes azuis, absolutamente vazia.
A sala tinha uma única saída, que dava para um corredor estreito e iluminado, paralelo ao
túnel do metrô. Todas as paredes desse corredor, que continuava nas duas direções, pelo
menos até onde a vista de Max e Eponine alcançava, tinham o mesmo tom de azul da sala.
— Para que lado vamos? — perguntou Max.
— Nessa direção dá para ver duas portas se abrindo para fora do metrô — disse Eponine,
apontando para a direita.
— E na outra direção há mais duas portas — falou Max, olhando para a esquerda. — Por que
não vamos até a primeira porta, damos uma olhada e depois pensamos no que fazer?
De braços dados, eles andaram cinqüenta metros pelo corredor azul. Chegando à porta,
ficaram desapontados ao verem outro corredor azul idêntico, de vários metros de extensão,
com portas nas extremidades.
— Que merda — disse Max. — Isso aqui está parecendo uma espécie de labirinto... Se a
gente bobear acaba se perdendo.
— Então o que acha que devemos fazer? — perguntou Eponine.
— Acho que... devemos fumar um cigarro e discutir o assunto. Eponine riu.
— Concordo plenamente com você — disse.

Os dois prosseguiram com muito cuidado. Cada vez que dobravam num novo corredor azul,
Max fazia marcas na parede com o batom de Eponine, indicando todo o trajeto de volta para a
sala por trás do arco. Ele também insistiu que Eponine, mais hábil no computador do que ele,
registrasse o trajeto também no seu computador portátil.
— É para o caso de acontecer alguma coisa que retire as marcas que deixei — disse Max.

No início a aventura estava divertida, e nas duas primeiras vezes em que Max e Eponine
tentaram voltar para o arco, para ver se conseguiam achar o caminho, tiveram uma certa
sensação de realização. Mas depois de pouco mais de uma hora, quando a cada curva surgia
mais um corredor azul, os dois começaram a desanimar. A certa altura pararam, sentaram-se
no chão e fumaram outro cigarro.

— Por que uma criatura inteligente — disse Max soprando a fumaça no ar — criaria um lugar
desses? Ou nós estamos, sem saber, passando por uma espécie de teste...
— Ou há alguma coisa aqui que eles não querem que seja encontrada facilmente — terminou
Eponine, tirando o cigarro de Max e dando uma tragada. — Se for este o caso, deve haver um
código simples definindo a localização dessa coisa especial, um código como o daquelas
fechaduras antigas, segundo à direita, quarto à esquerda, e...
— Seguir em frente até de manhã — interrompeu Max, fazendo uma careta. Em seguida deu um
beijo em Eponine e levantou-se. — Então é melhor assumirmos que estamos procurando uma
coisa especial e organizar nossa busca de forma lógica.
Eponine ficou de pé e olhou para Max com a sobrancelha franzida.
— O que você quis dizer com esta última frase?
— Não estou certo — ele respondeu, com uma risada —, mas a frase pareceu muito
inteligente.

Depois de andarem para cima e para baixo nos corredores azuis durante quase quatro horas,
Max e Eponine perceberam que estavam com fome. Assim que começaram a comer a comida
ramaiana, viram alguma coisa passar à sua esquerda, num cruzamento de corredores. Max deu
um pulo e correu até o cruzamento. Ao chegar lá, notou que alguns segundos antes um veículo
minúsculo, de uns dez centímetros de altura, tinha feito uma curva à direita do corredor
seguinte. Max correu para a frente e chegou a ver o veículo desaparecer por baixo de um
pequeno arco cortado na parede de outro corredor azul, a uns vinte metros de distância.
— Venha cá — gritou para Eponine. — Encontrei uma coisa.
Num segundo Eponine estava ao seu lado. A parede superior do pequeno arco na parede
ficava a apenas uns vinte e cinco centímetros do chão, por isso os dois tiveram de ajoelhar-se
e encolher-se um pouco mais para ver onde estava o veículo. A primeira coisa que viram
foram cinqüenta a sessenta criaturas minúsculas, do tamanho de formigas, descendo do
pequeno ônibus e espalhandose em todas as direções.
— Que droga é aquilo lá? — exclamou Max.
— Olhe, Max — disse Eponine excitada. — Olhe com cuidado... Aquelas criaturazinhas são
octoaranhas... Está vendo? São iguais àquela que você descreveu para mim.
— Macacos me mordam — disse Max. — Você tem razão... Devem ser bebês de octoaranhas.

— Acho que não — falou Eponine. — Bebês não entram assim naquelas colméias, ou casas,
ou sei lá o quê... Olhe ali, estou vendo uma espécie de canal, e um barco...

— Onde está a máquina fotográfica? — gritou Max. — Vá lá pegar minha máquina... Há uma
verdadeira cidade em miniatura aqui.
Eponine foi correndo buscar a máquina que eles tinham colocado no chão junto das mochilas,
quando se sentaram para comer. Max continuou a olhar, fascinado, aquele complexo mundo em
miniatura do outro lado do arco. Um minuto depois ele ouviu um grito abafado e sentiu um
arrepio na espinha.
Seu idiota, pensou Max enquanto voltava para o lugar onde os dois tinham parado para comer.
Nunca, nunca largue o rifle.
Max fez a última curva e parou abruptamente. Ali onde tinham parado para comer havia cinco
octoaranhas, uma segurando Eponine com três tentáculos e outra segurando o rifle. Uma
terceira apanhara a mochila de Eponine, onde ela guardava todos os seus artigos pessoais.
Eponine olhou para Max com horror e gritou:
— Por favor me ajude, Max...
Max deu um passo à frente mas foi barrado por duas octoaranhas. Uma delas enviou uma série
de mensagens coloridas pela cabeça.
— Não compreendo o que vocês estão falando — gritou Max com raiva. — Mas soltem a
moça.
Como se fosse um raio, Max passou pelas duas primeiras octos e estava quase alcançando
Eponine quando sentiu os tentáculos apertando seu braços e seu peito. Por mais que
esperneasse, foi tudo em vão. A criatura era inacreditavelmente forte.
Três octoaranhas, inclusive a que tinha capturado Eponine, começaram a se afastar pelo
corredor azul.
— Max... Max... — gritou a moça em pânico. Mas ele não pôde fazer nada. A octoaranha que
o segurava não se moveu, e depois de um instante não deu mais para ouvir os gritos de
Eponine.
Max ficou enlaçado ali durante uns dez minutos, até sentir os poderosos músculos que o
prendiam se soltarem aos poucos.
— E agora? — disse, ao se ver livre. — O que mais vocês vão fazer?
Uma das octoaranhas apontou para a mochila dele, que ainda estava encostada na parede. Max
abaixou-se e tirou um pouco de água e de comida. As octoaranhas conversaram em cores entre
si enquanto Max, que sabia muito bem que estava sendo vigiado, dava umas dentadas na
comida.
Esses corredores são muito estreitos, pensou ele, considerando como poderia fugir. E essas
criaturas são muito grandes, especialmente com os seus tentáculos. Acho que vou ter de
esperar para ver o que acontece.
As duas octoaranhas não se moveram durante horas, e a certa altura Max caiu no sono entre
elas.

Quando Max acordou estava sozinho. Andou com cuidado até a primeira esquina, olhou dos
dois lados do corredor azul, mas não viu nada. Depois de estudar durante um minuto as marcas
de batom na parede, e fazer mais uns rabiscos descrevendo o lugar da cidade das octoaranhas
minúsculas, voltou para a sala atrás da plataforma do metrô.

Max não sabia ao certo o que fazer. Passou vários minutos andando pelos corredores azuis e
de quando em vez gritando o nome de Eponine, mas tudo em vão. Então decidiu sentar-se na
plataforma e esperar o metrô. Depois de mais de uma hora, quando estava disposto a voltar
para a cidade em miniatura, ouviu o trem se aproximando. Vinha na direção oposta aos
corredores de estacas verticais.
Quando o trem foi chegando, Max viu pela janela Richard e Nicole.
— Max! — gritaram eles ao mesmo tempo, antes que a porta se abrisse. Os dois estavam
extremamente agitados.
— Nós encontramos — dizia Richard, saindo para a plataforma. — Uma sala gigantesca, com
uma cúpula de uns quarenta metros de altura, com as cores do arco-íris... Fica do outro lado
do mar Cilíndrico; o trem do metrô atravessa o mar em um túnel transparente... — Richard fez
uma pausa enquanto o trem se afastava.
— A sala tem banheiros, camas e água corrente — acrescentou Nicole rapidamente.
— E comida fresca, acredite se quiser... umas frutas e verduras esquisitas, mas que servem
muito bem para todos...
— Onde está Eponine? — perguntou Nicole de repente, interrompendo Richard no meio da
frase.
— Ela foi embora — falou Max laconicamente.
— Embora? — disse Richard. — Mas como... para onde?
— Suas amigas não-hostis a levaram — falou Max secamente.
— O quê? — exclamou Richard.
Max contou a história devagar e com detalhes, sem omitir nada de importante, e Richard e
Nicole ouviram com atenção até ele terminar.
— Elas passaram a perna na gente — comentou Richard no final, sacudindo a cabeça.
— Na gente não, em mim — falou Max enraivecido. — Elas fizeram com que Ep e eu
pensássemos que estávamos resolvendo uma espécie de quebracabeça naquele labirinto de
corredores azuis... Merda! Que merda!
— Não se culpe assim — disse Nicole com carinho, tocando no ombro de Max. — Você não
podia saber...
— Mas que estupidez colossal — falou Max, elevando a voz. — Eu trago um rifle para me
proteger, e onde está esse rifle quando nossas amigas de oito patas aparecem? Encostado
naquela parede de merda...
— Nós estivemos no começo em um lugar semelhante — disse Richard —, só que todos os
nossos corredores eram vermelhos, e não azuis. Nicole e eu exploramos alguns durante uma
hora e depois voltamos para a plataforma. O trem do metrô nos apanhou dez minutos depois e
atravessou o mar Cilíndrico.

— Você chegou a procurar Eponine? — perguntou Nicole. Max fez que sim.

— Mais ou menos. Fiquei andando e gritando o nome dela por aí.


— Talvez fosse bom a gente gritar de novo — sugeriu Nicole.
Os três amigos voltaram para o mundo dos corredores azuis. Quando saíram no primeiro
cruzamento, Max explicou as marcas de batom na parede.
— Acho que seria melhor nos separarmos — disse Max. — Provavelmente seria uma forma
mais eficiente de encontrar Eponine... Por que não nos encontramos na sala atrás do arco
daqui a, digamos, uma meia hora?
Na segunda esquina, Max, que agora estava sozinho, não encontrou o mapa de batom.
Intrigado, tentou lembrar se tinha feito um mapa em cada curva, ou se nunca tinha passado por
ali... Enquanto pensava, sentiu uma mão em seu ombro e quase morreu de susto.
— Epa! — disse Richard, vendo o ar assustado do amigo. — Sou eu... Você não me ouviu
chamar seu nome?
— Não — disse Max sacudindo a cabeça.
— Eu estava a apenas dois corredores de distância... Deve haver uma fantástica redução
acústica neste lugar... Bom, nem Nicole nem eu encontramos nenhum dos seus mapas quando
fizemos a segunda curva. Por isso não tínhamos certeza...
— Que merda! — falou Max. — Aquelas imbecis espertas limparam as paredes... Está vendo?
Elas planejaram tudo isso desde o começo, e nós fizemos exatamente o que elas queriam.
— Mas, Max — falou Richard —, elas não podiam prever com tantos detalhes tudo que íamos
fazer. Nem nós tínhamos um plano completo. Então como elas podiam...
— Não posso explicar — disse Max. — Mas senti isso. Aquelas criaturas esperaram
deliberadamente para nos mostrar aquele veículo quando eu e Eponine paramos para comer.
Elas sabiam que nós iríamos atrás dele e que teriam chance de agarrar Eponine... De certa
forma estavam nos vigiando todo o tempo...

Até mesmo Max concordou que não fazia sentido procurar mais por Eponine naquele labirinto
de corredores azuis.
— É claro que ela não está mais aqui — disse ele, com objetividade.
Enquanto o trio esperava o trem na plataforma, Richard e Nicole contaram para Max mais
detalhes do salão com a cúpula de arco-íris do lado sul do mar Cilíndrico.

— O.K. — disse Max quando eles terminaram —, uma ligação é bem clara, até mesmo para
este fazendeiro de Arkansas. O arco-íris da cúpula está obviamente ligado ao arco-íris do céu
que distraiu as tropas de Nakamura. Então esse pessoal do arco-íris, sejam eles quem forem,
não quer que a gente seja capturado nem morra de fome... Foram provavelmente eles que
construíram o metrô; pelo menos isso faz mais sentido para mim. Mas qual é a ligação entre o
pessoal do arco-íris e as octoaranhas?

— Antes de você nos contar que Eponine tinha sido raptada — falou Richard —, eu estava
quase certo de que eles eram uma entidade só. Agora já não sei. O que você passou só pode
ser interpretado como um ato hostil.
Max riu.
— Richard, você é muito jeitoso com as palavras. Por que continua a ter dúvidas sobre
aquelas cretinas horrorosas? Eu poderia esperar isso de Nicole, mas de você! Essas
octoaranhas já o prenderam durante meses, mandaram umas criaturazinhas subirem pelo seu
nariz e provavelmente mexeram no seu cérebro...
— Não temos certeza disso — disse Richard com calma.
— Tudo bem — falou Max. — Mas acho que você está se esquecendo de muitas evidências...
Max parou quando ouviu o ruído familiar. O trem chegou, com a frente voltada na direção da
toca das octoaranhas.
— Então me diga — disse Max com um ar sarcástico, logo antes de embarcarem —, por que
este trem sempre segue na direção certa?

Patrick tinha conseguido convencer Robert e Nai a voltar para a sala do museu, mas com
grande dificuldade. Os dois adultos e as crianças estavam muito traumatizados com o ataque
das octoaranhas. Robert não conseguia dormir, e os gêmeos eram atormentados por sonhos que
os faziam acordar aos gritos. Quando Richard, Nicole e Max apareceram, a comida quase
tinha acabado e Patrick já estava começando a fazer planos de racionamento.
Foi uma reunião tensa. Os dois raptos foram discutidos à exaustão, deixando os adultos e até
mesmo Nicole muito deprimidos. Ninguém se entusiasmou muito com a notícia da cúpula de
arco-íris do sul. Mas não havia dúvida do que eles teriam de fazer. Richard fez um resumo da
situação.
— Pelo menos lá debaixo da cúpula teremos comida — disse.
Eles juntaram todos os seus pertences em silêncio. Patrick e Max carregaram as crianças pelo
corredor vertical de estacas. Logo depois que todos estavam na plataforma chegou o trem do
metrô, que não parou em nenhuma das duas estações intermediárias. Como Max previra, ele
continuou pelo túnel transparente através do mar Cilíndrico. Estranhas e maravilhosas
criaturas marinhas do lado de fora da parede do túnel, muito provavelmente biotas, fascinaram
as crianças e fizeram Richard lembrar-se da sua viagem a Nova York, anos antes, quando foi
procurar Nicole.
O amplo salão debaixo da cúpula na outra extremidade da linha do metrô era verdadeiramente
espantoso. No início, Benjy e as crianças se interessaram mais pela variedade de comidas
novas espalhadas sobre uma mesa comprida em um lado da sala, mas os adultos estavam
pasmos. Olhavam não só as brilhantes cores do arco-íris acima de suas cabeças, mas também
examinavam as alcovas do fundo da plataforma, onde se localizavam os banheiros e as suítes
individuais.

Max calculou as dimensões do andar principal: cinqüenta metros de lado a lado, no seu ponto
mais largo, e quarenta metros da ponta da plataforma do metrô até as paredes brancas e as
entradas para as alcovas na parte de trás do salão. Patrick foi conversar com Max, que estava
de pé ao lado da fenda cortada na plataforma para o metrô, enquanto os outros escolhiam suas
suítes.

— Sinto muito sobre Eponine — falou Patrick, pondo a mão no ombro do amigo.
Max deu de ombros.
— De certa forma o desaparecimento de Ellie foi pior. Eu não sei se Robert ou Nikki vão
conseguir superar isso completamente.
Os dois homens ficaram lado a lado, olhando o túnel longo, escuro e vazio.
— Sabe, Patrick? — falou Max com tristeza. — Eu gostaria de convencer o fazendeiro que
existe em mim de que nossos problemas terminaram e que o pessoal do arco-íris tomará conta
de nós.
Kepler chegou correndo, segurando um legume comprido parecendo uma cenoura verde.
— Sr. Puckett, o senhor precisa provar isso. É uma delícia.
Max aceitou o presente do meninozinho, enfiou o legume na boca e deu uma dentada.
— É bom mesmo, Kepler — disse ele, fazendo um carinho na cabeça dele. — Muito obrigado.
Kepler voltou correndo para onde estavam os outros, e Max ficou chupando o legume devagar.

— Sempre cuidei muito bem dos meus porcos e das minhas galinhas — disse a Patrick. —
Eles tinham bastante comida e uma boa condição de vida. — Max mostrou com a mão direita a
cúpula e a mesa cheia de comida. — Mas eu também retirava os animais, alguns de cada vez,
quando chegava a hora de matá-los ou vendê-los no mercado.
A OPERAÇÃO ARCO-ÍRIS

Nicole estava deitada de costas, acordada no meio da noite. Na luz fraca do quarto ela via
Richard dormindo profundamente ao seu lado. A uma certa altura ela levantou-se quietinha e
atravessou o quarto, saindo para o grande salão da sua casa temporária.
O processo que controlava a iluminação facilitava o sono dos humanos, reduzindo
consideravelmente a claridade da cúpula de arco-íris durante aproximadamente oito horas em
cada período de vinte e quatro horas. Nesses intervalos de "noite", o salão debaixo da cúpula
ficava ligeiramente iluminado, e os quartos individuais, incrustados nas paredes e sem luz
própria, ficavam bem escuros e possibilitavam um sono reparador.
Durante várias noites consecutivas Nicole vinha dormindo mal, acordando no meio de sonhos
aflitivos dos quais não conseguia se lembrar. Naquela noite específica, enquanto lutava em
vão para recordar-se das imagens que haviam perturbado seu sonho, Nicole andou lentamente
em volta do grande salão circular, no qual sua família e seus amigos passavam a maior parte
do tempo. Na extremidade do salão, perto da plataforma vazia do metrô, parou e ficou olhando
o túnel escuro que ia dar no mar Cilíndrico.
O que está acontecendo aqui?, pensou. Que poder ou inteligência estará nos mantendo agora?
Fazia quatro semanas que o pequeno contingente humano chegara àquela magnífica caverna
construída por baixo do Hemicilindro Sul de Rama. As novas acomodações tinham sido
projetadas especificamente para eles, com um considerável esforço. Os quartos e banheiros
das alcovas eram semelhantes aos do Novo Éden. O primeiro trem de metrô que voltou depois
de eles terem chegado à cúpula trouxera mais comida e água, e também sofás, cadeiras e
mesas para mobiliar as salas. Os humanos receberam até pratos, copos e utensílios de cozinha.
Quem-, ou o quê, sabia tanto sobre a atividade diária deles para lhes fornecer materiais tão
detalhados?
É claro que foi alguém que vem nos observando cuidadosamente, pensou Nicole. Lembrou-se
da Águia e percebeu que estava sendo otimista. Mas quem mais poderia ter sido? Só os
ramaianos e a Inteligência Nodal têm bastante informação...
Seus pensamentos foram interrompidos por um barulho vindo de trás. Nicole virou-se e viu
Max Puckett chegando do outro lado do salão.
— Você também não consegue dormir? — perguntou ele ao chegar perto de Nicole.
Nicole sacudiu a cabeça.
— Nessas últimas noites tenho tido sonhos ruins.
— Eu continuo aflito com Eponine. Ainda vejo o terror nos olhos dela quando a levaram à
força. — Max virou-se em silêncio e olhou para o túnel do metrô.

E você, Ellie, pensou Nicole, sentindo uma enorme ansiedade, está segura com as
octoaranhas? Ou Max está certo a respeito delas? Richard e eu estamos fantasiando quando
dizemos que as octos não pretendem nos fazer mal?
— Não consigo mais ficar aqui assim — disse Max para Nicole. — Preciso fazer alguma
coisa para ajudar Eponine... Ou pelo menos me convencer de que estou tentando.
— Mas o que você pode fazer, Max? — perguntou Nicole depois de uma curta pausa.
— Nosso único contato com o mundo lá fora é esse maldito metrô — falou Max. — Da
próxima vez em que o trem trouxer comida e água, que deve ser hoje à noite ou amanhã, vou
entrar e esperar lá dentro até ele partir de novo. Só vou descer quando o trem parar, e então
vou tentar encontrar uma octoaranha e fazer com que ela me capture.
Nicole percebeu o desespero no rosto do amigo.
— Isso é uma ilusão sua — disse ela com carinho. — Você só vai encontrar uma octoaranha se
elas quiserem... Além do mais, nós precisamos de você...
— Que merda, Nicole, eu não sou necessário aqui — falou Max elevando a voz. — Não temos
absolutamente nada para fazer, a não ser conversar e brincar com as crianças. Pelo menos na
toca de vocês nós sempre podíamos dar uma volta em Nova York... Enquanto isso, Eponine e
Ellie podem estar mortas, ou desejando estar. Está na hora de fazermos alguma coisa...
Enquanto Max falava surgiram as luzes a distância no túnel do metrô.
— Lá vem o trem de novo. — Eu te ajudo a descarregar depois que acabar de arrumar minhas
coisas — disse Max, correndo para o seu quarto.
Nicole ficou esperando o trem se aproximar. Como sempre, as luzes apareciam na frente
quando ele zunia pelo túnel. Uns minutos depois o trem entrou na sua fenda, uma incisão no
chão circular, e parou abruptamente. Quando as portas se abriram, Nicole foi examinar o que
havia lá dentro.
Além de quatro grandes potes de água havia uma quantidade de produtos frescos que os
humanos tinham aprendido a comer e a gostar, e um tubo grande com uma substância pegajosa,
com gosto de laranja e mel. Mas onde é plantada toda essa comida?, perguntou Nicole a si
mesma pela centésima vez, enquanto descarregava os alimentos, lembrando-se das várias
discussões familiares sobre o assunto. Todos acabavam sempre concluindo que devia haver
grandes fazendas em algum lugar no Hemicilindro Sul.
Quanto a quem fornecia tudo aquilo para eles, cada um tinha uma opinião diferente. Richard
tinha certeza de que eles eram alimentados pelas próprias octoaranhas, basicamente porque
todos os alimentos passavam pelo território que ele considerava ser delas. Era difícil
argumentar com essa lógica. Max concordava que os alimentos talvez fossem fornecidos pelas
octos, mas achava que elas deviam ter segundas intenções. Não iriam alimentá-los com fins
humanitários.

Por que as octoaranhas seriam nossas benfeitoras?, pensava Nicole. Eu concordo com Max
quando ele diz que não faz sentido elas nos alimentarem e ao mesmo tempo raptarem Eponine
e Ellie... Não poderia haver outra espécie interessada em interceder por nós? Apesar da
caçoada de Richard quando os dois estavam na intimidade do seu quarto, uma parte de Nicole
se prendia obstinadamente à idéia de que devia haver um "pessoal do arco-íris",
hierarquicamente superior às octoaranhas e interessado na preservação dos humanos
vulneráveis, e que eram eles quem ordenavam que as octoaranhas os alimentassem.

No meio das coisas trazidas no trem havia sempre uma surpresa. Dessa vez, no fundo do
carro, Nicole viu seis bolas de vários tamanhos, cada uma com uma cor mais brilhante que a
outra.
— Olhe, Max — disse Nicole, que tinha voltado com sua mochila e estava ajudando-a a
esvaziar o carro. — Eles mandaram até bolas para as crianças brincarem.
— Que maravilha! — disse Max com sarcasmo. — Agora podemos apreciar as crianças
brigarem para ver quem fica com a bola mais bonita.
Quando os dois terminaram de tirar tudo do carro, Max entrou e sentouse no chão.
— Quanto tempo você vai esperar aí? — perguntou Nicole.
— O tempo que for preciso.
— Você contou o que vai fazer a alguma outra pessoa?
— É claro que não — respondeu Max com veemência. — Por que eu iria contar?... Nós não
vivemos numa democracia aqui — disse ele, inclinando-se para a frente. — Desculpe, Nicole,
mas eu estou enfurecido. Eponine foi raptada há um mês, meus cigarros acabaram, e eu me
enfureço com facilidade. — Forçou um sorriso e continuou: — Clyde e Winona me diziam,
quando eu agia assim, que meu pavio era muito curto.
— Tudo bem, Max — disse Nicole um pouco depois, abraçando-o antes de ir embora. —
Espero que você não corra perigo aonde quer que resolva ir.
O trem não partiu, mas Max recusou-se a sair de lá até mesmo para ir ao banheiro. Seus
amigos lhe levaram comida, água e o material necessário para que ele mantivesse o trem
limpo. No final do terceiro dia, o suprimento alimentar começou a ficar escasso.
— Alguém precisa falar com Max — disse Robert aos adultos, depois que as crianças foram
dormir. — Está claro que o trem não vai se mover do lugar enquanto ele estiver lá dentro.
— Estou pensando em discutir essa situação com ele amanhã de manhã — falou Nicole.
— Mas já estamos quase sem comida agora — protestou Robert. — E não sabemos quanto
tempo leva...
— A gente pode racionar o que sobrou — interrompeu Richard — e fazer com que a comida
dure pelo menos mais uns dois dias... Olhe, Robert, nós todos estamos tensos e cansados... É
melhor falarmos com Max depois de uma boa noite de sono.

— E o que vamos fazer se Max se negar a sair do trem? — Richard perguntou a Nicole,
quando eles ficaram sozinhos.

— Não sei. Patrick me fez essa mesma pergunta hoje à tarde... Ele está com medo do que
poderá acontecer se tentarmos forçar Max a sair de lá... Patrick disse que Max está cansado e
muito bravo.
Richard já tinha pegado no sono, mas Nicole continuou a fazer conjecturas sobre a situação de
Max. Um confronto deve ser evitado a todo custo, pensou ela. Por isso é melhor eu falar com
ele sozinha, sem ninguém por perto... Mas o que vou dizer? E como devo reagir se Max se
negar a me atender?
Quando Nicole finalmente dormiu estava exausta. Mais uma vez seus sonhos foram aflitivos.
No primeiro deles, a vila de Beauvois estava pegando fogo, e ela não conseguia encontrar
Geneviève. De repente o sonho mudou e Nicole viuse com sete anos, na Costa do Marfim,
participando de uma cerimônia Poro. Ela nadava seminua no pequeno lago no centro de um
oásis. Nas margens do lago havia uma leoa rondando, procurando a menina que tinha mexido
no seu filhote. Quando Nicole subiu à tona para respirar a leoa tinha ido embora, mas três
octoaranhas patrulhavam o lago.
— Mamãe, mamãe — Nicole ouviu Ellie dizendo.
Olhando por cima da água, Nicole tentou ver se havia alguém na margem do lago.
— Nós estamos bem, mamãe — dizia Ellie nitidamente. — Não se preocupe conosco.
Mas onde estava Ellie? Em seu sonho, Nicole viu uma silhueta humana na mata por trás de três
octoaranhas, e chamou:
— Ellie, é você, Ellie?
A figura escura respondeu "Sou eu" com a voz de Ellie e afastou-se, ficando bastante visível à
luz do luar. E Nicole reconheceu imediatamente aqueles dentes brancos e brilhantes.
— Omeh — gritou ela, com um arrepio na espinha. — Omeh... Nicole acordou com uma
cutucada insistente, e viu Richard sentado na cama ao seu lado.
— Você está bem, querida? — perguntou ele. — Você estava gritando o nome de Ellie.... e de
Omeh.
— Tive mais um dos meus pesadelos — falou Nicole levantando-se e vestindo a roupa. —
Alguém me disse no sonho que Eponine e Ellie estão bem.
Quando Nicole terminou de se vestir, Richard perguntou:
— Aonde você vai a essa hora?
— Vou falar com Max — respondeu ela.
Nicole saiu depressa do banheiro, passou para o salão debaixo da cúpula, e ao olhar para
cima viu uma coisa que não se lembrava de ter visto antes. Parecia um desembarcadouro ou
uma plataforma, cortada uns sete metros abaixo da cúpula. Por que eu nunca vi aquilo antes?,
ficou pensando enquanto corria para o metrô. Será que as sombras são diferentes durante o
dia? Ou será que o desembarcadouro foi construído recentemente?

Max estava dormindo por cima de uma bola no canto do trem. Nicole entrou devagarinho e,
antes de tocar nele, ouviu-o murmurar o nome de Eponine duas vezes e balançar a cabeça.

— Sim, querida — disse ele nitidamente.


— Max — chamou Nicole. — Acorde, Max. Quando ele acordou parecia ter visto um
fantasma.
— Eu tive um sonho fantástico, Max — falou Nicole. — Agora sei que Ellie e Eponine estão
bem... Vim pedir para você sair daqui para que eles nos mandem mais comida. Sei que você
quer muito fazer alguma coisa...
Nicole parou. Max tinha se levantado e preparava-se para sair do trem, ainda com a mesma
expressão assombrada no rosto.
— Vamos embora — disse ele.
— Agora mesmo? — perguntou Nicole surpresa, ao não encontrar resistência da parte dele.
— É — disse ele descendo do trem. Um instante depois de Nicole ter descido as portas se
fecharam e o veículo afastou-se rapidamente.
— Quando você me acordou — disse Max, vendo o trem desaparecer —, eu estava no meio
de um sonho. Estava falando com Eponine. Um segundo antes de ouvir a sua voz, ela me disse
que você ia me trazer uma mensagem importante.
Max estremeceu, depois riu e começou a andar na direção das alcovas.
— É claro que eu não acredito nessa merda toda, mas foi de fato uma grande coincidência.

O trem voltou antes de escurecer, dessa vez com dois carros. O da frente era brilhante e
aberto, cheio de comida e água como sempre. O segundo estava totalmente escuro, e as portas
e janelas continuaram fechadas.
— Muito bem, muito bem — disse Max, andando para a ponta da fenda do metrô e tentando
em vão abrir a porta do segundo carro. — Vamos ver o que há aí.
Depois que a comida e a água foram retiradas, o trem não partiu como de costume. Os
humanos esperaram, mas o segundo carro misterioso recusava-se a expor seus segredos. A
uma certa altura, Nicole e seus amigos resolveram ir jantar. A conversa durante a refeição foi
desanimada e cheia de especulações sobre o novo invasor.
Quando o pequeno Kepler inocentemente sugeriu que talvez Eponine e Ellie estivessem dentro
do carro escuro, Nicole contou de novo a história do dia em que ela encontrara Richard em
coma, depois de uma longa estada com as octoaranhas. E um pressentimento espalhou-se entre
eles.
— Nós devíamos ficar de vigília a noite toda — sugeriu Max depois do jantar — para que não
haja possibilidade de algum truque enquanto estivermos dormindo. Eu dou o primeiro plantão
de quatro horas.
Patrick e Robert também se ofereceram como voluntários. Antes de irem para a cama, todos,
inclusive Benjy e as crianças, foram até a ponta da plataforma e ficaram olhando o trem.

— O que pode haver lá dentro, ma-mamãe? — perguntou Benjy.

— Não sei, querido — respondeu Nicole, abraçando o filho. — Eu realmente não tenho idéia.
Na manhã seguinte, uma hora antes de as luzes da cúpula se intensificarem, Richard e Nicole
foram acordados por Patrick e Max.
— Venham — disse Max todo agitado —, vocês precisam ver uma coisa.
No centro do salão principal havia quatro grandes criaturas pretas, segmentadas, com os dois
lados simétricos, forma e estrutura de formigas. Em cada um dos três segmentos do seu corpo
prendiam-se um par de pernas e um par de acessórios desdobráveis, que se ocupavam em
empilhar materiais. Era uma maravilha apreciar aquelas criaturas. Cada um dos braços longos
de serpente tinha a versatilidade da tromba de um elefante, com uma habilidade adicional (e
útil). Quando um braço não estava sendo usado para levantar alguma coisa ou para equilibrar
um peso carregado pelo membro oposto, ele se enfiava dentro da sua cápsula na parte lateral,
e aí ficava enroscado até voltar a funcionar. Portanto, quando esses seres alienígenas não
estavam desempenhando nenhuma tarefa, seus braços não eram vistos.
Os humanos, estarrecidos, continuaram a observar aquelas criaturas bizarras, de quase dois
metros de comprimento e um metro de largura, que esvaziaram rapidamente o conteúdo do
carro escuro do metrô, examinaram as pilhas e depois partiram no trem. Assim que os
alienígenas desapareceram, Max, Patrick, Richard e Nicole foram examinar as pilhas. Havia
objetos de todas as formas e tamanhos, mas o objeto dominante era uma peça chata e longa
parecendo um degrau de escada.
— Se me pedissem para dar um palpite — disse Richard pegando uma pecinha com forma de
caneta-tinteiro —, eu diria que a resistência dessa coisa está entre o cimento e o aço.
— Mas para que serve isso, tio Richard? — perguntou Patrick.
— E quem são eles? — perguntou Max. Richard deu de ombros e sacudiu a cabeça.
— Essas criaturas que acabaram de sair me pareceram animais domésticos avançados,
capazes de desempenhar complexas funções em seqüência, mas não de pensar.
— Então eles não são o pessoal do arco-íris de quem a mamãe fala? — perguntou Patrick.
— É claro que não — disse Nicole com um sorriso.

Os outros humanos, inclusive as crianças, foram detalhadamente informados sobre as novas


criaturas durante o café da manhã. Todos os adultos concordaram que se aqueles alienígenas
voltassem, como eles esperavam, ninguém devia interferir em nenhuma de suas tarefas, a não
ser que ficasse claro que suas atividades constituíam alguma espécie de perigo.

Quando o trem do metrô parou na sua fenda, três horas depois, dois dos novos seres saíram do
carro da frente e foram para o centro do salão principal, carregando um potinho no qual a toda
hora enfiavam um dos braços e iam deixando marcas vermelhas e brilhantes no chão. Essas
linhas vermelhas circunscreveram uma área que incluía a plataforma do metrô, todo o material
que fora empilhado e mais ou menos metade do salão.

Em seguida, mais uns dez desses animais enormes com acessórios em forma de troncos saíram
dos dois carros do metrô, carregando nas costas umas estruturas curvilíneas grandes e
pesadas. Por trás deles vinham duas octoaranhas, com cores extremamente brilhantes girando
em volta das suas cabeças esféricas. As octos andaram pelo meio do salão, inspecionaram as
pilhas de material e ordenaram que as criaturas formigas começassem uma espécie de
construção.
— Então a coisa é essa — disse Max para Patrick quando os dois observavam a cena a
distância. — São nossas amigas octoaranhas que controlam tudo por aqui. Mas que diabo elas
estão fazendo?
— Quem pode saber? — disse Patrick, impressionado com o que via.
— Olhe, Nicole — disse Richard —, por cima daquela pilha grande. Aquela formigona está
definitivamente lendo as cores da octoaranha.
— E o que nós vamos fazer agora? — disse Nicole baixinho.
— Eu acho que devemos olhar e esperar — respondeu Richard.

A construção toda foi feita dentro das linhas vermelhas pintadas no chão. Várias horas depois,
quando outra carga de metrô com os componentes curvilíneos foi retirada, a forma da
construção ficou bem clara. De um lado da sala estava sendo levantado um cilindro vertical de
quatro metros de diâmetro, com a parte do alto colocada no mesmo nível do fundo da cúpula.
Dentro do cilindro, os degraus da escada foram colocados de forma a subirem em espiral no
centro da estrutura.
O trabalho continuou durante trinta e seis horas ininterruptas. As octoaranhas arquitetas
supervisionavam as formigas gigantescas de braços versáteis. Só houve uma única interrupção
significativa durante a atividade. Kepler e Galileu, cansados de observar durante horas a
construção alienígena, deixaram inadvertidamente uma bola cair na tinta vermelha e em cima
de uma formiga. O trabalho parou no mesmo instante, e uma octoaranha retirou a bola e
verificou se a operária estava bem. Com um movimento ágil de dois dos seus tentáculos, a
octoaranha jogou a bola de volta para os meninos e o trabalho foi retomado.
Todos, menos Max e Nicole, estavam dormindo quando os alienígenas terminaram a escada,
pegaram a sobra dos materiais e partiram no trem do metrô. Max foi até o cilindro e enfiou a
cabeça para dentro.
— Muito impressionante — disse com um ar esquivo. — Mas para que serve?
— Deixe de brincadeira— disse Nicole. — É claro que eles estão esperando que a gente suba
as escadas.

— Que merda, Nicole. Eu sei disso. Mas por quê? Por que essas octoaranhas querem que a
gente suba?... Você sabe que elas vêm nos manipulando desde que nós entramos na toca delas.
Raptaram Eponine e Ellie, nos deslocaram para o Hemicilindro Sul e recusaram-se a me
deixar voltar para Nova York... O que aconteceria se não seguíssemos o plano delas?

Nicole ficou olhando para o amigo.


— Max, será que dá para adiar essa conversa para amanhã de manhã, quando estivermos
todos juntos?... Estou muito cansada.
— Certamente — disse Max. — Mas diga ao seu marido que eu acho que devíamos fazer
alguma coisa imprevisível, como por exemplo voltar andando pelo túnel até a toca das
octoaranhas. Eu não sei como tudo isso vai acabar.
— Não temos todas as respostas, Max — disse Nicole com um ar cansado —, mas eu
realmente acho que temos de cumprir os desejos das octoaranhas enquanto elas controlarem
nosso suprimento de comida e de água... Numa situação como esta, talvez a gente deva
simplesmente ter fé.
— Fé? — disse Max. — Esta palavra é uma desculpa para não se pensar — falou ele,
voltando para o cilindro. — E essa escada fantástica tanto pode nos levar para o inferno como
para o céu.

Na manhã seguinte, o trem do metrô voltou com mais comida e água. Depois que ele partiu e
todos inspecionaram a estrutura cilíndrica, Max comentou que estava na hora de os humanos
mostrarem que estavam cansados de serem dominados pelas octoaranhas. Sugeriu que ele, e
quem quisesse ir junto, pegasse o rifle que sobrara e voltasse pelo túnel que passava por
debaixo do mar Cilíndrico.
— Mas qual é o seu plano? — perguntou Richard.
— Eu quero que as octoaranhas me capturem e me levem para junto de Eponine e Ellie, para
eu poder saber se elas estão bem mesmo. Só os sonhos de Nicole não bastam...
— Mas, Max — argumentou Richard —, seu plano não é lógico. Pense bem. Mesmo que você
não seja atropelado pelo trem do metrô enquanto estiver andando pelo túnel, como irá explicar
o que quer para as octoaranhas?
— Eu estava contando com a sua ajuda, Richard — disse Max. — Eu me lembro de como
você e Nicole se comunicaram com as aves. Talvez você pudesse fazer no computador uma
figura gráfica de Eponine, para eu poder mostrá-la para as octos no meu monitor...
Nicole sentiu o tom de súplica na voz de Max e puxou a mão de Richard.
— Por que não? — disse ela. — Alguém podia ir até as escadas para ver aonde elas chegam
enquanto você cria imagens de Eponine e Ellie para Max.
— Eu gostaria de ir com Max — disse Robert Turner de repente. — Se houver alguma chance
de encontrar Ellie, eu também quero ir... Nikki ficará bem aqui com os avós.

Embora Richard e Nicole estivessem preocupados com aqueles planos, preferiram não
expressar sua ansiedade diante de todos. Patrick foi escolhido para subir as escadas e
explorar um pouco a área, enquanto Richard produziria peripécias com o computador. Max e
Robert foram para o quarto a fim de se prepararem para a viagem, e Nicole e Nai ficaram
sozinhas com Benjy e as crianças no salão principal.

— Você acha um erro Max e Robert voltarem pelo túnel, não acha, Nicole? — perguntou Nai,
no tom gentil de sempre que caracterizava sua personalidade.
— Acho sim — respondeu Nicole. — Mas não estou certa se minha opinião é relevante nesta
situação... Os dois estão desolados e frustrados e sentem que têm de fazer alguma coisa para
encontrar suas parceiras... Mesmo que essa ação não tenha muita lógica.
— O que você acha que irá lhes acontecer? — perguntou Nai.
— Não sei. Mas acho que Max e Robert vão encontrar Eponine e Ellie. Na minha opinião, as
duas foram raptadas por razões específicas... Embora eu não tenha idéia de quais sejam essas
razões, creio que as octoaranhas não farão mal algum a Eponine e Ellie, e acabarão
devolvendo-as para nós.
— Você é muito crédula — comentou Nai.
— Nem tanto. Minhas experiências com octoaranhas me dizem que estamos tratando com uma
espécie de alto senso de moralidade... Eu sei que os raptos não são congruentes com esse
quadro, e não culpo Max nem Robert por terem opiniões diferentes sobre elas, mas aposto que
a longo prazo nós compreenderemos até mesmo o objetivo desses raptos.
— Nesse meio-tempo —; disse Nai — enfrentaremos uma situação difícil. Se Max e Robert
partirem e não voltarem...
— Eu sei — falou Nicole —, mas não há nada que se possa fazer. Os dois decidiram que
precisam tomar uma atitude agora, especialmente Max. É uma coisa um pouco antiquada e
machista, mas compreensível. E nós devemos nos adaptar às necessidades deles, mesmo não
concordando com as suas ações.

Patrick voltou em menos de uma hora, contando que a escada terminava em um patamar que ia
dar num corredor por trás da cúpula. Esse corredor levava a uma outra escada menor, que
subia mais dez metros e chegava em uma espécie de iglu, uns cinqüenta metros ao sul do
penhasco que dava para o mar Cilíndrico.
— E como era do lado de fora de Rama? — perguntou Richard.
— A mesma coisa que no norte. Frio, mais ou menos uns cinco graus centígrados, e escuro,
com poucas luzinhas fracas no fundo... O iglu é quente e bem iluminado, tem camas e um
banheiro; certamente foi projetado para os humanos, mas há pouco espaço para a gente se
movimentar.
— Não há corredores nem passagens? — perguntou Max.
— Não — disse Patrick, sacudindo a cabeça.
— Tio Rich-ard fez ótimas ima-gens de El-lie e Ep-o-nine — falou Benjy para o irmão. —
Você precisa ver.
Max apertou dois botões do seu computador portátil e apareceu uma excelente imagem com o
rosto de Eponine.
— Richard não acertou fazer os olhos dela da primeira vez — disse Max —, mas eu
consertei... Criar a imagem de Ellie foi mais fácil para ele.

— Então vocês estão mesmo prontos para ir? — perguntou Patrick.

— Quase. Vamos esperar até amanhã de manhã para as luzes do salão iluminarem mais o
túnel.
— Quanto tempo acham que vão levar para chegar do outro lado?
— Mais ou menos uma hora, num passo rápido. Espero que Robert consiga me seguir.
— E o que vão fazer se ouvirem o trem do metrô chegando? — perguntou Patrick.
— Não poderemos fazer grande coisa — disse Max, dando de ombros. — Já inspecionamos o
túnel, e há muito pouco acostamento. Seu tio Richard disse que devemos contar com o sistema
do metrô de proteção contra falhas.
Durante o jantar houve uma discussão sobre o rifle. Richard e Nicole não queriam de jeito
algum que Max levasse a arma, não porque quisessem que ela ficasse com o resto da família,
mas porque tinham medo de um incidente que pudesse afetar a todos. Richard não teve muito
tato ao expor sua idéia, e Max ficou ofendido.
— Então o senhor-sabe-tudo — replicou Max a certa altura — pode me dizer como sabe que o
meu rifle será inútil para eu encontrar Eponine?
— Max — disse Richard, perdendo a paciência —, as octoaranhas devem...
— Deixe que eu explico, querido — interrompeu Nicole. — Max — disse ela num tom mais
suave —, eu não posso imaginar uma situação em que o rifle tenha alguma valia. Se você
precisar dele para lidar com as octoaranhas é porque elas são hostis, e o destino de Eponine e
Ellie já terá sido decidido há muito tempo... Nós só não queremos...
— E se encontrarmos outras criaturas hostis, não-octoaranhas, e precisarmos nos defender? —
perguntou Max obstinadamente. — E se eu precisar usar o rifle para dar algum tipo de sinal
para Robert?... Há várias situações a serem pensadas...
O grupo não conseguiu dar uma solução para o assunto. Richard ficou ainda com mais raiva
quando Nicole e Max foram para o quarto.
— Será que Max não compreende que ele quer levar a arma para ter uma sensação de
segurança? Uma sensação falsa? E se fizer alguma coisa precipitada e as octoaranhas não nos
mandarem mais comida e água?
— Não podemos nos preocupar com isso agora, Richard. A essa altura creio que não há nada
a fazer senão pedir a Max para ser cuidadoso e lembrar-se de que ele é nosso representante.
Por mais que a gente fale, ele não vai mudar de opinião.
— Então talvez se deva fazer uma votação para ver se ele leva o rifle ou não. E mostrar a Max
que todos estão contra ele.
— Meu instinto diz —- replicou Nicole depressa — que uma votação seria uma forma
absolutamente errada de lidar com Max. Ele já percebeu que todos estão contra ele. Uma
censura coordenada o isolaria e poderia fazer com que ele viesse a ter um incidente... Não,
querido, nesse caso é melhor esperarmos que não ocorra nada de desagradável...

Richard ficou calado um instante.

— Eu acho que você tem razão — falou finalmente. — Como sempre... Boa noite, Nicole.
— Boa noite, Richard.

— Nós vamos todos esperar aqui por quarenta e oito horas — disse Richard para Max e
Robert. — Depois disso começaremos a mudar nossas coisas para o iglu lá de cima.
— Tudo bem — disse Max ajeitando a correia da sua mochila e dando um risinho. — Não se
preocupem. Eu só vou atirar nas suas amigas octoaranhas se for absolutamente necessário. —
Virou-se para Robert e falou: — Então, meu amigo, está pronto para a aventura?
Robert não parecia muito confortável com sua mochila. Inclinou-se meio desajeitado e
levantou a filhinha para se despedir.
— Papai vai ficar fora só por pouco tempo, Nikki. Vovô e vovó vão estar aqui tomando conta
de você.
Antes dos dois partirem, Galileu chegou correndo pelo salão com um pequeno pacote nas
costas.
— Eu também vou — gritou. — Eu quero lutar com as octoaranhas. Todos riram, e Nai
explicou a Galileu por que ele não podia ir com Max e Robert. Patrick atenuou a decepção do
menino dizendo que ele seria o primeiro a subir a escada quando a família se mudasse para o
iglu.
Max e Robert entraram rapidamente no túnel. Nos primeiros cem metros caminharam em
silêncio, entretidos com as fascinantes criaturas marinhas do outro lado do vidro ou plástico
transparente. Duas vezes Max teve de diminuir a marcha para esperar por Robert, que estava
se cansando muito. Os dois não encontraram nenhum trem do metrô. Depois de pouco mais de
uma hora, a lanterna deles iluminou a primeira estação do outro lado do mar Cilíndrico.
Quando Max e Robert estavam a cinqüenta metros da plataforma, todas as luzes foram ligadas
e eles puderam ver para onde estavam indo.
— Richard e Nicole estiveram aqui — disse Max. — Por trás do arco há uma espécie de
átrio, e depois um labirinto de corredores.
— O que vamos fazer aqui? — perguntou Robert, que, ao sentir-se fora do seu elemento,
deixou que Max liderasse a situação.
— Eu ainda não decidi. Creio que devemos explorar um pouco para ver se encontramos
alguma octoaranha.
Para surpresa de Max, além da plataforma, no meio do chão do átrio, ele viu um grande
círculo azul pintado, do qual saía uma linha azul grossa virando para a direita, no início do
labirinto de corredores vermelhos.
— Richard e Nicole nunca mencionaram essa linha azul — disse Max para Robert.
— É obviamente uma sinalização para idiotas — disse Robert, rindo nervoso. — Seguir a
linha azul grossa é tão fácil como seguir o caminho de tijolo amarelo.

Os dois entraram no primeiro corredor. A linha azul do centro do chão estendia-se uns cem
metros à frente e depois virava à esquerda, em um cruzamento distante.

— Você acha que devemos seguir a linha, não é? — perguntou Max.


— E por que não? — disse Robert, dando uns passos no corredor.
— É óbvio demais — falou Max, para si mesmo e para o companheiro, agarrando o rifle e
seguindo Robert. Depois da primeira virada à esquerda ele falou de novo: — Você não acha
que esta linha foi colocada aqui especificamente para nós, acha?
— Não — respondeu Robert, parando um instante. — Como alguém poderia saber que
vínhamos para cá?
— Foi exatamente isso que me perguntei — resmungou Max.
Os dois caminharam em silêncio seguindo a linha azul, e viraram mais três vezes à esquerda
até chegarem a um arco que ficava a apenas um metro e meio do chão. Eles se abaixaram e
entraram num salão com teto e paredes vermelho-escuras. A linha azul terminava em um
grande círculo azul no meio da sala.
Os dois se sentaram no círculo azul, e menos de um segundo depois as luzes se apagaram. Um
filme silencioso, com uma imagem de cerca de um metro quadrado, apareceu na parede
diretamente em frente a eles. No centro da imagem estavam Eponine e Ellie, vestidas com uns
camisões amarelos esquisitos. As duas conversavam entre si e com uma pessoa ou coisa à
direita que não dava para ver, mas Max e Robert não ouviam nada do que elas diziam. Um
instante depois, as duas deslocaram-se um pouco para a direita, passaram por uma octoaranha
e apareceram ao lado de um animal gordo e estranho, lembrando vagamente uma vaca, com
uma barriga branca chata. Ellie segurou uma caneta com forma de cobra, apertou-a várias
vezes e escreveu na superfície branca a seguinte mensagem: "Não se preocupem. Nós estamos
bem." As duas sorriram, e a imagem desapareceu abruptamente um segundo depois.
Enquanto Max e Robert se recobravam do espanto, o filme de noventa segundos foi repetido
duas vezes integralmente. Na segunda repetição, eles conseguiram prestar bastante atenção aos
detalhes. Quando o filme terminou, a sala vermelha iluminou-se toda de novo.
— Jesus Cristo — disse Max, sacudindo a cabeça. Robert estava contente.
— Ela está viva! — exclamou. — Ellie está viva!
— Se pudermos acreditar no que vimos — falou Max.
— Ora, Max — falou Robert um instante depois. — Por que as octoaranhas fariam um filme
para nos enganar? Não seria muito mais fácil não fazerem nada?
— Não sei. Mas me diga uma coisa. Como elas sabiam que nós dois estávamos preocupados
com Eponine e Ellie? Só há duas explicações possíveis. Ou elas nos observaram desde que
entramos nesta toca ou alguém...
— .... do nosso grupo está passando informações para as octoaranhas. Max, não passou pela
sua cabeça nem um instante que pudesse ser Richard ou Nicole, não é?...

— É claro que não — interrompeu Max. — Mas não consigo entender como nós pudemos ser
observados com tanto cuidado. Não vimos nenhum tipo de dispositivo que pudesse captar
nossa imagem... A não ser que uns lindos e sofisticados transmissores tenham sido colocados
em nós, ou dentro de nós, o que não faz o menor sentido.
— Mas como eles puderam fazer isso sem que notássemos nada?
— Que merda — exclamou Max, abaixando-se para passar debaixo do arco e ficando de pé
no corredor, vermelho do lado oposto. — A menos que eu esteja enganado, aquela droga de
trem estará esperando por nós quando chegarmos na estação, e as octoaranhas pretendem que a
gente volte pacificamente para casa. Tudo certinho demais.
Max estava certo. O trem estava estacionado com a porta aberta quando Robert e ele chegaram
no átrio vindos dos corredores vermelhos. Max parou, com um olhar selvagem.
— Eu não vou entrar nessa merda de trem — disse em voz baixa.
— O que pretende fazer? — perguntou Robert, um pouco assustado.
— Vou voltar para o labirinto — disse Max. Pegando o rifle e voltando para o corredor, ele
afastou-se da linha azul e correu uns cinqüenta metros até encontrar a primeira octoaranha.
Logo em seguida apareceram várias outras, que se espalharam por todo o corredor e
começaram a andar na direção de Max.
Max parou, olhou para as criaturas que avançavam e olhou para trás. Na extremidade do
corredor, outro grupo de octoaranhas vinha em sua direção.
— Esperem um instante — gritou Max. — Eu tenho uma coisa a dizer. Vocês devem entender
pelo menos parte da nossa língua, senão não poderiam saber que estávamos vindo para cá...
Eu não estou satisfeito. Quero uma prova de que Eponine está viva...
As octoaranhas, com as cabeças cercadas de cores, estavam quase ao lado dele. Apavorado,
Max deu um tiro no ar como um aviso. Em menos de dois segundos ele sentiu uma mordida
forte na nuca e caiu desmaiado no chão.
Robert, que por indecisão ficara na estação, correu pela plataforma quando ouviu o tiro. Ao
chegar ao corredor vermelho, viu as octoaranhas levantando Max do chão e ficou vendo os
extraterrestres carregarem Max para o trem do metrô e depositá-lo gentilmente no canto do
carro. Depois, as octoaranhas mostraram a porta aberta para Robert e ele entrou no trem. Em
menos de dez minutos, os dois estavam de volta ao salão debaixo da cúpula do arco-íris.

Max só acordou dez horas depois. Nesse meio-tempo, Robert e Nicole o examinaram
minuciosamente e não encontraram nenhum ferimento nem lesão. Robert contou várias vezes as
aventuras pelas quais eles tinham passado, exceto, é claro, o que ocorrera durante o momento
crítico em que Max ficou sozinho no corredor vermelho.

A maioria das perguntas da família era sobre o que eles haviam visto no filme. Ellie ou
Eponine demonstravam estar estressadas ou forçadas a se apresentar no filme? Elas tinham
perdido peso? Pareciam descansadas?

— Creio que agora sabemos muito mais sobre a natureza das nossas hospedeiras — disse
Richard quando a família estava terminando de comentar pela segunda vez a história de
Robert. — Primeiro, e antes de tudo, está claro que as octoaranhas, ou qualquer espécie que
esteja encarregada de tudo isto aqui, nos observam regularmente e podem compreender nossas
conversas. Não há outra explicação possível para aquele filme com Ellie e Eponine ser
mostrado a Max e Robert.
— Segundo, o nível tecnológico deles, pelo menos com relação a filmes, ou está centenas de
anos atrás do nosso ou, se Robert tem razão quando diz que não havia um projetor na sala nem
na parede, eles são tão adiantados que sua tecnologia nos parece mágica. Em terceiro lugar...
— Mas, tio Richard — interrompeu Patrick —, por que o filme não tinha som? Não seria mais
fácil Eponine e Ellie simplesmente terem dito que estavam bem? Não é mais provável que as
octoaranhas sejam surdas do que elas não terem uma tecnologia avançada na área de
filmagem?
— Que idéia interessante, Patrick — comentou Richard. — Nós nunca consideramos isso. É
claro que elas não precisam ouvir para se comunicar...
— Criaturas que passaram a maior parte da sua vida evolutiva no fundo do mar em geral são
surdas — falou Nicole. — Suas necessidades sensoriais básicas de sobrevivência têm outros
comprimentos de onda, e, como elas têm um número limitado de células para os sensores e seu
processamento, a audição delas não chega a se desenvolver.
— Eu trabalhei com surdos na Tailândia — disse Nai — e fiquei fascinada ao perceber que
não poder ouvir não é um empecilho significativo em uma cultura avançada. A linguagem de
sinais deles tem um alcance fantástico, e é muito complexa... Os humanos da Terra não
precisam mais ouvir para caçar, ou para fugir de animais perigosos... A linguagem de cores
das octoaranhas é mais do que adequada à comunicação...
— Espere um instante — disse Robert. — Você não está desconsiderando a forte evidência de
que as octoaranhas podem ouvir? Como elas sabiam que Max e eu íamos sair em busca de
Ellie e Eponine se não ouviram nossa conversa?
Fez-se um minuto de silêncio, e Robert continuou:
— Talvez elas tenham mandado Ellie e Eponine traduzir o que estava sendo dito — sugeriu
Richard.
— Mas isso exigiria dois acontecimentos pouco prováveis — falou Patrick. — Primeiro, se as
octoaranhas são surdas, por que elas teriam um equipamento sofisticado e miniaturizado para
registrar sons? Segundo, mandar Eponine e Ellie traduzir o que nós dissemos implica um nível
de interação de comunicação difícil de ser desenvolvido em um mês... Não, na minha opinião
as octos provavelmente perceberam a razão da viagem de Robert e de Max baseadas na
evidência visual: as imagens de Ellie e Eponine no monitor do computador portátil.
— Bravo — bradou Richard. — Brilhante raciocínio...
— Vocês vão ficar papeando sobre essa merda a noite toda? — disse Max entrando no meio
do grupo.

Todos pularam de susto.

— Você está bem? — perguntou Nicole.


— É claro. Estou até me sentindo descansado...
— Conte o que aconteceu — interrompeu Robert. — Eu ouvi o tiro, mas quando cheguei na
esquina duas octoaranhas já estavam carregando você.
— Também não sei o que aconteceu — disse Max. — Antes de eu desmaiar senti uma picada
forte na nuca... Foi isso... Uma das octos atrás de mim deve ter me atingido por trás com uma
espécie de dardo.
Max esfregou a nuca, e Nicole deu uma espiada.
— Não vejo nada, nem ao menos um furinho — disse ela. — Os dardos devem ser muito
finos.
Max olhou para Robert.
— Espero que você tenha pegado meu rifle.
— Sinto muito, Max — disse Robert. — Só pensei nisso quando estávamos no trem.
Max olhou para os amigos.
— Muito bem, minha gente, quero que vocês saibam que minha revolta se esgotou. Estou
convencido de que não podemos lutar contra essas criaturas, por isso é melhor tentarmos
seguir o plano delas.
Nicole pôs a mão no ombro do amigo.
— Este é o novo Max Puckett — disse ela com um sorriso.
— Posso ser teimoso — replicou Max com sua risadinha característica —, mas acho que não
sou burro.

— Eu não acho que todos devam se mudar para o iglu de Patrick — falou Max na manhã
seguinte, depois que outro trem chegou com o suprimento de comida e água.
— Por que você diz isso? — perguntou Richard. — É evidente que o iglu foi projetado para
os humanos, senão por que teriam construído uma escada?
— Não faz sentido — falou Max. — Especialmente para as crianças. O lugar é apertado para
se viver... Acho que o iglu é uma espécie de parada temporária, como uma cabine na mata, se
você preferir.
Nicole tentou imaginar os dez vivendo naquele espaço exíguo que Patrick tinha descrito.
— Entendo seu ponto de vista, Max — disse ela —, mas o que você sugere?
— Por que não vamos inspecionar o iglu com mais cuidado? Talvez Patrick tenha deixado de
ver alguma coisa, com o exame rápido que ele fez... De qualquer forma, saberemos o que
esperam que a gente faça. As octoaranhas, ou quem quer que esteja nos guiando, não nos
deixariam na incerteza.

Richard, Max e Patrick foram selecionados para a missão de reconhecimento. A partida deles
foi retardada para que Patrick pudesse manter sua promessa a Galileu. Patrick seguiu o menino
de seis anos pela longa escada em espiral até o patamar, e depois até o fundo da segunda
escada. Aquela altura, o menino já estava exausto para continuar a subir. Na verdade, quando
estavam descendo da cúpula, suas pernas não agüentaram e Patrick teve de carregá-lo nos
últimos doze metros de descida.

— Você vai conseguir subir de novo? — perguntou Richard a Patrick.


— Creio que sim — disse ele, ajeitando sua mochila.
— Pelo menos assim ele não terá de esperar pelos velhinhos o tempo todo — comentou Max
com uma risada.
Os três pararam para admirar a vista do patamar do alto das escadas cilíndricas.
— Às vezes — disse Max, olhando as maravilhosas cores do arco-íris da cúpula, poucos
metros acima da sua cabeça —, acho que tudo o que me aconteceu desde que subi a bordo do
Pinta foi um sonho... Como é que os porcos, galinhas e até mesmo Arkansas se encaixam neste
cenário?... É demais.
— Deve ser difícil — disse Patrick, caminhando pelo corredor — comparar tudo isso com a
sua vida normal na Terra. Mas pense na minha situação. Eu nasci em uma espaçonave
extraterrestre com destino a um mundo localizado perto da estrela Sírius. Passei mais da
metade da minha vida dormindo. Não tenho idéia do que seja uma vida normal...
— Que merda, Patrick — disse Max, pondo o braço em torno do rapaz. — Se eu fosse você
estaria completamente maluco.
Mais tarde, quando estavam subindo a segunda escada, Max parou e virou-se para Richard,
abaixo dele.
— Espero que você entenda, Wakefield — disse, em tom caloroso —, que sou um intratável e
que não tive intenção de agredir você durante nossas discussões dos últimos dias.
Richard sorriu.
— Eu compreendo, Max. E também sei que sou tão arrogante quanto você é intratável... Aceito
suas desculpas indiretas se você aceitar as minhas.
Max fingiu-se indignado.
— Não pedi desculpas porra nenhuma — disse ele, subindo o degrau seguinte.
O iglu era exatamente como Patrick havia descrito. Os três homens vestiram as jaquetas e se
prepararam para ir para o lado de fora. Richard, que foi o primeiro a sair pela porta, viu o
outro iglu antes que Max e Patrick tivessem dado a primeira respirada no ar de Rama.
— Aquele outro iglu não estava lá, tio Richard — insistiu Patrick. — Eu andei por essa área
toda.
O segundo iglu, exatamente um décimo menor do que o primeiro, ficava cerca de trinta metros
mais longe do penhasco que beirava o mar Cilíndrico e brilhava na escuridão de Rama.
Quando os homens começaram a andar na sua direção, a porta do iglu menor abriu-se e
surgiram duas figuras humanas minúsculas, de cerca de vinte centímetros de altura e
iluminadas por dentro.

— Que droga é aquilo? — exclamou Max.

— Olhe bem — disse Patrick excitado —, é minha mãe e tio Richard.


As duas figuras viraram-se para o sul na escuridão, afastando-se do penhasco e do mar.
Richard, Max e Patrick aproximaram-se delas para ver melhor. As figuras estavam vestidas
com as mesmas roupas que Richard e Nicole haviam usado no dia anterior. A atenção para os
detalhes era extraordinária. O cabelo, o rosto, a cor da pele, e até mesmo a cor da barba de
Richard, eram uma perfeita réplica dos Wakefield. As figuras também estavam carregando
mochilas.
Max parou para pegar a figura de Nicole, mas recebeu um choque elétrico quando tocou nela.
A figura virou-se para Max e sacudiu a cabeça enfaticamente. Os homens seguiram o casal
durante mais uns cem metros e depois pararam.
— Não há muita dúvida do que nós devemos fazer em seguida — disse Richard.
— Não — disse Max. — Parece que você e Nicole estão sendo chamados.
Na tarde do dia seguinte, Richard e Nicole colocaram nas mochilas alimento e água
suficientes para vários dias e despediram-se da família. Nikki tinha dormido na cama com
eles na noite anterior e ficou muito chorosa quando seus avós partiram. A subida pela escada
era cansativa.
— Eu devia ter subido mais devagar — disse Nicole, respirando com dificuldade, quando ela
e Richard chegaram ao patamar abaixo da cúpula e acenaram para todos. Nicole sentia os
batimentos irregulares do seu coração, e esperou pacientemente que as palpitações
diminuíssem.
Richard também ficou sem ar.
— Já não somos mais tão jovens como éramos anos atrás em Nova York — disse ele depois
de um longo silêncio, sorrindo e pondo os braços em volta de Nicole. — Está pronta para
continuar nossa aventura?
Nicole fez que sim. Os dois foram andando devagar pelo longo corredor, de mãos dadas.
— Querido — disse ela de repente —, não é incrível estarmos sozinhos de novo, só nós dois,
ainda que por poucas horas apenas?... Eu gosto dos outros, mas é uma carga a gente se sentir
responsável o tempo todo...
Richard deu uma risada.
— Foi o papel que você escolheu, Nicole, ninguém a forçou a isso. Richard inclinou-se e
beijou-lhe o rosto. Nicole virou-se para ele e lhe deu um forte beijo nos lábios.
— Você sugeriu com esse beijo — perguntou Richard imediatamente, com um amplo sorriso
— que devíamos passar esta noite no iglu e começar a viagem amanhã?
— Acho que você está lendo meus pensamentos, sr. Wakefield — falou Nicole com um sorriso
matreiro. — Na verdade, eu estava pensando que seria divertido imaginarmos hoje à noite que
somos amantes de novo... Pelo menos nossa imaginação ainda deve funcionar bem.

Quando estavam a trezentos metros ao sul dos dois iglus, Richard e Nicole não conseguiram
ver mais nada, a não ser iluminando o caminho com a lanterna. Embora a estrada de terra, com
alguma pedras, fosse boa, era preciso andar com muito cuidado, pois de vez em quando um
deles tropeçava.

— Talvez essa caminhada no escuro seja longa e muito cansativa — falou Nicole, quando
pararam para beber água.
— E fria também — acrescentou Richard, bebendo um gole. — Você não está sentindo frio?
— Quando me mexo, não — disse Nicole, esticando os braços e ajeitando sua mochila.
Tinha se passado quase uma hora quando viram uma luz no céu ao sul, movendo-se na direção
deles e tornando-se maior.
— O que você acha que é isso? — perguntou Nicole.
— Será a Fada Azul? — respondeu Richard. — A gente podia fazer um pedido para a
estrela...
Nicole riu.
— Você é impossível — disse ela.
— Depois da noite passada — falou Richard, enquanto a luz continuava a mover-se na direção
deles —, estou me sentindo um garoto de novo.
Nicole riu satisfeita e balançou a cabeça. Eles se deram as mãos em silêncio, enquanto a bola
de luz continuava a aumentar de tamanho. Um minuto depois ela parou, uns trinta metros à
frente deles e uns vinte metros acima de suas cabeças. Richard e Nicole desligaram as
lanternas, pois agora podiam ver bem o terreno em volta numa extensão de cem metros.
Richard tapou parcialmente os olhos e tentou identificar a fonte de iluminação, mas a luz era
tão brilhante que não dava para olhar diretamente para ela.
— O que quer que isso seja — falou Nicole quando recomeçaram a caminhar —, parece que
sabe para onde nós devemos ir.
Duas horas mais tarde, Richard e Nicole encontraram um caminho que levava para sudoeste,
com campos cultivados dos dois lados da estrada. Quando interromperam a viagem para
almoçar, foram andar pelos campos e descobriram que um dos alimentos básicos vindos da
cúpula, um legume com gosto semelhante à vagem mas parecendo uma abóbora amarela, era a
principal plantação dali. Esse legume se alternava com fileiras de uma planta de um vermelho
brilhante que eles nunca haviam visto. Richard puxou uma do chão e deixou-a cair
imediatamente quando a esfera verde e rija que ficara debaixo do solo começou a enroscar-se
no fundo do talo vermelho. Ao bater no chão, a criatura rolou uns centímetros até seu buraco
original e enterrou a esfera verde no mesmo lugar.
Richard riu.
— Acho que vou ter de pensar duas vezes antes de fazer uma coisa assim.
— Olhe lá — falou Nicole um instante depois. — Não é um dos animais que construíram a
escada?

Os dois desceram pelo caminho e atravessaram o campo para ver melhor.

Era na verdade uma daquelas formigas grandes com os seis braços compridos, que vinha
andando na direção deles, colhendo os legumes com uma habilidade fantástica, cuidando das
três fileiras que ficavam de cada lado do seu corpo principal. Cada braço, ou tronco,
descascava os legumes e colocava-os em pilhas que ficavam entre as fileiras, com cerca de
dois metros de distância umas das outras. Era uma cena fascinante, os seis braços
desempenhando tarefas diferentes simultaneamente, e a distâncias diferentes do corpo
principal.
Quando a criatura chegou ao caminho, seus braços se recolheram rapidamente, depois ela
desceu seis fileiras e entrou no campo, seguindo na direção oposta. A plantação estava sendo
colhida de norte a sul, e, ao recomeçarem a andar, Richard e Nicole passaram pela parte do
campo onde a colheita já fora terminada pela formiga gigante. Ali eles viram umas
criaturinhas velozes, parecendo roedores mas ligeiramente maiores, apanhando as pilhas
espalhadas e levando-as para oeste.
Richard e Nicole depararam-se com vários cruzamentos enquanto andavam pelos campos, e a
cada vez a luz flutuante indicava o caminho que eles deviam seguir. Os campos estendiam-se
por muitos quilômetros. As plantações eram variadas, mas, como Richard e Nicole estavam
ficando com fome e muito cansados, não pararam mais para examinar cada novo legume que
viam.
A certa altura, os dois chegaram numa área plana e aberta, de terra fofa. A luz circulou três
vezes acima deles e ficou pairando no centro da área.
— Acho que é aqui que devemos passar a noite — disse Richard.
— Tomara — disse Nicole, aceitando a ajuda de Richard para retirar sua mochila. — Acho
que não vou ter problema para dormir, mesmo que seja neste chão duro.
Depois de jantarem, eles encontraram um lugar confortável para dormir juntinhos. Quando
ambos estavam quase dormindo, a luz começou a diminuir e depois a baixar.
— Olhe — sussurrou Richard —, a luz vai descer para o chão.
Nicole abriu os olhos e ficou observando a luz reduzir seu brilho, formar um arco gracioso e
aterrissar do outro lado da área aberta, ainda brilhando ligeiramente. Embora Richard e
Nicole não pudessem ver bem a criatura, sabiam que ela era comprida e magra, com asas duas
vezes maiores que o corpo.
— É um vaga-lume gigante! — exclamou Richard, mas logo não puderam mais perceber os
contornos do animal.

— Biologia para luzes, biologia para fazendas e equipamentos de construção... Será que
nossas amigas octoaranhas, ou talvez quem esteja acima delas nessa fantástica hierarquia
simbiótica, são as grandes biólogas da galáxia?
— Não sei, Richard — respondeu Nicole terminando seu café da manhã.
— Mas parece que a evolução tecnológica delas seguiu um caminho bem diferente do nosso.
Os dois haviam visto, assombrados, o vaga-lume gigante voltar a brilhar e a tomar sua posição
costumeira assim que percebeu que eles estavam acordando. Um instante depois, uma segunda
criatura semelhante veio se aproximando do sul. E as duas luzes se juntaram, formando uma
iluminação equivalente à luz do dia no Novo Éden.
Richard e Nicole tinham dormido bem e sentiam-se descansados. Atravessaram quilômetros e
quilômetros pelos campos iluminados pelos seus dois guias, e passaram por um lugar com
gramados de mais de três metros de altura. Uns cem metros adiante desse gramado fizeram
uma curva fechada para a esquerda e encontraram-se na beira de um conjunto de tanques
d'água rasos, que se estendiam a distância.
Eles andaram para a esquerda durante alguns minutos, até chegarem ao que Richard identificou
como o canto nordeste do conjunto. O sistema consistia de uma série de tanques longos, rasos
e retangulares, feitos de uma liga metálica cinzenta. Cada um desses tanques tinha cerca de
vinte metros de largura na direção leste-oeste, centenas de metros de comprimento e um metro
de altura. Em seu interior havia um líquido parecendo água. Nos quatro cantos de cada
retângulo estreito viam-se postes cilíndricos vermelhos, brilhantes e grossos, com cerca de
dois metros de altura e esferas brancas na ponta.
Richard e Nicole andaram cento e sessenta metros de leste a oeste examinando cada tanque e
os oito postes cilíndricos grossos, que marcavam o local onde os tanques adjacentes tinham
lados em comum. Não viram nada nos tanques além de água.
— Então isso é uma espécie de usina de purificação? — perguntou Nicole.
— Duvido muito — replicou Richard, parando com Nicole na ponta oeste. — Olhe aquela
quantidade de peças pequenas e detalhadas, presas na parede interna deste tanque bem em
frente ao cilindro... Eu diria que são tipos de componentes eletrônicos complexos. Não
haveria necessidade de tudo isso em um sistema simples para purificar a água. Nicole olhou
de esguelha para Richard.
— Esta não, Richard, isto é muita presunção. Como você pode querer saber a função de um
monte de linhas tridimensionais torcidas dentro de um tanque d'água alienígena?
— Eu não disse que tinha certeza — respondeu Richard, dando uma gargalhada. — Só estava
tentando dizer que a coisa parece complexa demais para servir apenas de purificador de água.
As luzes acima deles chamavam-nos para o sul. O segundo grupo de tanques rasos também
continha apenas água; porém, quando chegaram ao terceiro conjunto de tanques retangulares e
postes cilíndricos, Richard e Nicole perceberam que a água estava cheia de bolinhas
minúsculas de muitas cores. Richard arregaçou a manga e enfiou a mão na água, tirando
centenas dessas bolinhas.
— São ovos — disse Nicole com firmeza. — Tenho tanta certeza disso como você tem de que
aquelas coisinhas dentro da parede do tanque são componentes eletrônicos.
Richard riu de novo.
— Olhe — disse ele, colocando os objetos minúsculos na frente dos olhos de Nicole —, há só
cinco tipos, se você examiná-los com atenção.
— Cinco tipos de quê? — perguntou Nicole.
As coisinhas parecendo ovos enchiam todo o comprimento do terceiro grupo de tanques.
Quando Richard e Nicole estavam se aproximando da quarta fileira de cilindros e de outro
conjunto de tanques que se estendia mais cem metros para o sul, os dois se sentiram cansados.
— Se não virmos nada de novo aqui — disse ela —, que tal parar para o almoço?
— Ótima idéia — disse Richard.
Mas, quando estavam a cinqüenta metros de distância da quarta fileira de tanques, notaram
algo diferente. Um veículo quadrado robotizado, com uns trinta centímetros de comprimento e
largura e dez de altura, movia-se velozmente entre os postes cilíndricos.
— Eu sabia que esses postes eram marcas para algum tipo de veículo — disse Nicole,
brincando com Richard.
Richard estava fascinado demais para responder. Além do robô, que fazia um ciclo completo
por entre todas as fileiras de tanques de leste a oeste a mais ou menos três minutos, havia
outras maravilhas a serem observadas. Cada tanque ali era subdividido em duas longas peças
por uma cerca de malha paralela às paredes, que ficava ligeiramente acima do nível da água.
De um lado da malha via-se um verdadeiro enxame de criaturas nadadoras de cinco cores
diferentes. Do outro lado, círculos brilhantes parecendo moedas de areia espalhavam-se por
todo o comprimento do tanque. A cerca era posicionada de modo a que três quartos do volume
do tanque ficassem do lado dos círculos, dando a eles muito mais espaço para manobrar do
que aos nadadores tão densamente empilhados.
Richard e Nicole debruçaram-se para examinar aquela atividade. As moedas de areia
moviam-se em todas as direções. Como a água estava infestada de tantas criaturas e tanta
atividade, Richard e Nicole levaram vários minutos para perceber os parâmetros. Em
intervalos irregulares, cada moeda de areia pulava por cima da cerca de malha, propulsionada
por cílios em forma de chicote colocados debaixo de seu corpo chato; depois, enquanto ficava
ancorada na cerca, ela usava outro par de cílios para capturar um nadador minúsculo e puxálo
pelos buracos da malha. Durante o tempo em que a moeda de areia ficava encostada na cerca,
sua luz ia esmaecendo. Se ela ficasse tempo demais e pegasse vários nadadores, seu brilho
sumia de todo.
— Olhe o que acontece quando ela sai da cerca — disse Richard, apontando uma moeda logo
abaixo deles. — À medida que ela vai nadando com suas companheiras, sua luz vai sendo
reativada.
Richard voltou depressa para o poste cilíndrico mais próximo, ficou de joelhos no chão e fez
um buraco com umas das ferramentas que estavam na sua mochila.
— Há muito mais coisa no sistema subterrâneo — disse ele excitado. — Aposto que todo esse
conjunto faz parte de um gigantesco gerador de energia.
Richard deu três passos largos na direção sul, anotou com cuidado sua posição e debruçou-se
no tanque para contar as moedas de areia existentes entre o poste cilíndrico e ele. Era difícil
contá-las, em virtude do movimento constante dos círculos brilhantes.

— Aproximadamente trezentas em três metros de comprimento do tanque, totalizando cerca de


vinte e cinco mil no tanque inteiro, ou duzentas mil em uma fileira completa — disse Richard.

— Você está imaginando então — disse Nicole — que esses postes cilíndricos são uma
espécie de sistema de armazenagem? Como se fossem baterias?
— Provavelmente — respondeu Richard. — Que idéia fabulosa! Encontrar uma criatura viva
que gera eletricidade internamente. Forçá-la a desistir de sua carga acumulada para poder
comer. O que poderia ser melhor que isso?
— E esse veículo robotizado, andando para baixo e para cima entre os postes, qual é a função
dele?
— Eu diria que é uma espécie de monitor — explicou Richard.
Richard e Nicole almoçaram e depois terminaram de inspecionar a suposta usina elétrica. O
conjunto todo consistia de oito colunas e oito fileiras, num total de sessenta e quatro tanques.
Apenas vinte estavam em atividade naquela hora.
— Muita capacidade ociosa — comentou Richard. — Os engenheiros compreendem
claramente os conceitos de lucro e margem.
Os vaga-lumes gigantes agora dirigiam-se para leste por uma espécie de auto-estrada. Por
duas vezes, Richard e Nicole encontraram pequenos bandos das criaturas semelhantes a
formigas indo em direção oposta, mas não houve qualquer interação.
— Essas criaturas serão inteligentes o bastante para cooperarem sem supervisão? —
perguntou Nicole. — Ou será que não nos deixam ver os seres que lhes dão as ordens?
— Esta é uma pergunta interessante — comentou Richard. — Lembra-se com que rapidez a
octoaranha chegou até a formiga quando ela foi atingida pela bola? Talvez elas tenham uma
inteligência limitada, mas não funcionem bem em ambientes novos ou desconhecidos.
— Como algumas pessoas que a gente conhece — disse Nicole com uma risada.
A longa caminhada para leste terminou quando as duas luzes que lhes serviam de guia pararam
sobre um grande campo de terra fora da estrada. A distância, eles viram no campo o que lhes
pareceu quarenta traves de gol de futebol cobertas de hera, distribuídas em cinco fileiras de
oito traves cada.
— Quer checar o guia de viagem, por favor? — pediu Richard. — É mais fácil a gente
compreender o que vê quando lê a explicação antes.
Nicole sorriu.
— Parece mesmo que estamos fazendo uma viagem, não é? Por que será que nossos
hospedeiros querem que vejamos tudo isso?
Richard ficou em silêncio por um instante.
— Estou quase certo de que as octoaranhas são as donas deste território, ou pelo menos são a
espécie dominante de uma complexa hierarquia... Quem quer que nos tenha buscado para fazer
esta viagem acredita que, se nos informarem sobre suas capacidades, os intercâmbios futuros
se tornarão mais fáceis.
— Mas se são as octoaranhas — disse Nicole —, por que só seqüestraram Ellie e Eponine, e
não nós todos?
— Não sei — respondeu Richard. — Talvez seu senso moral seja muito mais complicado do
que imaginamos.
Os dois vaga-lumes gigantes estavam dançando no ar sobre a vastidão de traves de gol de
futebol cobertos de hera.
— Acho que nossos guias estão ficando impacientes — disse Nicole. Se Richard e Nicole não
estivessem tão cansados depois de dois dias de árdua caminhada, e se já não tivessem visto
tantas cenas fabulosas naquele mundo existente no Hemicilindro Sul de Rama, teriam ficado
assombrados com a complexa simbiose que descobriram nas horas seguintes.
As traves de gol não eram recobertas de hera. O que a distância parecia ser folhas era na
realidade pequenos ninhos em forma de cones, formados por milhares de criaturas minúsculas
semelhantes a pulgões. Essas criaturas grudavam-se umas às outras para formar os ninhos com
uma espécie de mel doce e viscoso, que os humanos gostavam de comer debaixo da cúpula.
Os pulgões alienígenas fabricavam grandes quantidades dessa substância como parte de sua
atividade diurna normal.
Enquanto Richard e Nicole observavam tudo isso, bandos de besouros, que viviam em montes
de terra de vários metros de altura que rodeavam todo o enclave, saíam de suas tocas a cada
quarenta minutos e subiam pelos postes para colher o excesso de mel dos ninhos. Esses
besouros, com cerca de dez centímetros antes de começarem a comer o mel, aumentavam três
a quatro vezes de tamanho quando completavam sua colheita e depois regurgitavam o
conteúdo de seus corpos inchados em umas cubas enterradas na base dos postes.
Richard e Nicole não conversaram muito enquanto observavam toda essa movimentação. O
sistema biológico diante dos seus olhos era intrincado e maravilhoso; mais um exemplo dos
fantásticos avanços das simbioses feitas por seus hospedeiros.
— Aposto — disse Richard, quando ele e Nicole se preparavam para dormir, não muito longe
das tocas dos besouros — que, se esperarmos um pouco mais, aparecerá algum burro de carga
para levantar do chão as cubas de mel e carregá-las para outro lugar.
Deitados lado a lado na terra, eles ficaram observando os dois vaga-lumes descerem no chão
a distância. Logo depois veio a escuridão.
— Não acredito que tudo isto tenha simplesmente acontecido — exclamou Nicole. — Nem em
outro planeta, nem em lugar algum. A evolução natural não resulta na harmonia entre espécies
que presenciamos nesses últimos dois dias.
— O que você está sugerindo, querida? — perguntou Richard. — Que todas essas criaturas
foram planejadas como máquinas para desempenharem suas funções?
— É a única explicação plausível — respondeu Nicole. — As octoaranhas, ou alguém, devem
ter chegado a um nível tal que podem manipular os genes para que eles produzam uma planta
ou um animal exatamente como desejado. Por que esses besouros depositam mel naquelas
cubas? Qual é a compensação biológica deles para esse tipo de ação?
— Talvez eles sejam compensados de alguma forma que nós ainda não descobrimos —
respondeu Richard.
— É claro — continuou Nicole. — E por trás dessa compensação há um incrível arquiteto ou
engenheiro de sistemas biológicos controlando todos esses intercâmbios, não só para que cada
espécie de sinta feliz, ou qualquer outro adjetivo que se queira usar, mas também para que os
próprios arquitetos tenham alguma vantagem, como um alimento em forma de excesso de mel...
E você acredita que esse tipo de otimização possa ocorrer sem o envolvimento de uma
sofisticada engenharia genética?
Richard ficou em silêncio por um bom tempo, e depois falou devagar:
— Imagine um fantástico engenheiro-biólogo sentado em frente a um teclado, projetando um
organismo vivo que se adapte a determinadas especificações do sistema... É um conceito um
tanto assustador.
Mais uma vez os besouros saíram em bando de suas tocas, mal notando os humanos que
dormiam por perto, a fim de continuar sua colheita nas traves. Nicole ficou observando
aquelas criaturas até elas desaparecerem na escuridão. Nós humanos entramos em uma nova
era, pensou ela, antes de cair no sono. No futuro toda a história irá referir-se a ac, "antes do
contato", e dc, "depois do contato". Pois a partir daquele primeiro momento em que
soubemos, sem sombra de dúvida, que substâncias químicas simples haviam atingido a
consciência e a inteligência em algum outro ponto da vastidão do nosso universo, a história
passada da nossa espécie tomou-se apenas um paradigma isolado, um fragmento pequeno e
relativamente insignificante na infinita tapeçaria que retrata a espantosa variedade de vida
sensível.

Depois do café da manhã, no dia seguinte, Richard e Nicole discutiram ligeiramente sobre o
minguado suprimento de comida, e decidiram pegar um pouco de mel de uma das cubas.
— Acho que se eles não quiserem que a gente faça isso — disse Nicole olhando em volta
enquanto enchia um potinho —, algum policial alienígena vai aparecer para nos impedir de
agir.
Depois, as luzes-guias moveram-se diretamente para o sul, levando Richard e Nicole por uma
floresta espessa com árvores muito altas que se estendia na direção leste-oeste. Os vaga-
lumes viraram para a direita e ficaram sobrevoando a orla da floresta à esquerda, escura e
amedrontadora. A toda hora, Richard e Nicole ouviam sons altos e estranhos vindo do seu
interior.
Então Richard parou e foi até onde as altas árvores se adensavam. Entre elas havia plantas
menores, com grandes folhas verdes, vermelhas e marrons, e vários tipos diferentes de
trepadeiras que se entrelaçavam nos galhos mais altos das árvores. Richard deu um pulo para
trás quando ouviu um uivo que parecia vir de poucos metros dali. Seus olhos percorreram a
floresta, mas ele não conseguiu identificar de onde vinha o uivo.
— Há alguma coisa estranha nesta floresta — disse, virando-se para Nicole. — Ela está
deslocada, como se não pertencesse a este lugar.

Durante mais de uma hora os vaga-lumes seguiram para oeste. Os sons bizarros tornaram-se
mais freqüentes enquanto Richard e Nicole caminhavam lentamente em silêncio. Richard tem
razão, pensou Nicole, já um tanto cansada. Ficou olhando aquela estrutura organizada dos
campos à sua direita e comparando-a com o crescimento desordenado à sua esquerda. Há
alguma coisa estranha e aflitiva nesta floresta.
Os dois descansaram um pouco no meio da manhã. Richard calculou que já deviam ter andado
uns cinco quilômetros desde o amanhecer. Nicole pediu um pouco do mel que estava na
mochila de Richard.
— Meus pés estão doendo — disse ela, depois de comer e beber um gole de água. — E
minhas pernas doem desde a noite passada... Espero que a gente não leve muito tempo para
chegar ao lugar que não sabemos onde é.
— Eu também estou muito cansado — falou Richard. — Mas até que estamos em forma para
um casal de sexagenários.
— Neste momento estou me sentindo mais velha do que isso — falou Nicole, levantando-se
para se espreguiçar. — Como você sabe, nossos corações podem estar com quase noventa
anos. Talvez eles não tenham trabalhado muito enquanto estávamos dormindo, mas mesmo
assim se mantiveram bombeando.
Enquanto conversavam, um animalzinho arredondado, de um olho só, pêlo branco e fofo e
doze pernas esguias, saiu zunindo da floresta próxima e enfiou-se na cuba de mel. Num
instante a criatura e a comida haviam desaparecido.
— O que foi isso? — perguntou Nicole, ainda assustada.
— Alguma coisa apreciadora de doce — disse Richard, olhando para a floresta, onde o
animal desaparecera. — O mundo lá é definitivamente outro.
Meia hora depois, os dois vaga-lumes viraram para a esquerda e ficaram sobrevoando um
caminho que dava na floresta. Esse caminho tinha cinco metros de largura e era ladeado por
densas árvores. A intuição de Nicole dizia-lhe para não seguir os vaga-lumes, mas ela não
falou nada. Quando ela e Richard deram os primeiros passos na floresta e ouviram ruídos
vindos das árvores mais altas, sua apreensão aumentou. Os dois pararam, deram-se as mãos e
ficaram escutando, atentos.
— Parecem passarinhos, macacos e sapos — observou Richard.
— Eles devem ter notado nossa presença — falou Nicole, virando-se para olhar para trás. —
Você tem certeza de que estamos fazendo a coisa certa?
Richard apontou para as luzes em frente.
— Estamos seguindo esses insetos enormes há dois dias e meio. Não faz muito sentido perder
a fé neles agora.
Os dois continuaram a andar pelo caminho, seguidos de uivos e grasnidos. De vez em quando,
os tipos de folhagens de ambos os lados mudavam um pouco, mas a floresta continuava densa
e escura.
— Deve haver um grupo de jardineiros alienígenas — falou Richard a uma certa altura —
trabalhando nesta área várias vezes por semana. Olhe como todos os arbustos e árvores são
perfeitamente aparados... Eles não saem um milímetro para fora acima da nossa cabeça.

— Richard — disse Nicole um pouco depois —, se os sons que estamos ouvindo vêm de
animais alienígenas, por que ainda não vimos nenhum? Nem uma única criatura atravessou o
nosso caminho — disse ela, abaixando-se para examinar a terra por onde pisava. — E aqui
não há nenhum sinal de vida, atual ou passada... Nem ao menos uma formiga...

— Devemos estar andando num caminho mágico — falou Richard, dando uma risadinha. —
Talvez eles nos leve para a casa de balas e apareça uma bruxa malvada... Vamos cantar a
música de João e Maria e nos sentiremos melhor.
O caminho, absolutamente reto no primeiro quilômetro, começou a tornar-se sinuoso, e os sons
das criaturas da floresta cercaram Richard e Nicole. Richard cantou músicas populares dos
seus anos de adolescente na Inglaterra, e Nicole o acompanhou, quando conhecia as canções,
mas a maior parte do tempo gastou sua energia tentando conter a crescente ansiedade e
forçando-se a não pensar no alvo fácil que eles eram para qualquer animal alienígena grande
que pudesse estar passando pela floresta.
De repente, Richard parou e respirou profundamente.
— Está sentindo esse cheiro? — perguntou a Nicole. Nicole farejou o ar.
— Estou... parece perfume de gardênia...
— Só que muito melhor — disse Richard. — É um cheiro absolutamente divino.
O caminho em frente virou abruptamente para a direita. Na curva havia um grande arbusto
coberto de imensas flores amarelas do tamanho de bolas de basquete, as primeiras flores que
eles viam desde que entraram na floresta. A medida que Richard e Nicole se aproximavam do
arbusto o cheiro aumentava no ar.
Richard não pôde se conter. Antes que Nicole dissesse alguma coisa, deu uns passos para fora
do caminho, enfiou o rosto em uma das flores e respirou fundo. O cheiro era magnífico.
Enquanto isso, um dos vaga-lumes voltou voando até eles e começou a ziguezaguear no céu.
— Acho que nossos guias não aprovaram sua saída da trilha — comentou Nicole.
— Provavelmente não — falou Richard. — Mas valeu a pena.
Mais flores, de todos os tamanhos, formas e cores, começaram a aparecer em ambos os lados
da trilha. Os dois nunca haviam visto tanta profusão de cores. Ao mesmo tempo, os sons que
vinham ouvindo até ali tornaram-se mais longínquos. Pouco depois, quando Richard e Nicole
chegaram no meio da área de flores, os barulhos desapareceram completamente.
O caminho agora estreitava-se bastante, mal dando para os dois passarem lado a lado sem
encostarem nas plantas floridas. Richard saiu da trilha várias vezes para inspecionar e/ou
cheirar uma das flores magníficas. Apesar do entusiasmo dele pela viagem e pela floresta,
Nicole obedeceu aos guias e continuou na trilha.
Richard afastou-se quase oito metros do caminho para tentar ver mais de perto as flores
gigantescas que pareciam um tapete oriental e, de repente, desapareceu.

— Ai! — Nicole ouviu-o gritar quando caiu no chão.

— Você está bem? — perguntou ela imediatamente.


— Estou. Tropecei nuns cipós e caí num amontoado de espinhos... O arbusto à minha volta tem
folhas vermelhas e também florezinhas esquisitas, que parecem balas de revólver... Aliás, elas
têm cheiro de canela.
— Você precisa de ajuda? — perguntou Nicole.
— Não... Vou sair daqui num instante.
Nicole olhou para cima e notou que um dos vaga-lumes estava voando para longe. Agora, o
que será isso? pensou, quando ouviu a voz de Richard.
— Talvez eu precise de uma ajuda. Acho que estou preso aqui. Nicole deu uma olhada com
cuidado para fora da trilha. O outro vaga-lume parecia enlouquecido, descendo a toda
velocidade por cima do rosto dela. Nicole ficou ofuscada, sem conseguir ver nada durante um
tempo.
— Não chegue aqui, Nicole — disse Richard depois de um instante. — A menos que eu esteja
ficando louco, essa planta está se preparando para me comer.
— O quê? — perguntou Nicole, agora muito assustada. — Está falando sério? — perguntou,
esperando impaciente que seus olhos se recuperassem do excesso de luz.
— Estou sim. Volte para a trilha... Este arbusto bizarro enroscou-se nas minhas pernas e
braços... uns insetos já estão chupando o meu sangue que começou a escorrer com os
espinhos... há uma abertura no arbusto, e estou vendo uma imensa boca, mais feia do que as
que a gente vê no zoológico, para a qual estou sendo empurrado aos poucos... Posso ver até
alguns dentes.
Nicole podia sentir o pânico na voz de Richard. Deu mais um passo na direção dele, mas o
vaga-lume cegou-a outra vez.
— Não consigo enxergar nada — gritou Nicole. — Richard, você ainda está aí?
— Estou, mas não sei por quanto tempo ainda.
Eles ouviram o barulho de animais correndo pela floresta, seguido de um gemido alto, e logo
depois três figuras escuras com armas peculiares cercaram Richard. As octoaranhas atacaram
o arbusto carnívoro com seus sprays líquidos, e em poucos segundos Richard foi solto e a
boca se fechou por trás dos galhos.
Richard saiu aos tropeções e abraçou Nicole. Os dois gritaram "Obrigado" quando o trio de
octoaranhas desapareceu pela floresta tão depressa como surgira. Nem Richard nem Nicole
notaram que os dois vaga-lumes pairavam de novo sobre suas cabeças.
Nicole examinou Richard com cuidado, mas não encontrou nada além de arranhões.
— Acho que vou ficar na trilha por algum tempo — comentou Richard com um sorriso
desenxabido.
— É uma boa idéia — replicou Nicole.
Os dois conversaram sobre o ocorrido enquanto continuavam a andar pela floresta. Richard
ainda estava trêmulo.

— Os galhos perto do meu ombro esquerdo puxavam para um lado, e vi aquele buraco do
tamanho de uma bola de beisebol. Mas, à medida que eu era empurrado na sua direção, o
buraco ia ficando maior. Foi então que vi os dentinhos em volta de toda a circunferência. Eu já
estava pensando qual seria a sensação de ser comido quando nossas amigas octoaranhas
apareceram.

— Afinal de contas, o que está acontecendo aqui? — perguntou Nicole um pouco depois,
quando saíram da região das flores e foram de novo rodeados por árvores e intermitentes
barulhos de animais.
— Sei tanto quanto você — disse Richard.

A floresta terminou abruptamente, bem na hora em que Richard e Nicole começaram a sentir
uma fome insuportável. Eles entraram numa planície vazia e viram à sua frente, a uns dois
quilômetros de distância, uma grande cúpula verde.
— O que é isso?...
— É a Cidade de Esmeralda, querida — disse Richard. — Você deve estar reconhecendo do
velho filme... E dentro está o Mágico de Oz, pronto para conceder nossos desejos.
Nicole sorriu e beijou o marido.
— O mágico era um embusteiro, você sabe — disse ela. — Ele não tinha nenhum poder de
verdade.
— Isso fica em aberto — falou Richard com um risinho.
Enquanto conversavam, as duas luzes que os guiavam apressaram-se em direção à cúpula,
deixando Richard e Nicole numa semi-escuridão. Eles tiraram suas lanternas da mochila.
— Alguma coisa me diz que chegamos ao fim da nossa excursão — disse Richard, iluminando
o caminho na direção da Cidade de Esmeralda.
Os dois viram os portões através dos binóculos, a uma distância de mais de um quilômetro, e
foram ficando muito animados.
— Você acha que aqui é a terra das octoaranhas? — perguntou Nicole.
— Acho sim — respondeu Richard. — Deve ser um lugar e tanto. O alto daquela cúpula verde
está pelo menos a trezentos metros do chão. Eu diria que a área por baixo dela tem mais de
dez quilômetros quadrados...
— Richard — disse Nicole, quando estavam a apenas seiscentos metros da cúpula —, qual é
o seu plano? Vamos simplesmente chegar lá e bater no portão?
— Por que não? — respondeu Richard apressando o passo.
Quando estavam a duzentos metros da cidade, o portão se abriu e surgiram três pessoas.
Richard e Nicole ouviram um grito, e uma das figuras começou a correr na direção deles.
Richard parou e olhou de novo através dos binóculos.
— É Ellie... e Eponine... Com uma octoaranha — gritou.
Nicole já tinha largado sua mochila e corria pelo campo aberto. Apertou sua filha querida nos
braços, levantando-a do chão com a força daquele abraço.

— Oh, Ellie, Ellie — disse, as lágrimas caindo-lhe pelo rosto.

— Este é nosso amigo Archie... Ele tem nos ajudado muito desde que chegamos aqui... Archie,
venha conhecer minha mãe e meu pai.
A octoaranha respondeu com uma seqüência iniciada com um vermelho brilhante seguido de
verde, lavanda, dois tons de amarelo (amarelo-açafrão e limão, tendendo para o esverdeado)
e, finalmente, roxo. A faixa de cores passava em volta da cabeça esférica da octoaranha e
desaparecia para trás, do lado esquerdo da abertura formada de dois longos recortes paralelos
no meio da cara.
— Archie está dizendo que está muito contente de conhecer vocês, especialmente depois de
ouvir falar tanto em vocês — explicou Ellie.
— Você sabe ler as cores? — perguntou Nicole, perplexa.
— Ellie é incrível — falou Eponine. — Ela pegou a língua das octos muito depressa.
— Mas como vocês falam com elas? — perguntou Nicole.
— A visão delas é muito desenvolvida, e elas são muito inteligentes... Archie e mais umas dez
já aprenderam a ler os lábios... Mas podemos falar sobre isso mais tarde, mamãe. Primeiro me
conte se Nikki e Robert estão bem.
— Sua filha está cada dia mais adorável, e sente muito a sua falta... Mas acho que Robert não
se recuperou completamente. Ele ainda se culpa por não ter protegido você melhor...
A octoaranha Archie seguiu a conversa gentilmente por algum tempo, depois deu um tapinha
no ombro de Ellie para lembrá-la de que seus pais provavelmente estavam cansados e com
frio.
— Obrigada, Archie — disse Ellie. — Bem, o plano é o seguinte: vocês dois vão ficar na
cidade pelo menos esta noite. Amanhã, uma espécie de suíte de hotel está preparada, logo
depois do portão, para nós quatro. Depois de amanhã, ou quando vocês já estiverem bem
descansados, nós todos vamos voltar para casa. Archie irá conosco.
— Por que então vocês três não foram nos encontrar? — disse Richard depois de um breve
silêncio.
— Eu fiz a mesma pergunta, papai... e nunca recebi uma resposta satisfatória...
As faixas de cor da cabeça de Archie interromperam o que Ellie dizia.
— Tudo bem — disse ela para a octoaranha, antes de virar-se para seus pais. — Archie disse
que as octos queriam que vocês dois em especial tivessem uma clara idéia do que elas são; de
qualquer forma, podemos discutir tudo isso depois que nos instalarmos na suíte.

Os grandes portões da Cidade de Esmeralda se abriram quando os quatro humanos e sua


companheira octoaranha estavam a dez metros de distância. Richard e Nicole não estavam
preparados para a fantástica variedade de cenas estranhas que viram ao entrar na cidade.
Diretamente em frente a eles havia uma avenida larga, com construções baixas dos dois lados,
que levava a um alto prédio rosa e azul em forma de pirâmide, de centenas de metros de
altura, visto a distância.

Richard e Nicole entraram em transe quando deram os primeiros passos na cidade das
octoaranhas. Nenhum dos dois se esqueceria jamais daqueles primeiros momentos incríveis,
em que foram rodeados por um caleidoscópio de cores. Todos os elementos da cidade,
inclusive as ruas, os prédios, as estranhas decorações ao longo da avenida, as plantas do
jardim (se é que eram mesmo plantas) e a vasta gama de criaturas animais que pareciam correr
em todas as direções apresentavam coloridos brilhantes. Um grupo de quatro grandes vermes
ou cobras, parecendo bengalas de bala torcidas, só que muito mais ricas em cores, estava
enroscado no chão logo depois do portão, à esquerda de Richard e Nicole. Estavam com as
cabeças levantadas para o alto, aparentemente esforçando-se para ver os visitantes
alienígenas. Animais de um vermelho e amarelo brilhantes, com oito pernas e patas como as
da lagosta, carregavam grossos bastões verdes por um cruzamento a cinqüenta metros de
Richard e Nicole.
É claro que dezenas ou talvez centenas de octoaranhas tinham vindo para a área próxima ao
portão a fim de darem uma olhada nos mais recentes visitantes humanos. Estavam sentadas em
grupos em frente aos prédios, ou de pé ao lado da avenida, ou ainda andando pelos telhados. E
todas falavam ao mesmo tempo com suas brilhantes faixas coloridas, dando relevo às
decorações estáticas da rua com dinâmicas rajadas de cores de vários matizes.
Nicole olhou em volta e viu todas aquelas criaturas bizarras com os olhos fixos nela. Depois
virou a cabeça para trás e viu a cúpula verde por cima dela. Havia uma espécie de nervuras
finas e flexíveis em pontos isolados, mas a cúpula era quase toda coberta por um dossel
verde-escuro.
— No teto crescem trepadeiras e outras plantas, e há também insetos que colhem as frutas e
flores úteis — Nicole ouviu Ellie dizendo. — É um ecossistema de vida completo, com a
vantagem de servir de excelente cobertura para a cidade, não deixando entrar o ar frio de
Rama. Depois que os portões se fecharem, vocês verão como as temperaturas são amenas
dentro da cidade.
Espalhadas por baixo da cúpula havia cerca de vinte fontes de luz muito brilhantes,
consideravelmente maiores que os vaga-lumes que haviam guiado Richard e Nicole até o
domínio das octoaranhas. Nicole tentou examinar uma dessas luzes, mas desistiu logo, pois ela
era brilhante demais para seus olhos. A menos que eu esteja errada, pensou, toda essa
iluminação é provida por grupos daqueles vaga-lumes que nos guiaram.
Seria cansaço ou excitação, ou as duas coisas juntas que fizeram com que Nicole perdesse o
equilíbrio? Qualquer que fosse a causa, enquanto ela olhava para o teto verde acima, começou
a sentir que tudo girava em volta, e agarrou-se na mão de Richard. A explosão de adrenalina,
sua tontura e o medo súbito fizeram com que suas batidas cardíacas aumentassem.
— O que foi, mamãe? — perguntou Ellie alarmada com a palidez da mãe.
— Nada — disse Nicole, respirando devagar. — Não foi nada... só fiquei tonta por um
instante.

Nicole olhou para o chão a fim de se acalmar. A rua era pavimentada com quadrados de cores
brilhantes parecendo cerâmica. Sentadas na rua, uns cinqüenta centímetros adiante, Nicole viu
três criaturas estranhíssimas, do tamanho de bolas de basquete. Sua parte hemisférica superior
era de um material azul-rei ondulado, parecendo, sob certos aspectos, cérebros humanos ou a
parte de uma água-viva que flutua na superfície da água. No centro dessa massa
constantemente em movimento havia um buraco redondo e escuro, do qual saíam duas antenas
finas de uns vinte centímetros de comprimento, com gânglios ou nós a espaços de uns três
centímetros cada. Quando Nicole deu um passo atrás sem querer, sentindo-se ameaçada por
aqueles animais esquisitos, as antenas deles ficaram girando e os três passaram rapidamente
para o canto da avenida.

Nicole deu uma olhada rápida em volta. Faixas de cor raiavam em torno da cabeça de todas as
octoaranhas que estavam ali por perto. Nicole sabia que elas estavam dissecando sua última
reação, e de repente sentiu-se nua, perdida e completamente dominada. Do fundo de sua alma
surgiu um antigo e forte sinal de angústia, e Nicole ficou com medo de dar um grito.
— Ellie — disse ela baixinho —, acho que por hoje basta para mim... Podemos ir lá para
dentro?
Ellie levou a mãe pelo braço até uma porta na segunda estrutura à direita da avenida.
— As octos trabalharam dia e noite para transformar este lugar... Espero que esteja a seu
gosto.
Nicole continuava a olhar fixo para as octoaranhas da rua, mas o que via não penetrava mais
na sua mente cognitiva. Isto é um sonho, pensou, quando um grupo de criaturas verdes e finas,
parecendo bolas de boliche, passou à sua frente. Não pode haver nenhum outro lugar como
este.
— Eu também estava um pouco extenuado — disse Richard. — Nós levamos aquele sustão na
floresta, depois de andarmos durante três dias. Para gente da nossa idade é um bocado... Não é
de surpreender que sua mãe tenha se sentido desorientada; aquela cena lá fora era muito
estranha.
— Antes de ir embora — disse Ellie —, Archie desculpou-se de três formas diferentes,
tentando explicar que todas as criaturas tiveram permissão de passar pela área do portão, pois
as octoaranhas achavam que vocês ficariam fascinados... Archie não pensou que talvez o
impacto fosse grande demais...
Nicole sentou-se na cama.
— Não se preocupe, Ellie. Não estou assim tão frágil... Talvez não estivesse preparada para
tudo isso, principalmente depois de tanto exercício e emoção.
— Então você prefere descansar mais um pouco ou comer alguma coisa, mamãe?
— Eu estou bem. Vamos fazer o que você tinha planejado... Aliás, Eponine — disse ela,
virando-se para a francesa que tinha falado muito pouco desde que eles se encontraram do
lado de fora da cidade —, Richard e eu lhe devemos desculpas. Conversamos tanto com Ellie
e vimos tanta coisa... que nos esquecemos de dizer que Max mandou lembranças. Ele me fez
prometer que se eu visse você lhe diria que ele sente demais a sua falta.
— Obrigada, Nicole — replicou Eponine. — Desde que as octoaranhas nos trouxeram para cá
não há um dia em que eu não pense em Max e em todos vocês.
— Você também está aprendendo a língua delas, como Ellie? — perguntou Nicole.
— Não — respondeu Eponine devagar. — Eu tenho feito uma coisa completamente diferente...
— disse, procurando por Ellie, que tinha saído por um instante, possivelmente para ajeitar o
jantar. — Na verdade, passei umas duas semanas quase sem ver Ellie, até começarmos a fazer
planos para a chegada de vocês.
Fez-se silêncio durante algum tempo.
— Você e Ellie são prisioneiras aqui? — perguntou Richard baixinho.
— E já descobriram por que foram seqüestradas?
— Não, não exatamente — respondeu Eponine, levantando-se.
— Ellie! — gritou ela. — Você está aí? Seu pai está fazendo umas perguntas...
— Só um instante — ouviram Ellie gritar. Um pouco depois ela voltou para a sala seguida da
octoaranha Archie e percebeu o olhar do pai. — Archie é nosso amigo — disse Ellie. — E
nós combinamos que quando contássemos tudo a vocês ele poderia ficar aqui... Para explicar,
esclarecer e talvez responder a algumas perguntas que nós não pudermos...
A octoaranha sentou-se entre os humanos e fez-se mais um instante de silêncio.
— Por que tenho a sensação de que toda essa cena foi ensaiada? — perguntou Richard depois
de um tempo.
Nicole, preocupada, inclinou-se para a frente e pegou na mão da filha.
— Você não vai nos dar más notícias, não é? Você disse que voltaria conosco...
— Não, mãe, mas Eponine e eu temos de dizer uma coisa para vocês... Ep, por que você não
começa?
Faixas coloridas saíam da cabeça de Archie quando ele, que obviamente seguia a conversa de
perto, mudou de posição para ficar bem em frente a Eponine. Ellie observou com cuidado as
faixas de luz.
— O que ele... o que a octoaranha está dizendo? — perguntou Nicole, espantada com a
proficiência de sua filha na língua alienígena.
— É melhor dizer ela em vez de ele — disse Ellie rindo. — Pelo menos foi o que Archie me
disse quando comentei sobre os pronomes... Mas Ep e eu sempre dizemos "ele" quando nos
referimos a Archie e ao dr. Azul... De qualquer forma, Archie quer que a gente conte para
vocês que Eponine e eu temos sido muito bem cuidadas, que não sofremos nada, e que só
fomos seqüestradas pelas octoaranhas porque elas não souberam estabelecer uma
comunicação não-hostil conosco...
— Seqüestrar não é a forma própria de começar uma comunicação — interrompeu Richard.
— Expliquei isso para Archie e os outros, papai — continuou Ellie —, e é por isso que ele
quer que eu conte tudo agora... Eles nos trataram muitíssimo bem, e não vi nada que me
dissesse que a espécie deles é capaz de atos hostis...
— Muito bem — falou Richard —, sua mãe e eu compreendemos o ponto principal desse
preâmbulo...
Archie começou a falar através das cores, pedindo que Ellie lhe explicasse o significado da
palavra "preâmbulo".
— A inteligência delas é incrível — disse Ellie. — Archie nunca me pediu explicação de uma
palavra mais de uma vez.
— Quando cheguei aqui — falou Eponine —, Ellie estava começando a compreender a língua
das octoaranhas... No início tudo era muito confuso... Mas depois de uns dias, Ellie e eu
entendemos por que elas tinham nos seqüestrado.
— Nós passamos uma noite inteira conversando sobre isso — comentou Ellie. — Estávamos
intrigadas... Não podíamos imaginar como elas tinham conseguido saber...
— Saber o quê? — perguntou Richard. — Sinto muito, senhoras, mas estou tendo dificuldade
de acompanhar...
— Elas sabiam que eu tinha o vírus RV-41 — disse Eponine. — E tanto Archie quanto o dr.
Azul, um médico-octoaranha, que nós chamamos de dr. Azul, porque quando ele fala sua faixa
azul-cobalto se espalha além dos limites normais...
— Espere um instante — disse Nicole, sacudindo a cabeça com força. — Deixe ver se eu
entendi bem. Você está dizendo que as octoaranhas sabiam que você tinha o vírus RV-41.
Como é possível isso?
Archie falou através de vários raios de luz, e Ellie pediu para ele repetir.
— Archie disse que todas as nossas atividades têm sido monitoradas pelas octoaranhas desde
que saímos do Novo Éden, e elas deduziram que Eponine tinha algum tipo de doença
incurável.
Richard começou a andar pela sala.
— Essa é uma das declarações mais espantosas que já ouvi — disse ele de forma apaixonada,
virando-se para a parede, perdido em seus pensamentos. Archie lembrou a Ellie que ele não
poderia entender nada do que Richard dizia a não ser que ele ficasse na sua frente. A certa
altura, Richard virou-se.
— Como elas conseguiram... olhe, Ellie, as octoaranhas não são surdas? Quando Ellie fez que
sim, Richard e Nicole aprenderam a primeira coisa da língua das octoaranhas. Archie soltou
um amplo raio vermelho (indicando que a frase seguinte seria afirmativa; um raio roxo, como
explicou Ellie, sempre precedia uma frase interrogativa), seguido de um lindo raio água-
marinha.
— Bem, se elas são surdas — exclamou Richard —, como conseguiram saber que você tinha
RV-41 ? A menos que sejam especialistas em ler o pensamento dos outros, ou registrem tudo...
não, mesmo assim não é possível.
Richard sentou-se, e houve outro instante de silêncio.
— Querem que eu continue? — perguntou Eponine. Richard fez que sim.

— Como eu ia dizendo, o dr. Azul e Archie explicaram a Ellie e a mim que elas eram
realmente muito avançadas em biologia e em medicina... e que, se nós tentássemos cooperar,
elas veriam se poderiam me curar com suas técnicas... Desde que, é claro, eu me submetesse a
todos os procedimentos...

— Quando nós perguntamos por que elas queriam curar Eponine — continuou Ellie —, o dr.
Azul nos disse que aquela cura seria um grande gesto de amizade, um ato que solidificaria o
intercâmbio harmonioso entre nossas duas espécies.
Richard e Nicole estavam absolutamente pasmos com o que ouviam e olhavam-se com um ar
descrente, enquanto Ellie continuava sua explicação.
— Como eu ainda era uma principiante da língua — disse Ellie —, foi muito difícil dar
informações sobre o vírus RV-41. Mais tarde, depois de longas aulas intensivas, conseguimos
contar para as octoaranhas o que sabíamos sobre essa doença.
— Ellie e eu tentamos nos lembrar de tudo o que Robert havia nos explicado. Enquanto
passávamos essas explicações, o dr. Azul, Archie e mais duas octoaranhas ficavam à nossa
volta. Embora elas não anotassem nada, nós nunca tivemos de dar uma informação duas vezes
— falou Eponine.
— Aliás — acrescentou Ellie —, sempre que inadvertidamente nós repetíamos alguma coisa,
elas nos lembravam que aquilo já havia sido explicado.
— Há mais ou menos três semanas — falou Eponine —, as octoaranhas nos falaram que seu
processo de coleta de informações havia terminado e que elas estavam prontas para me
submeterem aos testes. Explicaram que esses testes eram às vezes dolorosos e fora do comum
para os padrões humanos...
— A maioria dos testes — disse Ellie dessa vez — consistia em inserir no corpo de Eponine
criaturas vivas, umas microscópicas e outras que ela podia ver a olho nu, através de injeção...
— Ou através dos meus... bem, acho que a melhor palavra a usar seria orifícios — disse
Eponine.
Archie interrompeu para perguntar o significado de "orifício" e "inadvertidamente". Enquanto
Ellie explicava, Nicole chegou bem perto de Richard.
— Isso não está parecendo familiar? — perguntou ela. Richard fez que sim.
— Mas eu nunca tive nenhum tipo de relacionamento, pelo menos não que eu me lembre... Eu
fiquei isolado...
— Tive as sensações mais estranhas de toda a minha vida — continuou Eponine com um
arrepio —, mas o pior de tudo foi quando cinco a seis vermes minúsculos, do tamanho de um
alfinete, entraram pela parte inferior do meu corpo. Eu disse a mim mesma que, se
sobrevivesse àquela invasão, nunca mais me queixaria de nenhum desconforto físico.
— Você acreditou que as octoaranhas poderiam curá-la? — perguntou Nicole.
— No início não. Mas, à medida que os dias se passaram, comecei a pensar que seria
possível. Eu via que elas tinham técnicas médicas absolutamente diferentes das nossas... E
tive a sensação de que estavam fazendo progresso... — respondeu Eponine.
— Então, um dia, quando o teste terminou, Ellie apareceu no meu quarto (àquela altura eu
ficava em outra parte da cidade, provavelmente o equivalente a um hospital) e disse que as
octoaranhas tinham isolado o vírus RV-41 e compreendiam como ele operava sobre seu
hospedeiro, ou seja, eu. Elas pediram que Ellie me dissesse que iam inserir um "agente
biológico" no meu organismo para procurar o RV-41 e destruí-lo completamente. O agente não
poderia reduzir os danos já causados pelo vírus, que eles afirmavam não serem graves, mas
acabaria de uma vez por todas com o RV-41.
— As octos me pediram para explicar também a Eponine — falou Ellie — que esse agente
poderia causar algum tipo de efeito colateral. Elas não sabiam exatamente o que esperar, pois
é claro que nunca haviam usado o agente em humanos, mas seus "modelos" previam náusea e
possíveis dores de cabeça.
— Eles acertaram quanto à náusea — falou Eponine. —,Eu vomitava de quatro em quatro
horas nos dois primeiros dias. Depois disso, o dr. Azul, Archie e as duas octoaranhas
reuniram-se em volta da minha cama e me disseram que eu estava curada.
— O quê? — perguntou Richard, dando um pulo.
— Oh, Eponine — disse Nicole, abraçando a amiga —, estou felicíssima por você.
— E você acredita nisso? — perguntou Richard. — Acredita que os médicos-octoaranhas, que
ainda não podem entender bem como o corpo humano funciona, conseguiram em poucos dias o
que nosso brilhante genro e sua equipe do hospital não conseguiram em quatro anos?
— E por que não, Richard? — disse Nicole. — Se isso tivesse sido feito pela Águia em
Nodo, você teria aceitado imediatamente. Por que as octoaranhas não podem ser muito mais
avançadas do que nós em biologia? Lembre-se de tudo o que vimos...
— Muito bem — falou Richard, sacudindo a cabeça e virando-se para Eponine. — Desculpe,
mas é difícil para mim... Meus parabéns. Eu também estou muito feliz por você — falou,
abraçando Eponine desajeitadamente.
Enquanto eles conversavam, alguém tinha colocado silenciosamente legumes frescos e água do
lado de fora da porta. Nicole viu o material destinado a ser usado na refeição quando foi ao
banheiro.
— Deve ter sido uma experiência fantástica — comentou Nicole com Eponine quando voltou
para a sala.
— Muito mais do que isso — comentou Eponine, sorrindo. — Embora eu sinta de coração que
estou curada, preciso que isso seja confirmado por você e o dr. Turner.

Richard e Nicole ficaram extremamente cansados depois do lauto jantar. Ellie disse que
queria discutir alguns assuntos com seus pais, mas que seria melhor eles dormirem um pouco.
— Gostaria de me lembrar mais daquela época que passei com as octoaranhas antes de
chegarmos em Nodo — disse Richard, quando ele e Nicole estavam na cama de casal que seus
hospedeiros haviam providenciado. — Talvez então eu compreendesse melhor a história que
Ellie e Eponine contaram.
— Você ainda duvida de que ela esteja curada? — perguntou Nicole.
— Não sei. Mas devo admitir que estou bastante intrigado com a diferença de comportamento
entre essas octoaranhas e as que me examinaram e testaram anos atrás... As octos da Rama II
nunca me libertariam daquela planta carnívora.
— Talvez elas sejam capazes de variar seu comportamento. Isso acontece com os seres
humanos. Aliás, acontece também com todos os mamíferos mais desenvolvidos da Terra. Por
que você esperaria que todas as octoaranhas fossem iguais? — perguntou Nicole.
— Sei que você vai dizer que estou sendo xenófobo — falou Richard — mas é difícil para
mim aceitar essas novas octoaranhas. Elas parecem boas demais para serem verdadeiras.
Como bióloga, qual você acha que seria a compensação delas por serem boas para nós, para
usar a expressão de que você gosta?
— Essa pergunta procede, querido — respondeu Nicole —, e não sei como responder. Mas a
idealista que existe em mim quer crer que encontramos uma espécie que em geral se comporta
de acordo com a moral, pois quem faz o bem será recompensado.
Richard riu.
— Eu devia saber que a resposta seria essa. Especialmente depois daquela nossa discussão
sobre Sísifo no Novo Éden.

— Você acharia a língua delas fascinante, papai — disse Ellie enquanto tomava o café da
manhã com Richard. A essa altura, Nicole acordou, depois de onze horas de sono. — É
absolutamente matemática. Elas usam sessenta e quatro cores ao todo, mas apenas cinqüenta e
uma pertencem ao alfabeto. As treze restantes são esclarecedoras, são usadas para especificar
tempos dos verbos, números ou comparativos e superlativos. É uma linguagem realmente
muito elegante.
— Não consigo imaginar como uma língua pode ser elegante; sua mãe é a lingüista da família
— disse Richard. — Consegui aprender a ler alemão, mas quando resolvi falar foi um
fracasso.
— Bom dia para todos — disse Nicole espreguiçando-se na cama. — O que temos para o café
da manhã?
— Uns legumes novos e diferentes... que talvez sejam frutas, pois não temos equivalente no
nosso mundo... Quase tudo o que as octoaranhas comem é o que nós provavelmente
chamaríamos de plantas, cuja energia deriva da luz. Os vermes são praticamente a única coisa
que elas comem cuja energia básica não provém dos fótons.
— Então todas as plantas dos campos pelos quais passamos são movidas por uma espécie de
fotossíntese?
— Alguma coisa desse tipo — respondeu Ellie —, se é que entendi o que Archie me
explicou... Não se desperdiça quase nada na sociedade das octoaranhas... Essas criaturas que
você e papai chamam de "vaga-lumes gigantes" sobrevoam os campos segundo uma
programação semanal ou mensal rígida... E a água é tratada com tanto cuidado quanto os
fótons.
— Onde está Eponine? — perguntou Nicole, enquanto dava uma olhada na comida que estava
na mesa, no meio da sala.
— Está fazendo as malas — disse Ellie. — Ela achou que não devia participar da conversa
que vamos ter agora de manhã.
— Nós vamos ficar chocados de novo, como na noite passada? — perguntou Nicole.
— Talvez — respondeu Ellie. — Não sei como vocês vão reagir... preferem terminar café ou
eu digo para Archie que estamos prontos para começar?
— Quer dizer que a octoaranha vai participar dessa conversa e Eponine não? — perguntou
Richard.
— Foi ela quem decidiu isso — respondeu Ellie. — Além do mais, como Archie é o
representante das octoaranhas, ele está muito mais envolvido no assunto do que Eponine.
Richard e Nicole se entreolharam.
— Você tem idéia do que se trata? — perguntou Richard. Nicole sacudiu a cabeça.
— Mas é melhor começarmos logo — disse.
Depois que Archie sentou-se entre os Wakefield, Ellie informou a seus pais, e todos riram, que
desta vez Archie faria o "preâmbulo". Ellie foi traduzindo, às vezes um pouco hesitante,
quando Archie começou a pedir desculpas a Richard pela forma como ele fora tratado por
suas "primas" anos atrás. Ele explicou que aquelas octoaranhas, as que os humanos haviam
encontrado em Rama II antes da chegada em Nodo, pertenciam a uma colônia dissidente,
remotamente ligada às octoaranhas que agora viviam a bordo de Rama. E Archie enfatizou que
só depois que Rama III entrou na esfera de influência das octoaranhas é que elas, como
espécie, concluíram que a grande espaçonave cilíndrica era importante.
Algumas sobreviventes daquela outra colônia, um grupo muito inferior, segundo Archie (nesse
ponto Ellie pediu que ele repetisse o que dizia para ela traduzir melhor), ainda estavam a
bordo da Rama III quando a nave foi interceptada, no início de sua trajetória, pela atual
colônia de octoaranhas que havia sido especificamente selecionada para representar sua
espécie. Os sobreviventes do grupo dissidente foram retirados da nave, mas todos os seus
arquivos foram preservados. Archie e as outras octoaranhas da colônia souberam com detalhe
de tudo o que havia acontecido com Richard naquela época e agora desejavam se desculpar
por aquele tratamento.
— Então todo esse preâmbulo, além de ser fascinante — disse Richard —, é também um
pedido de desculpas?
Ellie fez que sim e Archie soltou um raio vermelho e outro água-marinha.

— Posso fazer uma pergunta antes de continuarmos? — disse Nicole virando-se para a
octoaranha. — Imagino, pelo que você nos disse, que sua colônia entrou em Rama III no
período em que estivemos dormindo. Vocês sabiam que nós estávamos lá?

Archie respondeu que as octoaranhas tinham idéia de que os humanos estavam vivendo no
habitat do extremo norte, mas só souberam ao certo quando a tranca externa do habitat humano
foi violada pela primeira vez. Aquela altura, segundo Archie, a colônia de octoaranhas já
vivia a bordo havia doze anos humanos.
— Archie fez questão de pedir as desculpas pessoalmente — disse Ellie dando uma olhada
para o pai e esperando que ele respondesse.
— Muito bem, acho que vou aceitar — disse Richard. — Embora não tenha idéia de qual seja
o protocolo adequado...
Archie pediu que Ellie lhe explicasse o significado de "protocolo", e Nicole riu.
— Richard, às vezes você fica muito formal.
— De qualquer forma — continuou Ellie —-, já que não temos muito tempo, eu mesma vou
contar tudo a vocês. Segundo Archie, os arquivos das octoaranhas dissidentes mostram que
elas fizeram várias experiências com você, grande parte das quais é ilegal nas colônias que
Archie chama de "altamente desenvolvidas". Uma das experiências, papai, como você muitas
vezes sugeriu, foi a introdução no seu cérebro de uma série de micróbios especializados para
apagar de sua memória o tempo em que você viveu no meio das octoaranhas. Eu disse para
Archie e para os outros que essa experiência surtiu um bom efeito, mas não absoluto... A
experiência mais complexa feita no seu corpo foi uma tentativa de alterar o seu esperma. A
colônia dissidente das octoaranhas não sabia mais do que a nossa família para onde Rama II
estava indo. Elas achavam que talvez os humanos e as octoaranhas a bordo fossem coexistir
durante séculos, talvez até pela eternidade, e concluíram que seria absolutamente essencial
que as duas espécies se comunicassem. O que elas tentaram fazer foi mudar os cromossomos
do seu esperma para que sua descendência tivesse maior capacidade de linguagem e uma
melhor resolução visual de cores. Em suma, elas tentaram me trabalhar geneticamente, pois eu
fui a única filha que você e mamãe tiveram depois de sua longa odisséia, para que eu pudesse
me comunicar com elas sem maiores dificuldades. Em complementação a essa experiência,
elas introduziram no seu corpo um conjunto de criaturas especiais...
Ellie parou e viu que Richard e Nicole a olhavam espantados.
— Então você é uma espécie de híbrido? — perguntou Richard.
— Um pouco, talvez — disse Ellie rindo para diminuir a tensão. — Se entendi bem, só uns
mil dos três bilhões de quilobases que definem meu genoma foram alterados... E, por falar
nisso, Archie e as octoaranhas querem comprovar, para a pesquisa científica delas, que sou de
fato o resultado de um esperma alterado. Elas querem tirar amostras do sangue e de outras
células suas para poderem concluir, sem sombra de dúvida, que eu não poderia vir de uma
união "normal" de vocês dois. Assim, elas saberiam ao certo que minha facilidade para a
língua delas foi realmente trabalhada, e não apenas uma sorte incrível.
— Que diferença faz a essa altura? — perguntou Richard. — Acho que o importante é você
poder se comunicar...
— Estou surpresa com você, papai; logo você, que sempre foi um entusiasta do
conhecimento... Para a sociedade das octoaranhas as, informações são o ponto alto da escala
de valores. Elas já estão quase certas, em função dos testes que fizeram em mim e dos
arquivos das octoaranhas dissidentes, de que sou o resultado de um esperma alterado. E, se
examinarem seus genomas com detalhe, isso poderá ser confirmado.
— Tudo bem, estou às ordens — falou Nicole um pouco hesitante, abraçando Ellie. — De
qualquer forma que você tenha sido alterada, você é minha filha e eu a amo de todo o meu
coração. E estou certa de que seu pai também vai concordar, depois de pensar um pouco sobre
o assunto — concluiu Nicole, olhando para Richard.
Nicole sorriu para Archie, e a octoaranha soltou o raio vermelho seguido de um azul-cobalto e
um amarelo brilhante, o que queria dizer "Obrigado" na sua língua.

Na manhã seguinte, Nicole achou que deveria ter feito mais perguntas antes de se propor a
ajudar as octoaranhas em sua pesquisa científica. Logo depois do café da manhã, duas outras
octoaranhas vieram reunir-se a Archie, o permanente companheiro alienígena, na pequena
suíte dos humanos. Um dos recém-chegados, apresentado por Ellie como o "dr. Azul", um
acadêmico de medicina muito influente, explicou o que iria ocorrer. O procedimento com
Richard seria simples e direto. As octos só necessitavam de dados sobre Richard que
corroborassem o arquivo histórico de sua visita à colônia dissidente anos atrás.
Quanto a Nicole, no banco de dados das octoaranhas não havia informações fisiológicas sobre
ela. Mas as octos já sabiam, através dos exames detalhados feitos em Ellie, que a forma pela
qual as características genéticas dos humanos se expressam é dominada pela contribuição da
mãe à sua descendência. Por isso, seria necessário um procedimento muito mais elaborado. O
dr. Azul propôs fazer uma complexa série de testes em Nicole, dos quais o mais importante
era juntar dados dentro do seu corpo por meio de uma dúzia de criaturas mínimas espiraladas,
com cerca de dois centímetros de comprimento e da espessura de um alfinete. Quando o
médico octoaranha pegou uma sacola de plástico e Nicole viu as criaturazinhas que seriam
introduzidas em seu corpo, ela se encolheu, horrorizada.
— Mas eu achei que vocês só precisariam do meu código genético — disse Nicole —, e isso
está contido em todas as células... Não deve ser necessário...
Cores brilhantes circundaram a cabeça do dr. Azul quando ele interrompeu a parte final do
protesto de Nicole.
— Nossas técnicas para extrair as informações do seu genoma — traduziu Ellie — ainda não
são muito avançadas. Nossos métodos funcionam melhor se tivermos várias células de vários
órgãos e subsistemas biológicos diferentes.

Depois, o médico agradeceu gentilmente a Nicole por sua cooperação, terminando com a
seqüência de raios azul-cobalto e amarelo brilhante, que ela já tinha aprendido a interpretar. O
azul do "obrigado" desceu pela lateral da cabeça do dr. Azul, produzindo um efeito tão bonito
que distraiu a atenção da lingüista que havia dentro de Nicole. Manter essas faixas coloridas
de forma regular deve ser um comportamento adquirido, pensou ela. E nosso doutor tem
algum tipo de dificuldade de fala.

Mas a atenção de Nicole voltou-se forçosamente para o procedimento a ser iniciado, logo
depois que o dr. Azul explicou que as criaturas enrascadas correriam por debaixo de sua pele
e para dentro do seu corpo, aí permanecendo durante meia hora. Ai, pensou Nicole
imediatamente, elas parecem sanguessugas.
Uma foi colocada no seu antebraço, e Nicole levantou o braço para ver o animalzinho abrir
caminho £>ela sua pele. Nicole não sentiu nada enquanto estava sendo invadida, mas quando o
bichinho desapareceu lá por dentro ela estremeceu sem querer.
Disseram para Nicole deitar-se de costas, e o dr. Azul mostrou-lhe duas criaturas, uma
vermelha e uma azul, com oito patinhas e do tamanho de uma mosca.
— Talvez a senhora venha a sentir um certo desconforto — disse o médico através de Ellie —
quando as criaturas espiraladas chegarem aos seus órgãos internos. Esses bichinhos podem ser
usados como anestesia se a senhora quiser ser aliviada da dor.
Menos de um minuto depois, Nicole sentiu uma picada aguda no peito. Era como se alguma
coisa estivesse cortando uma das câmaras do seu coração. Quando o dr. Azul viu o rosto de
Nicole vincado de dor, ele colocou as duas moscas anestésicas no seu pescoço e em poucos
segundos ela entrou num estado peculiar, entre a vigília e o sonho. Ainda ouvia a voz de Ellie
explicando o que estava acontecendo, mas não sentia mais nada dentro do seu corpo.
Nicole se descobriu fixando o olhar na frente da cabeça do dr. Azul, que supervisionava todo
o procedimento. Para seu grande espanto, ela achou que estava começando a reconhecer
expressões de emoção nas rugas do rosto da octoaranha. Lembrou-se de que quando era
criança teve certeza de ter visto seu cachorro sorrir. Há muita coisa para ver, pensou ela com
seu espírito flutuante, muito mais do que a gente costuma ver.
Nicole teve uma imensa sensação de paz. Fechou os olhos um instante e quando os abriu de
novo se viu como uma meninazinha de dez anos, chorando ao lado do pai quando a tumba de
sua mãe foi sendo consumida pelas chamas em uma cerimônia de funeral adequada à rainha
Senoufo. Seu velho avô Omeh, com uma máscara para espantar os demônios que tentassem
acompanhar a mãe de Nicole na sua vida no além, aproximou-se e pegou sua mão.
— A profecia se realizou, Ronata — disse ele, usando o nome senoufo de Nicole —, nosso
sangue foi espalhado pelas estrelas.
A máscara do xamã desapareceu e Nicole viu outro conjunto de cores em volta da cabeça do
dr. Azul e ouviu a voz de Ellie. Minha filha é híbrida, pensou ela sem emoção. Eu gerei uma
coisa mais que humana. Uma novo tipo de evolução teve início.
Seu espírito ficou flutuando de novo e ela sentiu-se como um pássaro voando alto na escuridão
acima das savanas da Costa do Marfim. Nicole tinha saído da Terra, virado as costas para o
Sol, e passado como um foguete pelo vazio mais além do sistema solar. E ela via claramente o
rosto de Omeh.

— Ronata — chamava ele no céu escuro da Costa do Marfim —, não se esqueça. Você foi a
escolhida.

E ele poderia saber disso, pensou Nicole, ainda na zona fronteiriça da vigília, há tantos anos,
lá na África, na Terra? E se soube, como foi possível? Ou será que há ainda outra dimensão
que estamos apenas começando a compreender?

Richard e Nicole estavam sentados na semi-escuridão, temporariamente sozinhos. Ellie e


Eponine tinham saído com Archie para fazer os preparativos para a viagem de volta na manhã
seguinte.
— Você andou muito quieta o dia inteiro — disse Richard.
— É, estou me sentindo esquisita, como se estivesse drogada, desde aquela última intervenção
de hoje de manhã... Minha memória está muito ativada. Tenho pensado nos meus pais e em
Omeh. E estou tendo visões que costumava ter anos atrás.
— Você ficou surpresa com o resultado dos testes? — perguntou Richard depois de um
instante de silêncio.
— Não muito. Acho que tanta coisa já nos aconteceu... E ainda me lembro de quando Ellie foi
concebida... Você ainda não tinha voltado completamente a ser você próprio.
— Conversei muito com Ellie e Eponine esta tarde, enquanto você estava dormindo. As
mudanças que as octoaranhas induziram em Ellie são permanentes, como mutações. Nikki
provavelmente tem algumas dessas características; depende da exata mistura genética. É claro
que a dela será diluída ao longo de outra geração...
Richard não terminou seu pensamento. Deu um bocejo e pegou a mão de Nicole. Os dois
ficaram quietos durante vários minutos, até Nicole quebrar o silêncio.
— Richard, você se lembra de eu ter falado sobre as histórias dos senoufos? Sobre a mulher
da tribo, a filha de uma rainha, que diziam que levaria o sangue senoufo "até as estrelas"?
— Vagamente — respondeu Richard. — Já faz muito tempo que conversamos sobre isso.
— Omeh tinha certeza de que eu era a mulher dessa história... "a mulher sem companhia",
como ele dizia... Você acredita que há alguma possibilidade de se poder conhecer o futuro?
Richard riu.
— Tudo na natureza segue certas leis. Essas leis podem ser expressas como equações
diferenciais no tempo. Se soubermos precisamente as condições iniciais do sistema em uma
certa época e as equações exatas que representam as leis da natureza, então teoricamente
podemos predizer todos os acontecimentos futuros. Mas é claro que não podemos, pois nosso
conhecimento é sempre imperfeito, e as regras do caos limitam a aplicabilidade de nossas
técnicas de avaliação...
— Suponha — disse Nicole, apoiando-se no cotovelo — que houvesse indivíduos ou até
mesmo grupos que não conhecessem matemática, mas pudessem de certa forma ver ou sentir as
leis e as condições iniciais que você mencionou. Será que eles solucionariam intuitivamente
pelo menos parte das equações e prediriam o futuro através de um insight que não podemos
modelar nem quantificar?
— É possível — disse Richard. — Mas lembre-se de que pretensões extraordinárias exigem...
— ...provas extraordinárias. Eu sei disso — falou Nicole, fazendo uma pausa por um instante.
— Gostaria de saber o que é o destino. Será uma coisa que nós humanos criamos em vista de
um fato? Ou o destino é real? E se o destino existe como conceito, como pode ser explicado
pelas leis da física?
— Não estou te entendendo, querida — disse Richard.
— Isso tudo é confuso para mim também — falou Nicole. — Eu sou o que sou porque, como
Omeh insistia em dizer quando eu era uma garotinha, era meu destino viajar no espaço? Ou eu
sou o que sou em função das escolhas que fiz pessoalmente e dos conhecimentos que
desenvolvi conscientemente?
Richard riu novamente.
— Agora você está se avizinhando dos enigmas filosóficos fundamentais, o debate entre a
onisciência de Deus e o livre-arbítrio do homem.
— Não foi essa a minha intenção — falou Nicole pensativa. — Só não consigo tirar da cabeça
a idéia de que nada do que aconteceu na minha vida absolutamente incrível seria surpresa para
Omeh.

O café da manhã de despedida foi uma festa. As octoaranhas enviaram mais de uma dúzia de
diferentes frutas e legumes, e também um cereal quente, feito, segundo Archie e Ellie, com as
gramas muito altas plantadas ao norte da usina elétrica. Enquanto eles comiam, Richard
perguntou à octoaranha o que tinha acontecido com os filhotes de aves Tammy e Timmy, os
melões-maná e o material séssil. Ele não ficou satisfeito com a resposta um tanto vaga de que
todas as outras espécies estavam bem.
— Olhe aqui, Archie — disse Richard com seu modo ríspido característico. Ele agora se
sentia à vontade com seu hospedeiro alienígena e achava que não tinha mais de ser gentil o
tempo todo. — Tenho mais do que um interesse passageiro por aquelas aves. Eu as salvei e
criei desde que elas nasceram, e gostaria de vê-las nem que fosse por um instante... De
qualquer forma, acho que mereço uma resposta mais clara à minha pergunta.
Archie levantou-se, saiu pela porta da suíte e voltou uns minutos depois.
— Você vai poder ver as aves pessoalmente hoje à tarde, na nossa viagem de volta — disse
ele. — Quanto às outras espécies, dois ovos acabaram de ser germinados e são agora filhotes
de myrmigatos. O desenvolvimento deles está sendo monitorado de perto do outro lado do
nosso território e você não vai poder visitá-los.

Os olhos de Richard brilharam.

— Dois deles germinaram! Como vocês conseguiram isso?


— Os ovos da espécie séssil devem ser colocados em um líquido termicamente controlado
durante um mês do tempo dos humanos antes mesmo que o processo do desenvolvimento do
embrião comece — disse Ellie, interpretando as cores de Archie muito lentamente. — A
temperatura deve ser mantida dentro de um limite extremamente baixo, menos de um grau dos
humanos, no mesmo valor considerado ótimo para a manifestação da espécie dos myrmigatos.
Caso contrário, os processos de crescimento e desenvolvimento não ocorrerão.
Richard ficou de pé.
— Então é este o segredo — disse ele, quase aos gritos. — Que droga, eu devia ter pensado
nisso. Tinha várias pistas, tanto das condições dentro do habitat deles quanto dos murais que
me foram mostrados... — Enquanto falava, ele andava de um lado para outro na sala. — Mas
como as octoaranhas souberam isso? — perguntou, de costas para Archie.
Archie respondeu depressa depois que Ellie lhe traduziu a pergunta.
— Nós colhemos informações da outra colônia de octoaranhas. Os arquivos delas explicavam
toda a metamorfose dos sésseis.
Tudo parecia simples demais para Richard. Pela primeira vez, ele suspeitou que talvez seu
colega alienígena não estivesse dizendo toda a verdade. Richard estava pronto para fazer mais
algumas perguntas quando o dr. Azul entrou na suíte com mais três octos, duas das quais
carregavam um objeto grande hexagonal, embrulhado num material semelhante a papel.
— O que é isso? — perguntou Richard.
— É nossa festa oficial de despedida — respondeu Ellie. — E um presente dos moradores da
cidade.
Uma das octoaranhas pediu a Ellie que juntasse todos os humanos na avenida para a cerimônia
de despedida. Os humanos pegaram seus pertences e saíram pelo vestíbulo para as luzes
brilhantes. Nicole ficou surpresa com o que viu. Com exceção das octoaranhas que haviam
saído da suíte com eles, a avenida estava deserta. Até mesmo as cores dos jardins pareciam
mais apagadas, como se dois dias antes tivessem sido temporariamente avivadas por toda a
atividade que cercara a chegada de Nicole e Richard dois dias antes.
— Onde estão todos? — perguntou Nicole a Ellie.
— Tudo está quieto de propósito — respondeu a filha. — As octos não queriam ver você
alarmada de novo.
As cinco octoaranhas enfileiraram-se no meio da avenida, de costas para o prédio em forma
de pirâmide. As duas do lado direito equilibravam o embrulho hexagonal, maior do que elas.
Os quatro humanos enfileiraram-se do lado oposto às octoaranhas, em frente aos jardins da
cidade. A octoaranha do centro, que Ellie havia finalmente apresentado como o "Chefe
Otimizador" (depois de várias tentativas vãs de encontrar uma palavra humana exata para a
descrição feita por Archie das obrigações do chefe das octoaranhas), deu um passo à frente e
começou a falar.

O Chefe Otimizador expressou sua gratidão a Richard, Nicole, Ellie e Eponine, incluindo uma
atenção especial com um "obrigado" a cada um, e disse que esperava que aquele breve
intercâmbio fosse o "primeiro de muitos" que levariam a uma maior compreensão entre as
duas espécies. Depois, declarou que Archie voltaria com os humanos, não só para que o
intercâmbio pudesse continuar e expandir-se como também para demonstrar aos outros
humanos que agora existia uma confiança mútua entre as duas espécies.

Durante uma breve pausa, Archie deu um passo para a área entre as duas fileiras, e Ellie
acolheu-o simbolicamente no grupo viajante. As duas octos da direita abriram o presente, uma
pintura magnífica, representando em detalhes tudo o que Richard e Nicole haviam visto
quando entraram na Cidade de Esmeralda. A pintura era tão viva que Nicole ficou pasma por
um instante. Um minuto depois, os humanos aproximaram-se da pintura para examinar os
detalhes. Todas as criaturas estranhas estavam ali representadas, inclusive os três onduladores
azul-rei, cujas antenas longas e retas apontadas para cima, na direção de uma massa
fervilhante, fez Nicole lembrar-se de como ficara perturbada no dia anterior.
Enquanto examinava a pintura e imaginava como ela teria sido criada, Nicole lembrou-se do
quase desmaio que tivera ao presenciar aquela cena. Eu estava tendo uma premonição de
perigo?, falou a si mesma. Ou foi alguma outra coisa? Deu uma olhada em volta e viu as
octoaranhas conversando. Talvez tenha sido uma epifania, um instante de reconhecimento de
uma coisa muito além da minha compreensão. Uma força ou um poder nunca sentido antes
por nenhum ser humano. E sentiu um arrepio na espinha quando os portões da Cidade de
Esmeralda começaram a se abrir.

Richard estava sempre se preocupando em dar nome às coisas. Depois de inspecionar em


menos de um minuto as criaturas com quem eles iriam viajar, chamou-as de "emassauros".
— Esse nome não é muito imaginativo, querido — falou Nicole brincando.
— Talvez não seja, mas é uma descrição perfeita. Elas parecem emas gigantes com cara e
pescoço daqueles dinossauros herbívoros.
As criaturas tinham quatro pernas de pássaros, um corpo macio e emplumado com uma
concavidade nas costas, onde quatro humanos podiam sentar-se, e um pescoço comprido que
se estendia a três metros em qualquer direção. Como suas pernas tinham cerca de dois metros
de comprimento, o pescoço podia encostar no chão sem dificuldade.
Os dois emassauros eram incrivelmente velozes. Archie, Ellie e Eponine viajaram em um
deles, ao qual tinha sido amarrada, com uma espécie de barbante, a grande pintura hexagonal.
Nicole e Richard foram sozinhos na outra. Os emassauros não eram guiados por rédeas nem
por qualquer outro meio de controle, mas antes que o grupo partisse da Cidade de Esmeralda,
Archie passara dez minutos "conversando" com eles.
— Ele está explicando todo o trajeto — disse Ellie. — E também dando instruções sobre o
que deve ser feito em caso de acidente.
— Que tipo de acidente? — perguntou Richard aos gritos, mas Ellie deu de ombros.
No início, Richard e Nicole tinham se agarrado às "penas" que rodeavam a concavidade na
qual eles estavam sentados, mas depois de alguns minutos relaxaram. Os emassauros
caminhavam de modo muito suave, com poucos solavancos.
— Você acha — disse Richard, depois que a Cidade de Esmeralda sumiu ao longe — que
esses animais evoluíram naturalmente desta forma, com esta concavidade quase perfeita no
meio das costas? Ou que a engenharia genética das octoaranhas criou essas criaturas para
servirem de meio de transporte?
— Não tenho dúvida sobre isso — respondeu Nicole. — Acho que a maioria das coisas vivas
que nós vimos, inclusive aquelas criaturas escuras espiraladas que andaram por debaixo da
minha pele, foi projetada pelas octoaranhas para funções específicas. Não poderia ser de
outra forma.
— Mas não dá para acreditar que esses animais tenham sido projetados a partir de um esboço.
Isso implicaria uma tecnologia fantástica, muito além do que se possa imaginar.
— Eu não sei, querido. Talvez as octoaranhas tenham viajado para muitos sistemas planetários
diferentes e encontrado em cada um deles formas de vida que pudessem ser ligeiramente
alteradas para se encaixar nos seus grandes esquemas simbióticos... Mas não aceito a idéia de
que essa biologia harmoniosa tenha acontecido por uma evolução natural.
Os dois emassauros e os cinco viajantes foram guiados por três vagalumes gigantes. Depois de
umas duas horas, o grupo aproximou-se de um grande lago que se estendia para o sul e para o
oeste. Os emassauros agacharam-se no chão para Archie e os humanos descerem.
— Vamos almoçar e beber água aqui — disse Archie aos outros, passando para Ellie uma
vasilha com comida e depois levando os emassauros até o lago. Nicole e Eponine foram ver
umas plantas azuis que cresciam à beira d'água, e Richard e Ellie ficaram sozinhos.
— Sua desenvoltura na língua delas é impressionante — disse Richard enquanto ia comendo.
Ellie riu.
— Não sou tão boa quanto pareço. As octos fazem frases muito simples para eu poder
entender. E falam devagar, em largas faixas de cor... Mas estou melhorando... Não sei se você
percebeu que elas não usam sua verdadeira língua quando falam conosco. Usam uma forma
derivada.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou Richard.
— Expliquei para a mamãe lá na Cidade de Esmeralda, mas ela certamente não teve
oportunidade de comentar esse assunto com você... A língua verdadeira das octoaranhas
consiste de sessenta e quatro símbolos coloridos, como falei, mas onze não são acessíveis a
nós. Oito ficam na parte infravermelha do espectro, e as outras três na ultravioleta. Portanto
nós só conseguimos distinguir claramente cinqüenta e três símbolos. No início isso foi um
grande problema... Mas, por sorte, cinco dos onze símbolos que ficam de fora são
esclarecedores. De qualquer forma, as octoaranhas desenvolveram em nosso benefício uma
espécie de dialeto, que usa apenas as cores que podem ser vistas por nós... Archie disse que
esse novo dialeto está sendo ensinado em algumas classes adiantadas...

— Fantástico — disse Richard. — Quer dizer que elas adaptaram sua linguagem às nossas
limitações físicas?

— Não exatamente, papai. Elas ainda usam sua verdadeira língua quando conversam entre si.
É por isso que eu nem sempre entendo o que estão dizendo... Mas esse novo dialeto está sendo
desenvolvido e expandido só para que as comunicações conosco se tornem mais fáceis.
Richard terminou de almoçar. Estava para fazer uma pergunta a Ellie sobre a língua das
octoaranhas quando ouviu Nicole gritar:
— Richard — gritou ela a uns cinqüenta metros de distância —, olhe lá no ar, na direção da
floresta.
Richard esticou o pescoço, fez sombra para os olhos e viu a distância dois pássaros voando na
direção deles. Por alguma razão, só foi reconhecê-los quando ouviu seus guinchos. Deu um
pulo e correu para as aves. Tammy e Timmy, já completamente crescidos, deram um mergulho
no céu e baixaram ao lado de Richard, que ficou tomado de alegria com seus guinchos
incessantes e começou a acariciá-los.
As duas aves pareciam perfeitamente saudáveis, e não havia vestígio de tristeza em seus
olhos. Richard e elas ficaram juntos durante algum tempo até que Timmy se afastou, gritou
alguma coisa num tom muito alto e saiu voando. Dentro de poucos instantes, voltou com uma
companheira de plumas aveludadas cor de laranja, diferente de tudo o que Richard jamais
vira. Richard ficou um pouco confuso, mas percebeu que Timmy estava tentando apresentá-lo
à sua companheira.
O resto da reunião com as aves durou de dez a quinze minutos. Depois que Archie explicou
que aquele lago supria quase metade da água fresca do território das octoaranhas, ele insistiu
que se continuasse a viagem. Richard e Nicole já estavam na concavidade das costas do
emassauro quando as três aves partiram. Tammy ficou sobrevoando o grupo por algum tempo,
perturbando a criatura que os transportava, e a certa altura seguiu o irmão e sua companheira
na direção da floresta.
Richard permaneceu muito quieto enquanto suas montarias se dirigiam para a floresta.
— Essas aves significam muito para você, não é? — perguntou Nicole.
— Muito mesmo. Durante muito tempo elas foram minha única companhia. Timmy e Tammy
dependiam de mim para sobreviver... Criar essas aves foi o primeiro ato da minha vida
despido de egoísmo e me expôs a novas dimensões tanto de ansiedade quanto de felicidade.
Nicole pegou a mão de Richard.
— Sua vida emocional foi uma verdadeira odisséia — disse ela suavemente —, com cada
parte tão diversa quanto a viagem que você empreendeu.
Richard beijou Nicole.
— Ainda tenho alguns demônios que precisam ser exorcizados. Talvez, com a sua ajuda,
dentro de mais dez anos eu me torne um ser humano decente.
— Você não se dá muito crédito, querido — disse Nicole.
— Para o meu cérebro dou bastante crédito — disse Richard, com uma risadinha que mudou o
tom da conversa. — E você sabe o que meu cérebro estava pensando agora mesmo? De onde
veio aquela ave com a barriga cor de laranja?
Nicole ficou intrigada.
— Do segundo habitat — disse ela. — Você mesmo nos disse que lá devia haver quase mil
aves antes da invasão das tropas de Nakamura... As octoaranhas também devem ter salvo
algumas.
— Mas eu vivi lá durante meses — protestou Richard. — E nunca vi uma ave com a barriga
cor de laranja. Nenhuma, senão eu teria me lembrado.
— O que você está querendo dizer?
— Nada. Mas estou começando a imaginar se nossas amigas octoaranhas não têm alguns
segredos que ainda não discutiram conosco.
Eles chegaram ao grande iglu próximo do mar Cilíndrico depois de algumas horas. O pequeno
iglu brilhante que havia a seu lado tinha desaparecido. Archie e os quatro humanos apearam. A
octoaranha e Richard desamarraram a pintura hexagonal e encostaram-na na parede do iglu, e
depois Archie chamou os emassauros e deu-lhes instruções para sua viagem de volta.
— Eles não podem ficar um pouco aqui? — perguntou Nicole. — As crianças iriam adorar
vê-los.
— Infelizmente não — respondeu Archie. — Eles são poucos e muito necessários.
Embora Eponine, Ellie, Richard e Nicole se sentissem cansados com a viagem, estavam muito
animados para se encontrarem com os outros. Antes de saírem do iglu, Eponine e Ellie
olharam-se no espelho e ajeitaram os cabelos.
— Por favor, minha gente — disse Eponine —, quero pedir um favor. Não digam a ninguém
que estou curada enquanto eu não contar ao Max em particular. Esta vai ser minha surpresa
para ele.
— Espero que Nikki me reconheça — falou Ellie nervosa, quando começaram a descer a
primeira escada e entraram no corredor que levava ao patamar. O grupo todo ficou com medo
de que os outros estivessem dormindo àquela hora, mas Richard conferiu no seu computador e
garantiu que debaixo da cúpula do arco-íris eles estavam no meio da manhã.
Os cinco andaram pelo patamar, olhando para o chão circular abaixo. Os gêmeos Kepler e
Galileu estavam brincando, e a pequena Nikki os olhava e ria. Nai e Max descarregavam a
comida do trem do metrô, que aparentemente acabara de chegar. Eponine não se conteve e
gritou.
— Max, Max!
Max reagiu como se tivesse levado um tiro. Deixou cair a comida que estava carregando e
virou-se para o patamar. Ao ver Eponine acenando para ele, saiu zunindo para a escada em
espiral. Dois minutos depois apareceu no patamar e apertou Eponine nos braços.
— Oh, minha francesinha — disse ele, levantando-a do chão e abraçandoa com fúria —, como
eu senti a sua falta!

Archie sabia fazer todo tipo de truques com as bolas coloridas. Pegava duas bolas de repente
e jogava-as em direções diferentes; jogava com seis bolas simultaneamente usando quatro dos
seus tentáculos, pois só precisava dos outros quatro no chão para manter o equilíbrio. As
crianças adoravam quando Archie rodava as três ao mesmo tempo no ar, e ele parecia nunca
se cansar de brincar com elas.
No início é claro que as crianças tiveram medo do seu visitante alienígena. Embora Ellie
garantisse que Archie era amigo, a pequena Nikki ficava muito preocupada, pois lembrava-se
do terror que havia sido o seqüestro da mãe. Benjy foi o primeiro a aceitar Archie como
companheiro de brincadeiras. Os gêmeos Watanabe ainda não tinham coordenação suficiente
para brincadeiras complicadas, e Benjy ficou feliz quando percebeu que Archie gostaria de
brincar com ele de pegar ou de outros jogos de bola.
Max e Robert ficaram perturbados com a presença de Archie. Aliás, uma hora depois da
chegada dos quatro humanos e da octoaranha, Max foi ver Richard e Nicole no quarto deles.
— Eponine me disse — falou ele com raiva — que essa maldita octoaranha vai viver aqui
conosco. Vocês todos ficaram malucos?
— Pense em Archie como um embaixador, Max — explicou Nicole. — As octos querem
estabelecer uma comunicação regular conosco.
— Mas foram essas mesmas octoaranhas que seqüestraram sua filha e a minha namorada, e as
detiveram contra sua vontade por mais de um mês... E você está me dizendo que devemos
ignorar tudo isso que elas fizeram?
— Houve sobejas razões para esses seqüestros — replicou Nicole, olhando ligeiramente para
Richard. — E as mulheres foram bem tratadas... Por que você não conversa com Eponine
sobre isso?
— Eponine só faz elogiar as octoaranhas — falou Max. — É como se tivesse sofrido uma
lavagem cerebral... Pensei que vocês dois seriam mais razoáveis.
Mesmo depois que Eponine contou a Max que as octoaranhas a tinham curado do RV-41, ele
continuou cético.
— Se isso for verdade — disse ele —, é a melhor notícia que recebo desde que aqueles robôs
apareceram na fazenda e confirmaram que Nicole tinha chegado sã e salva a Nova York. Mas
tenho muita dificuldade em aceitar esses monstros de oito patas como nossos benfeitores.
Quero que o doutor Turner examine você com cuidado. Se ele disser que você está curada,
então eu acredito.
Robert Turner foi abertamente hostil a Archie desde o começo. Nada que Nicole ou até mesmo
Ellie dissessem podia neutralizar a raiva que ele sentia desde o seqüestro de Ellie. Seu
orgulho profissional também foi gravemente atingido com a aparente facilidade com que
Eponine havia sido curada.
— Você espera demais, como sempre, Ellie — disse Robert na segunda noite que passaram
juntos. — Você chega, com notícias maravilhosas sobre esses alienígenas que a afastaram de
Nikki e de mim, e espera que a gente os abrace imediatamente. Isso não é justo. Preciso de
tempo para compreender e digerir tudo o que está me contando... Você não percebe que Nikki
e eu ficamos traumatizados com o seu seqüestro? Temos cicatrizes emocionais profundas
causadas por essas mesmas criaturas que você agora quer que eu veja como amigas... Não
posso mudar de opinião da noite para o dia.
Robert também ficou perturbado com a informação de Ellie sobre as mudanças genéticas no
esperma de Richard, embora isso explicasse por que o genoma de sua mulher não se
encaixava na classificação dos testes que seu colega Ed Stafford fizera no Novo Éden.
— Como pode ficar tão calma sabendo que é híbrida? — perguntou a Ellie. — Você não
compreende o que isso significa? Quando as octoaranhas alteraram o seu DNA para melhorar
sua resolução visual e fazer com que você aprendesse a língua delas mais depressa, elas
adulteraram um forte código genético que veio evoluindo naturalmente ao longo de milhões de
anos. Quem sabe que doenças, suscetibilidades, enfermidades ou até mesmo mudanças
negativas de fertilidade poderão aparecer em você ou nas gerações subseqüentes? As octos
podem inconscientemente ter condenado todos os nossos netos.
Ellie não conseguiu apaziguar seu marido. Quando Nicole começou a trabalhar com Robert
para pesquisar se Eponine estava na verdade curada do RV-41, notou que Robert se irritava
toda vez que ela fazia um elogio a Archie ou às octoaranhas.
— Precisamos dar mais tempo a Robert — disse Nicole para a filha uma semana depois que
voltaram. — Ele ainda acha que foi violado pelas octos, não só porque seqüestraram você,
mas também porque contaminaram os genes da sua filha.
— Mamãe, há também outro problema... Sinto que Robert tem um ciúme muito especial. Ele
acha que passo muito tempo com Archie... E não aceita que Archie só possa se comunicar com
alguém através de mim.
— Como eu disse, precisamos ser pacientes. Com o tempo, Robert vai aceitar a situação.
Mas pessoalmente Nicole tinha suas dúvidas. Robert estava determinado a encontrar algum
resquício do vírus RV-41 em Eponine; quando os testes feitos com seu equipamento portátil,
relativamente sem sofisticação, não mostraram qualquer patogenia no sistema dela, continuou
a apelar para outros procedimentos. Como profissional, Nicole era de opinião de que não
havia necessidade de mais testes. Embora houvesse uma remota probabilidade de que o vírus
os tivesse iludido e continuasse em algum lugar dentro de Eponine, Nicole achava que era
praticamente certo que ela estivesse curada.
Os dois médicos entraram em conflito um dia depois de Ellie ter confidenciado à mãe que
Robert estava com ciúmes de Archie. Quando Nicole sugeriu que parassem de fazer testes em
Eponine e a considerassem curada, ficou chocada ao ouvir o genro dizer que pretendia abrir a
cavidade torácica de Eponine para fazer uma biópsia dos tecidos que circundavam seu
coração.
— Mas Robert — disse Nicole —, você já teve algum caso em que os testes não tivessem
apresentado vírus, mas que ainda houvesse patogenia ativa na região cardíaca?
— Só com morte iminente, e com o coração deteriorado — admitiu Robert. — Mas isso não
impede que a mesma situação possa ocorrer mais cedo no ciclo da doença.
Nicole ficou pasma. Não discutiu com Robert, pois sabia, pela rigidez de seus músculos, que
ele já havia decidido o que fazer em seguida. Mas uma cirurgia extracorpórea é sempre um
risco, mesmo realizada por mãos hábeis, pensou Nicole. Neste ambiente, qualquer tipo de
acidente poderia ser fatal. Por favor, Robert, seja razoável. Caso contrário, serei forçada a
ficar contra você em favor de Eponine.

Max pediu para falar com Nicole em particular logo depois que Robert recomendou a cirurgia
cardíaca.
— Eponine está assustada — contou Max —, e eu também... Ela voltou da Cidade de
Esmeralda mais cheia de vida do que nunca. Robert primeiro me disse que os testes
terminariam em uns dois dias... Eles já duram quase duas semanas, e agora ele vem com essa
de fazer uma biópsia do tecido do coração dela...
— Eu sei — disse Nicole com ar sombrio. — Ele me falou na noite passada que ia
recomendar uma cirurgia extracorpórea.
— Por favor, me ajude — disse Max. — Quero ter certeza de que compreendi os fatos direito.
Você e Robert examinaram o sangue de Eponine várias vezes, e também vários tecidos do seu
corpo que às vezes mostram quantidades mínimas de vírus, e todos os espécimes foram
negativos, sem sombra de dúvida.
— Isso mesmo, Max — falou Nicole.
— E não é verdade que quando Eponine era examinada, desde que contraiu o RV-41 anos
atrás, seus exames de sangue indicavam a presença do vírus?
— É — respondeu Nicole.
— Então por que Robert quer operar Eponine? Será que não quer acreditar que ela está
curada? Ou está sendo excessivamente cuidadoso?
— Não posso responder por ele.
Nicole olhou para o amigo e os dois perceberam qual seria a próxima pergunta dele e como
ela a responderia. Há decisões difíceis de serem tomadas na vida, pensou ela. Quando eu era
mais moça, tentava conscientemente evitar me colocar numa posição em que fosse forçada a
tomar decisões assim. Agora compreendo que, se elas forem evitadas, alguém terá de decidir
por mim. E às vezes a decisão é errada.
— Se você fosse a médica encarregada do caso, Nicole — perguntou Max — operaria
Eponine?
— Não — respondeu ela com cuidado. — Acredito que é quase certo que Eponine tenha sido
curada pelas octoaranhas e que o risco de uma cirurgia não se justifica.
Max sorriu e beijou a amiga na testa.
— Obrigado — disse.

Robert ficou ofendidíssimo. Lembrou a todos que passara mais de quatro anos de sua vida
estudando essa doença específica e tentando encontrar uma cura para ela, e que sabia muito
mais sobre o RV-41 do que todos eles juntos. Como podiam ter mais fé numa cura alienígena
do que na sua habilidade cirúrgica? Como sua própria sogra, cujo conhecimento do RV-41
limitava-se ao que ele lhe ensinara, tivera a coragem de emitir uma opinião diferente? Robert
não tinha o apoio de ninguém do grupo, nem mesmo de Ellie, de quem acabou se afastando
depois de várias discussões desagradáveis.

Durante dois dias, Robert recusou-se a sair do seu quarto. Não respondia nem mesmo à filha
Nikki quando ela lhe desejava boa noite. Sua família e seus amigos ficaram profundamente
preocupados com o tormento de Robert, mas não sabiam como poderiam confortá-lo. A
questão da estabilidade emocional de Robert foi abordada em várias discussões. Todos
concordaram que ele parecia deslocado desde que fugira do Novo Éden, e que seu
comportamento havia se tornado cada vez mais imprevisível depois do seqüestro de Ellie.
Ellie contou à sua mãe que Robert tinha agido de forma "estranha" desde que ela voltara.
— Ele não me procurou como mulher nenhuma vez — disse, com voz triste. — Como se
achasse que eu estava contaminada com a minha experiência... Ele fica dizendo coisas como:
"Ellie, você queria ser seqüestrada?"
— Tenho pena de Robert — falou Nicole. — Ele tem uma carga emocional muito grande, que
vem desde do tempo do Texas. E isso tudo foi demais para ele. Nós devíamos ter...
— Mas o que a gente pode fazer por ele agora? — perguntou Ellie.
— Eu não sei, querida. Não sei mesmo.
Ellie tentou superar aqueles tempos difíceis ajudando Benjy a aprender a língua das
octoaranhas. Seu meio-irmão era absolutamente fascinado com tudo o que dizia respeito aos
alienígenas, inclusive com a pintura hexagonal trazida da Cidade de Esmeralda. Benjy olhava
para o quadro várias vezes por dia, e nunca perdia uma chance de fazer perguntas sobre as
espantosas criaturas retratadas no quadro. Através de Ellie, Archie respondia pacientemente a
todas as perguntas dele.
Benjy tinha decidido, logo depois que começou a brincar regularmente com Archie, que queria
aprender a reconhecer pelo menos algumas frases do vocabulário das octoaranhas. Observou
que Archie sabia fazer leitura labial, e queria mostrar-lhe que até mesmo um "humano
retardado", se adequadamente motivado, podia aprender um pouco da língua alienígena para
manter uma conversação simples.
Ellie e Archie começaram a ensinar o fundamental para Benjy. Ele aprendeu as cores das
octoaranhas para "sim" e "não", "obrigado" e "por favor" sem dificuldade alguma. Os números
também foram muito fáceis, pois tanto os cardinais quanto os ordinais eram essencialmente
uma combinação de seqüências de duas cores básicas, vermelho vivo e verde-malaquita,
usadas de forma binaria e assinaladas na seqüência da frase por uma esclarecedora cor de
salmão. O que deu mais trabalho a Benjy foi compreender que as cores individuais em si não
significavam nada. Uma faixa castanho-avermelhada, por exemplo, representava o verbo
"compreender" caso fosse seguida de uma faixa malva e um esclarecedor; porém, se a
combinação castanho/malva fosse seguida de um vermelhão, a palavra de três faixas
significava "planta em flor".
As cores individuais também não faziam parte do alfabeto, em estrito senso. Às vezes, a
largura das cores, quando comparada com outras na seqüência mais longa que definia uma
única palavra, mudava o sentido completamente. A combinação castanho/malva só significava
"compreender" se as duas faixas de cor fossem aproximadamente da mesma largura. A palavra
definida por um castanho-siena estreito seguido de um malva com o dobro da largura
significava "capacidade".
Benjy lutou com a língua, fazendo todas as repetições que lhe exigiam com extrema aplicação.
Sua ânsia para aprender serviu de consolo para Ellie, que estava muito amargurada, sem saber
como solucionar sua crise com Robert.
No início do terceiro dia do auto-exílio de Robert no seu quarto, o trem do metrô chegou,
como sempre, com seu suprimento de meia semana de comida e água. Só que dessa vez
chegaram também duas octoaranhas, que desembarcaram e foram conversar com Archie. A
família reuniu-se, esperando ouvir alguma notícia incomum.
— As tropas humanas estão de novo em Nova York — contou Archie — e estão se preparando
para quebrar a tranca da toca de vocês. Dentro de pouco tempo, eles descobrirão os túneis do
metrô.
— Então, o que devemos fazer? — perguntou Nicole.
— Nós gostaríamos que vocês viessem viver conosco na Cidade de Esmeralda — disse
Archie. — Minhas colegas previram essa possibilidade e já terminaram o projeto de uma
parte especial da cidade só para vocês, que pode ficar pronta em poucos dias.
— E se não quisermos ir? — perguntou Max.
Archie conversou rapidamente com as duas outras octoaranhas.
— Então podem ficar aqui esperando as tropas. Nós mandaremos o máximo de comida que
pudermos, mas vamos começar a desmontar o metrô assim que tivermos evacuado todas as
nossas associadas na parte norte do mar Cilíndrico.
Archie continuou a falar, mas Ellie parou de traduzir. Pediu que as frases seguintes fossem
repetidas várias vezes, e enfim virou-se para sua família e seus amigos, muito pálida.
— Infelizmente — traduziu ela —, as octoaranhas têm de se preocupar com o seu bem-estar.
Portanto, se algum de vocês decidir não vir conosco, terá sua memória a curto prazo
bloqueada, e não poderá lembrar-se com detalhes de nenhum acontecimento ocorrido nas
últimas semanas.
Max deu um assobio.
— Isso é que é comunicação e amizade! — disse ele. — Na hora do aperto, todas as espécies
funcionam do mesmo jeito.
Ele andou até Eponine e segurou sua mão. Eponine olhou-o intrigada quando Max a empurrou
para junto de Nicole e perguntou:

— Você pode nos casar? Nicole ficou aturdida.

— Neste instante? — perguntou ela.


— Neste exato instante — respondeu Max. — Eu amo esta mulher que está ao meu lado e
quero ter com ela uma fantástica lua-de-mel lá no iglu antes que as coisas por aqui virem um
inferno.
— Mas eu não tenho qualificação para... — protestou Nicole.
— Você é a mais qualificada para isso aqui — interrompeu Max. — Vamos, pelo menos faça
uma coisa o mais aproximada possível. — A noiva estava muda e sorridente.
— Você, Max Puckett, aceita esta mulher, Eponine — disse Nicole hesitante — como sua
legítima esposa?
— Aceito, e já deveria ter feito isso há meses — respondeu Max.
— E você, Eponine, aceita este homem, Max Puckett, como seu legítimo esposo?
— Aceito, Nicole, com muito prazer.
Max puxou Eponine e beijou-a apaixonadamente.
— Agora, Ar-chi-bald — disse, enquanto ele e Eponine dirigiam-se para a escada —, caso
lhe interesse saber, a francesinha e eu pretendemos ir com você para a Cidade de Esmeralda
da qual ela tanto fala. Mas não estaremos por aqui nas próximas vinte e quatro horas ou talvez
mais um pouco, dependendo da energia de Eponine, e não queremos ser perturbados.
Max e Eponine foram depressa para a escada cilíndrica e desapareceram. Ellie quase
terminara de explicar a Archie o que estava se passando quando os recém-casados acenaram
do patamar no alto da escada. E todos riram quando Max puxou Eponine para trás na direção
do corredor.

Ellie sentou-se sozinha ao lado da parede, na luz sombria. É agora ou nunca, pensou. Preciso
tentar mais uma vez.
Lembrou-se da cena ocorrida algumas horas antes.
— É claro que você quer ir com seu amigo, a octoaranha Archie — disse Robert com ironia.
— E está pensando em levar Nikki com você.
— Todos vão aceitar o convite — explicou Ellie, sem tentar esconder as lágrimas. — Por
favor, venha conosco, Robert. Elas são uma espécie gentil, com muito senso moral.
— Elas fizeram lavagem cerebral em vocês todos. De alguma forma levaram vocês a crer que
elas são melhores do que sua própria espécie — disse Robert, olhando para Ellie com certa
repugnância. — Sua própria espécie! Isso é uma piada. Pois acho que você é tão octoaranha
quanto humana.
— Isso não é verdade, querido — disse Ellie. — Eu já disse várias vezes que elas só fizeram
pequenas mudanças em mim... Sou tão humana quanto vocês...
— Por quê, por quê, por quê? — gritou Robert de repente. — Por que me deixei convencer a
vir para Nova York? Devia ter ficado lá, onde estava cercado de coisas que eu compreendia...
Apesar das suas súplicas, Robert foi inflexível. Ele não iria para a Cidade de Esmeralda. E
parecia até mesmo estar contente por sua memória recente ser bloqueada pelas octoaranhas.
— Talvez — disse ele rindo com amargura — eu não guarde lembrança alguma da sua volta.
Assim não vou me lembrar que minha mulher e filha são híbridas, e que meus amigos íntimos
não têm respeito pela minha capacidade profissional... É, vou poder me esquecer deste
pesadelo das últimas semanas; vou me lembrar apenas de que foi roubada de mim, como a
minha primeira mulher, quando eu ainda amava você desesperadamente.
Robert andava em volta da sala com um ar de fúria, e Ellie tentava acalmá-lo e confortá-lo.
— Não, não! — gritou ele, evitando o carinho da esposa. — Agora é tarde demais. Estou
sofrendo muito. Não agüento mais.
No final da tarde, Ellie foi pedir conselhos à sua mãe, mas Nicole não conseguiu dar nenhum
alívio à filha. Disse que Ellie não devia desistir, mas lembrou à filha que nada no
comportamento de Robert indicava que ele tivesse mudado de opinião.
Por sugestão de Nicole, Ellie aproximou-se de Archie e pediu-lhe um favor. Se Robert
insistisse em não partir com eles, será que Archie ou uma das outras octoaranhas poderia
levar Robert de volta para a toca deles, onde seria encontrado depressa pelos outros
humanos? Archie respondeu hesitante que sim.
Eu te amo, Robert, disse Ellie a si mesma, quando finalmente desistiu. E Nikki também te ama.
Nós queremos que você vá conosco, pois você é meu marido e pai dela. Ellie respirou fundo e
entrou no seu quarto.
Até mesmo Richard ficou com lágrimas nos olhos quando Robert Turner, depois de dar um
último abraço na esposa e na filha, foi andando com passos hesitantes atrás de Archie até o
metrô, a vinte metros de distância. Nikki chorava baixinho, mas não percebia bem o que
estava acontecendo. Ela ainda era muito pequena.
Robert virou-se, deu um rápido adeus e entrou no trem. Em poucos segundos o trem enfiou-se
pelo túnel, e, menos de um minuto depois, o grupo sombrio animou-se com os gritos de alegria
ouvidos do patamar da escada.
— Olá, pessoal — gritou Max —, é melhor vocês se prepararem para uma grande festa.
Nicole olhou para cima, por baixo da cúpula, e mesmo a distância, na luz mortiça, viu os
sorrisos radiantes dos recém-casados. É isso aí, pensou ela, ainda com o coração doído pela
perda sofrida pela filha. Tristeza e alegria. Alegria e tristeza. Por onde haja seres humanos.
Na Terra. Em novos mundos além das estrelas. Agora e para sempre.
A CIDADE DE ESMERALDA

O pequeno transporte sem motorista parou numa praça circular, de onde saíam ruas em cinco
direções. Uma mulher escura, de cabelos grisalhos, e sua companheira octoaranha desceram
juntas do carro. Quando a octoaranha e a mulher afastaram-se lentamente da praça, o
transporte partiu, com as luzes internas apagadas.
Um vaga-lume gigante solitário voava adiante de Nicole e do dr. Azul, enquanto os dois iam
conversando pela rua quase escura. Nicole teve o cuidado de pronunciar bem as palavras para
que seu amigo alienígena não tivesse dificuldade em ler seus lábios. O dr. Azul respondia em
amplas faixas de cor, usando frases simples que sabia que Nicole poderia entender.
Quando chegaram à primeira das quatro moradias brancas de um andar, no final de uma rua
sem saída, a octoaranha tirou do chão um dos seus tentáculos e deu um aperto de mão em
Nicole.
— Boa noite — disse ela com um sorriso. — Foi um ótimo dia... Obrigada por tudo.
Depois que o dr. Azul entrou na sua casa, Nicole foi até a fonte decorativa que formava uma
ilha no meio da rua e bebeu de uma das quatro torneiras que jorravam um contínuo filete de
água à altura da cintura. Um pouco da água que espirrou no rosto de Nicole caiu na bacia,
criando borbulhas na poça rasa. Mesmo à luz mortiça, Nicole pôde ver as criaturinhas
nadando para baixo e para cima. Existem limpadores por todo lado, pensou ela,
especialmente quando estamos por perto. A água que encostou no meu rosto será purificada
em segundos.
Nicole virou-se e aproximou-se das três outras casas da rua sem saída. Quando atravessou o
portal da casa, o vaga-lume lá de fora voou pela rua até a praça. No átrio, Nicole bateu
levemente na parede uma vez, e em poucos segundos um vaga-lume menor, pouco brilhante,
apareceu no corredor à sua frente. Ela parou em um dos dois banheiros e foi até a porta do
quarto de Benjy, que roncava sonoramente. Nicole ficou observando o sono do filho por um
instante e depois continuou pelo corredor até o quarto principal que ela usava com o marido.
Richard também dormia, pois não respondeu ao seu "alô". Nicole tirou os sapatos e saiu do
quarto. Quando chegou ao escritório, bateu duas vezes na parede e a iluminação ficou mais
forte. O escritório estava apinhado com os componentes eletrônicos de Richard, que as
octoaranhas haviam juntado para ele durante vários meses. Nicole riu para si mesma quando
foi abrindo caminho por entre aquelas peças todas até chegar à sua escrivaninha. Ele sempre
tem um projeto, pensou ela. Pelo menos o tradutor será muito útil.
Nicole sentou-se na cadeira da escrivaninha, abriu a gaveta do meio e tirou seu computador
portátil, que as octoaranhas haviam finalmente adaptado com novos subsistemas. Depois de
abrir o ícone diário no menu, Nicole começou a digitar, olhando de vez em quando para o
pequeno monitor, a fim de ler o que estava escrevendo.

Dia 221

Cheguei em casa muito tarde e, como esperava, todos estavam dormindo. Fiquei tentada a tirar
a roupa e me enfiar na cama com Richard, mas meu dia foi tão extraordinário que fui
compelida a escrever enquanto meus pensamentos e sentimentos ainda estão frescos na minha
cabeça.
Tomei o café da manhã aqui, com todo o clã humano, como sempre, mais ou menos uma hora
depois do alvorecer. Nai falou sobre o que as crianças iam fazer na escola antes da sesta,
Eponine disse que sua azia e enjôo estão melhorando, e Richard queixou-se de que os
"mágicos biológicos" (nossos hospedeiros octoaranhas, é claro) eram medíocres engenheiros
eletrônicos. Tentei participar da conversa, mas minha crescente curiosidade e ansiedade com
relação ao encontro que teria pela manhã com os médicos octoaranhas ocupavam meu
pensamento.
Minha barriga estava roncando quando cheguei à sala de conferências da pirâmide, logo
depois do café. O dr. Azul e seus colegas médicos estavam prontos, e as octoaranhas entraram
imediatamente em uma longa discussão sobre o que haviam deduzido dos testes de Benjy. O
jargão médico já é difícil de entender na nossa própria língua, mas foi quase impossível para
mim seguir o que eles diziam com suas cores. Várias vezes tive de pedir que repetissem
algumas frases.
Em pouco tempo a resposta deles ficou evidente. Sim, os médicos octoaranhas podiam
definitivamente ver, por comparação, que o genoma de Benjy era diferente do genoma de
todos os outros. Sim, todos achavam que o grupo específico de genes do cromossoma 14 era
quase certamente a razão da síndrome de Whittingham. Não, eles sentiam muito mas não viam
nenhuma forma de sanar esse problema, nem usando alguma coisa que interpretei como um
transplante de gene. Era muito complexo, disseram as octoaranhas, envolvia muitas cadeias de
aminoácidos, eles não tinham bastante experiência com seres humanos, havia muitas chances
de ocorrerem erros terríveis...
Chorei quando compreendi o que estavam me dizendo. E por acaso esperava outra coisa? Por
acaso pensei que de alguma forma a mesma habilidade médica milagrosa que livrara Eponine
do vírus RV-41 poderia curar Benjy de um defeito congênito? Percebi, no meu desespero, que
estava na verdade esperando um milagre, embora racionalmente reconhecesse com muita
clareza a diferença significativa entre um mal congênito e um vírus adquirido. O dr. Azul
tentou me consolar ao máximo. Deixei minhas lágrimas maternas escorrerem pelo meu rosto
ali em frente às octoaranhas, pois sabia que precisaria manter minha coragem quando voltasse
para casa e contasse tudo isso aos outros.

Nai e Eponine souberam dos resultados assim que olharam para mim. Nai adora Benjy e está
sempre elogiando sua determinação em aprender apesar dos obstáculos que ele tem de
enfrentar. Benjy é espantoso. Passa horas e horas no quarto, estudando suas lições com todo o
afinco, lutando durante dias para compreender a idéia de frações ou decimais que um menino
normal de nove anos de idade entenderia em meia hora. Na semana passada, Benjy sentiu-se
orgulhoso quando me mostrou que podia encontrar o menor denominador comum para somar
as frações 1/4, 1/5 e 1/6.

Nai é sua professora primária. Eponine é muito amiga de Benjy. Ep provavelmente sentiu-se
pior do que todos hoje de manhã. Ela estava certa, já que as octoaranhas a haviam curado tão
depressa, de que o problema de Benjy também seria sanado pela magia médica. Mas não foi
assim. Eponine soluçou tanto hoje de manhã que fiquei preocupada com o bebê, mas ela deu
uma palmadinha na barriga e me disse para eu não me preocupar. Depois riu e disse que sua
reação provavelmente se devia aos seus hormônios superativados.
Os três homens ficaram nitidamente muito perturbados, mas não mostraram muita emoção.
Patrick saiu do quarto depressa, sem dar uma palavra. Max expressou seu desapontamento
com um grupo colorido de palavras de cinco letras. E Richard fez uma careta e sacudiu a
cabeça.
Nós tínhamos combinado, antes de começar os exames, não dizer a Benjy o verdadeiro
objetivo daqueles testes das octoaranhas. Será que ele sabia? Será que imaginava o que estava
ocorrendo? Talvez. Mas naquela manhã, quando eu disse a ele que as octoaranhas tinham
concluído que ele era um rapaz saudável, não vi nada no seu olhar que sugerisse que ele
estava a par do que acontecera. Depois dei-lhe um abraço bem forte, lutando para não chorar
de novo, voltei para meu quarto e deixei que a dor de ter um filho retardado tomasse conta de
mim mais uma vez.
Tenho certeza de que Richard e o dr. Azul combinaram manter minha cabeça ocupada o resto
do dia. Eu estava no quarto havia apenas uns vinte minutos quando ouvi baterem levemente na
porta. Era Richard, dizendo que o dr. Azul estava no vestíbulo, e que dois cientistas
octoaranhas esperavam por mim na sala de conferências. Eu estava esquecendo que iam fazer
naquele dia uma apresentação detalhada para mim sobre o sistema digestivo das octoaranhas?
A discussão com as octoaranhas foi tão fascinante que consegui me esquecer temporariamente
que o retardo do meu filho ia além da magia médica delas. Os colegas do dr. Azul me
mostraram desenhos anatômicos complexos do interior das octoaranhas, detalhando todos os
órgãos principais de seu aparelho digestivo. Os desenhos eram feitos numa espécie de
pergaminho ou couro, e estavam espalhados em cima da mesa grande. As octoaranhas me
explicaram, na sua maravilhosa linguagem de cores, absolutamente tudo o que acontece com o
alimento dentro do seu corpo.
O mais curioso do processo digestivo das octoaranhas são os dois grandes sacos nas duas
extremidades do sistema. Tudo o que elas comem vai diretamente para um saco de entrada,
onde o alimento pode ficar durante até trinta dias. O próprio corpo da octoaranha, baseado no
nível de atividade individual, determina automaticamente a velocidade com a qual o alimento
do fundo do saco é acessado, transformado quimicamente e distribuído para as células a fim
de gerar energia.

Na outra extremidade fica o saco residual, no qual é jogado todo o material que não pode ser
convertido em energia útil pelo organismo da octoaranha. Aprendi que toda octoaranha
saudável tem um animalzinho chamado "devorador" (esta é minha melhor tradução para as
cores com que as octoaranhas se referem às centopéias minúsculas que vivem no seu saco
residual). Esse animalzinho nasce de um minúsculo ovo depositado por seu antecessor dentro
da octoaranha hospedeira. O devorador é essencialmente onívoro; consome 99 por cento dos
resíduos depositados no saco durante o mês humano que ele leva para amadurecer. Quando
chega à fase adulta, o devorador deposita dois novos ovos, dos quais só um irá germinar, e
deixa para sempre a octoaranha na qual vivia.

O saco de entrada localiza-se bem atrás e abaixo da boca. As octoaranhas comem muito
raramente, mas quando o fazem elas literalmente se entopem. Tivemos uma longa discussão
sobre os seus hábitos alimentares. Dois fatos que o dr. Azul mencionou surpreenderam-me
bastante: primeiro, que quando o saco de entrada fica vazio a octoaranha morre
imediatamente, em menos de um minuto; segundo, que um bebê octoaranha precisa aprender a
monitorar o nível do seu suprimento alimentar. Imagine! O bebê não sabe instintivamente
quando está com fome! Ao perceber meu espanto, o dr. Azul riu (uma seqüência confusa de
curtos raios coloridos) e garantiu-me que a inanição não é uma causa básica de morte das
octoaranhas.
Depois da minha sesta de três horas (ainda não consigo passar o longo dia das octoaranhas
sem dormir um pouco; do nosso grupo, só Richard é capaz de abster-se da sesta regularmente),
o dr. Azul me informou que, em vista do meu interesse pelo processo digestivo delas, as
octoaranhas haviam decidido mostrarme duas outras características especiais da sua biologia.
Entrei num transporte com as três octos, passei por um dos dois portões da nossa área e
atravessei a Cidade de Esmeralda. Achei que aquela viagem pelo campo também tinha sido
planejada para diminuir minha frustração com o problema de Benjy. Enquanto viajávamos, o
dr. Azul me lembrou (era difícil prestar atenção ao que ele dizia, pois tínhamos saído da nossa
área e eu via criaturas fascinantes ao lado do nosso carro e nas ruas, inclusive muitas da
mesma espécie que eu vira rapidamente quando entrei pela primeira vez na Cidade de
Esmeralda) que as octoaranhas eram um gênero polimorfo e que havia seis diferentes tipos
adultos da espécie de octos que colonizaram nossa nave Rama.
— Lembre-se — disse ele com suas cores — que um dos possíveis parâmetros de variação é
o tamanho.
Não havia possibilidade de eu estar preparada para o que vi vinte minutos depois. Descemos
do transporte em frente a um enorme armazém. Em cada extremidade do prédio sem janelas
havia duas octoaranhas colossais e bizarras, com a cabeça medindo pelo menos sete metros de
diâmetro, o corpo parecendo um pequeno dirigível, e longos tentáculos cinzentos, em vez de
pretos e dourados como o normal. O dr. Azul informou-me que essa morfologia particular
tinha uma única função; servir de depósito alimentar para a colônia.
— Cada "repleta" (minha tradução das cores do dr. Azul) pode armazenar centenas de
alimentos para os sacos de uma octoaranha adulta comum — disse o dr. Azul. — Como os
nossos sacos de entrada podem manter os alimentos normais durante trinta dias, ou quarenta e
cinco dias numa dieta de energia reduzida, imagine o que um grande armazém com dezenas
dessas "repletas" representa.

Enquanto eu ia observando, cinco octoaranhas aproximaram-se de uma das suas irmãs


colossais e falaram alguma coisa com suas cores. Dentro de alguns segundos a criatura
inclinou-se para a frente, baixou a cabeça até quase encostar no chão e cuspiu uma pasta
grossa da boca enorme, logo abaixo da sua lente leitosa. As cinco octos de tamanho normal
juntaram-se em volta do monte formado pela pasta e alimentaram-se com seus tentáculos.
— Fazemos isso várias vezes ao dia com a "repleta" — disse o dr. Azul. — Essas criaturas
gigantes têm de ter muita prática, pois não são muito inteligentes. Você deve ter notado que
nenhuma delas fala com cores. Elas não têm nenhuma capacidade de se exprimir pela
linguagem, e sua mobilidade é muito limitada. Seus genomas foram projetados para que elas
armazenem os alimentos com eficiência, preservem-nos durante longos períodos e os
regurgitem para alimentar a colônia quando solicitadas.
Eu ainda estava pensando nas imensas "repletas" quando nosso transporte chegou ao que me
disseram ser uma escola para octoaranhas. Antes de entrarmos, comentei que a escola parecia
deserta, ao que um dos médicos octoaranhas respondeu que a colônia tivera um recente
reabastecimento, se é que entendi bem as cores. Mas ninguém me explicou claramente o que
isso significava.
Por uma extremidade da escola, entramos em um pequeno prédio sem móveis. Dentro havia
duas octoaranhas adultas e cerca de vinte mais jovens, de mais ou menos metade do tamanho
das outras, fazendo obviamente um exercício de repetição. Mas não consegui seguir a
conversa entre os jovens e seus professores, primeiro porque as octoaranhas estavam usando
seu alfabeto completo, inclusive o ultravioleta e o infravermelho, e segundo porque a conversa
das "jovens" não usava raios de cores regulares como os que eu aprendera a ler.
O dr. Azul explicou que estávamos presenciando parte de uma "classe de medição", onde os
jovens são treinados para fazer avaliações da própria saúde, inclusive para avaliar a
quantidade de comida contida em seus sacos de entrada. Depois que o dr. Azul me disse que a
"medição" era uma parte integral do currículo inicial de aprendizado para os jovens, perguntei
por que as cores usadas por eles eram irregulares. O dr. Azul explicou que as octoaranhas que
estavam ali eram muito novinhas, que não conheciam muito mais que a "primeira cor" e que
mal podiam comunicar suas idéias.
Depois que voltamos para a sala de conferência, as octoaranhas fizeramme várias perguntas
sobre o sistema digestivo dos humanos. As perguntas eram muito sofisticadas (dissecamos
passo a passo o ciclo do ácido cítrico Krebs, por exemplo, e falamos sobre outros elementos
da bioquímica humana de que eu mal me lembrava), e fiquei novamente espantada ao ver
como as octoaranhas sabem muito mais sobre nós do que nós sobre elas. Como sempre, eu
nunca tinha de repetir minhas perguntas.
Que dia! Começou com a triste notícia de que as octoaranhas não poderiam ajudar Benjy.
Depois, ao sair do meu desânimo motivada por tudo o que aprendi naquele dia sobre as
octoaranhas, percebi como a psique humana é moldável. Fico assombrada com a variedade de
emoções que os humanos possuem, e como eles mudam rapidamente e se adaptam.
Eponine e eu estávamos falando na noite passada sobre a nossa vida aqui na Cidade de
Esmeralda, e como nossa condição especial de vida afetará as atitudes do bebê que ela vai ter.
A certa altura, Ep sacudiu a cabeça e sorriu.

— Você sabe o que é mais espantoso? — disse ela. — Aqui estamos nós, um contingente
humano isolado, vivendo num território alienígena dentro de uma nave espacial colossal com
destino ignorado... Mesmo assim nossos dias são pontuados de risos, entusiasmo, tristeza e
decepções, exatamente como se estivéssemos na Terra.

— Isso pode parecer um waffle — disse Max —, e pode ter a textura do waffle, mas
certamente não tem gosto de waffle.
— Ponha mais geléia nele — disse Eponine, rindo. — E passe o prato para cá.
Max passou os waffles para sua esposa.
— Que merda, francesinha — disse ele —, nessas últimas semanas você tem comido tudo o
que passa pela sua frente. Dá até para pensar que você e o nosso bebê têm um desses sacos de
entrada. Nicole me contou como eles funcionam.
— Seria bem prático — disse Richard distraído. — A gente podia armazenar comida e não
precisava parar de trabalhar só para atender ao estômago.
— Este cereal é o melhor de todos — falou Kepler do outro lado da mesa. — Aposto que até
o Hércules gostaria dele...
— Por falar em Hércules — interrompeu Max baixinho, olhando de um lado da mesa para o
outro —, qual é a intenção dele? Essa maldita octoaranha aparece toda manhã, duas horas
antes do alvorecer, e fica por aí. Quando as crianças estão estudando com Nai, ela fica
sentada na sala de trás...
— Ele brinca conosco, tio Max — gritou Galileu. — Hércules é realmente muito divertido, e
faz tudo o que pedimos... Ontem ele me deixou socar a sua cabeça como se fosse um saco de
areia.
— Segundo Archie — falou Nicole —, Hércules é o observador oficial. As octoaranhas são
muito curiosas, querem saber tudo sobre nós, até mesmo os detalhes mais corriqueiros.
— Está tudo bem — replicou Max —, só que temos um ligeiro problema. Quando você, Ellie
e Richard forem embora, ninguém vai entender o que Hércules disser. Oh, é claro que Nai
sabe umas frases simples, mas nada mais sério. Ontem, por exemplo, quando todos estavam
fazendo a sesta, aquele maldito Hércules me seguiu até o banheiro. Não sei como é com vocês,
mas eu não consigo resolver meus problemas nem mesmo com Eponine por perto. Com um
alienígena olhando para mim a uns metros de distância meu esfíncter ficou absolutamente
paralisado.
— Por que você não mandou Hércules ir embora? — perguntou Patrick rindo.
— Mandei, mas ele continuou a me olhar com o líquido correndo pelas suas lentes e a repetir
o mesmo grupo de cores que era totalmente ininteligível para mim.
— Você se lembra das cores? — perguntou Ellie. — Talvez eu possa dizer o que Hércules
estava falando com você.
— É claro que não — respondeu Max. — Além do quê, agora não adianta mais... Não estou
sentado aqui tentando cagar.

Os gêmeos Watanabe caíram na gargalhada, e Eponine fez uma cara feia para o marido. Benjy,
que quase não tinha falado durante o café da manhã, pediu licença para levantar-se da mesa.

— Você está bem, querido? — perguntou Nicole.


Benjy fez que sim e saiu da sala, seguindo para seu quarto.
— Ele sabe de alguma coisa? — perguntou Nai.
Nicole sacudiu a cabeça e virou-se para sua neta. — Você já terminou de comer, Nikki?
— Já, vovó — respondeu a menininha. Pediu licença e um instante depois Kepler e Galileu
fizeram o mesmo.
— Acho que Benjy sabe mais do que todos nós imaginamos — disse Max, assim que as
crianças foram embora.
— Talvez você tenha razão — falou Nicole com suavidade. — Mas ontem, quando falei com
ele, não vi nenhuma indicação de que... — Nicole parou no meio da frase e virou-se para
Eponine: — A propósito, como você está se sentindo hoje?
— Muito bem. O bebê estava muito ativo antes de clarear o dia. Ficou me chutando durante
quase uma hora; dava até para ver seus pezinhos se mexendo por baixo da minha barriga.
Tentei fazer com que Max sentisse os chutes, mas ele ficou todo cheio de dedos.
— E por que você chama o bebê de ele, francesinha, se sabe muito bem que eu quero uma
menina igualzinha a você?...
— Não acredito nem um minuto em você, Max Puckett — interrompeu Eponine. — Você só diz
que quer uma menina para não ter decepções. Nada o agradaria mais do que ter um filho para
ser seu companheiro... Além do mais, é comum a gente referir-se ao bebê como ele quando o
sexo ainda não foi especificado.
— O que me leva a uma outra questão sobre nossas octoaranhas especialistas — disse Max,
tomando um gole do simulacro de café e olhando para Ellie e depois para Nicole. — Alguma
de vocês duas sabe qual é o sexo das nossas amigas octoaranhas, se é que elas têm sexo? —
perguntou rindo. — Não vi nada no corpo delas que me desse uma pista...
Ellie sacudiu a cabeça.
— Não sei, Max. Archie me disse que Jamie não é filho dele nem do dr. Azul, pelo menos não
no mais estrito senso biológico.
— Então Jamie deve ser adotado — falou Max. — Mas Archie é o homem e o dr. Azul a
mulher, ou vice-versa? Ou nossos vizinhos são um desses casais gays que criam um filho?
— Talvez as octoaranhas não tenham o que chamamos de sexo — falou Patrick.
— Então de onde vêm as novas octoaranhas? — perguntou Max. — Elas certamente não
surgem do ar.
— As octoaranhas são tão avançadas biologicamente — disse Richard — que talvez tenham
um processo de reprodução que nos pareceria uma verdadeira mágica.

— Eu perguntei ao dr. Azul sobre o sistema de reprodução delas várias vezes — disse Nicole.
— Ele respondeu que é um assunto complicado, especialmente porque as octoaranhas são
polimorfas; depois falou que explicaria tudo para mim logo que eu compreendesse os outros
aspectos da biologia delas.

— Então, se eu fosse uma octoaranha — disse Max com uma risadinha — ia querer ser um
desses palermas que Nicole viu ontem. Deve ser o máximo ter como única função comer e
comer, para armazenar comida para todos os seus irmãos... Que vida! Eu conheci o filho de
um criador de porcos lá em Arkansas que era como uma "repleta". Mas ele guardava a comida
só para ele. Não dava nada nem para os porcos... Acho que ele pesava mais de trezentos
quilos quando morreu, aos trinta anos.
Eponine terminou seu waffle.
— Piadas sobre gordura na presença de mulheres grávidas mostram falta de sensibilidade —
disse ela, fingindo estar ofendida.
— Que droga, Ep — falou Max —, você sabe que nada dessa merda funciona mais. Nós
somos animais de um zoológico aqui na Cidade de Esmeralda, e estamos presos uns aos
outros. Os humanos só se preocupam com sua aparência quando são comparados com os
outros.
Nai pediu licença para sair da mesa.
— Tenho de acabar de preparar umas aulas para hoje — disse ela. — Nikki vai começar a
aprender os sons consonantais; ela já fez todos os exercícios do alfabeto.
— Tal mãe, tal filha — disse Max. Depois que Patrick saiu da sala de jantar, deixando na
mesa só os dois casais e Ellie, Max debruçou-se para a frente com um sorriso malicioso nos
lábios. — Meus olhos estão me enganando ou o jovem Patrick está passando muito mais tempo
com Nai do que passava logo que chegou aqui?
— Acho que você está certo, Max — falou Ellie. — Eu notei a mesma coisa. Ele me disse que
se sente útil ajudando Nai com Benjy e as crianças. Afinal de contas, você e Eponine se
dedicam um ao outro e ao futuro bebê, eu estou sempre ocupada com Nikki e as octoaranhas,
mamãe e papai também se ocupam com mil coisas...
— Você não entendeu o que eu disse, mocinha — falou Max. — Estou pensando se está se
formando um outro casal no nosso meio.
— Patrick e Nai? — perguntou Richard, como se a idéia tivesse lhe ocorrido pela primeira
vez.
— É, querido — falou Nicole rindo. — Richard pertence à categoria de gênio com a
capacidade de observação muito seletiva. Ele não deixa escapar nenhum detalhe de um dos
seus projetos, por menor que seja. Mas não vê as mudanças óbvias no comportamento das
pessoas. Lembro-me de uma vez no Novo Éden, quando Katie começou a usar minissaia...
Nicole parou. Era difícil para ela falar sobre Katie sem ficar emocionada.
— Kepler e Galileu notaram que Patrick fica rondando Nai o dia inteiro — disse Eponine. —
Nai falou que Galileu está ficando com ciúmes.
— E o que Nai comenta sobre Patrick? — perguntou Nicole. — Está contente com a atenção
dele?

— Você conhece Nai — respondeu Eponine. — Sempre gentil, sempre pensando nos outros.
Acho que ela está preocupada com os problemas que um possível relacionamento entre
Patrick e ela poderia acarretar para os gêmeos.

Todos os olhos se voltaram para o visitante que apareceu na porta.


— Bem, bem. Bom dia, Hércules — disse Max, levantando-se da cadeira. — Que surpresa
agradável!... Está precisando de alguma coisa?
A octoaranha entrou na sala de jantar com as cores jorrando de sua cabeça.
— Ele está dizendo que veio ajudar Richard com seu tradutor automático — traduziu Ellie. —
Principalmente com as partes que ficam fora do nosso espectro visível.

Nicole estava sonhando. Dançava num ritmo africano em volta de uma fogueira, num bosque
na Costa do Marfim. Era Omeh quem liderava a dança. Ele estava vestido com a túnica verde
que tinha usado quando fora a Roma alguns dias antes de a nave Newton ser lançada no
espaço. Todos os seus amigos humanos da Cidade de Esmeralda, além das octoaranhas mais
íntimas deles, também dançavam no círculo em torno da fogueira. Kepler e Galileu brigavam.
Ellie e Nikki estavam de mãos dadas. Hércules, a octoaranha, estava vestido com uma roupa
africana roxa brilhante. Eponine estava em adiantada gravidez e muito pesada. Nicole ouviu
chamarem seu nome do lado de fora do círculo. Seria Katie? Seu coração disparou quando ela
tentou reconhecer a voz.
— Nicole — dizia Eponine ao lado de sua cama. — Estou tendo contrações. Nicole sentou-se
e sacudiu a cabeça.
— Com que freqüência? — perguntou automaticamente.
— Estão irregulares. Tive duas com cinco minutos de intervalo e depois nada mais durante
meia hora.
Provavelmente é só uma acomodação, pensou Nicole. Ainda faltam cinco semanas para
completar a gravidez.
— Venha deitar no sofá — falou Nicole, vestindo seu robe. — E diga-me quando a próxima
contração começar.
Max ficou esperando na sala enquanto Nicole terminava de lavar as mãos.
— Ela está tendo o bebê? — perguntou.
— Provavelmente, não — disse Nicole, fazendo uma ligeira pressão na barriga de Eponine
para tentar localizar o bebê.
Enquanto isso, Max andava na sala de um lado para o outro.
— Eu daria tudo por um cigarro agora — resmungou.
Quando Eponine teve outra contração, Nicole percebeu que havia uma ligeira pressão na
cérvix não dilatada. Ficou preocupada porque não tinha absoluta certeza de onde o bebê
estava.
— Desculpe, Ep — disse Nicole depois de uma segunda contração cinco minutos depois. —
Eu acho que é um falso trabalho de parto, uma espécie de exercício do corpo, mas posso estar
errada... Nunca lidei com gravidez nesse estágio sem fazer uma monitoração com algum tipo
de equipamento...
— Algumas mulheres têm bebês mais cedo, não é? — perguntou Eponine.
— Têm, mas é raro. Só um por cento das primíparas tem parto com quatro semanas de
antecedência. E quase sempre devido a alguma complicação. Ou hereditariedade... Por acaso
você ou um de seus irmãos foi prematuro?
Eponine sacudiu a cabeça.
— Eu nunca soube nada sobre a minha família verdadeira.
Droga, pensou Nicole. Estou quase certa de que são contrações de acomodação... Mas não
tenho certeza absoluta...
Nicole disse a Eponine para se vestir e voltar para casa.
— Preste atenção nas contrações. O importante é o intervalo entre uma série de contrações
sucessivas. Quando elas ocorrerem regularmente, a cada quatro minutos mais ou menos, sem
espaçamentos significativos, então volte para cá.
— Pode ser algum problema? — perguntou Max a Nicole, enquanto Eponine se vestia.
— Não é provável, Max, mas há sempre essa possibilidade.
— O que você acha de pedir ajuda a nossos amigos, os mágicos biológicos? — perguntou ele.
— Por favor, desculpe se eu estiver te ofendendo, mas é que...
— Já pensei nisso, Max. E já decidi conversar com o dr. Azul hoje de manhã.
Max ficou nervoso muito antes de o dr. Azul começar a abrir o que ele chamava de vidro dos
insetos.
— Espere um instante, doutor — falou Max, encostando levemente a mão no tentáculo que
segurava o jarro. — O senhor se importa de me explicar o que vai fazer antes de soltar essas
criaturas?
Eponine estava deitada no sofá na sala de sua casa. Estava nua, mas quase toda coberta com
dois lençóis das octoaranhas. Nicole ficou segurando sua mão durante os vários minutos que
as três octoaranhas levaram para montar o laboratório portátil. Depois, ela foi para o lado de
Max para poder traduzir o que o dr. Azul dizia.
— O dr. Azul não é especialista nesse campo — traduziu Nicole. — Ele está dizendo que uma
das outras duas octoaranhas terá de explicar os detalhes do processo.
Depois de uma ligeira conversa entre as três octoaranhas, o dr. Azul deu um passo para o lado
e outro alienígena ficou diretamente em frente a Nicole e a Max. O dr. Azul informou a Nicole
que aquela octo, a quem chamava de "engenheiro de imagens", estava começando a aprender o
dialeto simplificado usado para a comunicação com os humanos.
— Talvez ele tenha um pouco de dificuldade para compreender — disse o dr. Azul.
— Essas coisinhas no jarro — disse Nicole um segundo depois que as cores começaram a
jorrar da cabeça do engenheiro — chamam-se... quadróides de imagem, acho que essa seria
uma tradução adequada... De qualquer forma, elas são câmeras vivas em miniatura que rolarão
dentro de Eponine para fotografar o bebê. Cada quadróide tem capacidade de... vários
milhões de elementos fotográficos que podem ser distribuídos para até 512 imagens por nillet
de octoaranha. Elas podem até mesmo criar uma imagem em movimento..
Nicole hesitou e virou-se para Max.
— Estou simplificando tudo isso, se você não se importar. É altamente técnico, e tudo em
matemática das octoaranhas. O engenheiro estava me explicando no final todas as formas em
que o usuário pode especificar as fotos. Richard teria adorado ouvir isso.
— Lembre-se de me dizer de novo quantos minutos há em um nillet — falou Max.
— Mais ou menos vinte e oito segundos — respondeu Nicole. — Oito nillets em um feng, oito
fengs em um woden, oito wodens em um tert, e oito terts num dia das octoaranhas. Richard
calcula que o dias delas tenha trinta e duas horas, quatorze minutos e pouco mais de seis
segundos.
— Que bom que alguém entende dessas coisas — falou Max.
Nicole olhou de novo para o engenheiro de imagens e a conversa continuou.
— Cada quadróide de imagem — traduziu ela devagar — atinge o alvo especificado, tira as
fotos e volta para o processador de imagens, aquela caixa cinza ao lado da parede, onde ele
joga a imagem, recebe sua recompensa e volta para a fila.
— O quê? Que tipo de recompensa? — perguntou Max.
— Mais tarde, Max — disse Nicole, lutando para entender uma frase que já tinha pedido para
a octoaranha repetir. Nicole ficou em silêncio por um instante, depois sacudiu a cabeça e
virou-se para o dr. Azul. — Desculpe, mas não consegui entender a última frase.
As duas octoaranhas se falaram rapidamente em seu dialeto natural e depois o engenheiro de
imagens virou-se de novo para Nicole.
— OK — disse ela a uma certa altura —, acho que entendi agora... Max, a caixa cinza é uma
espécie de gerenciador de dados programável, que armazena os dados das células vivas e
prepara os outputs dos quadróides para serem projetados na parede, ou onde quer que se
queira ver a imagem, conforme o protocolo escolhido...
— Já tive uma idéia da coisa — interrompeu Max. — Tudo isso vai muito além do meu
conhecimento... Se você acha que essa geringonça não vai fazer mal a Ep, é melhor
começarmos logo.
O dr. Azul entendeu o que Max disse. A um sinal de Nicole, ele e as outras octoaranhas saíram
da sala dos Pucketts e foram buscar uma espécie de gaveta no transporte estacionado do lado
de fora.
— Neste container — disse o dr. Azul para Nicole — encontram-se vinte a trinta dos menores
membros da nossa espécie, morfologias cuja função básica é comunicar-se diretamente com os
quadróides e as outras criaturazinhas que fazem esse sistema funcionar... As morfologias irão,
na verdade, gerenciar essa intervenção.
— Meu Deus! — disse Max quando a gaveta abriu-se e as octos minúsculas, com uns dois
centímetros de altura, começaram a espalhar-se pelo meio da sala... — Essas... — gaguejava
Max — são as que Eponine e eu vimos no labirinto azul, na toca do outro lado do mar
Cilíndrico.
— As morfologias midget — explicou o dr. Azul — tomam a nossa dianteira e organizam todo
o processo. São elas que irão programar a caixa cinza... Agora, só precisamos que vocês
especifiquem o tipo de imagens que querem e onde querem vê-las.

A grande foto colorida da parede da sala dos Pucketts mostrava um lindo menino
perfeitamente formado, enchendo quase todo o útero da mãe. Max e Eponine estavam
celebrando há uma hora, desde que puderam ver pela primeira vez que o bebê era um menino.
Mais para o fim da tarde, quando Nicole aprendeu melhor a especificar o que queria ver, a
qualidade das fotos melhorou sensivelmente. Agora, a imagem, com o dobro do tamanho
natural, estava espantosamente clara.
— Posso ver ele chutar mais uma vez? — perguntou Eponine.
O engenheiro de imagens disse alguma coisa para a midget-chefe, e em menos de um nillet foi
mostrada mais uma vez a imagem do jovem Puckett chutando dentro da barriga da mãe.
— Olhe que pernas fortes! — exclamou Max, agora mais relaxado. Depois de recobrar-se do
choque das imagens iniciais, Max tinha se preocupado com toda a parafernália que rodeava
seu filho dentro do útero de Eponine. Nicole acalmara aquele marinheiro de primeira viagem,
mostrando a ele o cordão umbilical e a placenta, e garantindo que estava tudo normal.
— Então eu não vou ter um bebê prematuro, não é? — perguntou Eponine quando a filmagem
terminou.
— Não — respondeu Nicole. — Acho que ainda faltam de cinco a seis semanas. Em geral, os
bebês chegam um pouco atrasados... Talvez você ainda tenha algumas contrações intermitentes
daqui até o dia do parto, mas não se preocupe.
Nicole, Max e Eponine agradeceram muito ao dr. Azul. Depois, as octoaranhas guardaram
todos os componentes biológicos e não-biológicos do seu laboratório portátil. Quando as
octoaranhas partiram, Nicole atravessou a sala e pegou a mão de Eponine.
— Es-tu heureuse? — perguntou à amiga.
— Completamente — respondeu Eponine. — E também aliviada. Eu pensei que havia alguma
coisa errada.
— Não. Foi só um alarme falso.
Max atravessou a sala e deu um abraço em Eponine. Ele estava exultante. Nicole afastou-se
um pouco e ficou observando a cena. Em hora alguma um casal se ama tanto quanto antes
do nascimento de seu primeiro filho.
Nicole aprontou-se para ir embora.
— Espere um instante — disse Max. — Você não quer saber como ele vai se chamar?
— É claro que sim — respondeu Nicole.
— Marius Clyde Puckett — disse Max orgulhoso.
— Marius — acrescentou Eponine — porque ele era o amante com que a desamparada
Eponine sonhava em Les misérables. Eu vivia sonhando com um Marius nas minhas noites
solitárias do orfanato. E Clyde em homenagem ao irmão de Max de Arkansas.
— É um nome excelente — falou Nicole sorrindo para si mesma, ao virarse para ir embora.
— Um nome excelente.
Richard não conseguia conter sua alegria ao voltar para casa naquela tarde.
— Passei duas horas fascinantes na sala de conferências com Archie e as outras octoaranhas
— disse ele para Nicole em sua voz alta. — Eles me mostraram todo o aparato que usaram
com você e Eponine hoje. Fantástico! Que gênio incrível! Não, mágico é um termo melhor. Eu
digo isso desde o princípio, essas malditas octoaranhas são mágicos biológicos. Imagine só...
Elas têm criaturas vivas que funcionam como câmeras fotográficas, um conjunto de insetos
microscópicos que lêem imagens e armazenam cada pixel individual, uma espécie de urdidura
genética deles mesmos que controla o processo, e uma quantidade limitada de componentes
eletrônicos, se necessário, para realizar as tarefas normais de gerenciamento de dados...
Quantos milhares de anos se passaram para tudo isso ocorrer? Quem arquitetou tudo isso, em
primeiro lugar? É uma coisa absolutamente estarrecedora!
Nicole sorriu para o marido.
— Você viu o Marius? O que achou dele?
— Eu vi todas as fotos hoje à tarde — continuou Richard, exultante. — Você sabe como as
midgets se comunicam com os quadróides de imagem? Usando um comprimento de onda
especial na faixa extrema do ultravioleta do espectro. Isso mesmo. Archie me disse que
aqueles insetozinhos e as octoaranhas midgets têm uma linguagem própria. E não é tudo.
Algumas morfologias têm até oito linguagens diferentes de microespécies. Até o próprio
Archie pode se comunicar com quarenta outras espécies, quinze usando as cores básicas das
octoaranhas e o resto num conjunto de linguagens que inclui sinais, agentes químicos e outras
partes do espectro eletromagnético.
Richard ficou parado por um instante no meio do quarto.
— Isso é incrível, Nicole, simplesmente incrível.
Ele ia dar início a outro monólogo quando Nicole perguntou como as octos comuns e as
midgets se comunicavam.
— Não vi nenhum grupo de cores na cabeça delas hoje — disse Nicole.
— Elas conversam em ultravioleta — respondeu Richard, começando a andar pela sala de
novo. De repente virou-se e apontou para o meio de sua testa. — Nicole, aquela lente no meio
da fenda na cabeça das octoaranhas é um verdadeiro telescópio, capaz de receber informações
em praticamente qualquer comprimento de onda... É fantástico! Elas organizaram todas essas
formas de vida em um grande sistema simbiótico muito mais complexo do que qualquer coisa
que nós já concebemos...
Richard sentou-se no sofá ao lado de Nicole.
— Olhe — disse ele, mostrando seus braços para ela —, ainda estou arrepiado... Essas
criaturas me deixam pasmo... Jesus, ainda bem que elas não são hostis.
Nicole olhou para o marido com um ar sério.
— Por que você diz isso?
— Elas podiam comandar um exército de bilhões, ou talvez trilhões. Aposto que elas podem
até falar com as plantas! Você viu como elas tomaram uma providência rápida aquele dia na
floresta... Imagine o que seria se o seu inimigo pudesse controlar todas as bactérias, até
mesmo os vírus, e fazer com que eles acatassem suas ordens... Que idéia assustadora!
Nicole riu.
— Você não acha que está exagerando? Só porque elas trabalharam geneticamente um grupo
de câmeras vivas não quer dizer que...
— Eu sei — falou Richard, pulando do sofá. — Mas não posso deixar de pensar na extensão
lógica do que vimos hoje... Nicole, Archie admitiu para mim que o único objetivo das
octoaranhas midgets é permitir lidar com o mundo minúsculo. As midgets podem ver coisas do
tamanho de um micrômetro, ou seja, um milésimo de um milímetro... Agora estenda essa idéia
a outras várias ordens de magnitude. Imagine uma espécie cujas morfologias envolvam quatro
a cinco relações semelhantes à relação entre as octoaranhas normais e as midgets. Talvez a
comunicação com as bactérias não fosse nada impossível.
— Richard — disse Nicole —, você não vai dizer nada sobre o filho de Max e Eponine? Que
ele parece ter uma saúde perfeita?
Richard ficou quieto por um instante.
— É maravilhoso — ele disse, um pouco encabulado. — Eu acho que devia ir até lá dar os
parabéns aos dois.
— Talvez seja melhor esperar para jantar — falou Nicole, olhando para um dos relógios
especiais que Richard fizera para ela. Era um relógio que mostrava o tempo humano em
relação com o tempo das octoaranhas.
— Faz uma hora que Patrick, Ellie, Nikki e Benjy estão na casa de Max e Eponine —
continuou Nicole sorrindo —, desde que o dr. Azul trouxe umas fotos do pequeno Marius no
útero. Como você diria, eles devem chegar em casa dentro de um feng.

Nicole terminou de escovar os dentes e olhou seu reflexo no espelho. Galileu tinha razão.
Sou uma velha.

Esfregou o rosto com os dedos, massageando metodicamente as rugas espalhadas por toda a
face. Ouviu Benjy e os gêmeos brincando e depois Nai e Patrick chamando-os para a escola.
Eu não nasci velha, pensou ela. Houve uma época em que também ia à escola.
Nicole fechou os olhos, tentando lembrar-se de como era em criança mas não conseguiu
definir uma imagem clara de si própria naquela época. Várias outras imagens de anos
intermediários distorciam a imagem de Nicole a menininha indo para o colégio.
A certa altura reabriu os olhos e olhou-se no espelho. Na imaginação, apagou todas as bolsas
sob os olhos e as rugas do rosto. Mudou a cor do cabelo e das sobrancelhas de cinza para
preto-escuro e, vendo-se finalmente uma bela mulher de vinte e um anos, sentiu uma saudade
intensa daqueles seus dias de juventude. Pois nós éramos jovens, e sabíamos que nunca
iríamos morrer, lembrou-se ela.
Richard enfiou a cabeça pela porta.
— Ellie e eu vamos trabalhar com Hércules no escritório — disse ele. — Por que você não
vem também?
— Daqui a pouco — respondeu Nicole. Enquanto ajeitava o cabelo, pensou na rotina desse
grupo de humanos na Cidade de Esmeralda. Em geral, eles se reuniam no café da manhã na
sala dos Wakefield. A escola terminava antes da hora do almoço. Depois da refeição todos
menos Richard faziam a sesta, uma acomodação ao dia oito horas mais longo. Nicole, Ellie e
Richard passavam quase todas as tardes com as octoaranhas, aprendendo cada vez mais sobre
suas hospedeiras ou contando suas experiências do planeta Terra. Os outros quatro adultos
ficavam a maior parte do tempo com Benjy e as crianças, no seu canto sem saída.
E aonde tudo isso nos leva?, Nicole perguntou de repente a si própria. Por quantos anos
seremos hóspedes das octoaranhas? E o que acontecerá quando Rama chegar a seu destino?
Nicole não tinha resposta para nenhuma dessas perguntas. Até Richard tinha deixado de se
preocupar com o que acontecia fora da Cidade de Esmeralda. Ele estava completamente
envolvido com as octoaranhas e seu projeto de tradução, e passara a só pedir dados da
navegação celestial a Archie de dois em dois meses. A cada vez Richard informava aos
outros, sem acrescentar seu comentário, que Rama ainda seguia na direção geral da estrela Tau
Ceti.
Como o pequeno Marius, pensou Nicole, nós estamos contentes aqui no nosso útero. Enquanto
o mundo exterior não se impuser a nós, não faremos perguntas transcendentais.
Nicole saiu do banheiro e seguiu pelo corredor até o escritório. Richard estava sentado no
chão entre Hércules e Ellie.
— Identificar o modelo da cor e registrar a seqüência no processador é fácil — dizia ele. —
O mais difícil na tradução é converter automaticamente o modelo das cores em uma frase
inteligível em inglês.
Richard olhou para Hércules e falou bem devagar.

— Como a língua de vocês é muito matemática, tendo cada cor uma série de ângstroms
definida a priori, o sensor só precisa identificar o fluxo das cores e a largura das faixas.
Assim, o conteúdo das informações é captado. Como as regras são muito precisas, não é
difícil codificar um algoritmo simples contra erros para ser usado por jovens ou por quem não
fale bem sua língua, no caso de algum erro de cor à esquerda ou à direita do espectro. Porém,
traduzir o que uma octoaranha falou na sua língua é um processo bem mais complexo. O
dicionário de tradução é bastante direto. As palavras e os esclarecedores apropriados podem
ser identificados com presteza. Mas é quase impossível dar o próximo passo, em frases, sem
alguma intervenção humana.
— Isto porque a língua das octoaranhas é basicamente diferente da nossa — comentou Ellie.
— Tudo é especificado e quantificado, para minimizar a possibilidade de mal-entendidos.
Não há subterfúgios nem nuances. Veja como elas usam o pronome nós, eles e vocês. Os
pronomes são sempre marcados por esclarecedores numéricos, e até mesmo séries, quando há
incertezas. A octoaranha nunca diz "uns wodens" ou "vários nillets"; há sempre um número ou
um grau numérico para especificar a duração de tempo com maior precisão.
— Do nosso ponto de vista — disse Hércules em cores —, há dois aspectos da língua humana
que são extremamente difíceis. Um é a falta de especificações precisas, o que exige um
vocabulário maciço. Outro é o uso de frases indiretas na comunicação... Ainda tenho
dificuldade em compreender Max, porque em geral o que ele diz é exatamente o contrário do
que quer dizer.
— Não sei como fazer isso no seu computador — disse Nicole para Richard —, mas todas as
informações quantitativas das frases das octoaranhas devem ser refletidas pela tradução.
Quase todo verbo ou adjetivo que elas usam têm um esclarecedor numérico correlato. Como,
por exemplo, Ellie acabou de traduzir "extremamente difícil" e "vocabulário maciço"?
Hércules disse "difícil" com o número cinco usado como esclarecedor, e "grande
vocabulário" com o número seis como esclarecedor de "grande". Todos os esclarecedores
comparativos dizem respeito à questão de ênfase do adjetivo. Como o sistema numérico deles
tem base octal, a série dos comparativos fica entre um e sete. Se Hércules tivesse usado o sete
para esclarecer a palavra "difícil", Ellie teria traduzido a frase como "impossivelmente
difícil". Se tivesse usado um dois como esclarecedor na mesma frase, ela poderia dizer
"ligeiramente difícil".
— Os erros na ênfase dos adjetivos, embora sejam importantes — disse Richard, mexendo
distraidamente em um pequeno processador —, quase nunca causam mal-entendidos. Mas
quando há erros na interpretação própria dos esclarecedores do verbo a coisa é diferente...
como aprendi recentemente depois de fazer meus primeiros testes. Tomemos o verbo ir na
língua das octoaranhas, que significa, como vocês sabem, deslocar-se sem ajuda, sem
transporte. A faixa amarela com tons de marrom/roxo/limão, cada uma das cores da mesma
largura, inclui dezenas de verbos nossos, como andar, passear, perambular, correr e até mesmo
zunir.
— É exatamente sobre isso que eu estava falando — disse Ellie. — Não se pode traduzir sem
uma completa interpretação dos esclarecedores... Para esse verbo específico, as octos usam
um duplo esclarecedor para referir-se a "com que velocidade"? Em certo sentido, as
octoaranhas podem ir em sessenta e três velocidades diferentes... Para complicar ainda mais
as coisas, elas podem usar também um esclarecedor em série; assim, a frase imperativa
"vamos" pode ter inúmeras traduções.

Richard fez uma careta e sacudiu a cabeça.

— O que foi, papai? — perguntou Ellie.


— Estou desapontado — respondeu Richard. — Eu esperava que a versão simplificada do
tradutor estivesse completa a essa altura. Mas parti do princípio de que a essência do que se
dizia podia ser determinada sem o conhecimento de todos os esclarecedores. Incluir todas
essas curtas faixas coloridas vai aumentar a armazenagem e diminuir a velocidade da
tradução. Talvez eu tenha problema para projetar um tradutor que trabalhe no tempo real.
— E daí? — perguntou Hércules. — Por que você está tão preocupado com o tradutor? Ellie e
Nicole já compreendem nossa língua muito bem.
— Não é bem assim — disse Nicole. — Ellie é a única de nós verdadeiramente fluente nas
suas cores. Eu ainda estou aprendendo.
— Embora eu tivesse começado este projeto como um desafio e para me acostumar com a
língua de vocês — disse Richard para Hércules —, Nicole e eu comentamos na semana
passada como o tradutor se tornou importante. Ela disse, e eu concordei, que nosso clã
humano da Cidade de Esmeralda está dividido em dois grupos. Ellie, Nicole e eu temos uma
vida mais interessante porque aumentamos nosso intercâmbio com a sua espécie, mas os
outros, inclusive as crianças, se mantêm completamente isolados. Se eles não tiverem como se
comunicar com vocês, vão acabar se sentindo insatisfeitos. Um bom tradutor automático é a
chave para eles se ambientarem aqui.

O mapa estava amassado e rasgado em vários pontos. Patrick ajudou Nai a desdobrá-lo
devagar e pregá-lo na parede da sala de jantar, que era também a sala de aula das crianças.
— Nikki, você se lembra do que é isso? — perguntou Nai.
— É claro, sra.Watanabe — respondeu a menininha. — É o mapa da Terra.
— Benjy, pode nos mostrar onde seus pais e avós nasceram?
— De novo? — disse Galileu bem alto para Kepler. — Ele nunca vai aprender isso. Ele é
burro demais.
— Galileu Watanabe! Vá para o seu quarto e fique sentado na cama durante quinze minutos.
— Não faz mal, Nai — disse Benjy andando até o mapa. — Eu já estou acostumado com isso.
Galileu, com quase sete anos segundo as contas humanas, parou na porta para ver se seu
castigo seria suspenso.
— O que está esperando? — ralhou a mãe. — Já disse para você ir para o seu quarto.
Benjy ficou parado um instante em frente ao mapa.
— Minha mãe — disse afinal — nasceu aqui na França. — Afastou-se um pouco do mapa e
tentou localizar os Estados Unidos, do lado oposto do oceano Atlântico. — Meu pa-pai nasceu
aqui em Bos-ton, na A-mé-ri-ca.
Benjy já ia sentar-se quando Nai lhe fez outra pergunta.

— E seus avós? Onde eles nasceram?

— A mãe da minha mãe — disse ele devagar — nasceu na A-fri-ca. — Ficou olhando o mapa
e continuou: — Mas não me lembro onde fica isso.
— Eu sei, sra.Watanabe — falou Nikki imediatamente. — Posso mostrar, Benjy?
Benjy virou-se e olhou sorrindo para a garotinha de cabelos pretos.
— Pode me dizer, Nik-ki.
A garota atravessou a sala e colocou o dedinho na parte oeste da África.
— A mãe da minha avó nasceu aqui — disse orgulhosa —, nesse país verde... chamado Costa
do Marfim.
— Muito bem, Nikki — falou Nai.
— Desculpe, Nai — disse Benjy. — Eu tenho estudado tanto as frações que não tive tempo de
pegar em geo-gra-fia.
Ficou esperando a garotinha de três anos sentar-se e virou-se para Nai com os olhos cheios de
lágrimas.
— Nai, não estou com vontade de ficar na escola hoje... Acho que vou voltar para casa.
— OK, Benjy — disse Nai gentilmente. Quando Benjy se encaminhou para a porta, Patrick
quase foi atrás dele, mas Nai fez um sinal para ele ir embora.
A classe toda ficou em silêncio por um instante.
— Agora é a minha vez? — perguntou finalmente Kepler.
— Nai fez que sim e o garoto foi até o mapa.
— Minha mãe nasceu aqui na Tailândia, na cidade de Lampun, e o pai dela também. Minha
avó materna também nasceu na Tailândia, mas em uma outra cidade chamada Chiang Saen.
Aqui está ela, na fronteira com a China.
Kepler deu um passo para a direita e apontou para o Japão.
— Meu pai, Kenji Watanabe, e os pais dele nasceram na cidade japonesa de Kioto.
O menino afastou-se do mapa, parecendo que queria dizer alguma coisa.
— O que foi, Kepler? — perguntou Nai.
— Mamãe — disse o garoto depois de um longo silêncio —, o meu pai era um homem mau?
— O quê? — perguntou Nai espantada, olhando diretamente nos olhos do filho. — Seu pai era
um ser humano maravilhoso... Inteligente, sensível, amoroso, com alto senso de humor, um
verdadeiro príncipe. Ele...
Nai teve de parar, pois sentia sua emoção aflorar. Levantou-se, olhou um instante para o teto e
recobrou o controle.
— Kepler — disse ela —, por que você me fez essa pergunta? Você adorava seu pai. Como
pôde pensar...
— O tio Max nos disse que o sr. Nakamura veio do Japão, e nós sabemos que ele é um homem
mau. Galileu disse que como o papai veio do mesmo lugar...

— Galileu — gritou Nai, com uma voz que assustou as crianças. — Venha cá imediatamente.

O menino entrou na sala e olhou intrigado para a mãe.


— O que você andou dizendo a seu irmão sobre o seu pai?
— O que você quer dizer com isso? — perguntou Galileu, com um ar de inocente.
— Você disse que o papai devia ter sido mau, porque veio do Japão como o sr. Nakamura...
— Bom, eu não me lembro muito bem do papai. O que eu disse é que talvez...
Nai teve de se controlar para não dar um tapa em Galileu. Ela pegou o menino pelos ombros e
falou:
— Mocinho, se eu ouvir você falando contra o seu pai outra vez...
Nai não terminou a frase, pois não sabia como poderia ameaçar seu filho nem o que mais
poderia dizer. E de repente sentiu-se completamente esmagada por tudo o que lhe acontecera
na vida.
— Sentem-se, por favor — disse ela afinal para os gêmeos —, e ouçam com bastante atenção.
— Nai respirou fundo e continuou, apontando para o mapa: — Este mapa na parede mostra
todos os países do planeta Terra. Em cada nação há todos os tipos de pessoas, boas, ruins, a
maioria uma mistura de boas e ruins. Nenhum país tem só gente boa ou só gente má. Seu pai
cresceu no Japão, e o sr. Nakamura também. Concordo com o tio Max que o sr. Nakamura é
um homem muito mau. Mas o fato de ele ser mau não tem nada a ver com ser japonês. Seu pai,
Kenjy Watanabe, que também era japonês, era um dos melhores homens que conheci. Sinto
muito se vocês não conseguem se lembrar dele e se nunca souberam como ele era...
Nai fez uma pausa.
— Eu nunca me esquecerei do seu pai — disse ela num tom suave, como que falando consigo
própria. — Ainda me lembro dele voltando para casa no Novo Éden no final da tarde. Vocês
dois gritaram ao mesmo tempo: "Oi, papai, oi papai", quando ele entrou. Ele me beijou, pôs
vocês no colo e levou-os para o balanço no quintal. Mesmo quando o dia dele tinha sido
difícil, sempre era carinhoso e paciente...
A voz de Nai vacilou, seus olhos encheram-se de lágrimas e seu corpo começou a tremer. Ela
virou-se de costas e olhou para o mapa.
— A aula terminou por hoje.
Meia hora depois, quando Patrick estava ao lado de Nai vendo os gêmeos e Nikki brincarem
com uma grande bola azul no final da rua sem saída, ela falou:
— Desculpe, Patrick — disse Nai. — Eu não esperava ficar...
— Você não tem nada para se desculpar — replicou o rapaz.
— Tenho sim. Anos atrás me prometi que nunca mostraria meus sentimentos diante de Kepler e
Galileu. Eles não podem entender.

— A essa altura os dois já se esqueceram do assunto — disse Patrick

depois de um breve silêncio. — Olhe para eles. Estão completamente absortos na brincadeira.
Naquele instante, os gêmeos estavam tendo uma de suas discussões típicas. Como sempre,
Galileu tentava tirar alguma vantagem em uma brincadeira que não tinha regras rigorosas.
Nikki estava ao lado dos meninos, acompanhando todas as palavras que eles diziam.
— Meninos, meninos — chamou Nai. — Parem com isso... Se não puderem brincar sem
discutir é melhor virem para dentro de casa.
Um instante depois a bola azul foi rolando pela rua na direção da praça e as três crianças
correram atrás dela.
— Gostaria de beber alguma coisa, Patrick? — perguntou Nai.
— Gostaria sim... você ainda tem aquele suco de melão verde que Hércules trouxe na semana
passada? Era um bocado gostoso.
— Tenho — respondeu ela, abaixando-se para pegar o suco na cômoda onde guardava as
bebidas. — A propósito, por onde anda o Hércules? Eu não o vejo há dias.
Patrick riu.
— Tio Richard recrutou-o para trabalhar em horário integral no tradutor. Até Ellie e Archie
estão indo lá toda tarde. — Patrick agradeceu a Nai pelo copo de suco.
Nai deu um gole do seu próprio copo e foi até a sala de estar.
— Sei que você queria consolar o Benjy hoje de manhã — disse ela. — Só o impedi porque
conheço seu irmão muito bem... Benjy é muito orgulhoso, e não quer que ninguém sinta pena
dele.
— Eu compreendi — disse Patrick.
— Benjy notou hoje de manhã, até certo ponto, que mesmo Nikki, que ele considera ainda um
bebê, vai em breve passar à sua frente na escola. Ao descobrir isso, ficou chocado e lembrou-
se de suas próprias limitações.
Nai ficou em frente ao mapa da Terra, que ainda estava preso na parede.
— Nada neste mapa tem um significado especial para você, não é? — perguntou ela.
— Não muito. Vi muitas fotos e filmes, é claro, e quando era mais ou menos da idade dos
gêmeos meu pai costumava me falar sobre Boston, a cor das folhas na Nova Inglaterra durante
o outono e a viagem à Irlanda com o pai dele... Mas "minhas lembranças são de outros
lugares... A toca de Nova York é uma lembrança muito viva na minha cabeça, assim como o
ano fantástico que passamos em Nodo. — Patrick ficou calado um instante e depois continuou.
— E a Águia! Que criatura! Eu me lembro dela com mais clareza que meu pai.
— Você se considera um habitante da Terra? — perguntou Nai.
— Esta é uma pergunta interessante — respondeu Patrick. — Certamente eu me considero um
humano. Mas um habitante da Terra? Acho que não.
Nai encostou o dedo no mapa.

— Se Lampun, minha terra natal, fosse maior, apareceria aqui, bem ao sul de Chiang Mai. Às
vezes não me parece possível que eu tenha vivido lá quando era criança.

Os dedos de Nai correram pelo contorno da Tailândia, enquanto ela se mantinha em silêncio
ao lado de Patrick.
— Na outra noite — disse ela a certa altura —, Galileu jogou um copo de água na minha
cabeça quando eu estava dando banho neles, e de repente lembrei-me dos três dias que passei
em Chiang Mai com meus primos, quando tinha quatorze anos... Era época do festival de
Songkran, em abril, e o povo da cidade estava celebrando o Ano Novo tailandês. Havia
paradas e os discursos de sempre, sobre a forma como os reis Chakri desde a primeira nave
Rama tinham preparado o povo tailandês para seu importante papel no mundo. Mas o que
lembro com mais clareza é o passeio que fiz pela cidade com minha prima Oni e seus amigos,
em uma camionete movida a eletricidade. Por todo lugar que passávamos, jogávamos um
balde de água em alguém e eles jogavam em nós, e todos nós ríamos muito.
— Por que uns jogavam água nos outros? — perguntou Patrick.
— Já não lembro mais — disse Nai dando de ombros. — Era alguma coisa ligada com a
cerimônia... Mas a experiência em si, os risos, as roupas completamente ensopadas no corpo e
de repente ser atingida por mais um balde de água, tudo isso eu me lembro com detalhes.
Os dois ficaram mais uma vez em silêncio quando Nai tirou o mapa da parede.
— Então acho que Kepler e Galileu também não irão se considerar habitantes da Terra —
falou, pensativa, enrolando o mapa com cuidado. — Talvez estudar geografia e a história da
Terra seja uma perda de tempo.
— Eu não penso assim — falou Patrick. — O que as crianças estudarão então? Além do mais,
nós todos precisamos compreender de onde viemos.
Três rostos infantis apareceram no portal da sala.
— Já está na hora do almoço? — perguntou Galileu.
— Quase — disse Nai. — Vão lavar as mãos primeiro... Um de cada vez — disse ela quando
os pezinhos passaram pelo corredor.
Nai virou-se abruptamente e viu que Patrick olhava para ela de uma forma diferente. Nai
sorriu.
— Apreciei muito sua companhia hoje de manhã — ela falou. — Sua presença tornou as
coisas mais fáceis para mim. — Nai estendeu os braços e pegou as mãos de Patrick. — Você
tem me ajudado muito com Benjy e as crianças nestes últimos dois meses. E seria bobagem
minha não reconhecer que não me sinto tão solitária desde que você começou a passar os dias
conosco.
Patrick deu um passo desajeitado na direção de Nai, mas ela segurou firme nas mãos dele.

— Ainda não. Ainda é muito cedo — disse, de modo carinhoso.

Menos de um minuto depois que os grande bandos de vaga-lumes da cúpula da Cidade de


Esmeralda anunciaram o começo de um novo dia, a pequena Nikki foi para o quarto dos avós.
— Já é dia claro, vó — disse ela. — Eles vêm nos buscar daqui a pouco. Nicole saiu da cama
e deu um abraço na netinha.
— Ainda temos umas duas horas, Nikki — disse para a menina excitada. — Vovô ainda está
dormindo... por que você não volta para o seu quarto e brinca com seus brinquedos enquanto
tomamos uma chuveirada?
Quando a menina, desapontada, finalmente foi embora, Richard sentou-se na cama e esfregou
os olhos.
— Nikki não pensa em outra coisa há uma semana senão neste dia — disse Nicole. — Ela está
sempre no quarto de Benjy olhando para a pintura. Nikki e os gêmeos já deram nomes a todos
aqueles animais bizarros.
Nicole pegou a escova de cabelo ao lado da cama.
— Por que as crianças pequenas têm tanta dificuldade em entender o conceito de tempo?
Embora Ellie tenha feito um calendário para ela e venha contando dia após dia, Nikki me
pergunta toda manhã se "chegou o dia".
— Ela está muito excitada. Todos estão — falou Richard, levantando-se da cama. — Espero
que não fiquemos desapontados.
— Como poderíamos ficar? — disse Nicole. — O dr. Azul disse que veremos coisas mais
incríveis ainda do que as que você e eu vimos quando entramos na cidade pela primeira vez.
— Acho que todos os animais estarão nas ruas — disse Richard. — Aliás, você sabe o que as
octoaranhas estão celebrando?
— Uma espécie de... alguma coisa parecida com o Dia de Graças dos americanos, que as
octos chamam de Dia da Fartura. Há um dia separado para celebrar a qualidade de vida
delas... Pelo menos foi o que o dr. Azul me explicou.
Antes de ir para o chuveiro, Richard perguntou:
— Você acha que o convite para participarmos da celebração de hoje tem a ver com o seu
comentário sobre a discussão da nossa família na mesa do café duas semanas atrás?
— Quando Patrick e Max deram a entender que eles gostariam de voltar para o Novo Éden?
Richard fez que sim.
— Acho sim — respondeu Nicole. — Creio que as octoaranhas tinham se convencido de que
estávamos perfeitamente satisfeitos aqui. O convite para participarmos da comemoração delas
é uma tentativa de nos integrar na sua sociedade.
— Eu gostaria de ter terminado todos aqueles malditos tradutores — disse Richard. — No
momento tenho só dois... e eles não foram completamente checados. Será que eu deveria dar
um deles para o Max?

— Seria uma boa idéia — falou Nicole, empurrando o marido para dentro do banheiro.

— O que você está fazendo? — perguntou Richard.


— Vou tomar banho junto com você — disse ela com uma gargalhada —, a menos que você
esteja velho demais para uma companhia.
Jamie apareceu para dizer que o transporte estava pronto. Ele era o mais moço das três
octoaranhas vizinhas (Hércules morava sozinho do outro lado da praça), e os humanos tinham
tido pouco contato com ele. Os guardiões de Jamie, Archie e o dr. Azul, explicaram que ele
vivia envolvido em seus estudos e estava chegando a uma fase crucial da vida. Embora à
primeira vista Jamie parecesse exatamente como as três octos adultas que o clã via
regularmente, era um pouco menor, e as faixas douradas dos seus tentáculos eram ligeiramente
mais brilhantes.
Os humanos tinham ficado sem saber o que usar na celebração das octoaranhas, mas viram
logo que suas roupas não tinham significado algum para elas. Nenhum elemento das espécies
alienígenas da Cidade de Esmeralda se cobria, fato que as octoaranhas comentavam com
freqüência. Quando Richard uma vez sugeriu de brincadeira que talvez os humanos também
devessem dispensar suas roupas enquanto vivessem na Cidade de Esmeralda, o grupo
compreendeu logo como as roupas eram fundamentais para o conforto psicológico dos
humanos.
— Eu não conseguiria ficar nua nem mesmo na frente de vocês, meus amigos mais íntimos,
sem me sentir extremamente sem jeito — disse Eponine, resumindo todos os seus sentimentos.
O contingente heterogêneo de onze humanos e suas quatro colegas octoaranhas atravessou a
rua na direção da praça. Eponine, em adiantada gravidez, era a última, caminhando devagar e
cobrindo a barriga com a mão. As mulheres haviam decidido caprichar nas roupas; Nai usava
um vestido tailandês de seda, com flores azuis e verdes. Mas os homens e as crianças, com
exceção de Max (com uma horrenda camisa havaiana que ele reservava para ocasiões
especiais), estavam de camiseta e jeans, sua roupa de todos os dias desde que chegaram à
Cidade de Esmeralda.
Pelo menos todas as suas roupas estavam limpas. No início, encontrar um meio de lavar as
roupas fora um problema grave para os humanos. Mas depois que explicaram essa dificuldade
a Archie, em poucos dias ele os apresentou aos dromos, seres do tamanho de insetos que
limpavam automaticamente todas as roupas.
Ao chegar à praça o grupo entrou no transporte. Logo antes do portão que indicava o final da
zona deles o transporte parou, e duas octoaranhas desconhecidas entraram no carro. Richard
fez uso do seu tradutor para captar a conversa entre o dr. Azul e os recém-chegados. Ellie leu
no monitor por cima do ombro de seu pai e fez um comentário sobre a tradução. Em geral, a
tradução era bastante fiel, mas a velocidade era muito baixa, pelo menos considerando a
velocidade normal de uma conversa. Uma frase era traduzida enquanto três eram faladas, e
Richard tinha de reorganizar o sistema regularmente. Ele não podia, é claro, compreender
muito de uma conversa em que faltavam duas a três frases.
Depois que atravessaram o portão, a visão que se tinha do carro de transporte tornou-se
fascinante. Os olhos de Nikki foram se arregalando à medida que ela, Benjy e os gêmeos,
numa grande gritaria, identificavam a maioria dos animais que haviam visto na pintura das
octoaranhas. Havia um tráfego intenso nas ruas largas, não só de carros de transporte
deslocando-se em ambas as direções em trilhos de bondes como de pedestres de todas as
espécies e tamanhos, criaturas guiando veículos semelhantes a uniciclos e bicicletas, e um
grupo misturado de seres em um emassauro.

Max, que nunca saíra da zona dos humanos desde que chegara à Cidade de Esmeralda,
entremeava suas observações com palavrões que Eponine havia lhe pedido para retirar do seu
vocabulário antes que o bebê nascesse. Max ficou muito preocupado com Eponine quando, na
primeira parada do transporte depois do portão, um pequeno grupo de novas criaturas lotou o
carro. Quatro das recém-chegadas encaminharam-se na direção de Eponine a fim de examinar
o banco especial que as octoaranhas haviam instalado para ela devido à sua gravidez. Max
ficou ao seu lado para protegê-la, apoiando-se em uma das barras verticais espalhadas pelo
carro de dez metros de comprimento.
Depois entraram mais dois passageiros, que as crianças chamavam de "caranguejos listrados",
umas criaturas vermelhas e amarelas, de oito patas, mais ou menos do tamanho de Nikki, com
o corpo redondo coberto por uma concha dura e tenazes assustadoras. As duas começaram
imediatamente a esfregar suas antenas nas pernas de Eponine por baixo do seu vestido. Elas só
estavam sendo curiosas, mas causaram uma sensação esquisita em Eponine, que se encolheu
de medo dos alienígenas. Archie, que estava de pé do lado oposto, esticou seu tentáculo e
empurrou os alienígenas gentilmente. Um dos caranguejos listrados recuou nas suas quatro
patas traseiras, com as tenazes no ar em frente ao rosto de Eponine, e aparentemente disse
alguma coisa ameaçadora com suas rápidas antenas. Um instante depois Archie estendeu dois
tentáculos, levantou o caranguejo hostil do chão do carro e depositou a criatura na rua.
A cena alterou o humor de todos os humanos. Enquanto Archie explicava o que tinha ocorrido
para Max e Eponine através da tradução de Ellie (Max estava mobilizado demais para usar
seu próprio tradutor), os gêmeos Watanabe chegaram para bem perto de Nai, e Nikki esticou
os bracinhos para que seu avô a segurasse.
— Essa espécie não é muito inteligente — disse Archie para seus amigos humanos —, e temos
tido dificuldade em trabalhar suas tendências agressivas. Aquela criatura que joguei para fora
do carro já criou encrencas antes. O otimizador responsável pela espécie já havia marcado
isso com dois pontinhos verdes na parte traseira da sua carapaça, não sei se vocês notaram...
Essa última transgressão certamente redundará no término da espécie.
Quando Ellie terminou a tradução, os humanos inspecionaram os outros alienígenas que
estavam dentro do carro de transporte para ver se identificavam mais alguns pontinhos verdes.
Aliviados ao confirmar que todas as outras criaturas não ofereciam perigo, os adultos se
tranqüilizaram.
— O que aquela "coisa" disse? — Richard perguntou a Archie, quando o transporte se
aproximava de outra parada.
— Foi uma ameaça padrão — replicou Archie —, típica de animais com inteligência
limitada... Suas antenas passaram uma mensagem rude, com muito pouco conteúdo
informativo.
O transporte continuou a descer a avenida durante oito a dez nillets, parando duas vezes para
que novos passageiros entrassem, inclusive meia dúzia de octoaranhas e cerca de vinte outras
criaturas de umas cinco espécies diferentes. Quatro animais azul-rei, com o topo hemisférico
contendo um material ondulado semelhante a um cérebro, ficaram agachados ao lado de
Richard, que ainda segurava Nikki no colo. Suas oito antenas, no total, estenderam-se para
cima, na direção dos pés de Nikki e entrelaçaram-se, como se estivessem se comunicando.
Quando a menina mexeu ligeiramente os pés, as antenas se recolheram rapidamente para a
massa estranha que formava os corpos das criaturas alienígenas.
Àquela altura o carro estava lotado. Um animal que os humanos nunca tinham visto, e que Max
mais tarde disse que parecia uma salsicha com um nariz comprido e seis pernas curtas,
levantou-se por uma das barras verticais e agarrou a bolsa de Nai com as duas patas
dianteiras. Jamie intercedeu antes que algum dano fosse causado à bolsa ou a Nai, e logo
depois Galileu chutou com força a salsicha e ela teve de largar a barra. O menino explicou
que pensara que a salsicha estava se preparando para agarrar a bolsa de novo. A criatura foi
para o outro lado do carro, olhando fixamente para Galileu.
— É bom ter cuidado — disse Max com ironia, despenteando o cabelo do garoto —, senão as
octos colocam dois pontinhos verdes no seu traseiro.
Na avenida enfileiravam-se prédios de um e dois andares, quase todos pintados com motivos
geométricos em cores brilhantes. Grinaldas e coroas com flores e folhas de cores vivas
enfeitavam as portas e os telhados. Em uma longa parede que Hércules disse a Nai ser os
fundos do hospital principal, um imenso mural retangular de quatro metros de altura e vinte de
comprimento retratava médicos octoaranhas cuidando de doentes da sua espécie e ajudando
muitas outras criaturas que viviam na Cidade de Esmeralda.
O transporte diminuiu ligeiramente a marcha e começou a descer a rampa. O veículo cruzou
uma ponte de centenas de metros de comprimento sobre um largo rio ou canal, onde se viam
barcos, octoaranhas divertindo-se, e várias outras criaturas marinhas desconhecidas. Archie
explicou que eles estavam entrando no centro da Cidade de Esmeralda, onde ocorriam todas
as cerimônias principais e onde os otimizadores mais importantes viviam e trabalhavam.
— Lá — disse Archie, apontando para um prédio octogonal de cerca de trinta metros de altura
— é nossa biblioteca e centro de informações.
Em resposta à pergunta de Richard, Archie disse que o canal, ou fosso, rodeava todo o centro
administrativo.
— Salvo em ocasiões especiais como aquela, ou algum acontecimento oficial aprovado pelos
otimizadores — disse Archie —, só as octoaranhas têm acesso a essa área.
O transporte estacionou em uma área grande e plana ao lado de uma estrutura oval que parecia
um estádio, ou um auditório descoberto. Depois que eles desceram do carro, Nai contou a
Patrick que durante a última etapa da viagem tivera uma sensação de claustrofobia que não
tinha desde que estivera no metrô de Kioto na hora do rush, quando foi visitar a família de
Kenji.

— Pelo menos no Japão — disse Patrick com um ligeiro estremecimento — você estava
rodeada de outros seres humanos... Aqui é tudo tão esquisito... Eu me senti como se estivesse
sendo examinado por todos. Tive de fechar os olhos para não enlouquecer.

Quando desembarcaram e começaram a se dirigir para o estádio, os humanos caminharam em


grupo, rodeados pelos quatro amigos octoaranhas e as outras duas que tinham entrado no carro
ainda na zona dos humanos. Essas seis octoaranhas protegiam Nicole e os outros das centenas
de criaturas vivas espalhadas por todas as direções. Eponine começou a sentir-se tonta com a
mistura de cheiros e visões estranhas, e também por ter andado demais, e então Archie fez o
grupo descansar a cada cinqüenta metros. Finalmente, eles entraram por um dos portões para a
área destinada aos humanos.
Havia só uma cadeira na sessão reservada para os humanos. Na verdade, a cadeira de
Eponine devia ser a única de todo o estádio. Olhando por cima da arquibancada superior da
arena com os binóculos de Richard, Max e Patrick viram vários seres apoiados em fortes
postes verticais espalhados pelos terraços, mas não viram nenhuma cadeira.
Benjy ficou fascinado com as sacolas de pano que Archie e outras octoaranhas carregavam,
todas idênticas, do tamanho de uma bolsa de mulher e em tom creme. As sacolas ficavam
penduradas na altura do pseudoquadril das octoaranhas, presas por cima da cabeça com uma
simples tira. Era a primeira vez que os humanos viam octoaranhas usando acessórios. Benjy
reparou logo nas sacolas e perguntara a Archie para que elas serviam, quando ainda estavam
na praça. Benjy pensou que Archie não entendera a sua pergunta naquela hora e esqueceu o
assunto, mas quando chegaram ao estádio ele viu outras sacolas semelhantes.
Archie deu uma explicação um tanto vaga sobre a utilidade daquele acessório, e Nicole pediu
que ele repetisse as cores para que ela pudesse responder a Benjy.
— Archie falou que é um equipamento de que ele pode precisar para nos proteger numa
emergência.
— Que tipo de e-qui-pa-men-to? — perguntou Benjy, mas Archie estava longe dali, falando
com outra octoaranha numa área adjacente.
Os humanos ficaram separados das outras espécies por duas cordas retesadas de metal,
passadas em torno da parte superior e da base de pilastras verticais, do lado de fora do
enclave, e por duas octoaranhas protetoras (ou guardas, como Max as chamou), que se
postaram na área vazia entre as diferentes espécies. Ao lado dos humanos, à direita, havia um
grupo de centenas de alienígenas com seis braços flexíveis, as mesmas criaturas que haviam
construído a escada debaixo da cúpula do arco-íris. À esquerda e abaixo do clã humano, do
outro lado de uma grande área vazia, havia uns mil animaizinhos marrons atarracados,
parecidos com iguanas, com rabos compridos e pontudos e dentes protuberantes. Eram do
tamanho de gatos domésticos.
O que ficou imediatamente óbvio para todos é que o estádio inteiro era rigidamente segregado.
Cada espécie tinha seu lugar próprio. E, com exceção dos guardas, não havia nenhuma
octoaranha na arquibancada superior. As mil e quinhentas octoaranhas (segundo estimativa de
Richard), presentes como espectadores, estavam na arquibancada inferior.
— Há razões para essa segregação — explicou Archie, sendo traduzido por Ellie. —
Primeiro, o que o Chefe dos Otimizadores disser vai ser transmitido em trinta a quarenta
línguas simultaneamente. Se vocês olharem com atenção vão ver que cada seção especial tem
um aparelho (ali está o de vocês, por exemplo, que Richard chama de microfone) para
apresentar o que for dito na língua daquela espécie. Todas as octoaranhas, inclusive as várias
morfologias, podem entender nossa língua-padrão de cores. É por isso que ficamos na
arquibancada de baixo, onde não há nenhum equipamento especial de tradução... Vocês já vão
entender o que estou falando... Olhem lá (Archie esticou um tentáculo), estão vendo aquele
grupo de caranguejos listrados? Estão vendo os dois arames grandes verticais naquela mesa
em frente à seção deles? Quando o Chefe Otimizador começar a falar, aqueles arames serão
ativados e apresentarão o que estiver sendo dito na língua das antenas deles.
Bem ao longe, por cima do que seria um campo afundado em um estádio da Terra, uma ampla
cobertura com faixas coloridas foi suspensa a partir de montantes presos nas seções dos
fundos da arquibancada inferior.
— Você consegue ler o que está escrito lá? — perguntou Ellie ao pai.
— O quê? — falou Richard, ainda assombrado com a grandeza do espetáculo.
— Há uma mensagem naquela cobertura — falou Ellie, apontando para baixo. — Leia as
cores.
— Então é isso — falou Richard lentamente. — Fartura significa comida, água, energia,
informações, equilíbrio e... qual é a última palavra?
— Eu traduziria como "diversidade" — falou Ellie.
— O que significa essa mensagem? — perguntou Eponine.
— Creio que vamos descobrir isso.

Um instante mais tarde, depois de Archie ter explicado aos humanos que a outra razão para a
segregação das espécies era confirmar o censo feito pelas octoaranhas, a cobertura do campo
foi enrolada por cima de dois postes grossos e compridos por dois pares de animais pretos
gigantescos. Os pares partiram de lados opostos do meio da arena e encaminharam-se para as
extremidades do estádio, enrolando a cobertura em volta de seus postes para desvelar o
campo inteiro.
Ao mesmo tempo, um grupo de vaga-lumes desceu do alto do estádio para que todos os
espectadores pudessem ver claramente não só a abundância das frutas, legumes e grãos
agrupados em centenas de pilhas dos dois lados do campo, como também as duas coleções de
seres diversos que se encontravam em áreas separadas do chão da arena, dos dois lados do
seu centro. O primeiro grupo de alienígenas andava em torno de um grande círculo numa
superfície normal de terra, presos uns aos outros por uma espécie de corda. Ao lado deles
havia uma grande piscina, onde mais trinta a quarenta espécies, também presas umas às outras,
nadavam em um segundo grande círculo.

Exatamente no meio do campo havia uma plataforma elevada, onde se viam apenas algumas
caixas pretas espalhadas, e rampas desciam na direção das duas áreas adjacentes. Enquanto
todos olhavam, quatro octoaranhas irromperam do círculo na piscina e subiram pela rampa até
a plataforma. Mais quatro octoaranhas saíram do grupo que andava na área de terra e foram
juntar-se às suas colegas. Depois, uma dessas oito octoaranhas ficou de pé sobre uma caixa no
meio da plataforma e começou a falar em cores.

— Estamos reunidos hoje aqui... — A voz assustou os humanos, e a pequena Nikki começou a
chorar. De início foi extremamente difícil para eles compreender o que estava sendo dito, pois
cada sílaba tinha a mesma inflexão e os sons, embora pronunciados com cuidado, não eram
muito inteligíveis, como se fossem produzidos por alguém que nunca tivesse ouvido um
humano falar. Richard ficou estupefato. Largou imediatamente seu tradutor e abaixou-se para
examinar o dispositivo que emitia aqueles sons.
Ellie pegou os binóculos de Richard para poder seguir as cores com mais rapidez. Embora ela
tivesse de adivinhar algumas palavras por causa de parte das faixas fora do seu raio de visão,
achava mais fácil observar do que se concentrar completamente nas palavras ouvidas através
do equipamento de áudio das octoaranhas.
Com o tempo, os adultos se adaptaram à cadência e à pronúncia da voz alienígena e pegaram
grande parte do que estava sendo dito. A octoaranha Chefe Otimizador declarou que tudo ia
bem no seu reino de fartura, e que o permanente sucesso de sua sociedade complexa e diversa
refletia-se na variedade de alimentos encontrados no campo.
— Uma fartura como esta — dizia ele — não poderia ter sido produzida sem a grande
cooperação entre as espécies.
Mais adiante, na sua breve mensagem, o Chefe Otimizador entregou kudos pelos desempenhos
excepcionais. Várias espécies foram destacadas; a produção de uma substância semelhante ao
mel, por exemplo, aparentemente tinha sido excelente, pois dezenas de vaga-lumes iluminaram
a seção dos besouros focinhudos por alguns instantes. Depois de uns três fengs de discurso, os
humanos ficaram cansados de tentar compreender o que dizia aquela voz estranha e não
prestaram mais atenção às suas palavras. Por isso ficaram surpresos quando os vaga-lumes
pairaram por cima de suas cabeças e os apresentaram à multidão alienígena. Milhares de
olhos estranhos voltaram-se na direção deles durante meio nillet.
— O que ele disse sobre nós? — perguntou Max a Ellie, que continuava a traduzir as cores.
Ele tinha conversado com Eponine durante quase todo o discurso do Chefe Otimizador.
— Falou que nós somos novos no território deles e que ainda estão estudando as nossas
habilidades... Depois apareceram vários números que devem ter sido usados para nos
descrever. Essa parte eu não entendi.
Depois de mais duas espécies terem sido rapidamente apresentadas, o Chefe Otimizador
começou a fazer um resumo dos pontos principais do seu discurso.
— Mamãe, mamãe! — gritou Nikki de repente por cima da voz alienígena.

Enquanto os humanos adultos prestavam atenção ao discurso e ao espetáculo em volta, Nikki


subira no muro baixo que cercava a seção dos humanos e entrara no espaço aberto que os
separava dos iguanas. A octoaranha Hércules, que patrulhava a área, pelo visto também não
tinha notado a menina ali, pois não percebera que um dos iguanas tinha enfiado a cabeça pelo
vão das duas cordas de metal em volta da sua seção e agarrara o vestido de Nikki com seus
dentes afiados.

O terror na voz da criança paralisou momentaneamente a todos, até mesmo a Benjy. Num abrir
e fechar de olhos, ele pulou por cima do muro para ajudar Nikki e apertou a cabeça do iguana
com toda força. A criatura alienígena, assustada, soltou o vestido de Nikki. Seguiu-se um
pandemônio. Nikki correu de volta para os braços da mãe, mas, antes que Hércules e Archie
conseguissem alcançar Benjy, o iguana enraivecido atravessou o vão entre as cordas e pulou
nas costas dele. Benjy deu um grito lancinante quando sentiu os dentes do iguana no seu ombro
e começou a se debater, tentando fazer com que a criatura o largasse. Um instante depois, o
iguana caiu no chão completamente inconsciente, e dois pontos verdes apareceram claramente
entre o rabo e o corpo da criatura.
Todo o incidente ocorreu em menos de um minuto, e o discurso não foi interrompido. Com
exceção das seções próximas à dos humanos, ninguém mais notou o ocorrido. Mas Nikki ficou
apavorada, Benjy saiu seriamente ferido e Eponine começou a ter uma contração. Abaixo
deles, os iguanas enfurecidos forçavam as cordas de metal, desconhecendo as ameaças das
dez octoaranhas que tinham se deslocado para o espaço entre as duas espécies.
Archie disse que estava na hora de os humanos partirem, e ninguém discutiu. Archie escoltou-
os para fora do estádio às pressas; Ellie carregava a filhinha nos braços e Nicole esfregava
desesperadamente no ferimento de Benjy um anti-séptico que estava na maleta médica.
Richard apoiou-se nos cotovelos quando Nicole entrou no quarto.
— Ele está bem? — perguntou.
— Creio que sim — falou Nicole, suspirando. — Ainda estou com medo de que a saliva
daquela criatura contenha alguma substância que possa fazer mal a Benjy... O dr. Azul foi de
grande valia para mim. Ele me explicou que os iguanas não têm veneno tóxico, mas
recomendou que eu preste atenção em alguma possível reação alérgica em Benjy... Dentro de
um ou dois dias, poderemos saber se vamos ter problemas ou não.
— E a dor, já melhorou?
— Benjy não se queixa... Acho que ele está se sentindo orgulhoso, e não quer dizer nada que
possa tirá-lo da posição de herói da família.
— E Eponine? — perguntou Richard depois de um breve silêncio. — Ainda está tendo
contrações?
— Não, as contrações pararam temporariamente. Mas se seu parto for amanhã, Marius não
será o primeiro bebê com nascimento induzido por adrenalina.
Nicole começou a se despir.

— Ellie é que está tendo um momento difícil... Está se considerando uma mãe terrível, e disse
que não pode se perdoar por não ter vigiado Nikki melhor... Um instante atrás, ela estava se
parecendo com Max e Patrick, falando em voz alta consigo mesma se não seria melhor voltar
para Novo Éden e correr o risco de ser presa por Nakamura. "Para o bem da minha filha",
dizia ela.

Nicole terminou de se despir e pulou na cama, beijou Richard e pôs as mãos por trás da
cabeça.
— Richard, esse assunto é muito sério... Você acha que as octoaranhas permitiriam que
voltássemos para o Novo Éden?
— Não — disse ele depois de uma pausa. — Pelo menos não todos nós.
— Acho que concordo com você — disse Nicole. — Mas não quero dizer isso para os
outros... Talvez eu deva levar essa questão de novo para Archie.
— Ele vai tentar desconversar, como fez da primeira vez.
Os dois ficaram deitados de mãos dadas durante vários minutos.
— Em que você está pensando, querido? — perguntou Nicole, ao notar que os olhos de
Richard ainda estavam abertos.
— No dia de hoje — disse ele. — Em tudo o que aconteceu hoje. Fico recapitulando cena por
cena. Agora que estou velho e minha memória não é tão boa quanto antes, tento usar técnicas
para melhorá-la...
Nicole riu.
— Você é impossível. Mas eu o amo assim mesmo.
5

Max estava agitado.


— Não quero ficar neste lugar nem mais um minuto do que o necessário. Não confio mais
nelas... Olhe, Richard, você sabe muito bem que tenho razão. Você viu com que rapidez Archie
tirou aquele tubo da sua mala quando o iguana alienígena pulou nas costas de Benjy? E ele não
hesitou um segundo em usar o tubo. Só ouvi pff, e logo o lagarto caiu morto ou paralisado. Ele
teria feito o mesmo com um de nós que se comportasse mal.
— Max, acho que você está exagerando — falou Richard.
— Estou? E é exagero dizer que a cena de ontem reforçou na minha cabeça como nós somos
impotentes aqui...
— Max — interrompeu Nicole —, você não acha que devíamos ter essa discussão em outra
hora, quando você estiver mais calmo?
— Não — disse Max com ênfase. — Não acho... quero discutir isso agora, hoje de manhã. Foi
por isso que pedi a Nai para dar o café da manhã para as crianças na casa dela.
— Mas certamente você não está sugerindo que a gente vá embora neste momento, quando
Eponine está para ter o bebê a qualquer hora, não é? — perguntou Nicole.
— É claro que não — respondeu Max. — Mas acho que devíamos dar o fora daqui assim que
ela puder viajar... Meu Deus, Nicole, que tipo de vida nós podemos ter aqui? Nikki e os
gêmeos estão apavorados. Aposto que não vão querer sair da nossa zona durante semanas, ou
talvez nunca mais... E isso não responde à pergunta principal: por que as octoaranhas nos
trouxeram para cá? Você viu todas aquelas criaturas no estádio ontem? Não teve impressão de
que todas elas trabalham para as octoaranhas, de uma forma ou de outra? Não é provável que
nós também acabemos ocupando um lugar no sistema delas?
Ellie falou pela primeira vez desde o início da conversa.
— Eu sempre confiei nas octoaranhas, e ainda confio. Não creio que elas tenham algum tipo
de plano diabólico para nos integrar a seu esquema de uma forma que nos seja inaceitável...
Mas aprendi uma coisa ontem, ou melhor, reaprendi uma coisa. Como mãe, é minha
responsabilidade providenciar para minha filha um ambiente onde ela possa se desenvolver e
ter uma chance de ser feliz... E não acho mais que isso seja possível aqui na Cidade de
Esmeralda.
Nicole olhou surpresa para Ellie.
— Então você também quer ir embora? — perguntou.
— Quero, mãe.
Nicole olhou em volta da mesa. Ela podia dizer pelas expressões de Eponine e Patrick que
eles concordavam com Max e Ellie.
— Alguém sabe qual é a opinião de Nai sobre isso? — perguntou. Patrick corou ligeiramente
quando Max e Eponine olharam para ele, como se esperassem que respondesse.
— Nós conversamos sobre isso na noite passada — disse ele a uma certa altura. — Nai está
convencida, já há algum tempo, de que as crianças têm uma vida muito limitada, isoladas aqui
na nossa zona. Mas ela também está preocupada, especialmente depois do que aconteceu
ontem, com os perigos que as crianças podem correr se tentarmos viver livremente na
sociedade das octoaranhas.
— Acho que isso encerra a questão — disse Nicole. — Vou falar com Archie sobre a nossa
partida na primeira oportunidade.
Nai era uma ótima contadora de histórias. As crianças adoravam os dias de aula em que ela
dispensava as atividades planejadas e simplesmente lhes contava histórias. Na verdade, Nai
estava contando para as crianças mitos gregos e chineses no primeiro dia em que Hércules
apareceu para observar a aula. As crianças batizaram a octoaranha com esse nome depois que
ela ajudou Nai a trocar os móveis de lugar.
A maioria das histórias que Nai contava tinha um herói. Como até mesmo Nikki ainda tinha
alguma lembrança dos biotas humanos do Novo Éden, as crianças se interessavam mais por
histórias sobre Albert Einstein, Abraham Lincoln e Benita Garcia do que por personagens
históricos ou míticos com os quais não haviam tido envolvimento pessoal.

Na manhã seguinte ao Dia da Fartura, Nai explicava como, durante as últimas fases do grande
caos, Benita Garcia usou sua fama considerável para ajudar milhões de pobres no México.
Nikki, que herdara o espírito compassivo da mãe e avó, comoveu-se com a história de Benita,
desafiando corajosamente a oligarquia mexicana e as corporações multinacionais americanas,
e declarou que Benita Garcia era seu herói.

— Heroína — corrigiu Kepler, com seu senso de precisão. — E você, mamãe? — disse o
menino um instante depois. — Você teve um herói ou heroína quando era criança?
Apesar de estar numa cidade alienígena, em uma espaçonave extraterrestre, a uma
inacreditável distância de sua cidade natal de Lampun, na Tailândia, Nai transportou-se
durante quinze a vinte segundos à sua infância e viu-se claramente com um vestido simples de
algodão, descalça, no templo budista, para prestar homenagem à rainha Chamatevi. E viu
também os monges com roupas cor de açafrão, e acreditou por um instante sentir o cheiro de
madeira queimada em frente ao principal Buda do templo.
— Tive — disse Nai, comovida com seu poder de recordação —, eu tive uma heroína... A
rainha Chamatevi do Haripunchai.
— Quem era ela, sra. Watanabe? — perguntou Nikki. — Era como Benita Garcia?
— Não exatamente. Chamatevi foi uma moça bonita que viveu no reinado Mon no sul da
Indochina, há mil anos. Sua família era rica e intimamente ligada ao rei dos Mons. Mas
Chamatevi, que era extremamente culta para uma mulher daquela época, ansiava por fazer
alguma coisa diferente e inusitada. Certa vez, quando Chamatevi tinha dezenove ou vinte anos,
um profeta visitou...
— O que é um profeta, mamãe? — perguntou Kepler. Nai sorriu e respondeu:
— Uma pessoa que prediz o futuro, ou pelo menos tenta predizer. Bem, esse profeta disse ao
rei que, segundo uma lenda antiga, uma bela mulher Mon, de nascimento nobre, iria para o
norte através das selvas, para o vale de Haripunchai, e realizaria a união de todas as tribos
guerreiras da região. Essa moça, continuou o profeta, criaria um reino cujo esplendor igualaria
o dos Mons, e se tornaria conhecida em muitas terras por sua notável liderança. O profeta
contou essa história durante uma festa na corte, e Chamatevi a escutou. Quando ele terminou a
história, a moça dirigiu-se ao rei dos Mons e lhe disse que devia ser ela a mulher da lenda.
Apesar da oposição de seu pai, Chamatevi aceitou a oferta do rei de dinheiro, provisões e
elefantes, embora a comida só tivesse durado os cinco meses de travessia da selva até a terra
de Haripunchai. Se a lenda não fosse verdadeira e as várias tribos do vale não aceitassem
Chamatevi como sua rainha, ela não conseguiria voltar para os Mons e seria forçada a vender-
se como escrava. Mas nem por um instante Chamatevi teve medo. É claro que a lenda foi
realizada, as tribos do vale acolheram sua rainha, e ela reinou por muitos anos numa época
conhecida na história tailandesa como a Idade de Ouro do Haripunchai... Quando Chamatevi
ficou bem velha, ela dividiu seu reino em duas partes iguais, que deu aos seus filhos gêmeos.
Depois retirou-se para um mosteiro budista para agradecer a Deus por Seu amor e proteção.
Chamatevi manteve-se lúcida e saudável até morrer, aos noventa e nove anos.

Por razões que não compreendeu por completo, Nai sentiu-se muito comovida enquanto
contava sua história. Quando terminou, ainda continuava a ver em pensamento os painéis da
parede do templo de Lampun que ilustravam a história de Chamatevi. Nai empolgara-se tanto
com sua história que nem notou que Patrick, Nicole e Archie tinham entrado na sala de aula e
estavam sentados no chão, ao lado das crianças.

— Nós temos muitas histórias semelhantes — disse Archie um instante depois, através da
tradução de Nicole —, que também contamos para as crianças. A maioria delas é muito, muito
antiga. Serão histórias verdadeiras? Isso realmente não importa para as octoaranhas. As
histórias divertem, instruem e servem de exemplo.
— Tenho certeza de que as crianças gostariam de ouvir uma de suas histórias — disse Nai
para Archie. — Na verdade, todos nós gostaríamos.
Archie não disse nada durante quase um nillet. O líquido de suas lentes estava em grande
atividade, movendo-se para cima e para baixo, como se ele estivesse estudando atentamente
os seres humanos que o olhavam. A certa altura, as faixas coloridas começaram a sair da sua
fenda e a girar em torno da sua cabeça cinza.
— Há muito, muito tempo — começou ele —, em um local muito, muito distante, com fartos
recursos e beleza indescritível, todas as octoaranhas viviam em um vasto oceano. Na terra
havia muitas criaturas, dentre elas os...
— Desculpe — disse Nicole para Archie e os outros —, mas não sei como traduzir a última
faixa de cor.
Archie fez várias outras frases para tentar definir a palavra em outros termos.
Aqueles que se foram antes... — disse Nicole para si mesma. — Tudo bem, provavelmente
não é essencial para a história que cada palavra esteja exatamente correta... Vou simplesmente
chamar essas criaturas de "precursores".
— Nas porções de terra desse belo planeta — continuou Nicole a traduzir para Archie —,
havia muitas criaturas, dentre as quais as mais inteligentes de todas eram os precursores. Eles
construíram veículos que voavam no ar, exploraram todos os planetas e estrelas vizinhas, e
aprenderam até mesmo a criar vida, a partir de simples elementos químicos, onde não havia
vida antes. Eles mudaram a natureza da terra e dos oceanos com seu conhecimento incrível.
Aconteceu que os precursores determinaram que a espécie das octoaranhas tinha um enorme
potencial não desenvolvido, uma capacidade que nunca fora expressa durante seus muitos e
muitos anos de existência, e começaram a lhes mostrar como elas podiam se desenvolver e
usar suas habilidades latentes. A medida que os anos se passaram, as octoaranhas, graças aos
precursores, tornaram-se a segunda espécie mais inteligente do planeta e desenvolveram um
relacionamento muito complexo e íntimo com os precursores.
— Durante aquele tempo, os precursores ajudaram as octoaranhas a aprender a viver fora da
água, retirando oxigênio diretamente do ar do belo planeta. Colônias inteiras de octos
começaram a passar toda a vida na terra. Certo dia, depois de uma grande reunião entre os
chefes otimizadores dos precursores e das octoaranhas, foi anunciado que todas as
octoaranhas se tornariam criaturas da terra e renunciariam às suas colônias no mar. Nas
profundezas do mar havia uma pequena colônia de octos, com uns mil indivíduos no máximo,
administrada por um otimizador local que não concordou com a decisão tomada pelos chefes
otimizadores das duas espécies. Esse otimizador local resistiu ao aviso, e, embora ele e sua
colônia tivessem sido discriminados pelos outros e não compartilhassem da fartura oferecida
pelos precursores, ele e muitas gerações que se seguiram continuaram a viver sua vida isolada
e sem complicações no fundo do oceano. Acontece que uma grande calamidade assolou o
planeta, e tornou-se impossível sobreviver na terra. Milhões de criaturas morreram, e só as
octoaranhas, que viviam confortavelmente na água, sobreviveram durante os milhares de anos
em que o planeta foi devastado.

Quando finalmente o planeta se recuperou e algumas octoaranhas do oceano aventuraram-se na


terra, não encontraram nenhum elemento da sua espécie, e nenhum precursor tampouco. O
otimizador local que vivera milhares de anos antes tinha sido um visionário. Sem a sua
atuação, todas as octoaranhas teriam perecido... E é por isso que até mesmo hoje as
octoaranhas espertas se mantêm capazes de viver tanto na terra como no mar.
Nicole reconheceu, logo no início da história, que Archie estava contando para eles uma coisa
completamente diferente de tudo o que lhes contara antes. Seria devido à conversa que tiveram
naquela manhã, quando ela disse a Archie que queriam voltar para o Novo Éden assim que o
bebê dos Puckett nascesse? Nicole não tinha certeza. Mas sabia que a lenda de Archie contava
coisas sobre as octoaranhas que os humanos não poderiam ter imaginado de nenhuma outra
forma.
— Foi uma história maravilhosa — disse Nicole, tocando ligeiramente em Archie. — Não sei
se as crianças gostaram...
— Eu achei legal — disse Kepler. — Não sabia que vocês podiam respirar água.
— Como um bebê recém-nascido — falou Nai, quando Max apareceu todo nervoso na porta.
— Venha depressa, Nicole. As contrações estão vindo a cada quatro minutos.
Nicole levantou-se e virou-se para Archie.
— Por favor, diga para o dr. Azul trazer o engenheiro de imagens e o sistema quadróide. E
depressa!
Era incrível ver um nascimento do lado de fora e de dentro ao mesmo tempo. Nicole dava
orientações a Eponine e ao engenheiro de imagens das octoaranhas através do dr. Azul.
— Respire, você precisa respirar durante as contrações — ela gritava para Eponine. —
Mande-os mais para perto, mais para baixo no canal de nascimento, com um pouco mais de luz
— dizia para o dr. Azul.
Richard estava absolutamente fascinado. Ele procurou não atrapalhar e foi para o canto do
quarto, com o olhar se alternando entre as imagens na parede e as duas octoaranhas com seu
equipamento. O que as imagens mostravam chegava com o atraso de uma contração em relação
ao que acontecia na cama. No final de cada contração, o dr. Azul passava para Nicole um
pedaço de pano redondo que Nicole enfiava na parte interna da coxa de Eponine. Em poucos
segundos, os pequenos quadróides que tinham estado dentro de Eponine na última contração
corriam para o pano, e novos quadróides subiam pelo colo do útero. Com uma diferença de
vinte a trinta segundos para o processamento dos dados, outro conjunto de imagens aparecia
na parede.

Max estava deixando todos malucos. Quando ouvia um grito ou gemido de Eponine, à medida
que ela se aproximava do auge de cada contração, corria para o lado dela e agarrava a sua
mão.

— Ela está sofrendo muito — dizia Max para Nicole. — Você precisa fazer alguma coisa para
ajudar a pobrezinha.
No intervalo das contrações, por sugestão de Nicole, Eponine ficava de pé ao lado da cama
para deixar a gravidade artificial ajudar o processo do nascimento, mas Max piorava ainda
mais as coisas. A imagem do filho ainda não nascido encaixado no colo do útero, lutando
contra a pressão da contração anterior, levou Max a uma torrente de palavras.
— Oh, meu Deus, olhe, olhe! A cabeça dele está achatada. Que merda! O espaço não é
suficiente. Ele não vai conseguir passar.
Nicole tomou duas decisões importantes pouco antes de Marius Clyde Puckett entrar no
universo. Primeiro, ela concluiu que o bebê não nasceria sem alguma ajuda. Seria necessário
fazer uma episiotomia para aliviar a dor do parto. E concluiu também que Max devia ser
retirado do quarto antes que ficasse histérico e fizesse alguma coisa que interferisse com o
processo do nascimento.
Ellie esterilizou o bisturi a pedido de Nicole, e Max a olhou com olhos arregalados.
— O que você vai fazer com isso? — perguntou.
— Max — disse Nicole calmamente, quando Eponine sentiu que outra contração estava vindo
—, eu te adoro, mas quero que você saia do quarto. Por favor. O que eu vou fazer vai facilitar
o nascimento de Marius, mas não é uma coisa bonita de se ver...
Max não se mexeu. Patrick, que estava na porta, pôs a mão no ombro do amigo quando
Eponine começou a gemer de novo. A cabeça do bebê estava claramente pressionando a
abertura vaginal. Nicole começou a cortar, e Eponine gritou de dor.
— Não! — disse Max frenético assim que viu o sangue. — Não... que merda... oh, que merda!
— Agora... saia agora! — gritou Nicole imperiosamente quando terminou a episiotomia. Ellie
ficou secando o sangue o mais depressa que podia. Patrick virou Max de costas, deu-lhe um
abraço e tirou-o do quarto.
Nicole checou a imagem assim que ela apareceu na parede. O pequeno Marius estava em
posição perfeita. Que tecnologia fantástica, pensou ela. Isso muda o nascimento
completamente.
Nicole não teve mais tempo de refletir; outra contração estava começando. Ela pegou a mão
de Eponine.
— Deve ser agora — disse. — Quero que você empurre com toda a sua força... Durante todo
o tempo da contração. — E disse ao dr. Azul que não precisava de mais imagens.
— Empurre — gritaram Nicole e Ellie ao mesmo tempo.
A cabeça do bebê apontou. Dava para ver uns fiapos do cabelo castanhoclaro.
— Mais uma vez — gritou Nicole. — Empurre de novo.
— Não consigo — gemeu Eponine.

— Consegue sim... Empurre!


Eponine arqueou as costas, respirou fundo e um instante depois o bebê Marius estava nas
mãos de Nicole. Ellie tinha aprontado a tesoura para cortar o cordão umbilical. O menino
chorou naturalmente, sem precisar levar uma palmada, e Max entrou no quarto correndo.
— Seu filho chegou — disse Nicole. Terminou de limpar o excesso de líquido, amarrou o
cordão umbilical e passou o bebê para o pai orgulhoso.
— Oh, meu... oh, meu... O que eu faço agora? — disse Max radiante, segurando o pequeno
Marius como se ele fosse frágil como um cristal e precioso como um brilhante.
— Pode dar um beijo nele — respondeu Nicole com um sorriso. — Seria um bom começo.
Max abaixou a cabeça e beijou Marius cora todo o cuidado.
— E pode trazer o bebê para ele conhecer a mãe — disse Eponine. Lágrimas de alegria
escorriam pelo rosto da nova mamãe quando ela olhou seu bebê bem de perto pela primeira
vez. Nicole ajudou Max a deitar o pequeno Marius no peito de Eponine.
— Oh, francesinha — disse Max, apertando a mão dela —, como eu te amo... eu te amo
demais...
Marius, que estava chorando desde que tinha nascido, acalmou-se na nova posição sobre o
peito da mãe. Eponine esticou a mão que Max não estava segurando e acariciou seu filhinho.
De repente, os olhos de Max encheram-se de lágrimas.
— Obrigado, querida — disse para Eponine. — Obrigado, Nicole. Obrigado, Ellie.
Max agradeceu a todos no quarto várias vezes, inclusive às duas octoaranhas. Nos cinco
minutos seguintes, ele virou uma verdadeira máquina de dar abraços, e nem mesmo as
octoaranhas escaparam de seus abraços agradecidos.

Nicole bateu de leve na porta e enfiou a cabeça no quarto.


— Com licença. Vocês já acordaram?
Eponine e Max se mexeram, mas seus olhos não se abriram para cumprimentar Nicole. O
pequeno Marius estava dormindo satisfeito, aninhado entre seus pais. A certa altura, Max
resmungou:
— Que horas são?
— Quinze minutos depois da hora marcada para o exame do Marius — disse Nicole. — O dr.
Azul vai voltar daqui a pouco.
Max gemeu e cutucou Eponine.
— Entre — disse ele para Nicole. Estava com um aspecto horrível, olhos vermelhos e bolsas
debaixo dos olhos. — Por que os bebês não dormem mais de duas horas seguidas? —
perguntou, bocejando.
Nicole ficou na porta.
— Alguns dormem, Max... Mas cada bebê é diferente. Logo depois que útero.

— De que você está se queixando? — perguntou Eponine, tentando sentar-se. — Você ouve o
choro dele, muda uma fralda de vez em quando e volta a dormir... Eu tenho de ficar acordada
para amamentar... Queria ver você tentar dormir com um bichinho desses sugando seu seio.
— O que é isso? — perguntou Nicole rindo. — Os novos papais já perderam sua aura de
neófitos em apenas quatro dias?
— Ainda não — falou Eponine, forçando um sorriso enquanto se vestia. — Mas, meu Deus,
estou tão cansada!
— Isso é normal — falou Nicole. — Seu organismo passou por um trauma. Você precisa
descansar... Como eu disse no dia em que Marius nasceu, quando vocês insistiram em fazer
uma festa, o único jeito de vocês dormirem nas duas primeiras semanas é adaptando seu
horário ao dele.
— Eu sei disso — falou Max, passando aos tropeções pela porta, com as roupas na mão, para
ir ao banheiro.
Eponine deu uma olhada ligeira para o tampão retangular azul que Nicole acabara de tirar da
bolsa.
— Essa é uma das novas fraldas? — perguntou.
— É — respondeu Nicole. — Os engenheiros octoaranhas fizeram uns aprimoramentos...
Aliás, a oferta deles de um devorador especial continua de pé. Eles ainda não criaram nada
para a urina de Marius, mas calculam que com o devorador o bebê só faça cocô...
— Max é completamente contra isso — interrompeu Eponine. — Ele disse que seu filho não
vai servir de experiência para as octoaranhas.
— Eu não chamaria isso de experiência — falou Nicole. — A espécie de devorador que eles
projetaram é uma versão ligeiramente modificada dos que vêm limpando nossos banheiros há
seis meses. E pense no trabalho que você evitaria...
— Não — disse Eponine com firmeza. — Mas mesmo assim agradeça às octoaranhas.
Quando Max voltou, estava vestido para o dia, embora ainda não tivesse feito a barba.
— Eu queria te dizer, Max — falou Nicole —, antes de o dr. Azul voltar, que finalmente tive
uma longa conversa com Archie sobre a nossa volta para Novo Éden... Quando expliquei a ele
que nós todos queríamos voltar e tentei dar algumas das razões para essa nossa decisão, ele
me disse que não lhe cabia dar a permissão para nossa partida.
— Então cabe a quem? — perguntou Max.
— Archie disse que é um assunto para o Chefe Otimizador.
— Ah! Então eu estava certo desde o começo. Nós realmente somos prisioneiros aqui, e não
hóspedes.
— Não, se é que eu entendi bem o que Archie falou. Ele me disse que isso "pode ser
arranjado, se necessário", mas que só o Chefe Otimizador compreende bem "todos os fatores"
para poder tomar uma decisão.
— Mais blá-blá-blá dessas malditas octoaranhas — resmungou Max.
— Acho que não. Na verdade, eu fui encorajada. Mas Archie disse que só poderá programar
um encontro com o Chefe Otimizador depois da Matrícula... um processo que está tomando
todo o tempo de Jamie. Aparentemente isso só acontece a cada dois anos e envolve a colônia
toda.
— Quanto tempo essa Matrícula leva? — perguntou Max.
— Mais uma semana. Richard, Ellie e eu fomos convidados a participar hoje à noite de uma
parte do processo... Estou curiosa.
— De qualquer forma, Marius e eu só poderemos ir embora daqui a algumas semanas — disse
Eponine para Max. — Portanto, esperar uma semana não é problema.
Naquele instante, o dr. Azul bateu na porta e entrou no quarto com um equipamento
especializado que seria usado para examinar Marius. Max olhou de esguelha para as duas
maletas com as criaturas espiraladas que pareciam uma pasta preta.
— O que são essas malditas coisas? — perguntou com a cara amarrada. Nicole terminou de
colocar seus próprios instrumentos em cima da mesa, ao lado da cama.
— Max — disse ela sorrindo —, por que você não sai durante uns quinze minutos?
Max franziu as sobrancelhas.
— O que vocês vão fazer com o meu filho? Cozinhar o menininho no óleo?
— Não, não — Nicole deu uma risada. — Mas quem ouve o barulho desses instrumentos pode
pensar que estamos fazendo isso.

Ellie pôs Nikki no colo e lhe deu um abraço, e a menininha parou de chorar por algum tempo.
— Mamãe vai sair com a vovó e o vovô, Archie e o dr. Azul — disse Ellie. — Nós só vamos
voltar depois que você estiver dormindo... Você vai ficar aqui com a sra. Watanabe e Kepler...
— Eu não quero ficar aqui — falou Nikki no seu tom mais desagradável. — Quero ir com
minha mamãe. — Nikki deu um beijo em Ellie. Seu rosto mostrava a expectativa.
Quando Ellie pôs a filhinha no chão, ela recomeçou a chorar.
— Eu não quero... — gritava ela quando a mãe saiu do quarto. Ellie sacudia a cabeça
enquanto os cinco seguiam para a praça.
— Não sei o que fazer com ela — disse Ellie. — Desde aquele incidente no estádio ela está
grudada comigo...
— Pode estar passando por uma fase normal — falou Nicole. — As crianças mudam muito
depressa na idade dela... E Nikki não é mais o centro de atenção; agora temos o Marius.
— Acho que o problema é mais profundo — disse Ellie, depois de alguns segundos. Ela se
virou para Nicole. — Desculpe, mamãe, mas creio que a insegurança de Nikki tem mais a ver
com Robert do que com Marius.
— Mas Robert foi embora há mais de um ano — observou Richard.
— Isso não importa — replicou Ellie. — Em certa medida, Nikki deve ainda se lembrar de
quando seus pais estavam juntos... Ela provavelmente acha que primeiro eu a abandonei e
depois abandonei Robert. Por isso se sente tão insegura.
Nicole fez um carinho na filha.
— Mas Ellie, se isso for verdade, por que só agora ela está reagindo tanto?
— Não tenho certeza — disse Ellie. — Talvez o encontro com o iguana tenha lhe mostrado
como ela é frágil... E como sente falta da proteção do pai...
Eles ouviram o choro de Nikki vindo do outro lado da rua.
— Não sei o que a está perturbando, mas espero que ela consiga superar isso logo. Quando
Nikki chora assim, sinto como se meu estômago estivesse queimando.
Não havia nenhum transporte na praça. Archie e o dr. Azul continuaram andando na direção da
pirâmide onde as octoaranhas e os humanos em geral faziam suas conferências.
— Esta noite é muito especial — explicou o dr. Azul —, e há muitas coisas que devemos lhes
dizer antes de sairmos da sua zona.
— Onde está Jamie? — perguntou Nicole quando eles entraram no prédio. — Pensei que ele
iria conosco... E, por falar nisso, o que aconteceu com Hércules? Não o vemos desde o Dia da
Fartura.
Enquanto subiam a rampa para o segundo andar da pirâmide, o dr. Azul informou que Jamie e
seus colegas estavam ocupados com a Matrícula naquela noite, e que Hércules tinha sido
reescalado.
— Meu Deus — disse Richard brincando —, Hércules nem se despediu da gente.
As octoaranhas, que ainda não haviam aprendido a reconhecer muito o senso de humor dos
humanos, desculparam-se pela falta de gentileza de Hércules. Depois disseram que não
haveria mais uma octoaranha entre os humanos fazendo o papel de observador diário.
— Hércules foi despedido por alguma razão? — perguntou Richard, ainda em tom de
brincadeira. Mas as duas octoaranhas ignoraram a pergunta.
Eles entraram na sala de conferências onde Nicole havia sido instruída sobre o sistema
digestivo das octoaranhas. Várias folhas do pergaminho ou couro, nas quais as octos haviam
feito seus desenhos e diagramas, ainda estavam num canto em frente à parede. O dr. Azul
pediu que Richard, Nicole e Ellie se sentassem.
— O que vocês vão ver esta noite — disse Archie — nunca foi visto por uma não-octoaranha
desde que a nossa colônia foi criada aqui em Rama. Estamos levando vocês conosco numa
tentativa de melhorar a qualidade da comunicação entre nossas duas espécies. É imperativo
que vocês compreendam, antes de sairmos desta sala e passarmos para o Domínio Alternativo,
não só o que irão ver, mas também como deverão se comportar.
— Em nenhuma circunstância — acrescentou o dr. Azul —, vocês devem interromper os
procedimentos ou tentar interagir com alguém ou alguma coisa, na ida ou na volta. Vocês
devem seguir todas as instruções. Se não puderem ou não quiserem aceitar essas condições,
devem dizer agora, e não os levaremos conosco.
Os três humanos se entreolharam alarmados.
— Vocês nos conhecem bem — falou Nicole finalmente. — Espero que não nos peçam para
fazer alguma coisa incompatível com nossos valores ou princípios. Nós não poderíamos...
— Isso não nos preocupa — interrompeu Archie. — Estamos simplesmente pedindo que
vocês sejam observadores passivos, independentemente do que vejam ou sintam. Se ficarem
confusos ou amedrontados e por alguma razão não puderem localizar um de nós, sentem-se
onde estiverem, com as mãos de lado, e esperem que nós chegaremos.
Houve uma breve pausa.
— Não posso deixar de enfatizar — continuou Archie — a importância do comportamento de
vocês esta noite. A maioria dos outros otimizadores se opôs quando pedi que permitissem a
entrada de vocês aqui. O dr. Azul e eu garantimos pessoalmente que vocês não teriam um
comportamento inadequado.
— Nossas vidas estão em perigo? — perguntou Nicole.
— Provavelmente não — replicou Archie. — Mas poderiam estar... E se a noite de hoje for
um fracasso por causa de alguma coisa que um de vocês fizer, não sei se... — De forma muito
pouco comum às octoaranhas, Archie não terminou a frase.
— Você está nos dizendo — falou Nicole — que nosso pedido para voltar para o Novo Éden
está de certa forma ligado a tudo isso?
— Nosso relacionamento chegou ao auge. Ao mostrarmos uma parte crítica do nosso processo
de Matrícula para vocês, estamos tentando chegar a um novo nível de compreensão. Neste
sentido, a resposta à sua pergunta é sim.

Eles passaram quase meio tert, duas horas humanas, na sala de conferências. Archie começou
explicando o que significava a atividade da Matrícula. Jamie e seus companheiros, disse a
octoaranha, tinham saído da adolescência e iam entrar no período de transição para a idade
adulta. Como jovens, sua vida era controlada, e eles não tinham permissão de tomar decisões
de grande importância. No final da Matrícula, Jamie e as outras octos tomariam uma única
decisão, uma decisão que iria alterar fundamentalmente a vida deles. O objetivo da Matrícula,
e mais ainda do ano anterior à transição, era fornecer às octoaranhas adolescentes
informações que as ajudassem a tomar aquela importante decisão.
— Hoje à noite — disse Archie —, os jovens serão levados em grupo ao Domínio Alternativo
para verem uma...

Nem Ellie nem Nicole conseguiram de início achar uma palavra para traduzir o que as jovens
octoaranhas iriam ver. Mas depois de alguma discussão entre elas e das várias frases de
esclarecimento do dr. Azul e de Archie, as mulheres acharam que a melhor interpretação para
o que Archie dissera em cores seria "peça de moralidade".

Nos minutos seguintes, a conversa tomou outro rumo, quando o dr. Azul e Archie explicaram,
em resposta às perguntas dos humanos, que o Domínio Alternativo era uma seção específica
do reinado das octoaranhas que não ficava sob a cúpula.
— No sul da Cidade de Esmeralda — disse Archie — há outra colônia com um estilo de vida
absolutamente diferente do nosso. Cerca de duas mil octoaranhas vivem no Domínio
Alternativo atualmente, com outras três a quatro mil criaturas de mais de dez espécies
diferentes. A vida deles é caótica e desestruturada. As octoaranhas alternativas não têm uma
cúpula sobre suas cabeças para protegê-las, nem têm tarefas específicas, diversões
programadas, acesso a informações na biblioteca, estradas ou casas, a não ser as que
construíram coletivamente. E sua expectativa de vida é de um décimo da expectativa média
das octoaranhas da Cidade de Esmeralda.
Ellie lembrou-se que a área de Avalon fora criada por Nakamura para lidar com os problemas
que os colonos do Novo Éden desejavam esquecer, e pensou que talvez o Domínio Alternativo
fosse uma colônia semelhante.
— Por que — perguntou ela — tantas octoaranhas, cerca de dez por cento, se minha aritmética
estiver correta, foram forçadas a viver fora da cúpula?
— Nenhuma octoaranha foi forçada a viver no Domínio Alternativo — disse o dr. Azul. —
Todas elas estão lá em virtude de uma decisão crítica.
O dr. Azul foi até o canto e pegou alguns gráficos, e as duas octoaranhas usaram os diagramas
durante a longa discussão que se seguiu. Primeiro explicaram que há centenas de gerações
seus biólogos haviam identificado corretamente a conexão entre a sexualidade na sua espécie
e muitas outras características comportamentais, inclusive ambição pessoal, agressividade,
senso territorial e envelhecimento, para citar só as mais importantes. Essa descoberta foi feita
durante um período da história das octoaranhas em que ocorria pela primeira vez a transição
para a Otimização, mas, apesar da suposta aceitação universal do que era teoricamente uma
base superior para a estrutura da sociedade das octoaranhas, a transição foi impedida pelo
desencadeamento de guerras, dissidências tribais e outros problemas semelhantes. Os
biólogos octoaranhas da época acreditavam que só uma sociedade assexuada, ou na qual
apenas uma pequena fração da população fosse sexuada, conseguiria seguir os princípios da
Otimização, segundo os quais os desejos do indivíduo se subordinavam ao bem-estar da
colônia como um todo.
Uma sucessão aparentemente sem fim de conflitos convenceu todas as octoaranhas daquele
período de que a Otimização nada mais era que um sonho tolo, a menos que encontrassem
algum método ou técnica para combater o individualismo que inevitavelmente bloqueava a
aceitação da nova ordem. Mas o que se poderia fazer? Só muitas gerações depois é que se fez
a brilhante descoberta de que existiam químicas especiais em um produto semelhante à cana-
de-açúcar, chamado barrican, que retardava a maturidade sexual das octoaranhas. Passaram-se
centenas de anos até que os engenheiros genéticos octoaranhas conseguissem projetar e
produzir uma variação desse barrican, que quando ingerido regularmente parava por completo
o advento da maturidade sexual.

Os testes nas colônias tiveram um sucesso muito além do esperado pelos biólogos e cientistas
políticos progressistas. Octoaranhas sexualmente imaturas eram mais receptivas aos conceitos
do grupo de Otimização. E, além de a maturidade sexual não ocorrer nas octoaranhas que
comiam o barrican regularmente, seu envelhecimento era muito retardado. Os cientistas
octoaranhas aprenderam rapidamente que o envelhecimento se relacionava ao mesmo
mecanismo interno da puberdade, e na verdade as enzimas que impediam que as células se
recuperassem adequadamente nas octoaranhas mais velhas só eram ativadas num período
específico após a maturidade sexual.

A sociedade das octoaranhas passou por rápidas mudanças, afirmaram Archie e o dr. Azul,
depois dessas descobertas colossais. A otimização espalhouse por todo lado. Os cientistas
sociais octoaranhas começaram a contemplar uma sociedade na qual as octos seriam
praticamente imortais, morrendo apenas de acidentes ou de uma deficiência súbita em um
órgão importante. Octoaranhas assexuadas povoaram todas as colônias, e, como os biólogos
haviam previsto, a ambição pessoal e a agressividade tornaram-se quase inexistentes.
— Toda essa história ocorreu há muitas gerações — disse Archie —, e é informação básica
para ajudá-los a compreender o que é a Matrícula. Sem fazer alusão à complexa história
intermediária, o dr. Azul irá resumir como estamos hoje na nossa colônia específica. Todas as
octoaranhas que vocês viram até agora — disse o dr. Azul —, com exceção das morfologias
midgets e das "repletas", ambas permanentemente assexuadas, são criaturas cuja maturidade
sexual foi retardada pelo barrican. Muitos anos atrás, antes que um biólogo esperto mostrasse
como um tipo diferente de sexualidade podia ser elaborado geneticamente na nossa espécie,
só a octoaranha-rainha podia produzir descendentes... Entre as octoaranhas adultas normais
havia dois sexos, mas a única diferença significativa entre os sexos era que um deles, ao
atingir a maturidade, tinha capacidade para fertilizar a rainha. Os adultos sexualizados
copulavam por prazer, mas, como esse contato não tinha conseqüência, as distinções entre os
sexos apagaram-se. Na verdade, ligações a longo termo na colônia ocorriam com maior
freqüência entre membros do mesmo sexo, pois eles tinham sentimentos semelhantes e pontos
de vista em comum... Agora a situação é muito mais complicada. Na nossa espécie de
octoaranhas, graças à engenharia genética de nossos antecessores, uma fêmea adulta é capaz
de produzir, através de uma união sexual com um macho adulto, uma única descendente, não-
fértil, com expectativa de vida limitada e capacidade um tanto reduzida. Vocês ainda não
viram uma dessas morfologias porque elas vivem no Domínio Alternativo. O dr. Azul fez uma
pausa e Archie continuou:
— Cada cidadão jovem da nossa colônia, macho ou fêmea, decide se deseja tornar-se
sexualmente maduro no período imediatamente posterior à Matrícula. Se a decisão for
negativa, a octoaranha coloca sua sexualidade nas mãos dos Otimizadores e da colônia como
um todo. Foi o que o dr. Azul, que é fêmea, e eu fizemos muito tempo atrás. Pela lei das
octoaranhas, é só imediatamente após a Matrícula que o indivíduo pode fazer sua própria
escolha sexual sem quaisquer conseqüências. Os Otimizadores não são tolerantes com aqueles
que decidem passar por uma metamorfose sexual, sem a explícita permissão da colônia,
depois de suas carreiras terem sido cuidadosamente estruturadas e planejadas.
Mais uma vez o dr. Azul falou:

— De acordo com o que nós lhes expusemos, seria improvável que uma octoaranha jovem
tomasse a decisão de uma maturidade sexual precoce. Porém, a bem da justiça, devemos dizer
que há fortes razões, pelo menos para algumas octoaranhas jovens, para elas escolherem
tornar-se alternativas. Antes de tudo, a octoaranha fêmea sabe que suas chances de ter
descendentes são bem menores se ela resolver permanecer assexuada depois da Matrícula. De
acordo com a nossa história, só numa emergência um grande número dessas fêmeas será
convocado a octoaranhas jovens. Em geral, a capacidade reduzida e a infertilidade desse tipo
de prole as tornam menos desejáveis do ponto de vista da colônia como um todo, a não ser
que sejam necessárias mais octoaranhas para apoiar a infra-estrutura social. Algumas dessas
octoaranhas também consideram inaceitáveis o regime e o organização da nossa vida na
Cidade de Esmeralda, e desejam uma existência onde elas possam tomar suas próprias
decisões. Outras temem que os otimizadores as coloquem em uma carreira inadequada. Todas
as que escolhem uma sexualidade precoce vêem o Domínio Alternativo como um lugar livre e
emocionante, cheio de encanto e aventura. Elas não levam em conta aquilo a que estão
renunciando... e, na sua exuberância momentânea, a qualidade da sua vida é mais importante
que a sua duração...

Durante toda essa longa conversa, Richard, Nicole e Ellie fizeram poucas interrupções para
pedir esclarecimentos sobre os pontos mais significativos. E puderam confirmar, a cada vez,
que tinham traduzido adequadamente o que as octoaranhas haviam explicado. A medida que a
noite avançava, os três humanos foram se sentindo oprimidos. Havia informações demais para
serem assimiladas em uma única exposição.
— Esperem um instante — disse Richard abruptamente, quando Archie indicou que estava na
hora de partirem. — Desculpe... mas há uma coisa fundamental sobre isso que ainda não
entendi. Por que essa escolha é permitida? Por que os otimizadores não decretam
simplesmente que todas as octoaranhas comerão sempre o barrican e permanecerão
assexuadas até que a colônia precise que elas se reproduzam?
— Esta é uma boa pergunta — falou Archie — que tem uma resposta complexa. Vou tentar
simplificar, em função do tempo, dizendo que a nossa espécie acredita na livre escolha. Além
disso, como vocês viram hoje à noite, há algumas funções para as quais só as alternativas são
adequadas, e das quais a colônia toda se beneficia.

Depois de deixar a zona deles, o transporte seguiu um itinerário diferente daquele que tomara
para levar os humanos ao estádio no Dia da Fartura. Desta vez, passou por ruas de luz
mortiça, na periferia da cidade, sem aqueles cenários coloridos que os humanos haviam visto
na excursão anterior. Depois de vários fengs, o transporte aproximou-se de um grande portão
fechado, muito semelhante àquele pelo qual eles haviam entrado da primeira vez na Cidade de
Esmeralda.
Duas octoaranhas vieram inspecionar o carro. Archie lhes disse alguma coisa em cores, e uma
delas voltou para uma espécie de casa da guarda. A distância, Richard viu cores refletindo-se
em uma parede plana.

— Ela está checando com as autoridades — disse o dr. Azul aos humanos.

— Estamos fora do nosso horário de chegada, por isso nosso código não está mais válido.
Enquanto esperavam mais uns nillets, a outra octoaranha entrou no transporte e inspecionou-o
detalhadamente. Nenhum dos humanos jamais tinha visto tantas precauções de segurança na
Cidade de Esmeralda, e nem mesmo no estádio. O mal-estar de Ellie aumentou quando o
agente de segurança octoaranha, sem dizer nada, abriu sua bolsa para ver o que havia dentro.
Depois o inspetor devolveu a bolsa a Ellie e desembarcou. Os portões se abriram, o
transporte saiu da cúpula verde e estacionou no escuro menos de um minuto depois.
No estacionamento, o transporte ficou no meio de outros trinta a quarenta veículos.
— Esta área — explicou o dr. Azul quando eles desceram do carro e apareceram dois vaga-
lumes — é chamada Distrito das Artes. O Distrito e o Zoológico, que não fica longe daqui,
são as únicas partes do Domínio Alternativo visitadas com regularidade pelas octoaranhas
que vivem na Cidade de Esmeralda. Os otimizadores não aprovam muitas solicitações de
visitas às áreas de moradia alternativas que ficam mais ao sul; aliás, a única vista completa do
Domínio Alternativo que a maioria das octoaranhas faz é durante um passeio na última semana
da Matrícula.
O ar estava muito mais frio do que na Cidade de Esmeralda. Archie e o dr. Azul começaram a
andar mais depressa do que os humanos jamais haviam visto uma octoaranha andar.
— Temos de nos apressar — disse Archie virando-se para o grupo —, senão será tarde
demais. — Os humanos tiveram de correr para seguir os dois.
Quando se aproximaram de uma área iluminada a uns trezentos metros do seu transporte,
Archie e o dr. Azul foram para as duas extremidades da linha dos humanos, de modo que os
cinco ficaram lado a lado.
— Estamos entrando na praça dos Artesãos — disse o dr. Azul —, onde os alternativos
oferecem seus trabalhos artísticos para transferência.
— O que é "transferência"? — perguntou Nicole.
— Os artistas precisam de créditos para comida e outras coisas essenciais. Eles oferecem
seus trabalhos a um residente da Cidade de Esmeralda que tenha crédito sobrando —
respondeu o dr. Azul.
Por mais que Nicole quisesse seguir a conversa, ela foi atraída pela quantidade de objetos
inusitados, de octoaranhas e outros animais vistos na praça dos Artesãos. Era uma praça
grande, de setenta a oitenta metros quadrados, que atravessava a larga avenida do teatro para
onde eles se dirigiam. Archie e o dr. Azul, nas pontas da fila, estenderam um tentáculo nas
costas dos humanos para que os cinco se movessem como um só naquela praça barulhenta.

O grupo foi abordado por várias octoaranhas com objetos para serem transferidos. Richard,
Nicole e Ellie compreenderam logo o que Archie lhes dissera durante a longa reunião, ou seja,
que os alternativos não obedeciam às normas da língua oficial usada pelas octoaranhas na
Cidade de Esmeralda. Não se viam faixas definidas de cores em volta da cabeça daquelas
octoaranhas, apenas seqüências desmaiadas de manchas de cor de alturas variáveis. Um dos
vendedores ambulantes que os abordou era pequeno, obviamente um jovem, e, depois de ter
sido mandado embora por Archie, deu um susto em Ellie, ao enrolar um tentáculo em volta do
braço dela numa fração de segundo. Archie pegou o agressor com três dos seus tentáculos e
jogou-o para fora do caminho, na direção de uma das octoaranhas com uma sacola de pano ao
ombro. O dr. Azul explicou que aquela sacola indicava que a octoaranha era um policial.

Nicole andava tão depressa e havia tanta coisa para ver que de repente notou que estava
prendendo a respiração. Embora não soubesse para que serviam muitos dos objetos
oferecidos para transferência na praça, ela reconheceu e apreciou várias pinturas e esculturas,
e algumas miniaturas em madeira ou outro material semelhante de todos os diferentes animais
que viviam na Cidade de Esmeralda. Em uma seção da praça havia exposições de desenhos
coloridos impressos sobre pergaminho. O dr. Azul explicou mais tarde, quando estavam
dentro do teatro, que aquela forma artística particular representada pelos desenhos era uma
combinação de poesia e caligrafia, conforme o termo dos humanos.
Pouco antes de atravessar a rua, Nicole tinha visto em uma parede a vinte metros de distância
um grande mural de rara beleza. As cores eram fortes e atraentes, e a composição era obra de
um artista que entendia tanto de estrutura quanto de apelo óptico. A técnica também era
impressionante, mas o que mais fascinou Nicole foi a emoção retratada nos corpos e rostos
das octoaranhas e outras criaturas do mural.
O Triunfo da Otimização — disse Nicole para si mesma, quando esticou o pescoço para ler o
título em cores na parte superior do mural. Na pintura havia de um lado uma nave espacial
com uma estrela no fundo, de outro um oceano cheio de seres vivos, e nos cantos opostos uma
selva e um deserto. Mas a imagem central era de uma octoaranha gigante, carregando um
bastão, de pé no alto de uma pilha de trinta a quarenta animais disparatados, que rolavam na
terra debaixo dos seus tentáculos. O coração de Nicole começou a bater forte quando ela viu
que um daqueles seres era uma jovem humana, morena, com olhos azuis e cabelos curtos e
crespos.
— Olhem! — gritou ela para os outros. — Lá, naquele mural.
Naquele instante algum tipo de animal pequeno começou a importunar os humanos, andando
em volta dos seus pés, e conseguiu atrair a atenção de todos. As duas octoaranhas enxotaram o
animal e puxaram a fila para o teatro. Quando Nicole atravessou a rua, olhou para o mural de
novo a fim de se certificar de que não havia imaginado aquela moça no meio da pintura.
Daquela distância, o rosto e as feições da mulher eram imprecisos, mas Nicole estava
convencida de ter visto um ser humano na obra de arte. Mas como é possível?, perguntou a si
mesma, quando entraram no teatro.

Preocupada com sua descoberta, Nicole ouviu só metade do que Richard falava com Archie
sobre sua intenção de usar o tradutor durante a peça. Ela nem sequer olhou quando, depois de
eles terem arranjado um lugar na quinta fila, o dr. Azul apontou com um dos seus tentáculos
para o setor da direita, onde estavam Jamie e outras octoaranhas da Matrícula. Nicole foi
tomada de um forte impulso de voltar à praça e verificar o que vira. Mas então lembrou-se que
Archie dissera como era importante seguir as instruções com cuidado naquela noite. Eu sei
que vi uma mulher naquela pintura, disse Nicole para si mesma, quando três grandes vaga-
lumes desceram e ficaram sobrevoando o palco no centro do teatro. Mas se eu vi, o que isso
quer dizer?

A peça não tinha intervalos, e levou pouco mais de dois wodens. A ação era contínua, com um
ou mais atores octoaranhas ocupando o palco iluminado o tempo todo. Não havia cenários,
nem vestuários. No início da peça, os sete personagens principais deram um passo à frente e
se apresentaram: duas octoaranhas da Matrícula, uma de cada sexo, um par de pais adotivos
para cada um e um macho alternativo cujas cores brilhantes e bonitas espalhavam-se até a
ponta dos seus tentáculos quando ele falava.
Nos primeiros minutos da peça foi mostrado que os dois jovens da Matrícula tinham sido
amigos íntimos durante anos e que, apesar dos bons conselhos de seus pais adotivos, tinham
decidido que teriam uma maturidade precoce juntos. "Meu desejo", dizia a jovem octoaranha
fêmea no seu primeiro monólogo, "é ter um bebê de uma união com meu querido
companheiro." Ou pelo menos foi o que Richard traduziu. Ele estava contente com o
desempenho do seu tradutor aprimorado, e, quando se lembrou de que as octoaranhas eram
surdas, falou intermitentemente ao longo da performance.
Os quatro pais octoaranhas vieram juntos ao centro do palco e expressaram sua ansiedade
sobre o que aconteceria quando as "poderosas novas emoções" que acompanhavam a
transformação sexual fossem enfrentadas por seus filhos adotivos. Porém, eles tentaram ser
justos, e os quatro adultos admitiram que sua própria escolha de não se tornarem sexualmente
maduros depois da Matrícula significava que não podiam dar conselhos baseados numa
experiência verdadeira.
No meio da peça, as duas octoaranhas jovens ficaram isoladas em cantos opostos do palco, e
o público concluiu, diante do espetáculo pirotécnico dos vagalumes e de algumas breves
declarações dos atores, que os jovens haviam parado de comer o barrican e estavam sozinhos
em um tipo de Domínio de Transição.
Quando as duas octoaranhas transformadas andaram pelo palco e se encontraram no centro, os
padrões coloridos de sua conversa estavam alterados. Era um efeito forte, porém obtido pelos
próprios atores: não só as cores individuais eram mais brilhantes do que antes da transição
como também as faixas rígidas e quase perfeitas que caracterizavam as primeiras conversas
entre os dois jovens já estavam marcadas com desenhos individuais diferentes e interessantes.
Em volta deles no palco havia meia dúzia de outras octoaranhas, todas alternativas, a julgar
pela sua linguagem, e uns dois animais-salsicha caçando qualquer coisa que pudessem
encontrar. O casal estava agora nitidamente no Domínio Alternativo.
Da escuridão das coxias entrou no palco o macho alternativo apresentado no início da peça.
Com uma exibição brilhante de desenhos coloridos horizontais e verticais movendo-se em
duas direções e criando um movimento ondulado, e depois com padrões geométricos e
explosões de fogos de artifício que começavam em torno de sua cabeça, o recém-chegado
magnetizou a jovem octoaranha fêmea e tirou-a do seu melhor amigo de infância. Uns nillets
depois, o alternativo mais velho, com suas cores fantásticas, obviamente pai do bebê
octoaranha carregado pela fêmea, deixou-a "chorando" (tradução de Richard para a sentada no
canto do palco e emitindo vários pulsos desestruturados de cores misturadas) sozinha.

Àquela altura da peça, a octoaranha macho que tinha se matriculado nas cenas anteriores
surgiu na luz, viu seu amor em desespero com o bebê e pulou para a escuridão que rodeava o
palco. Um instante depois, voltou com o alternativo que havia corrompido sua namorada, e as
duas octoaranhas macho engajaram-se numa briga terrível mas fascinante no meio do palco.
Com as cabeças rodeadas de raios coloridos, eles se bateram, se contorceram e lutaram
durante um feng. O macho mais moço acabou ganhando a luta, pois o alternativo ficou imóvel
no palco quando a ação terminou. A tristeza expressa nas observações finais do herói e da
heroína garantiu que a moral da peça ficasse bem clara. Quando a peça terminou, Richard
olhou para Nicole e Ellie e comentou, com um riso irreverente:

— Essa é uma das peças negras, como Othelo, em que todos morrem no final.
Sob a supervisão dos policiais octoaranhas, todos com sacolas, os jovens da Matrícula saíram
do teatro primeiro, seguidos por Archie, pelo dr. Azul e seus amigos humanos. O cortejo
organizado parou do lado de fora, formando um anel em volta de três outras octoaranhas que
estavam no meio da avenida. Richard, Nicole e Ellie sentiram os fortes tentáculos dos amigos
nas suas costas quando se colocaram em posição de ver o que estava ocorrendo. Duas das
octoaranhas no centro da rua seguravam bastões e usavam sacolas, e a terceira, agachada entre
elas, transmitia a mensagem em cores, em largas faixas desestruturadas: "Por favor me
ajudem."
— Esta octoaranha — disse um dos policiais — não conseguiu ganhar seus créditos desde que
veio para o Domínio Alternativo, depois da Matrícula, quatro ciclos atrás. No último ciclo ela
foi avisada de que se tornara um peso morto nos nossos recursos comuns, e recentemente, dois
dias antes do Dia da Fartura, disseram-lhe que se apresentasse para ser exterminada. Desde
esse dia, ela vem se escondendo entre os amigos no Domínio Alternativo...
De repente, a octoaranha agachada ergueu-se e pulou para o meio dos observadores, perto de
onde estavam os humanos. A multidão afastou-se para trás e Ellie, que estava mais próxima do
ponto por onde a octoaranha tentara escapar, foi jogada ao chão na confusão que se seguiu. Em
menos de um nillet, a polícia, com a ajuda de Archie e de vários jovens da Matrícula,
dominou mais uma vez a fugitiva.
— Deixar de se apresentar para uma exterminação programada é um dos maiores crimes que
uma octoaranha pode cometer — disse o policial. — A punição é a exterminação imediata
depois da prisão. — Um dos policiais tirou da sacola várias criaturas semelhantes a vermes.
A octoaranha fugitiva reagiu violentamente na primeira vez em que os policiais tentaram
forçá-la a engolir os vermes. Mas depois que cada policial bateu na fugitiva duas vezes com o
bastão, a condenada caiu entre eles. Ellie, que já estava de pé àquela altura, não pôde deixar
de dar um grito de terror quando as criaturas entraram na boca da octo e ela começou a
vomitar. Sua morte foi instantânea.
Nenhum dos humanos deu uma palavra enquanto andavam de braços dados com Archie e o dr.
Azul pela praça, na direção do seu transporte estacionado. Nicole estava tão pasma com o que
presenciara que nem se lembrou da pintura em que havia visto um rosto humano.

No meio da noite, Nicole, que não conseguira dormir, ouviu um barulho na sala de estar.
Levantou-se da cama bem quieta e vestiu seu robe. Ellie estava sentada no sofá no escuro.
Nicole sentou-se ao lado da filha e pegou a sua mão.

— Eu não consegui dormir, mamãe. Fiquei com tudo aquilo na cabeça e nada faz o menor
sentido... Estou me sentindo como se tivesse sido traída.
— Eu sei, Ellie. Estou sentindo a mesma coisa.
— Eu achei que conhecia as octoaranhas — disse Ellie. — Eu confiava nelas... Pensei que
elas eram superiores a nós sob muitos aspectos, mas depois do que vi hoje à noite...
— Nenhum de nós se sente bem vendo alguém matar — disse Nicole. — Até Richard ficou
horrorizado no começo... Mas depois que fomos para a cama ele me disse ter certeza de que
aquela cena na rua foi cuidadosamente ensaiada para impressionar os jovens da Matrícula... E
disse também que nós não devíamos tirar muitas conclusões precipitadas, nem nos deixar
levar emocionalmente por um incidente isolado...
— Eu nunca tinha visto um ser inteligente assassinado diante dos meus olhos... E qual foi o
crime dela? Deixou de se apresentar para ser exterminada?
— Não podemos julgá-las como julgaríamos seres humanos. As octoaranhas são uma espécie
inteiramente diferente, com uma organização social completamente separada, que talvez seja
ainda mais complexa do que a nossa. Estamos apenas começando a entender as octoaranhas...
Você já se esqueceu de que elas curaram Eponine do RV-41 ? E nos deixaram usar sua
tecnologia quando estávamos aflitos com o nascimento de Marius?
— Não, não me esqueci — replicou Ellie, ficando em silêncio por algum tempo. — Sabe,
mãe, estou me sentindo tão frustrada quanto me sentia muitas vezes no Novo Éden, quando
ficava imaginando como os seres humanos, que são capazes de tanta coisa boa, podiam tolerar
um tirano como Nakamura... Agora me parece que as octoaranhas, a seu próprio modo, podem
ser tão más quanto Nakamura... Há muita incongruência por todo lado...
Nicole consolou sua filha com um abraço. Não há respostas fáceis, minha querida Ellie,
pensou Nicole. Na sua imaginação, ela viu uma montagem iluminada das incríveis atividades
da noite, inclusive uma ligeira aparição do que ela acreditava ser um rosto humano no mural
das octoaranhas. E o que era aquilo, minha velha senhora?, perguntou Nicole a si mesma.
Aquele rosto estava mesmo ali ou sua cabeça cansada e imaginativa criou essa imagem
para confundi-la?

8
Max terminou de fazer a barba e tirou o resto do creme de barbear do rosto. Logo destampou a
pia de pedra e a água escoou. Depois de secar o rosto com uma pequena toalha, Max virou-se
para Eponine, que estava sentada atrás dele, amamentando Marius.
— Tudo bem, francesinha — falou, dando uma gargalhada. — Tenho de admitir que estou
muito nervoso. É meu primeiro encontro com um Chefe Otimizador. — Deu um passo até
Eponine e continuou: — Uma vez, quando eu estava em Little Rock numa convenção de
fazendeiros, puseram-me ao lado do governador do Arkansas durante um banquete... E eu
fiquei um pouco nervoso também.
Eponine sorriu.
— Acho difícil imaginar você nervoso.
Max ficou em silêncio um instante, admirando sua mulher e seu bebê, que enquanto mamava
fazia um barulhinho suave.
— Você gosta bem de amamentar, não é? Eponine concordou.
— É um prazer diferente de tudo o que eu já senti antes. A sensação de... não sei que palavra
definiria isso exatamente, talvez uma comunhão... é indescritível.
Max sacudiu a cabeça.
— A nossa existência é incrível, não é? Na noite passada, quando eu estava mudando a fralda
de Marius, pensei como provavelmente somos semelhantes a milhões de outros casais
humanos, babando com nosso primeiro filho... mas do lado de lá daquela porta existe uma
cidade alienígena governada por uma espécie... — Max não terminou seu pensamento.
— Ellie anda diferente desde a semana passada — comentou Eponine. — Ela perdeu a
vivacidade, e só fica falando em Robert...
— Ela ficou horrorizada com a execução — comentou Max. — Tenho para mim que as
mulheres são mais sensíveis à violência. Eu me lembro que logo depois que Clyde e Winona
se casaram, quando ela foi para a fazenda e viu pela primeira vez matarem dois porcos, seu
rosto ficou branco como papel... Ela não disse nada, mas nunca mais quis ver aquele tipo de
cena.
— Ellie não quer falar sobre aquela noite — falou Eponine, trocando Marius de peito. — E
isso não é típico dela.
— Richard fez umas perguntas ontem a Archie sobre o incidente, quando foi pedir as peças
para fazer tradutores para nós todos... Segundo Richard, a maldita octoaranha foi muito
evasiva e não deu nenhuma resposta direta. Archie nem ao menos confirmou o que o dr. Azul
disse a Nicole sobre sua política básica de extermínio.
— Isso é muito assustador, não é? — falou Eponine, fazendo uma careta. — Nicole disse que
fez o dr. Azul repetir sua explicação várias vezes, e tentou várias versões na nossa língua na
presença dele para ter certeza de que havia entendido tudo direitinho.
— É uma política muito simples — falou Max com um riso forçado —, até mesmo para um
fazendeiro. Toda octoaranha adulta cuja contribuição para a colônia durante um período
definido não equivaler em valor aos recursos investidos para o seu sustento será colocada na
lista de extermínio. Se a contagem negativa não for corrigida durante um certo tempo previsto,
essa octoaranha será exterminada.
— Segundo o dr. Azul — disse Eponine depois de um curto silêncio — são os otimizadores
quem interpretam as políticas. São eles quem decidem o valor de tudo...
— Eu sei — disse Max, fazendo carinho nas costas do bebê —, e acho que é por isso que
Nicole e Richard estavam tão angustiados hoje. Ninguém disse nada explicitamente, mas
estamos usando muitos recursos há muito tempo; e é difícil ver que droga de contribuição nós
demos...
— Você está pronto, Max? — perguntou Nicole enfiando a cabeça pela porta. — Todos estão
lá fora na fonte.
Max abaixou-se e beijou Eponine.
— Você e Patrick vão conseguir cuidar de Benjy e das crianças? — perguntou.
— É claro. Benjy não é problema, e Patrick tem passado muito tempo com as crianças; já
virou um especialista no assunto.
— Eu te amo, francesinha — disse Max, dando um adeus.

Havia cinco cadeiras para eles na área de operação do Chefe Otimizador. Mesmo quando
Nicole explicou a palavra "escritório" para Archie e o dr. Azul pela segunda vez, seus colegas
octoaranhas insistiram que a expressão "área de operação" era uma tradução melhor para o
lugar onde o Chefe Otimizador trabalhava.
— O Chefe Otimizador às vezes se atrasa um pouco — disse Archie desculpando-se. —
Acontecimentos inesperados na colônia podem forçá-lo a desviar-se do seu planejamento.
— Deve estar realmente acontecendo alguma coisa inusitada — disse Richard para Max. — A
pontualidade é uma das características da espécie das octoaranhas.
Os cinco humanos esperaram ali em silêncio, cada qual envolto nos seus próprios
pensamentos. O coração de Nai batia descompassado. Ela estava ao mesmo tempo apreensiva
e excitada. Lembrava-se de ter tido um sentimento semelhante quando estava no colégio
esperando por uma audiência com a filha do rei da Tailândia, a princesa Suri, por ter ganho o
primeiro prêmio num concurso acadêmico de âmbito nacional.
Um instante depois uma octoaranha mandou-os entrar na sala seguinte, onde eles foram
informados que o Chefe Otimizador e alguns conselheiros iriam vê-los em um instante. A sala
tinha janelas transparentes, e eles podiam ver toda a atividade à sua volta. O lugar onde
estavam sentados lembrava a Richard uma área de controle de uma usina de energia nuclear,
ou talvez de um vôo espacial pilotado. Os computadores das octoaranhas e os monitores
visuais espalhavamse por todo lado, e também os técnicos. Richard fez uma pergunta sobre
alguma coisa que acontecia numa área distante, mas, antes que Archie pudesse responder, três
octoaranhas entraram na sala.
Os cinco humanos levantaram-se instintivamente. Archie apresentou o Chefe Otimizador, o
assistente do Chefe Otimizador na Cidade de Esmeralda e o Chefe Otimizador de Segurança.
As três octoaranhas estenderam um tentáculo para os humanos e apertaram-se as mãos. Archie
fez sinal para os humanos se sentarem, e o Chefe Otimizador começou a falar imediatamente.
— Estamos cientes de que vocês solicitaram, através do nosso representante, voltar para o
Novo Éden a fim de se reunirem aos outros membros da sua espécie em Rama. Essa
solicitação não nos surpreendeu por completo, pois nossos dados históricos mostram que
espécies mais inteligentes com emoções fortes, depois de viverem um período em uma
comunidade alienígena, desenvolvem um senso de alheamento e ficam ansiosos por voltar a
um mundo mais familiar... O que nós gostaríamos de fazer nesta manhã seria lhes fornecer
mais informações que pudessem influenciar sua solicitação de voltar para o Novo Éden.
Archie pediu que os humanos seguissem o Chefe Otimizador. Eles passaram por uma sala
semelhante às outras duas onde tinham esperado e entraram numa área retangular com dezenas
de telas de parede espalhadas em volta, no nível dos olhos das octoaranhas.
— Temos observado de perto os desenvolvimentos do seu habitat — disse o Chefe Otimizador
quando estavam todos juntos — desde antes de vocês fugirem. Hoje queremos que vocês
saibam de alguns acontecimentos observados por nós recentemente.
Um instante depois, todas as telas de parede foram ligadas, e os humanos viram segmentos de
filmes da vida diária dos remanescentes do Novo Éden. A qualidade dos vídeos não era
perfeita, e nenhum segmento durava mais que um nillet, mas não havia dúvida do que lhes
estava sendo apresentado nas telas.
Durante vários segundos, os humanos ficaram sem saber o que dizer. Estavam pasmos,
grudados às imagens na parede. Em uma das telas apareceu Nakamura vestido como um
shogun japonês, fazendo um discurso para uma grande multidão na praça da Cidade Central.
Segurava uma imagem grande, pintada à mão, de uma octoaranha. Embora os vídeos não
tivessem som, parecia, pelos gestos e pela imagem, que Nakamura estava exortando todos a
agirem contra as octoaranhas.
— Macacos me mordam — falava Max, passando os olhos de uma tela para outra.
— Olhe lá — disse Nicole. — É El Mercado, em San Miguel.
No mais pobre dos quatro vilarejos do Novo Éden, uma dezena de brancos e amarelos, com
fitas de karatê na cabeça batia em quatro jovens negros e mulatos diante de dois policiais do
Novo Éden e de uma multidão consternada de umas vinte pessoas. Os biotas Tiasso e Lincoln
pegaram os corpos quebrados e ensangüentados de tanta pancadaria e colocaram-nos em um
grande triciclo de carga.
Em outra tela, um segmento mostrava uma multidão bem-vestida, a maioria de brancos e
orientais, chegando para uma festa ou um festival na Vegas de Nakamura. Luzes brilhantes
iluminavam o cassino, por cima do qual um imenso cartaz proclamava o Dia de Apreciação do
Cidadão e anunciava que todos iriam receber de graça uma dúzia de bilhetes de loteria para
celebrar a ocasião. Dois grandes posters de Nakamura, sorrindo e usando camisa branca e
gravata, ladeavam o cartaz.
Um monitor na parede por trás do Chefe Otimizador mostrava o interior da prisão da Cidade
Central. Uma nova detenta, de cabelo multicor, estava sendo levada para uma cela onde já
havia duas outras presas. A recém-chegada parecia estar se queixando da falta de espaço, mas
os policiais empurraram-na para a cela e riram. Quando o policial voltou para sua mesa, o
vídeo mostrou duas fotografias na parede por trás dele, uma de Richard e outra de Nicole,
embaixo das quais via-se a palavra PROCURASE escrita em letras de forma bem grandes.
As octoaranhas esperaram que os olhos dos humanos passassem de tela para tela.
— Como é que pode? — disse Richard, sacudindo a cabeça. De repente as telas ficaram
brancas.
— Juntamos um total de quarenta e oito segmentos para mostrar a vocês hoje — disse o Chefe
Otimizador —, todos tirados de observações feitas nos últimos oito dias no Novo Éden. O
otimizador que vocês chamam de Archie vai catalogar esses segmentos, que foram
classificados de acordo com o local, o tempo e a descrição do evento. Vocês podem passar o
tempo que quiserem aqui, olhando esses segmentos, conversando e fazendo perguntas às duas
octoaranhas que os trouxeram para cá. Eu, infelizmente, tenho outros assuntos para tratar... Se
no final dessa pesquisa vocês quiserem comunicar-se de novo comigo, estarei à sua
disposição.
O Chefe Otimizador foi embora, seguido de seus dois assistentes. Nicole sentou-se em uma
das cadeiras, muito pálida e enfraquecida, e Ellie foi ter com ela.
— Você está bem, mamãe?
— Creio que sim — respondeu Nicole. — Logo depois que eles começaram a passar os
vídeos, senti uma forte dor no peito, provavelmente pela surpresa e a excitação, mas agora
melhorou.
— Quer ir para casa descansar? — perguntou Richard.
— Você está brincando? — disse Nicole com seu sorriso característico. — Eu não perderia
por nada esse espetáculo, mesmo que no meio houvesse a possibilidade de cair dura aqui.

Eles assistiram aos filmes mudos durante quase três horas, e puderam constatar claramente que
não havia mais liberdade individual no Novo Éden e que a maioria dos colonos lutava para
manter até mesmo uma vida modesta. Nakamura havia consolidado sua força na colônia e
acabara com toda a oposição. Mas a colônia que ele governava era quase toda habitada por
cidadãos entristecidos e infelizes.
Os humanos começaram observando o mesmo segmento juntos, mas, depois de uns três ou
quatro serem rodados, Richard disse que eles não estavam sendo eficientes olhando um
segmento de cada vez.
— Até parece um otimizador falando — disse Max, apesar de concordar com Richard.
Num segmento, Katie apareceu rapidamente. Era uma cena de Vegas à noite. As prostitutas de
rua estavam em atividade do lado de fora de um dos clubes. Katie aproximou-se de uma delas,
teve uma ligeira conversa sobre um assunto qualquer e depois desapareceu de vista. Richard e
Nicole comentaram entre si que Katie estava muito magra, quase esquálida, e pediram que
Archie passasse aquele segmento várias vezes.

Outra seqüência era inteiramente dedicada ao hospital da Cidade Central. Não foram
necessárias palavras para os humanos compreenderem que havia escassez de medicamentos
críticos e de funcionários, e que os equipamentos estavam em estado deplorável. Uma cena
especialmente comovente mostrava uma mocinha do Mediterrâneo, possivelmente grega,
morrendo depois de um parto doloroso. A sala de parto estava iluminada com velas, e o
equipamento de monitoração que poderia ter identificado suas dificuldades e salvado sua vida
estava inexplicavelmente desligado ao lado da cama.

Robert Turner era visto por todo lado nas cenas do hospital. A primeira vez em que Ellie o viu
andando pelos corredores, não conseguiu conter as lágrimas. Soluçou durante todo o segmento
e depois pediu que o passassem de novo. Só quando assistiu ao filme pela terceira vez é que
fez seu primeiro comentário.
— Ele está desfigurado, e parece estar trabalhando demais. Robert nunca soube tomar conta
de si próprio.
Quando todos estavam emocionalmente exaustos e ninguém pediu que fosse passado mais um
segmento, Archie perguntou se eles queriam conversar com o Chefe Otimizador de novo.
— Agora não — respondeu Nicole, em nome dos demais. — Ainda não tivemos tempo de
digerir o que acabamos de ver.
Nai perguntou se poderiam levar alguns filmes para casa na Cidade de Esmeralda.
— Eu gostaria de vê-los de novo com mais calma — disse. — E seria ótimo se pudéssemos
mostrá-los a Eponine e Patrick.
Archie disse que sentia muito, mas os segmentos só podiam ser vistos em um dos centros de
comunicação das octoaranhas.
Na viagem de volta para a zona dos humanos, Richard foi conversando com Archie e
mostrando-lhe como o seu tradutor estava funcionando bem. Os testes finais tinham terminado
no dia anterior. O tradutor podia traduzir tanto o dialeto natural das octoaranhas como a língua
criada especificamente para o espectro visual dos humanos. Archie declarou-se
impressionado.
— Aliás — disse Richard, em tom mais alto, para que seus compatriotas pudessem ouvi-lo
—, será que haveria possibilidade de você nos contar como conseguiram todos esses
segmentos de vídeo do Novo Éden?
Archie não hesitou em responder.
— Quadróides de imagem voadores. Uma espécie mais avançada, e muito menor.
Nicole traduziu para Max e Nai.
— Que merda — disse Max entre dentes. Ele se levantou e foi para o lado oposto do carro de
transporte, sacudindo a cabeça vigorosamente. — Nunca vi Max tão solene e tão tenso —
disse Richard para Nicole.
— Nem eu. — Os dois estavam fazendo uma caminhada de uma hora depois do jantar com a
família e os amigos. Um vaga-lume solitário mantinha-se voando acima de Richard e Nicole,
enquanto eles iam e vinham do final do beco sem saída até a praça do outro lado da rua.
— Você acha que Max não vai mais querer ir embora? — perguntou Richard, quando os dois
contornavam a fonte mais uma vez.
— Não sei. Acho que ele está em estado de choque... Max detesta pensar que as octoaranhas
podem observar tudo o que fazemos. É por isso que ele quer tanto voltar com a família para o
Novo Éden, mesmo que nós todos fiquemos aqui.
— Você teve oportunidade de conversar com Eponine sobre isso?
— Anteontem ela trouxe o Marius aqui depois da sesta da tarde. Enquanto eu estava pondo um
remédio na assadura do bebê, ela me perguntou se eu disse a Archie que eles queriam ir
embora... Parecia um pouco assustada.
Os dois foram até a praça. Sem parar, Richard pegou um paninho e limpou o suor da testa.
— Tudo mudou — disse ele, mais para si mesmo do que para Nicole.
— Tenho certeza de que tudo isso faz parte do plano das octoaranhas — replicou Nicole. —
Elas não nos mostraram esses vídeos só para comprovar que nada vai bem no Novo Éden.
Elas sabiam como nós iríamos reagir depois que avaliássemos o real significado do que
havíamos visto.
O casal foi caminhando em silêncio na direção da sua casa temporária. Na próxima volta em
torno da fonte, Richard disse:
— Se elas observam tudo o que fazemos, estarão ouvindo nossa conversa?
— É claro — replicou Nicole. — Esta foi a primeira mensagem que as octoaranhas nos
transmitiram ao nos deixar ver esses vídeos... Nós não podemos ter segredos. Fugir está fora
de questão. Estamos completamente no poder delas... Talvez eu seja a única, mas ainda não
acredito que elas pretendam nos prejudicar... E há também a possibilidade de permitirem que
a gente volte para o Novo Éden... quem sabe...
— Isso nunca vai acontecer — disse Richard. — Senão elas teriam gasto muitos recursos sem
nenhum retorno mensurável, uma situação decididamente não aceitável... Não, estou certo de
que as octoaranhas ainda estão tentando programar nossa própria inserção no seu sistema.
Richard e Nicole andavam a toda velocidade na parte final da caminhada. Passaram pela fonte
e tomaram um pouco de água.
— Como está se sentindo? — perguntou Richard.
— Muito bem — disse Nicole. — Sem dor, sem falta de ar. Quando o dr. Azul me examinou
ontem, não encontrou nenhuma patologia nova. Meu coração está velho e fraco... e é natural
que eu venha a ter problemas esporádicos.
— Eu gostaria de saber que nicho iremos ocupar no mundo das octoaranhas — disse Richard
um instante depois, quando os dois lavavam o rosto.
Nicole olhou para o marido.
— Não foi você — disse ela — que riu de mim uns meses atrás por fazer suposições sobre os
motivos delas?... Como pode estar tão certo de que sabe o que as octos pretendem fazer?
— Não estou tão certo — disse Richard, com um sorriso sarcástico. — Mas é natural achar
que uma espécie superior seja pelo menos lógica.

Richard acordou Nicole no meio da noite.

— Desculpe incomodá-la, querida, mas tenho um problema.

— O que foi? — perguntou Nicole, sentando-se na cama.


— É complicado. Foi por isso que não falei nada antes... Tudo começou depois do Dia da
Fartura... Eu achei que iria passar, mas na semana passada a dor tornou-se insuportável...
— Ora, Richard — falou Nicole um pouco irritada por ter sido importunada no meio do sono
—, diga logo de que dor você está falando...
— Toda vez que eu urino tenho uma sensação de queimadura... Nicole tentou controlar um
bocejo enquanto pensava.
— E você está urinando com mais freqüência?
— Estou... como é que você sabia?
— Aquiles deve ter sido segurado pela próstata quando foi enfiado no rio Styx — disse ela.
— A próstata é certamente a estrutura mais frágil da anatomia masculina... Deite de barriga
para baixo para eu poder examinar você.
— Agora? — perguntou Richard.
— Se você me acordou no meio do meu sono porque estava sentindo dor — disse Nicole
rindo —, o mínimo que pode fazer é cerrar os dentes enquanto eu tento comprovar meu
diagnóstico.

O dr. Azul e Nicole estavam sentados na casa da octoaranha. Em uma das paredes haviam sido
projetadas quatro composições quadróides.
— A imagem bem à esquerda — disse o dr. Azul — mostra o tumor visto naquela manhã, há
dez dias, quando você me pediu para confirmar o diagnóstico. A segunda composição é uma
figura muito ampliada de um par de células tiradas do tumor. As anomalias da célula, que
vocês chamam de câncer, estão marcadas com a tinta azul.
Nicole sorriu com tristeza.
— Estou tendo dificuldade em organizar meu pensamento — disse ela. — O senhor nunca usa
as cores para "doença" quando descreve o problema de Richard, usa sempre a palavra que na
sua língua eu defino como "anomalia".
— Para nós — respondeu o dr. Azul —, a doença é uma disfunção causada por um agente
externo, como uma bactéria ou um vírus hostil. Mas uma irregularidade na química celular que
leva à produção de células impróprias é um problema completamente diferente. Na nossa
medicina, os tratamentos são completamente diferentes para os dois casos. Esse câncer do seu
marido está mais ligado ao envelhecimento, de um modo geral, do que a uma doença, como
pneumonia ou gastroenterite.
O dr. Azul estendeu um tentáculo para a terceira figura.
— Essa imagem mostra o tumor há três dias, depois que a química especial levada por nossos
agentes microbiológicos foi espalhada no local da anomalia. O tumor começou a diminuir
porque a produção das células malignas parou. Na última imagem, tirada hoje de manhã, a
próstata de Richard parece normal de novo. A essa altura, todas as células cancerígenas
morreram, e outras não foram produzidas.

— Então ele vai ficar bom? — perguntou Nicole.

— Provavelmente — respondeu o dr. Azul. — Não podemos garantir porque ainda não temos
tantos dados como gostaríamos sobre o ciclo de vida das células dos humanos. Há algumas
características especiais das células de vocês (como sempre há nas espécies que passaram
por uma evolução distinta de quaisquer dos nossos seres anteriormente examinados) que
podem permitir um reaparecimento da anomalia. Porém, baseado na nossa experiência com
outras criaturas vivas, eu diria que o desenvolvimento de outro tumor na próstata é pouco
provável.
Nicole agradeceu ao colega octoaranha.
— Isso foi incrível — disse ela. — Que maravilha seria se o seu conhecimento médico
pudesse ser transportado de alguma forma para a Terra.
As imagens sumiram da parede.
— Isso criaria também muitos problemas sociais — disse o dr. Azul — se é que compreendi
bem nossas discussões sobre o seu planeta natal. Se os indivíduos da sua espécie não
morressem de doenças ou anomalias das células, a expectativa de vida aumentaria
acentuadamente... Nossa espécie passou por um problema semelhante depois da nossa Idade
de Ouro da Biologia, quando a duração de vida das octoaranhas dobrou em apenas duas
gerações... Só depois de ser fortemente implantada a Otimização como uma estrutura básica é
que uma forma de equilíbrio social foi alcançada. Temos muitas comprovações de que, sem
um extermínio eficaz e uma política de reposição, uma colônia de seres quase imortais chega
ao caos em um período relativamente curto.
O interesse de Nicole foi despertado.
— Entendo o que você está dizendo, pelo menos num plano intelectual — disse ela. — Como
os recursos são finitos, se todos vivessem para sempre, ou quase isso, a população em breve
acabaria com todos os alimentos e o espaço de vida. Mas devo admitir, especialmente sendo
uma pessoa de idade, que a idéia de uma política de exterminação me assusta.
— No início da nossa história — falou o dr. Azul —, nossa sociedade era estruturada de um
modo semelhante à sua, com quase todo o poder de decisão nas mãos dos membros mais
velhos da espécie. Foi mais fácil limitar a reposição, depois que a expectativa de vida
aumentou dramaticamente, do que lidar com o difícil assunto dos extermínios planejados.
Porém, depois de um período relativamente breve, a sociedade idosa começou a estagnar-se.
Como Archie ou qualquer bom otimizador diria, o coeficiente de ossificação das nossas
colônias tornou-se tão grande que finalmente todas as novas idéias foram rejeitadas. Essas
colônias geriátricas sucumbiram, basicamente porque não conseguiam lidar com as condições
de mudança do universo em torno delas.
— Então é aí que entra a Otimização?
— É — respondeu o dr. Azul. — Se todo indivíduo aceitar o preceito de que o bem-estar da
colônia como um todo deve ter o maior peso na principal função objetiva, torna-se claro que
os extermínios planejados são um elemento crítico da solução ideal. Archie poderia lhe
mostrar quantitativamente como é desastroso, do ponto de vista da colônia como um todo,
gastar quantidades imensas de recursos com aqueles cidadãos cuja contribuição integrada é
relativamente baixa. A colônia beneficia-se mais investindo nos membros que têm uma vida
longa e saudável pela frente, portanto, com grande probabilidade de pagar o investimento.
Nicole repetiu para o dr. Azul algumas das frases mais importantes que ele dissera, para ter
certeza de que entendera bem a idéia, e depois ficou calada por um nillet.
— Eu suponho — falou finalmente — que, embora o envelhecimento de vocês seja retardado
pelo adiamento da maturidade sexual e por sua fantástica capacidade médica, a uma certa
altura preservar a vida de uma octoaranha velha torna-se uma coisa extremamente cara, em
certo sentido.
— Exatamente — comentou o dr. Azul. — Nós podemos estender a vida de um indivíduo
quase para sempre. Mas há três fatores importantes que tornam a extensão extra de vida
contra-indicada para a colônia. Primeiro, como você mencionou, o esforço para estender a
vida aumenta muito de custo quando cada subsistema biológico, ou órgão, começa a operar de
forma menos eficiente. Segundo, à medida que o tempo do indivíduo se torna cada vez mais
consumido pelo simples processo de se manter vivo, a quantidade de energia que a octoaranha
teria para contribuir para o bem-estar da colônia diminui consideravelmente. Terceiro — e os
otimizadores sociais comprovaram esse ponto controvertido muitos anos atrás —, embora
muitos anos depois que a agilidade mental e a capacidade de aprendizado começam a
declinar, a sabedoria acumulada seja mais do que compense, em termos de valor para a
colônia, a diminuição do poder do cérebro, chega o momento na vida da octoaranha em que o
mero peso da sua experiência passada torna extremamente difícil qualquer aprendizado a
mais. Mesmo numa octoaranha saudável, essa fase de vida, chamada por nossos otimizadores
de Início da Flexibilidade Limitada, indica uma capacidade reduzida de contribuir para a
colônia.
— Então os otimizadores determinam quando chega o tempo do extermínio?
— Determinam — disse o dr. Azul —, mas eu não sei exatamente como. Primeiro há um
período de experiência no qual a octoaranha entra na lista de extermínio e ganha um tempo
para melhorar seu equilíbrio. Esse equilíbrio, se entendi a explicação de Archie, é calculado
comparando-se as contribuições daquela octoaranha específica com os recursos necessários
para o seu sustento. Se o equilíbrio não melhorar, seu extermínio é programado.
— E como reagem as selecionadas para o extermínio? — perguntou Nicole, tremendo sem
querer, ao lembrar-se da véspera da data marcada para a sua execução.
— De formas diferentes — respondeu o dr. Azul. — Algumas, especialmente as que não são
saudáveis, aceitam o fato de não serem capazes de atingir um equilíbrio satisfatório e
planejam sua morte de uma forma organizada. Outras pedem conselhos ao otimizador e
solicitam novas atribuições que possam permitir que elas atinjam suas quotas de
contribuição... Isso foi o que Hércules fez logo antes de vocês chegarem...
Nicole ficou um instante sem fala, e sentiu um arrepio na espinha.
— Você vai me contar o que aconteceu com Hércules? — perguntou ela, juntando coragem
afinal.
— Hércules foi repreendido por não ter protegido bem Nikki no Dia da Fartura — disse o dr.
Azul. — Ele recebeu uma nova atribuição, mas foi avisado pelo otimizador de extermínio que
não havia praticamente nenhuma forma de se recuperar da avaliação altamente negativa do seu
último trabalho... E Hércules então solicitou ser exterminado imediatamente.
Nicole ficou engasgada. Lembrou-se do amigo octoaranha no beco sem saída, jogando bola
para divertir as crianças. E agora Hércules está morto, pensou. Porque não se saiu bem no
trabalho. Isso é cruel e impiedoso.
Nicole levantou-se e agradeceu de novo ao dr. Azul. Tentou dizer para si própria que estava
radiante por Richard estar curado do câncer de próstata e que não devia se preocupar com a
morte de uma octoaranha relativamente insignificante. Mas a imagem de Hércules continuava a
persegui-la. Elas são uma espécie completamente diferente, disse para si mesma. Não as
julgue pelos padrões humanos.
Quando Nicole ia saindo da casa do dr. Azul, teve subitamente um desejo incontido de saber
mais sobre Katie. Lembrou-se de que, numa noite recente, depois de ter tido um sonho muito
vivido com Katie, acordara pensando se as octoaranhas não permitiriam que ela visse um
pouco mais da vida da filha no Novo Éden.
— Dr. Azul — disse Nicole já na porta —, eu gostaria de lhe pedir um favor. Não sei se devo
pedir isso ao senhor ou a Archie... Não sei nem se o que vou pedir é possível...
A octoaranha perguntou-lhe que favor era aquele.
— Como o senhor sabe — disse Nicole —, tenho uma filha que ainda está vivendo no Novo
Éden. Eu a vi rapidamente em um dos vídeos que o Chefe Otimizador nos mostrou no mês
passado... Gostaria muito de saber o que está acontecendo na vida dela.

Ao conversar com Nicole no dia seguinte, Archie lhe disse que seu pedido de ver os vídeos
de Katie não podiam ser atendidos. Mas Nicole insistiu, aproveitando todas as ocasiões em
que ficava sozinha com Archie ou o dr. Azul para reiterar seu pedido. Como nenhuma das duas
octoaranhas dizia que nos seus arquivos não havia imagens da vida de Katie no Novo Éden,
Nicole ficou certa de que os dados do vídeo estavam disponíveis. E ver esses dados tornou-se
uma obsessão para ela.
— O dr. Azul e eu conversamos hoje sobre Jamie — disse Nicole certa noite, quando Richard
e ela iam dormir. — Ele decidiu entrar no treinamento de otimizador.
— Que bom — disse Richard com sono.
— Eu disse ao dr. Azul que ele tinha sorte, como guardião, de poder participar dos
acontecimentos da vida do seu filho... E expressei de novo nossa preocupação com a vida de
Katie... Richard — disse Nicole num tom de voz ligeiramente mais alto —, o dr. Azul não
disse hoje que não permitiriam que eu visse os vídeos de Katie. Você acha que isso indica uma
mudança de atitude? Será que estou conseguindo solapar a resistência deles?
De início, Richard não respondeu, mas depois de pensar um pouco sentou-se na cama.
— Será que nós podemos dormir só uma noite sem discutirmos novamente sobre Katie e os
malditos vídeos das octoaranhas? Meu Deus, Nicole, você não fala em outra coisa há duas
semanas. Está perdendo seu controle...
— Não estou — interrompeu Nicole de forma defensiva. — Estou simplesmente preocupada
com a nossa filha. Tenho certeza de que as octoaranhas têm pilhas de filmes que poderiam
mostrar para nós. Você não quer saber...
— É claro que quero — disse Richard, dando um suspiro profundo. — Mas nós já
conversamos sobre isso diversas vezes. De que adianta falar mais uma vez sobre isso no meio
da noite?
— Eu disse para você — falou Nicole — que senti uma mudança na atitude deles. O dr. Azul
não...
— Eu ouvi o que você disse — interrompeu Richard zangado —, e não acho que isso
signifique alguma coisa. Provavelmente o dr. Azul está tão cansado quanto eu de discutir esse
assunto — disse Richard sacudindo a cabeça. — Olhe, Nicole, nosso grupo está tendo
dificuldades... Nós precisamos desesperadamente da sua sabedoria e sanidade mental. Max
resmunga todo dia sobre a invasão das octoaranhas na sua intimidade, Ellie anda lúgubre, a
não ser nos raros momentos em que Nikki a faz sorrir, e agora, em meio a tudo isso, Patrick
anunciou que ele e Nai querem se casar... Mas você anda tão obcecada com Katie e os vídeos
que não é capaz de aconselhar ninguém.
Nicole olhou feio para Richard e deitou-se de costas, sem dar resposta ao seu último
comentário.
— Por favor, não fique emburrada, Nicole — disse Richard um instante depois. — Só estou
pedindo que você seja tão objetiva sobre seu próprio comportamento quanto é em geral sobre
o comportamento dos outros.
— Não estou emburrada — replicou Nicole —, e não estou ignorando os outros. De qualquer
forma, por que sou sempre eu a responsável pela felicidade da nossa vida familiar? Por que
ninguém pode de vez em quando fazer o papel de mãe do grupo?
— Porque ninguém é como você — respondeu Richard. — Você sempre foi a melhor amiga de
todos.
— Pois agora cansei —- disse Nicole. — E tenho um problema meu, uma obsessão, segundo
você... A propósito, Richard, estou desapontada com sua aparente falta de interesse. E sempre
achei que Katie era sua favorita...
— Isso não é justo, Nicole — replicou Richard imediatamente. — Nada me deixaria mais
feliz do que saber que Katie está bem... Mas tenho outras coisas na cabeça...
Nenhum dos dois disse nada durante algum tempo.
— Diga uma coisa, querida — falou Richard num tom mais suave. — Por que Katie se tornou
tão importante de repente? O que mudou? Não me lembro de você tão preocupada com ela
antes.
— Eu me fiz essa mesma pergunta — respondeu Nicole. — E não tenho uma resposta pronta
para isso. Só sei que Katie tem sido uma presença constante nos meus sonhos ultimamente,
mesmo antes de vê-la no vídeo, e que tenho sentido uma vontade incontrolável de falar com
ela... Além disso, a primeira coisa que passou pela minha cabeça depois que o dr. Azul falou
da morte de Hércules foi que eu tinha de ver Katie de novo antes de morrer... Não sei
realmente por quê, nem sei o que quero dizer a ela, mas nosso relacionamento ainda me parece
muito incompleto...
Mais uma vez fez-se silêncio no quarto.
— Desculpe eu ter sido meio insensível ainda há pouco — falou Richard.
Tudo bem, Richard, pensou Nicole. Esta não é a primeira vez, e nem será a última. Mesmo nos
melhores casamentos há falhas de comunicação. Nicole acariciou a mão do marido.
— Aceito suas desculpas — disse, dando-lhe um beijo no rosto.

Nicole ficou surpresa ao ver Archie de manhã tão cedo. Patrick, Nai, Benjy e as crianças
tinham acabado de passar para a outra casa que servia de escola. Os outros adultos ainda não
tinham acabado de tomar o café da manhã quando a octoaranha apareceu na sala de jantar dos
Wakefield. Max foi rude.
— Desculpe, Archie — disse ele —, mas nós não recebemos visita, pelo menos as que são
visíveis, antes do café da manhã, ou que merda for essa que a gente bebe todo dia de manhã.
Nicole levantou-se da mesa quando a octoaranha fez menção de sair.
— Não preste atenção em Max — disse ela —, ele está sempre de mauhumor.
Max pulou da cadeira segurando um dos pacotes vazios onde ainda restava um pouco de
cereal e balançou-o no ar, primeiro em uma direção e depois em outra, sem fechar bem o
pacote antes de passá-lo para Archie.
— Sirva-se de uns quadróides — disse Max em voz alta. — Ou será que eles se moveram
depressa demais para mim?
Archie não respondeu. Os outros humanos ficaram sem jeito. Max voltou para seu lugar ao
lado de Eponine e Marius.
— Que merda, Archie — disse ele em frente à octoaranha —, acho que em breve você vai me
marcar com dois daqueles pontinhos verdes. Ou será que vai me exterminar sumariamente?
— Max! — gritou Richard. — Você está saindo da linha... Pelo menos pense na sua mulher e
no seu filho.
— É só neles que venho pensando, amigo, há quase um mês. E sabe o que mais, Richard? Este
fazendeiro aqui do Arkansas não consegue pensar em nada que ele possa fazer para mudar...
— A voz de Max falhou, e de repente ele deu um soco em uma das cadeiras. — Que merda! —
gritou ele. — Eu me sinto tão inútil.
Marius começou a chorar. Eponine saiu da mesa com o bebê e Ellie foi ajudá-la. Nicole levou
Archie até o vestíbulo, deixando Richard e Max sozinhos. Richard debruçou-se sobre a mesa e
disse:
— Acho que sei como você está se sentindo, Max — falou com suavidade —, e estou do seu
lado... Mas não vamos melhorar a situação insultando as octoaranhas.
— Que diferença faz? — disse Max, olhando para Richard com uma cara zangada. — Somos
prisioneiros aqui, isso é óbvio. Deixei meu filho nascer em um mundo onde ele será sempre
um prisioneiro. Que tipo de pai sou eu?
Enquanto Richard tentava acalmar Max, Nicole recebia de Archie o recado que esperava
havia dias.
— Conseguimos permissão — disse a octoaranha — para você usar a biblioteca de dados
hoje. Nós compilamos os vídeos em que aparece sua filha Katie em nossos arquivos
históricos.
Nicole fez Archie repetir as cores para ter certeza de que entendera bem suas palavras.

Archie e Nicole não conversaram quando o transporte atravessou, sem parar, a Cidade de
Esmeralda até o alto prédio onde ficava a biblioteca das octoaranhas. E Nicole não prestou
muita atenção às cenas da rua. Estava completamente imersa em seus próprios pensamentos e
emoções. Lembrava-se de vários momentos importantes de sua vida, quando Katie era ainda
criança. Lembrava-se especialmente do terror e da alegria de sua descida na toca das
octoaranhas, anos atrás, para procurar sua filhinha de quatro anos que estava perdida. Você
sempre esteve perdida, Katie, pensou Nicole. De uma forma ou de outra. Nunca consegui
fazer você sentir-se segura.
Nicole sentia o coração batendo com fúria quando Archie finalmente a levou a uma sala onde
havia apenas uma cadeira, uma mesa grande e uma tela de parede. Archie mandou-a sentar-se
na cadeira.
— Antes de você aprender a usar este equipamento, quero lhe dizer duas coisas. Primeiro, que
como otimizador do grupo quero responder oficialmente à solicitação de alguns de vocês para
voltarem para o Novo Éden.
Archie fez uma pausa. Nicole concentrou-se. Era difícil tirar Katie temporariamente da
cabeça, mas ela sabia que tinha de se concentrar no que Archie ia lhe dizer. Os outros do
grupo esperariam um relatório textual dela.
— Acho — continuou Archie um instante depois — que não será possível nenhum de vocês
partir no futuro próximo. Só estou autorizado a dizer que o assunto foi examinado pelo próprio
Chefe Otimizador em uma reunião de equipe, e que a solicitação foi negada por motivos de
segurança.
Nicole ficou assombrada. Não esperava por isso, certamente não naquela hora. Ela havia dito
a todos que achava que eles permitiriam...
— Então Max tinha razão — disse, lutando contra as lágrimas que ameaçavam escorrer-lhe
pelo rosto. — Nós somos prisioneiros.
— Você pode interpretar a decisão como quiser — disse Archie. — Mas vou lhe dizer que,
até onde posso compreender sua língua, acho que o termo "prisioneiro" que Max usa com
freqüência não é correto.
— Então me dê uma palavra melhor, e um pouco mais de explicação — disse Nicole furiosa,
levantando-se da cadeira. — Você sabe o que os outros vão dizer...

— Não posso — replicou Archie. — Já transmiti toda a nossa mensagem.


Nicole ficou andando para cima e para baixo na sala, com o humor passando da raiva à
depressão. Ela sabia como Max iria reagir. Todos ficariam furiosos. Mas por que não
explicam nada mais?, pensou ela. Isso não é característico das octoaranhas. Nicole sentiu uma
ligeira dor no peito e afundou na cadeira.
— E qual é a segunda coisa que você tem a me dizer? — perguntou ela a certa altura.
— Eu trabalhei pessoalmente com os engenheiros de dados — disse Archie — para preparar
os arquivos de vídeo que você vai ver agora... Pelo que conheço dos seres humanos, e de você
especificamente, acho que vai ficar muito angustiada ao ver esse material... Por isso peço que
considere a desistência desses arquivos.
Archie escolheu palavra por palavra com cuidado, sem dúvida porque sabia como aqueles
vídeos eram importantes para Nicole. A mensagem dele era clara. O que eu vou ver vai me
causar sofrimento, pensou Nicole. Mas não tenho escolha. Entre nada e sofrimento, escolho
o sofrimento.
Depois de Nicole agradecer a Archie por sua preocupação e informar à octoaranha que queria
ver os vídeos de qualquer jeito, Archie empurrou a cadeira na qual Nicole estava sentada para
perto da mesa e mostrou-lhe como acionar os dados. O código de tempo fora traduzido pelas
octoaranhas em números humanos, em termos de dias antes do presente; as imagens podiam
ser vistas em quatro velocidades, cobrindo quatro ordens octais de magnitude, de um oitavo
de tempo real a sessenta e quatro vezes a velocidade normal.
— Os dados sobre Katie estão quase completos — disse Archie — com relação aos últimos
seis meses do seu tempo. Nosso processo normal de gerenciamento de dados filtra e resume
os dados mais antigos, com base na sua importância. Os arquivos de Katie mostram a maioria
dos acontecimentos principais dos últimos dois anos, mas antes disso há pouca coisa.
Nicole pegou os controles, e quando entrou com os dados mais recentes e viu o rosto de Katie
aparecer na tela, sentiu Archie bater no seu ombro.
— Pode usar o aparelho o dia inteiro — disse a octoaranha quando ela se virou —, mas é só
isso... Como há muitos dados disponíveis, sugiro que você use as altas velocidades para
localizar os acontecimentos do seu interesse.
Nicole respirou fundo e virou-se para a tela.

Ela achou que não poderia chorar mais. Seus olhos quase se fechavam de tão inchados pelas
lágrimas incessantes. Nicole já vira Katie injetando a droga kokomo pelo menos dez vezes,
mas a cada vez que via sua filha enrolar o cordão de borracha no braço e introduzir a agulha
na veia intumescida, vinham-lhe mais lágrimas aos olhos.

O que vira em quase dez horas era tão pior do que as piores coisas que tinha imaginado.
Nicole estava arrasada. Apesar de não haver som em nenhuma das imagens, foi fácil para
Nicole perceber o tipo de vida que Katie levava. Primeiro, sua filha era uma viciada
irrecuperável. Pelo menos quatro vezes ao dia, e mais quando a vida não lhe corria bem, Katie
retirava-se para seu apartamento charmoso, sozinha ou com amigos, e usava a elegante
parafernália de droga que mantinha trancada numa caixa grande, no seu quarto de vestir.

Katie ficava exuberante logo depois da droga. Tornava-se afável, engraçada e cheia de energia
e aparente autoconfiança. Mas quando o efeito das drogas acabava no meio de uma festa,
Katie transformava-se numa mulher vulgar e agressiva, acabando muitas noites sozinha no seu
apartamento com suas agulhas.
Seu emprego oficial era o gerenciamento das prostitutas de Vegas. Seu cargo também incluía o
recrutamento de novos talentos. De início, o coração partido de Nicole relutou em reconhecer
o que seus olhos viam. Mas depois de uma seqüência sórdida, que começava com Katie
aliciando uma adolescente linda e pobre de San Miguel e terminava com a menina, agora
ricamente vestida e cheia de jóias, transformada na concubina temporária de um dos chefes
zaibatsus de Nakamura alguns dias depois, Nicole foi forçada a admitir para si própria que
sua filha era absolutamente despida de moral e de escrúpulos.
Depois que Nicole estava vendo os vídeos havia várias horas, Archie entrou na sala e
ofereceu-lhe alguma coisa para comer, mas ela recusou. Sabia que, no seu estado de agitação,
seria impossível manter qualquer alimento no estômago.
Por que Nicole ficava olhando tanto tempo para aquilo? Por que não desligava os controles e
saía da sala? Mais tarde, ela se fez essas mesmas perguntas e concluiu que, depois das
primeiras horas, começara, pelo menos subconscientemente, a buscar a possibilidade de
algum sinal de esperança para a vida de Katie. Não fazia parte da sua natureza aceitar sem
argumentação que sua filha fosse fundamentalmente corrupta. Nicole ansiava por ver alguma
coisa nos vídeos que lhe sugerisse que o futuro de Katie poderia ser diferente.
Com o passar das horas, ela encontrou dois elementos na vida infeliz de Katie que lhe
pareceram sinais de que talvez um dia a filha abandonasse aquele comportamento
autodestrutivo. Durante seus terríveis acessos de depressão, que ocorriam com mais
freqüência quando seu suprimento de drogas estava baixo, Katie em geral ficava frenética,
quebrando tudo o que encontrava no apartamento, com exceção das fotos de Richard e de
Patrick. No final desses acessos de cólera, quando sua energia diminuía, Katie sempre tirava
aquelas fotos da penteadeira e colocava-as com cuidado em cima da cama. Deitava-se ao lado
delas e ficava soluçando durante uns trinta minutos. Para Nicole, esse comportamento repetido
indicava que Katie ainda mantinha algum amor pela família.
O outro elemento de esperança, na cabeça de Nicole, era Franz Bauer, o capitão de polícia
que era o companheiro regular de Katie. Nicole não tentava compreender aquela relação
bizarra; uma noite o casal tinha uma briga terrível e obscena, e na outra Franz lia para Katie
poemas de Rainer Maria Rilke como um prelúdio a várias horas de atividade sexual
energética e incessante. Mas ela podia ver pelos vídeos que Franz amava Katie na sua forma
estranha, e que não aprovava o vício dela. Durante uma das brigas, Franz pegou o suprimento
de droga de Katie e ameaçou jogar tudo no vaso sanitário e dar a descarga. Katie ficou tomada
de fúria e atacou Franz com uma escova de cabelo.

Hora após hora, Nicole ficou assistindo àquilo, tentando compreender a vida trágica de sua
filha. A medida que o dia foi passando e Nicole continuava a olhar os vídeos anteriores,
alguns nos primeiros dias de droga de Katie, foi descobrindo que Katie tinha tido um
envolvimento sexual com o próprio Nakamura, e que o tirano do Novo Éden fornecia drogas
para Katie regularmente durante todo o tempo em que estiveram ligados.

Àquela altura, Nicole estava entorpecida. Sentia-se tão esgotada emocionalmente que não
tinha forças para se mover. Quando finalmente desligou os controles, pôs a cabeça na mesa,
chorou durante mais algum tempo e adormeceu. Archie acordou-a quatro horas depois e lhe
disse que era hora de voltar para casa.
Estava escuro. O transporte estacionara na praça havia dez minutos, mas Nicole não
desembarcava. Archie estava de pé ao lado dela.
— Não vou conseguir dizer a Richard o que vi hoje — disse, olhando para a octoaranha. —
Ele vai ficar completamente destruído.
— Eu compreendo — falou Archie com simpatia. — Agora você sabe por que sugeri que você
não assistisse àqueles vídeos.
— Você tinha razão — respondeu Nicole, soltando aos poucos a barra vertical e esticando
resignadamente uma perna para fora do carro —, mas é tarde demais agora. Não posso apagar
aquelas cenas horríveis da minha cabeça.
— Você me disse antes — falou Archie, assim que saíram do carro de transporte — que ficou
óbvio através dos vídeos que Patrick sabia alguma coisa sobre a vida que Katie estava
levando antes de fugir do Novo Éden. Mas ele preferiu não contar a você e a Richard os
detalhes piores. Seria contra os seus princípios fazer uma coisa semelhante?
— Obrigada, Archie — disse Nicole, batendo no ombro da octoaranha, quase sorrindo —, por
ler meus pensamentos... Você está começando a nos conhecer bem demais.
— Nós também tivemos um tempo difícil com a verdade na nossa sociedade — comentou
Archie. — Uma das linhas fundamentais para os novos otimizadores é dizer a verdade em
todas as ocasiões. É aceitável guardar informações, diz a polícia, mas não passar informações
falsas. Os otimizadores mais jovens são muito exigentes com a verdade, sem levar em conta as
conseqüências... Às vezes, a verdade e a compaixão não são compatíveis.
— Concordo com você, meu sábio amigo alienígena — disse Nicole com um suspiro. — E
agora, depois de um dos piores dia da minha vida, vou ter de enfrentar não uma, mas duas
missões muito difíceis. Preciso dizer a Max que ele não poderá sair da Cidade de Esmeralda,
e preciso informar a meu marido Richard que sua filha favorita é uma viciada e uma
gerenciadora de prostitutas. Espero que essa humana velha e exausta encontre a força
necessária para cumprir essas duas obrigações da melhor forma possível.

10

Richard estava dormindo quando Nicole chegou em casa, e ela sentiu-se confortada por não
ter de explicar nada para ele imediatamente. Nicole vestiu a camisola e entrou de mansinho na
cama, mas não conseguiu dormir. Na sua mente, continuava a ver aquelas horríveis imagens
que vira ao longo do dia, e ficou pensando como iria contar a Richard e aos outros tudo
aquilo.

No seu estado de vigília, Nicole de repente viu-se sentada nos terraços em Rouen, ao lado de
seu pai, na praça onde Joana d'Arc fora queimada viva oitocentos anos antes. Sentiu-se então
de novo uma adolescente, como era de fato quando seu pai a levara a Rouen, para que visse o
cortejo em celebração a Joana d'Arc. A carroça que carregava a mártir estava chegando na
praça, e o povo gritava.
— Papai — perguntou a adolescente Nicole, gritando para que seu pai a ouvisse por cima
daquele tumulto —, o que posso fazer para ajudar Katie?
Seu pai não ouviu a pergunta. Sua atenção estava completamente voltada para a Donzela de
Orleans, ou melhor, para a francesinha que estava interpretando Joana. Nicole viu quando a
menina, que tinha os mesmos olhos claros e penetrantes atribuídos a Joana, foi amarrada na
estaca e começou a rezar baixinho, enquanto um dos bispos lia sua sentença de morte.
— E Katie? — perguntou Nicole de novo, mas outra vez ficou sem resposta.
A platéia em volta dela nos terraços tossiu quando as pilhas de madeira que rodeavam Joana
começaram a pegar fogo. Nicole levantou-se com a multidão quando as chamas espalharam-se
rapidamente em volta da base da imensa fogueira. Ela podia ouvir claramente as preces de
Santa Joana, invocando a bênção de Jesus. As chamas aproximaram-se da menina. Nicole
olhou para o rosto da adolescente que mudara a história e sentiu um arrepio na espinha.
— Katie! — gritou. — Não! Não!
Nicole tentou desesperadamente encontrar um jeito de escapar das chamas, mas viu-se
bloqueada de todos os lados. Não havia como salvar sua filha do fogo.
— Katie! Katie! — gritou Nicole de novo, lutando para escapar da multidão em volta.
Sentiu então braços em torno do seu peito, mas só alguns segundos depois percebeu que aquilo
era um sonho e que Richard a olhava alarmado. Antes que ela pudesse falar, Ellie, de robe
entrou no quarto.
— Você está bem, mamãe? Eu estava acordada e fui dar uma espiada em Nikki quando ouvi
você gritando o nome de Katie...
Nicole olhou primeiro para Richard e depois para Ellie, e fechou os olhos. Ainda podia ver o
rosto angustiado de Katie, contorcido de dor, logo acima das chamas. Nicole abriu os olhos de
novo e olhou para o marido e para a filha.
— Katie está muito infeliz — disse, caindo em prantos.
Nicole estava inconsolável. Toda vez que começava a contar para Richard e para Ellie os
detalhes do que havia visto, começava a chorar.
— Eu me senti tão frustrada, tão desprotegida! — disse enfim, quando conseguiu se controlar.
— Katie está numa situação terrível e não há nada que possamos fazer para ajudá-la.
Resumindo a história da filha sem omitir nada, a não ser algumas cenas sexuais mais
escabrosas, Nicole desistiu de tentar suavizar seu relato. Richard e Ellie ficaram assombrados
e entristecidos com as notícias.

— Não sei como você conseguiu ficar lá sentada vendo isso durante tantas horas — falou
Richard a certa altura. — Eu teria saído em poucos minutos.

— Katie está tão perdida, tão terrivelmente perdida — disse Ellie, sacudindo a cabeça.
Minutos depois, a pequena Nikki entrou pelo quarto procurando por sua mãe. Ellie a abraçou e
voltou para seu próprio quarto com a filha.
— Desculpe eu ter ficado tão perturbada, Richard — disse Nicole um pouco depois, antes de
voltarem a dormir.
— Isso é compreensível — falou Richard. — O dia deve ter sido horrível para você.
Nicole secou os olhos pela milésima vez.
— Só me lembro de ter chorado tanto assim uma única vez em toda a minha vida — observou,
tentando sorrir. — Eu tinha quinze anos, e meu pai me disse que estava pensando em propor
casamento a uma inglesa com quem ele estava saindo. Eu não gostava dela, era uma mulher
distante e fria, mas achava que não tinha o direito de dizer nada para meu pai... De qualquer
forma, fiquei arrasada. Peguei Dunois, meu pato selvagem, e fui correndo até o nosso lago em
Beauvois. Remei até o meio do lago, coloquei os remos dentro do bote e fiquei chorando
durante várias horas.
Os dois ficaram em silêncio por um instante. Depois, Nicole debruçou-se para beijar Richard.
— Obrigado por ficar me ouvindo — disse. — Eu estava precisando de apoio.
— Também não é fácil para mim — falou Richard. — Mas pelo menos eu não vi Katie, e
assim fica parecendo...
— Oh, meu Deus — interrompeu Nicole —, eu quase ia me esquecendo... Archie também me
disse hoje que nenhum de nós terá permissão para voltar para o Novo Éden, por razões de
segurança... Max vai ficar furioso.
— Não se preocupe com isso agora — falou Richard de forma carinhosa. — Tente dormir um
pouco. A gente fala sobre isso amanhã.
Nicole aninhou-se nos braços de Richard e caiu no sono.

— Por razões de segurança! — gritou Max. — E que merda eles querem dizer com isso?
Patrick e Nai levantaram-se da mesa do café.
— Deixem a comida aí — disse Nai, mandando que as crianças a seguissem. — A gente come
fruta e cereais na escola.
Kepler e Galileu relutaram em sair. Eles sentiram que alguma coisa importante seria discutida.
Só quando Patrick chegou na mesa é que eles empurraram a cadeira para trás e se levantaram.
Benjy teve permissão para ficar depois de prometer a Nicole que não repetiria nada da
conversa para as crianças. Eponine saiu da mesa para amamentar Marius em um dos cantos da
sala.
— Eu não sei o que isso significa — disse Nicole para Max depois que as crianças saíram. —
Archie não deu maiores explicações.
— Ora, que maravilha — disse Max. — Nós não podemos sair daqui, mas seus amigos
magricelas nem ao menos nos dizem por quê... Por que você não pediu para falar com o Chefe
Otimizador naquela mesma hora? Você não acha que eles nos devem algum tipo de
explicação?
— Acho sim — replicou Nicole. — E talvez fosse uma boa idéia pedirmos uma audiência
com o Chefe Otimizador... Sinto muito, Max, mas não tratei desse caso muito bem... Eu estava
preparada para assistir aos vídeos de Katie e, para falar com franqueza, a declaração de
Archie me pegou desprevenida...
— Que merda, Nicole — falou Max. — Não estou te culpando... De qualquer forma, como Ep,
Marius e eu somos os únicos que ainda querem voltar para o Novo Éden, é problema nosso ir
contra essa decisão... Eu duvido que o Chefe Otimizador já tenha visto um bebê de dois meses
em carne e osso.
O resto da conversa na mesa do café foi sobre Katie e o que vira no dia anterior nos vídeos. A
família explicou a razão da infelicidade de Katie sem entrar em maiores detalhes.
Quando Patrick voltou, disse que as crianças já estavam concentradas na aula.
— Nai e eu temos conversado sobre muitas coisas — disse ele, dirigindo-se a todos na mesa.
— Primeiro, Max, queremos lhe pedir para ser um pouco mais cuidadoso diante das crianças
com seus comentários negativos sobre as octoaranhas... Elas vivem com medo quando Archie
ou o dr. Azul estão por aí, e devem ter esse tipo de reação baseadas no que escutam quando
estamos conversando.
Max começou a resmungar.
— Por favor, Max — acrescentou Patrick —, você sabe que sou seu amigo... Não vamos
discutir sobre isso... Só pense no que eu disse e lembre-se de que talvez a gente tenha de ficar
com as octoaranhas por muito tempo...
— Em segundo lugar — continuou Patrick —-, Nai e eu achamos, especialmente em vista do
que ouvimos hoje de manhã, que as crianças deviam aprender a língua das octoaranhas. E
queremos que elas comecem o mais depressa possível... Acho que vamos precisar de Ellie ou
de mamãe, além de uma ou duas octoaranhas... não só para ensinar, mas também para
familiarizar as crianças de novo com nossos hospedeiros alienígenas... Hércules foi embora
há uns dois meses... Mamãe, você pode falar com Archie sobre isso?
Nicole fez que sim e Patrick desculpou-se, dizendo que precisava voltar para a sala de aula.
— Pa-trick é um ótimo pro-fes-sor — disse Benjy. — Ele é muito pa-ci-ente comigo e com as
cri-an-ças.
Nicole sorriu intimamente e olhou para o filho por cima da mesa do café da manhã.
Considerando as circunstâncias, pensou ela, nossos filhos se saíram bem. Eu devia estar
contente por ter Patrick, Ellie e Benjy. E não me preocupar tanto assim com Katie.

Em um dos cantos do seu quarto, Nai Watanabe terminou sua meditação e fez as preces
budistas, parte de sua rotina diária desde que era menina na Tailândia. Nai atravessou a sala
de estar, encaminhando-se ao outro quarto para acordar os gêmeos, e viu, para sua surpresa,
que Patrick estava dormindo no sofá. Ele ainda estava vestido, com o leitor eletrônico em
cima do peito. Nai sacudiu-o com cuidado.

— Acorde, Patrick. Já é de manhã... Você dormiu a noite inteira aqui. Patrick acordou
imediatamente e pediu desculpas a Nai. Quando estava saindo, disse que tinha vários assuntos
para conversar com ela, sobre budismo, é claro, mas que podia deixar a conversa para uma
hora mais conveniente. Nai sorriu e deu-lhe um beijo no rosto, dizendo que ela e os meninos
iriam tomar o café da manhã dentro de meia hora.
Ele é tão jovem e sério, disse Nai para si mesma quando Patrick estava indo embora. E gosto
muito da sua companhia... Mas será que alguém poderá substituir Kenji como meu marido?
Nai lembrou-se da noite anterior. Depois que os gêmeos foram dormir, Patrick e ela tiveram
uma conversa longa e séria. Patrick queria se casar logo, e ela respondeu que não tinha pressa,
que concordaria em marcar uma data quando tivesse se habituado com a idéia. Patrick
perguntou então, de forma desajeitada, se poderiam ter um "maior intercâmbio sexual"
enquanto esperavam. Então Nai lembrou a Patrick que lhe dissera desde o início que a relação
deles não passaria dos beijos antes do casamento. Para tranqüilizá-lo, Nai lhe garantira que o
achava muito atraente fisicamente e que gostaria de fazer amor com ele quando se casassem,
mas que, pelas razões que já tinham discutido várias vezes, ela insistia em adiar o
"intercâmbio sexual" por enquanto.
Durante o resto da noite, o casal ficou conversando sobre os gêmeos e sobre budismo. Nai
disse que estava preocupada com o impacto que o casamento poderia causar a Galileu,
sobretudo porque o menino se sentia seu protetor. Patrick disse a Nai que não acreditava que
seus freqüentes choques com Galileu tivessem alguma coisa a ver com ciúmes.
— O menino se ressente de qualquer autoridade — disse Patrick — e resiste à disciplina...
Kepler, por sua vez...
Quantas vezes nos últimos seis anos, pensou Nai, alguém começou um comentário com a
frase "Kepler, por sua vez"... Lembrou-se de quando Kenji ainda estava vivo e os meninos
apenas começavam a andar. Galileu caía e dava encontrão nas coisas com freqüência. Kepler,
por sua vez, era cuidadoso e preciso nos seus passos. Quase não caía.
Os vaga-lumes gigantes ainda não tinham levado a aurora para a Cidade de Esmeralda. Nai
continuou a divagar, como sempre fazia depois de um meditação pacífica. Disse a si mesma
que ultimamente andava fazendo muitas comparações entre Kenjy e Patrick. Isso não é justo.
Só posso me casar com Patrick depois que esse processo estiver terminado.
Mais uma vez ela pensou na noite anterior, e sorriu ao recordar-se da discussão acalorada que
tiveram sobre a vida de Buda. Patrick ainda é ingênuo como uma criança, um idealista puro.
Essa é uma das coisas que mais gosto nele.
— Eu admiro tanto a filosofia básica de Buda quanto sua abordagem — dissera Patrick. —
Admiro mesmo... Mas tenho alguns problemas... Como você pode adorar um homem, por
exemplo, que deixa a esposa e o filho para se tornar um mendigo?... E a responsabilidade dele
para com sua família?

— Você está tirando a ação de Buda do seu contexto histórico — respondera Nai. — Em
primeiro lugar, no norte da Índia, há dois mil e setecentos anos, viver pelas estradas
mendigando era uma coisa aceitável. Havia alguns mendigos nos vilarejos e muitos nas
cidades. Quando um homem queria procurar a verdade, seu primeiro passo era despir-se de
todos os confortos materiais... Além do mais, você se esqueceu de que Buda veio de uma
família muito rica. Sua mulher e seu filho não ficariam sem comida, abrigo, roupas e outras
coisas essenciais...

Tinham conversado durante duas horas, depois se beijado um pouco antes de Nai ir, sozinha,
para seu quarto. Patrick já retomara sua leitura sobre budismo quando Nai lhe disse boa noite
da porta do quarto.
Como é difícil, pensou Nai, quando a luz do vaga-lume irrompeu na cidade das octoaranhas,
explicar a relevância do budismo a alguém que nunca viu a Terra... Mas mesmo aqui, neste
estranho mundo alienígena entre as estrelas, o desejo ainda causa sofrimento, e os seres vivos
ainda buscam paz espiritual. É por isso que alguns elementos do budismo, do cristianismo e
das outras grandes religiões da Terra durarão enquanto houver seres humanos em algum lugar.

11

Richard saiu da cama com mais entusiasmo do que de costume, e começou a tagarelar com
Nicole.
— Deseje-me boa sorte — disse, enquanto se vestia. — Archie disse que nós vamos ficar fora
o dia inteiro.
Nicole, que era sempre lenta para acordar e detestava atividades frenéticas de qualquer
espécie nas primeiras horas da manhã, rolou na cama e tentou aproveitar seus últimos
momentos de descanso. Abriu um olho ligeiramente, viu que ainda estava escuro e fechou-o de
novo.
— Não me sinto tão animado assim desde que terminei aquelas duas últimas peças do tradutor
— disse Richard. — Sei que as octoaranhas pensam seriamente em me pôr para trabalhar... Só
estão tentando encontrar a coisa certa para mim.
Ele saiu do quarto e demorou alguns minutos. Pelos ruídos na cozinha, Nicole, ainda meio
adormecida, percebeu que Richard estava preparando seu café. Logo voltou, comendo uma
das grandes frutas rosadas de que tanto gostava, e ficou ao lado da cama, chupando a fruta
ruidosamente.
Nicole abriu os olhos aos poucos e olhou para o marido.
— Imagino — disse ela suspirando — que você esteja esperando que eu diga alguma coisa.
— Estou — falou Richard. — Gostaria que você dissesse algumas coisas gentis antes de eu ir
embora. Afinal de contas, esse pode ser o dia mais importante da minha vida desde que
chegamos à Cidade de Esmeralda.
— Você tem certeza — disse Nicole — de que Archie pretende lhe arranjar um trabalho?
— Absoluta — respondeu Richard. — Essa é a finalidade do nosso encontro hoje. Ele vai me
mostrar alguns dos sistemas mais complexos de engenharia e tentar avaliar onde meus
conhecimentos poderão ser usados... Pelo menos foi isso que me disse ontem.
— Mas por que você está indo tão cedo? — perguntou Nicole.
— Porque tenho de ver muita coisa, acho eu... De qualquer forma, me dê um beijo. Ele vai
chegar daqui a pouco.
Nicole beijou Richard obedientemente e fechou os olhos de novo. O Banco de Embriões era
um edifício grande, retangular, localizado no extremo sul da Cidade de Esmeralda, bem perto
de onde terminava a Planície Central. A menos de um quilômetro do banco havia um conjunto
de três escadas, cada qual com dezenas de milhares de degraus, que subiam para o cilindro do
pólo sul. Acima do Banco de Embriões, quase na escuridão de Rama, surgiam as estruturas
imponentes do Grande Chifre com seus seis acólitos pontudos, maiores do que qualquer
construção de engenharia do planeta Terra.
Richard e Archie haviam montado num emassauro nas imediações da Cidade de Esmeralda, e,
acompanhados de três vaga-lumes, passaram pelo Domínio Alternativo em uma questão de
minutos. Na parte sul do reinado das octoaranhas havia poucos prédios. Apesar de algumas
plantações ocasionais de cereais, Richard notou que a maior parte da área meridional pela
qual eles viajavam assemelhava-se, mesmo naquela luz mortiça, ao Hemicilindro Norte de
Rama II antes da construção dos dois habitats.
Richard e seu amigo octoaranha entraram no Banco de Embriões por duas portas muito
grossas que os levaram diretamente a uma grande sala de conferências. Lá Richard foi
apresentado a várias outras octoaranhas, que obviamente esperavam por ele. Richard usou seu
tradutor e as octos leram seus lábios, embora ele tivesse de falar devagar e pronunciar bem as
palavras, pois essas octoaranhas não eram tão experientes na língua dos humanos quanto
Archie.
Depois de breves formalidades, uma das octoaranhas levou os dois para uma série de painéis
de controle que alojavam o equivalente a teclados feitos com as faixas coloridas das octos.
— Temos quase dez mil embriões armazenados aqui — disse a octoaranha-chefe como
introdução —, que representam mais de cem mil espécies distintas, e três vezes esse mesmo
número de híbridos. Suas durações naturais de vida variam de meio tert a vários milhões de
dias, ou seja, cerca de dez mil anos humanos. Seus tamanhos em adultos variam de uma fração
de nanômetro a colossos quase tão grandes quanto este prédio. Cada embrião é armazenado no
que acreditamos serem as condições quase ideais para sua preservação. Porém, na realidade,
só cerca de mil ambientes distintos, combinações de temperatura, pressão e químicas
ambientais são necessários para abranger a variedade de condições exigidas. O prédio
também aloja um imenso sistema de gerenciamento de dados e monitoração. Esse sistema
rastreia automaticamente as condições em cada um dos ambientes distintos e monitora o início
do desenvolvimento dos milhares de embriões que estão sempre em germinação ativa. O
sistema possui mecanismos de detecção e correção automática de erros, uma estrutura de
parâmetro dual de advertência, e também dirige a projeção de informações de status e de
catálogo tanto para estas paredes como para as de qualquer área de pesquisa nos andares de
cima.

O cérebro de Richard entrou em aceleração quando ele começou a compreender mais


claramente o objetivo do Banco de Embriões. Que conceito fantástico, pensou. As
octoaranhas armazenam aqui todas as sementes de outras plantas ou espécies animais que
possam vir a servir para qualquer finalidade.

— ...Os testes são contínuos — dizia a octoaranha —, para assegurar a integridade dos
sistemas de armazenamento e preservação e fornecer espécimes para as atividades de
engenharia genética. Cerca de duzentos biólogos octoaranhas estão permanentemente ocupados
com experiências genéticas aqui. A meta dessas experiências é produzir formas de vida
alteradas que possam aprimorar a eficiência da nossa sociedade...
— Pode me mostrar um exemplo de experiência genética? — interrompeu Richard.
— Certamente — replicou a octoaranha, dirigindo-se ao painel de controle e usando três
tentáculos para apertar uma seqüência de botões coloridos. — Creio que o senhor conhece um
de nossos métodos fundamentais de geração de energia — disse a octo quando um vídeo foi
projetado na parede. — O princípio básico é bem simples, como o senhor sabe. As criaturas
marinhas circulares geram e armazenam uma carga eletrônica em seu corpo. Nós captamos
essa carga em uma rede de arame, contra a qual os animais têm de se comprimir para pegar
seu suprimento alimentar. Embora esse sistema seja bastante satisfatório, nossos engenheiros
observaram que ele pode ser substancialmente aprimorado se o comportamento da criatura
sofrer umas tantas alterações.
— Olhe esse close-up em movimento rápido de meia dúzia de criaturas marinhas geradoras de
energia. Note que durante esse breve filme cada uma das criaturas passará por três a quatro
ciclos de carga-descarga. Que aspecto desses ciclos seria de maior interesse para um
engenheiro de sistemas?
Richard observou o vídeo cuidadosamente. As criaturas ficam opacas depois de sua descarga,
refletiu, mas voltam ao seu brilho original em um intervalo de tempo relativamente curto.
— Partindo do princípio de que o brilho é uma medida de carga armazenada — disse Richard
de repente, como se estivesse sendo submetido a uma espécie de teste —, o sistema poderia
ser mais eficiente se fosse aumentada a freqüência da alimentação.
— Exatamente — respondeu o chefe das octoaranhas.
Archie passou uma mensagem rápida para a octoaranha hospedeira, que foi completada antes
que Richard tivesse chance de usar o telescópio do seu tradutor. Nesse meio-tempo, uma
imagem diferente apareceu na parede.
— Aqui estão três variantes genéticas da criatura marinha circular, que estão atualmente sendo
testadas e avaliadas. O principal candidato à substituição é o da direita. Esse protótipo come
com o dobro de freqüência que o componente atualmente em uso; mas ele tem um
desequilíbrio metabólico que aumenta significativamente sua suscetibilidade a doenças
contagiosas. Todos esses fatores estão sendo pesados na presente avaliação...

Richard foi levado de uma demonstração a outra, sempre acompanhado de Archie. Mas para
cada demonstração havia um grupo de especialistas octoaranhas preparados para uma
minipalestra e um grupo para as discussões que se seguiam. Uma das apresentações focalizou
a relação entre o Banco de Embriões, o grande zoológico que ocupava uma considerável área
no Domínio Alternativo, e a barreira de florestas que formava uma cinta completa em torno de
Rama, pouco menos de um quilômetro ao norte da Cidade de Esmeralda.

— Todas as espécies vivas do nosso reino — disse o apresentador — estão em simbiose


ativa, observação temporária em um domínio isolado (no zôo, na floresta ou, no seu caso
específico, na própria Cidade de Esmeralda), ou então estão sendo submetidas a experiências
aqui no Banco de Embriões.
Depois de uma longa caminhada por vários corredores, Richard e Archie se reuniram a meia
dúzia de octoaranhas, que estavam avaliando uma recomendação de substituição de toda uma
cadeia simbiótica de quatro espécies diferentes. Essa cadeia era responsável pela produção
de uma substância gelatinosa que melhorava consideravelmente uma doença comum na lente
das octoaranhas. Richard ouviu fascinado quando os parâmetros do teste da nova simbiose
proposta (recursos consumidos, taxas de reprodução, interações necessárias com as
octoaranhas, coeficientes de erros e previsão de comportamento) foram comparados com o
sistema existente. Terminada a reunião, decidiu-se que em uma das três zonas de fabricação a
nova simbiose seria instalada durante várias centenas de dias operacionais, ao fim dos quais a
decisão seria reconsiderada.
No meio do dia de trabalho, Archie e Richard foram deixados sozinhos durante meio tert. A
pedido de Richard, os dois apanharam seus almoços e bebidas, voltaram a montar no
emassauro, recrutaram um par de vaga-lumes e deram uma volta pela fria e escura planície
Central. Quando Richard desmontou, deu uma caminhada com os braços estendidos e olhou
para a vastidão de Rama.
— Quem entre vocês se preocupa ou tenta imaginar o significado de tudo isso? — perguntou
ele a Archie, movendo os braços em círculo.
A octoaranha respondeu que não tinha compreendido a pergunta.
— Entendeu sim, seu hipócrita — disse Richard sorrindo. — Só que esse intervalo que
estamos tendo foi reservado pelos seus otimizadores para um tipo diferente de conversa entre
nós... O que eu quero discutir, Archie, não é em que departamento específico de engenharia do
seu Banco de Embriões eu gostaria de trabalhar para poder dar a contribuição que justifique
os recursos necessários para a minha manutenção... O que eu quero perguntar a você é o que
está acontecendo realmente aqui. Por que nós todos — humanos, sésseis, aves e vocês com
toda a sua coleção de animais — estamos a bordo desta imensa e misteriosa nave espacial
com destino à estrela que os humanos chamam de Tau Ceti?
Archie se manteve calado por uns trinta segundos.
— Foi dito aos membros da nossa espécie, enquanto eles estavam em Nodo, como você
esteve, que uma inteligência superior está catalogando formas de vida na galáxia, com ênfase
especial para os viajantes do espaço. Nós montamos uma típica colônia, como nos foi exigido,
e a estabelecemos dentro desta Rama, para que pudessem ser realizadas observações
detalhadas da nossa espécie.
— Então as octoaranhas não sabem nada mais sobre quem ou o quê está por trás desse grande
esquema do que nós humanos sabemos?
— Não — respondeu Archie. — Na verdade, nós provavelmente sabemos menos. Nenhuma
octoaranha que viveu em Nodo existe ainda na nossa colônia. Como eu já disse, aquele
contingente de octoaranhas da Rama II era uma espécie diferente e inferior. A única fonte de
informação de primeira mão sobre Nodo a bordo dessa nave espacial são você, sua família e
os possíveis dados comprimidos que possam existir dentro daquele pequeno volume de
material séssil que ainda está sendo mantido no nosso zôo.
— E fica nisso? — perguntou Richard. — Nenhum de vocês faz perguntas?
— Nós somos treinados desde jovens a não perder tempo com assuntos que não possam ter
explicações significativas — respondeu Archie.
Richard ficou um instante em silêncio e depois perguntou abruptamente:
— Como você sabe tanto sobre as aves e os sésseis?
— Desculpe, Richard — disse Archie depois de uma pausa —, mas não posso falar sobre
esse assunto agora... Minha obrigação durante esse nosso intervalo, como supôs, é avaliar se
você gostaria ou não de trabalhar como engenheiro no Banco de Embriões; e, em caso de uma
resposta positiva, saber quais das áreas vistas hoje lhe parecem mais interessantes.
— É uma droga de incumbência — disse Richard rindo. — Eu gostaria sim, Archie; tudo isso
é fascinante, especialmente o que eu chamo de departamento de enciclopédia. Acho que
preferiria trabalhar lá, pois poderia aumentar meu parco conhecimento de biologia... Mas por
que está me fazendo essa pergunta agora? Nós não vamos ter mais demonstrações depois do
almoço?
— Vamos — respondeu Archie. — Mas o programa desta tarde já está praticamente tomado.
Praticamente metade do Banco de Embriões dedica-se à microbiologia. O gerenciamento
dessa atividade é mais complexo, e envolve a comunicação com os midgets. É difícil imaginar
você trabalhando em algum desses departamentos.

Por baixo do laboratório microbiológico básico havia um porão no qual só se entrava com
credenciais especiais. Quando Archie mencionou que uma grande quantidade de imagens
quadróides voadoras era produzida no porão do Banco de Embriões, Richard praticamente
implorou para observar o processo. Sua visita oficial foi interrompida, e Richard ficou sem
fazer nada durante vários fengs, enquanto Archie obtinha permissão para visitarem o viveiro
dos quadróides.
Duas octoaranhas guiaram-nos por várias rampas que desciam para a área subterrânea.
— O viveiro foi construído propositalmente longe do nível do chão — disse Archie — para
haver maior isolamento e proteção. Há três outros locais semelhantes espalhados por todo o
nosso território.

Que incrível, disse Richard a si mesmo, enquanto ele e seus três companheiros octoaranhas
chegaram a uma plataforma da qual se via, abaixo, uma grande área retangular. Seu
reconhecimento foi instantâneo. Vários metros abaixo deles, cerca de cem midgets
espalhavam-se pela área, executando tarefas que não identificou. Do teto pendiam oito treliças
retangulares, de cinco metros de comprimento e dois metros de largura, colocadas
simetricamente em volta da sala. Logo abaixo de cada uma dessas treliças via-se um grande
objeto oval com a parte externa rígida. Esses oito objetos parecendo nozes colossais eram
rodeados por um espesso emaranhado ou teia.

— Vi um arranjo semelhante a este há muitos anos, por baixo de Nova York. Foi antes do meu
primeiro encontro pessoal com uma de suas primas. Nicole e eu ficamos assustadíssimos... —
disse Richard excitado.
— Acho que li alguma coisa sobre esse incidente — replicou Archie. — Antes de trazermos
Ellie e Eponine para a Cidade de Esmeralda, eu estudei todos os arquivos antigos sobre a sua
espécie. Alguns dados estavam compactados, por isso não havia muitos detalhes...
— Eu me lembro desse incidente como se fosse ontem — interrompeu Richard. — Coloquei
dois robôs em miniatura em um pequeno trem do metrô e eles desapareceram num túnel. Eles
chegaram a uma área como esta aqui, e depois de subirem pelas teias foram capturados por
uma de suas primas.
— Sem dúvida os robôs caíram em um viveiro de quadróides, e as octos agiram para proteger
o viveiro. É realmente muito simples... — Archie fez um sinal para o guia-engenheiro,
avisando que estava na hora da sua explicação.
— As rainhas quadróides passam os períodos de gestação em compartimentos especiais, fora
do chão — disse o engenheiro octoaranha. — Toda rainha põe milhares de ovos. Depois que
vários milhões de ovos são postos, eles são coletados e colocados juntos em um desses
compartimentos ovais. O interior desses compartimentos é mantido a uma temperatura muito
alta, que reduz notadamente o tempo de desenvolvimento dos quadróides. O espesso
emaranhado em volta dos recipientes absorve o excesso de calor, tornando as condições de
trabalho aceitáveis para as midgets que supervisionam o viveiro...
Richard ouvia parcialmente, mas sua atenção se fixou numa ocorrência de muitos anos atrás.
Agora está tudo claro, disse para si mesmo. E aquele metrô minúsculo era destinado às
midgets.
— ...A monitoração dentro dos compartimentos identifica exatamente quando os quadróides
estão prontos para se agrupar. As treliças ali em cima são encharcadas com agentes químicos
apropriados durante alguns fengs, antes que os recipientes ovais se abram automaticamente.
As novas rainhas voam primeiro, atraídas para os elementos das treliças. Segue-se o vôo das
hordas frenéticas de machos, que chegam a formar nuvens pretas, apesar de seu tamanho
minúsculo. Os quadróides são colhidos da treliça e vão imediatamente para o treinamento de
massa...
— Muito elegante — disse Richard. — Mas tenho uma pergunta simples. Por que os
quadróides tiram todas essa fotos para vocês?
— A resposta é simples — disse Archie. — Porque elas foram trabalhadas geneticamente
durante milhares de anos para nos serem receptivas. Nós, ou melhor, nossos especialistas em
morfologias de midgets falam a linguagem química que os quadróides usam para se comunicar.
Quando os quadróides fazem o que lhes é pedido, recebem comida. Quando seu desempenho é
satisfatório durante um longo período, têm permissão de gozar os prazeres do sexo.
— De um certo grupo, ou enxame, qual a percentagem de quadróides que seguem suas ordens?
— A taxa de erro na primeira foto é de cerca de dez por cento — respondeu o engenheiro
octoaranha. — Depois que o modelo é estabelecido e o ciclo de recompensa é posto em vigor,
a taxa de erro cai muito.

— Muito impressionante — falou Richard em tom de elogio. — Talvez essa biologia tenha
mais coisas do que jamais pensei.

Na viagem de volta para a Cidade de Esmeralda, Richard e Archie discutiram sobre as forças
e fraquezas relativas dos sistemas de engenharia biológica e não-biológica. Uma conversa um
tanto esotérica e filosófica, com poucas conclusões definitivas. Porém eles concordaram que a
função enciclopédica, basicamente armazenagem, manipulação e apresentação de grandes
quantidades de informações, era mais bem trabalhada por sistemas nãobiológicos.
Quando estavam se aproximando da cidade da cúpula, o brilho verde extinguiu-se de repente.
A noite caíra de novo sobre o centro do território das octoaranhas. Logo depois, mais um par
de vaga-lumes apareceu para iluminar melhor o caminho do emassauro.
O dia tinha sido longo, e Richard estava cansado. Quando entraram nas imediações do
Domínio Alternativo, ele teve a impressão de ver uma coisa voando à sua direita na
escuridão.
— O que aconteceu com Tammy e Timmy? — perguntou.
— Eles acasalaram — respondeu Archie — e tiveram vários filhotes, que são cuidados no
zôo.
— Posso vê-los? — perguntou Richard. — Você me disse uns meses atrás que um dia isso
seria possível...
— Creio que sim — replicou Archie depois de um curto silêncio. — Embora o zôo seja uma
zona restrita, a área das aves é muito próxima da entrada.
Chegando à primeira grande estrutura do Domínio Alternativo, Archie desmontou e entrou no
prédio. Ao voltar, falou alguma coisa com o emassauro.
— Podemos fazer uma visita muito rápida — disse, quando o emassauro se desviou da via
principal e começou a serpentear pelas faixas menores da comunidade.
Richard foi apresentado ao zelador do zoológico, que os levou em um carro ao departamento
das aves, a apenas uns cem metros da entrada. Tammy e Timmy estavam ali, e reconheceram
Richard imediatamente; seus matraqueamentos e guinchos de prazer encheram os céus escuros.
As aves apresentaram Richard aos filhotes agrupados. Eles se mostraram muito tímidos diante
do primeiro ser humano que viam. Richard sentiu uma forte emoção quando acariciou o papo
aveludado de seus amigos alienígenas, e recordou-se dos dias em que era seu único protetor
na toca abaixo de Nova York.
Richard despediu-se das aves e entrou no carro com Archie e o zelador do zôo. Quando
estavam a meio caminho da saída, ele ouviu um som que o pôs em alerta e fez com que ficasse
todo arrepiado. Richard sentou-se imóvel e se concentrou. O som repetiu-se logo antes que o
carro silencioso parasse. — Posso estar enganado — falou Richard para Nicole. — Mas ouvi
duas vezes. Não há nenhum outro som igual ao choro de uma criança humana.
— Não estou duvidando de você, Richard — disse Nicole. — Só estou tentando excluir pela
lógica todas as outras possíveis fontes do som que você ouviu. Aves novinhas têm um guincho
especial que pode parecer um pouco com o choro de um bebê... e, afinal de contas, você
estava em um zôo. Pode ter sido algum outro animal.
— Não — disse Richard. — Eu sei o que ouvi. Já convivi com muitas crianças e ouvi muito
choro na minha vida.
Nicole sorriu.
— Agora o sapato está no outro pé, não é, querido? Você se lembra da sua reação quando eu
disse que tinha visto o rosto de uma mulher naquele mural, na noite em que assistimos à peça
das octoaranhas? Você caçoou de mim e disse que eu era "absurda", se é que me lembro bem
da palavra.
— Então qual é a explicação? As octoaranhas raptaram humanos de Avalon, e o incidente
nunca foi relatado? Mas como elas puderam...
— Você disse alguma coisa para Archie? — perguntou Nicole.
— Não. Eu estava pasmo. No início fiquei intrigado, porque nem ele e nem o zelador do zôo
fizeram comentário de espécie alguma, e depois me lembrei de que as octoaranhas são surdas.
Os dois ficaram em silêncio por um instante.
— Ninguém esperava que você ouvisse aquele som, Richard — falou Nicole. — Nossos
hospedeiros quase perfeitos fizeram uma manobra não-ótima.
Richard riu.
— É claro que eles estão gravando nossa conversa. Amanhã eles saberão que nós sabemos...
— É melhor não contarmos isso ainda para os outros — falou Nicole. — Talvez as
octoaranhas decidam dividir seu segredo conosco... Aliás, quando você começa a trabalhar?
— Quando eu quiser — respondeu Richard. — Eu disse a Archie que antes tinha de terminar
uns trabalhos meus.
— Parece que seu dia foi fascinante — comentou Nicole. — Por aqui tudo esteve muito
calmo; a única novidade foi que Patrick e Nai marcaram a data do casamento... de amanhã a
três semanas.
— O quê? — disse Richard. — Por que não me contou isso antes? Nicole riu.
— Não tive chance... Você entrou aqui falando sem parar sobre choro no zôo, e aves, e
quadróides, e o Banco de Embriões... Eu sabia, por experiência, que teria de esperar para
contar as novidades depois que você se cansasse.
— Muito bem, mãe do noivo — falou Richard logo depois —, como está se sentindo?
— Considerando tudo, estou muito contente... Você sabe como eu gosto de Nai... Só que o
tempo e o lugar são estranhos para se começar um casamento.

12

Estavam todos sentados na sala de estar dos Wakefield, esperando que a noiva aparecesse.
Patrick, nervoso, esfregava as mãos.

— Tenha paciência, garoto — disse Max, atravessando a sala e pondo os braços em volta de
Patrick. — Ela vai chegar... A mulher gosta de ficar bem bonita no dia do seu casamento.
— Comigo foi diferente — disse Eponine. — Na verdade, nem me lembro da roupa que eu
estava vestindo no dia em que me casei.
— Eu me lembro muito bem, francesinha — falou Max rindo —, especialmente quando
chegamos no iglu. A maior parte do tempo você usou a roupa com que nasceu.
Todos riram. Nicole entrou na sala e disse:
— Dentro de mais uns minutos ela estará aqui. Ellie está ajudando Nai a dar os últimos
retoques no vestido. — Deu uma olhada em volta. — Onde estão Archie e o dr. Azul?
— Foram em casa um instante buscar um presente especial para a noiva — disse Ellie.
— Eu não gosto quando essas octoaranhas ficam por aqui — disse Galileu com um tom
desagradável. — Elas me deixam arrepiado.
— A partir da semana que vem, Galileu — disse Ellie com sua voz suave, vocês vão ter uma
octoaranha na escola quase todo o tempo... Ela vai ajudá-los a aprender a língua delas...
— Não quero aprender a língua delas — disse o menino com ar de desafio.
Max foi para perto de Richard.
— Então, como vai indo o trabalho, amigo? Quase não o temos visto nessas duas últimas
semanas.
— O trabalho é absolutamente fascinante, Max — disse Richard com entusiasmo. — Estou
trabalhando num projeto de enciclopédia, ajudando as octoaranhas a projetar um novo
conjunto de software para exibir todas as informações fundamentais sobre centenas de
milhares de espécies que se encontram no Banco de Embriões... As octoaranhas acumulam
uma enorme riqueza de dados nos seus testes, mas surpreendentemente não sabem muito bem
como gerenciá-los com eficiência. Ontem comecei a trabalhar com dados recentes de testes de
um conjunto de agentes microbiológicos que são classificados, na taxinomia das octoaranhas,
pela série de plantas e animais para os quais são letais...
Richard parou quando Archie e o dr. Azul entraram carregando uma caixa de mais ou menos
um metro de altura, embrulhada no papel pergaminho das octoaranhas. Colocaram o presente
em um canto e ficaram esperando de pé na sala. Ellie entrou um instante depois, cantando a
marcha nupcial de Mendelssohn, seguida de Nai.
A noiva de Patrick usava seu vestido tailandês de seda, enfeitado com as flores brilhantes
amarelas e pretas que as octoaranhas haviam dado a Ellie. As flores estavam presas
estrategicamente no vestido. Patrick levantou-se e foi para o lado de Nai, em frente à sua mãe,
e o casal se deu as mãos.
Nicole foi convidada a presidir a cerimônia e fazer tudo da forma mais simples possível.
Enquanto ela se preparava para dizer umas palavras para os noivos, foi tomada de repente
pela lembrança de outros casamentos na sua vida. Viu Max e Eponine, Michael O'Toole e sua
filha Simone, Robert e Ellie... Nesse ponto, Nicole estremeceu ligeiramente, ao se lembrar
dos tiros. Mais uma vez, pensou ela, forçando-se a voltar ao presente, estamos todos reunidos
aqui.
Ela mal conseguia falar, invadida por seus sentimentos. Este é meu último casamento,
percebeu ela, quase pensando alto. Não vai haver outro. Uma lágrima rolou pelo seu rosto.
— Você está bem, Nicole? — perguntou a noiva baixinho, atenciosa como sempre. Nicole fez
que sim e sorriu.
— Meus amigos — começou Nicole —, estamos reunidos aqui hoje para assistir e comemorar
o casamento de Patrick Ryan O'Toole e Nai Buatong Watanabe. Vamos formar um círculo em
volta deles dando-nos as mãos, para mostrar nosso apoio ao seu casamento.
Nicole fez um sinal para as duas octoaranhas quando o círculo foi formado, e elas também
colocaram seus tentáculos em volta dos humanos que estavam a seu lado.
— Patrick — disse Nicole com a voz embargada —, aceita esta mulher, Nai, como sua
legítima esposa, para amar e cuidar por toda a vida?
— Aceito — disse Patrick.
— E você, Nai, aceita este homem, Patrick, como seu legítimo esposo, para amar e cuidar por
toda a vida?
— Aceito — disse Nai.
— Então eu os declaro marido e mulher. — Patrick e Nai abraçaram-se e todos gritaram. O
primeiro abraço dos recém-casados foi reservado a Nicole.
— Você algum dia conversou com Patrick sobre sexo? — perguntou Nicole a Richard, quando
a festa terminou e todos foram embora.
— Não. Max disse que faria isso... Mas não deve ter sido necessário. Afinal de contas, Nai já
foi casada... Meu Deus, como você estava emocionada esta noite! O que aconteceu?
Nicole sorriu.
— Eu fiquei pensando em outros casamentos, Richard. No de Simone e Michael, Ellie e
Robert...
— Desse eu gostaria de me esquecer — falou Richard. — Por muitas razões.
— Eu achei, durante a cerimônia, que estava chorando porque esse seria provavelmente o
último casamento a que assistiria. Mas depois, durante a festa, pensei em outra coisa. Você
nunca se importou, Richard, por nós não termos tido uma cerimônia oficial de casamento?
— Não — disse Richard, sacudindo a cabeça. — Eu tive uma cerimônia com Sarah, e isso
bastou para mim...
— Mas você teve uma cerimônia, Richard, e eu não. Tive filhos de três pais diferentes, mas
nunca fui uma noiva.
Richard ficou em silêncio por um tempo.
— E você acha que era por isso que estava chorando?
— Talvez, mas não tenho certeza.
Nicole deu uma volta na sala e Richard ficou pensando.
— Não é linda a estátua de Buda que as octoaranhas deram a Nai? — perguntou ela. — Uma
peça de arte magnífica... Acho que Archie e o dr. Azul se divertiram bastante. Não sei por que
Jamie veio buscá-los tão cedo...
— Você gostaria de ter uma cerimônia de casamento? — perguntou Richard de repente.

— Na nossa idade? — falou Nicole, dando uma risada. — Nós já somos avós.

— Mas se a fizesse feliz...


— Você está me pedindo em casamento, Richard Wakefield?
— Creio que sim. Não quero que você fique triste porque nunca foi uma noiva.
Nicole atravessou a sala e beijou o marido.
— Talvez fosse divertido. Mas não vamos planejar nada antes de Patrick e Nai se instalarem.
O momento de glória agora é deles.
Richard e Nicole foram para o quarto abraçados e levaram um susto quando viram que a
passagem estava bloqueada por Archie e o dr. Azul.
— Vocês precisam vir conosco imediatamente — disse Archie. — É uma emergência.
— Agora? A essa hora? — perguntou Nicole.
— É — respondeu o dr. Azul. — Só vocês dois. O Chefe Otimizador está esperando... Ele vai
explicar tudo.
Nicole sentiu seu coração disparar quando a adrenalina entrou no seu sistema.
— Vou precisar de um casaco? — perguntou. — Nós vamos sair da cidade?
Por alguma razão, a primeira idéia de Nicole foi que aquela emergência tinha a ver com o
choro de criança que Richard ouvira depois de sua primeira visita ao Banco de Embriões.
Será que a criança estava doente? Será que estava morrendo? Então por que não estavam indo
diretamente para o zôo, que ficava fora da cúpula, no Domínio Alternativo?
O Chefe Otimizador e sua equipe estavam esperando. Havia duas cadeiras na sala. Assim que
Richard e Nicole se sentaram, o chefe das octoaranhas começou a falar em cores.
— Está havendo uma crise grave, que infelizmente poderá levar à guerra entre nossas duas
espécies. — O Chefe Otimizador fez um sinal com seu tentáculo e começaram a aparecer
imagens de vídeo na parede. -— Hoje bem cedo dois helicópteros começaram a descer tropas
da ilha de Nova York para o extremo norte do nosso território, bem ao lado do mar Cilíndrico.
Os dados dos nossos quadróides indicam que não só a sua espécie está se preparando para
nos atacar como também que seu líder Nakamura obteve apoio do Senado para os
preparativos da guerra, e num tempo relativamente curto criou um arsenal que poderá causar
danos substanciais à nossa colônia.
O Chefe Otimizador parou, enquanto Nicole e Richard observavam as imagens mostrando as
bombas, bazucas e metralhadoras sendo fabricadas no Novo Éden.
— Os humanos fizeram investigações nos últimos quatro dias através de pequenos grupos por
terra e dois helicópteros no ar. Essas missões de reconhecimento chegaram à barreira de
floresta ao sul, e cobriram todo o alcance cilíndrico do nosso território. Quase trinta por cento
de nossa comida, energia e suprimento de água encontram-se na região onde os humanos
fizeram o reconhecimento. Não houve nenhum combate, pois nós não oferecemos resistência
às atividades de exploração. Mas colocamos cartazes em lugares estratégicos, usando
palavras que conhecemos da sua língua, para informar às tropas humanas que todo o cilindro
sul pertence a uma espécie avançada, mas pacífica, e solicitando que os humanos voltem para
seu próprio território. Nossos cartazes foram ignorados.
— Dois dias atrás ocorreu um incidente preocupante. Enquanto colhíamos cereais em uma de
nossas grandes plantações, um helicóptero ficou sobrevoando a área. Logo depois o veículo
aterrissou por perto e desceram quatro soldados. Sem que fossem de forma alguma
provocados, esses humanos executaram os três animais que faziam a colheita, aquelas
criaturas de seis braços que vocês viram no primeiro reconhecimento que fizeram do nosso
território, e atearam fogo à plantação. A partir desse incidente, as palavras dos nossos
cartazes mudaram. Nós deixamos bem claro que qualquer outro comportamento semelhante
será considerado um ato de guerra. Entretanto, pela ações de hoje de manhã, parece que
nossos avisos não foram considerados e que a sua espécie está planejando começar um
conflito do qual não tem condições de sair vitoriosa. Estive pensando hoje em fazer uma
declaração de guerra, acontecimento extremamente grave para uma colônia de octoaranhas
com ramificações em todos os níveis da nossa sociedade. Porém, antes de tomar essa decisão
irreversível, consultei esses outros otimizadores, cuja opinião respeito muito. A maioria da
minha equipe é a favor da declaração de guerra, pois não vê nenhum meio para convencer seus
conterrâneos de que um conflito conosco representaria um desastre para eles. A octoaranha
que vocês chamam de Archie, entretanto, apresentou à minha equipe uma proposta que
pensamos que tem alguma possibilidade de funcionar. Embora nossos analistas estatísticos
digam que provavelmente ocorrerá a guerra, nossos princípios exigem que façamos todo o
possível para evitá-la... Como a proposta de Archie requer seu envolvimento e cooperação,
vocês foram chamados aqui esta noite.
O Chefe Otimizador parou de falar em cores e foi para o lado da sala. Richard e Nicole
entreolharam-se.
— O seu tradutor pegou tudo? — perguntou Nicole.
— Quase tudo — respondeu Richard. — Pelo menos entendi a essência da situação... Você
tem alguma pergunta a fazer? Ou devemos sugerir que eles expliquem a proposta de Archie?
Nicole fez um sinal na direção de Archie e ele foi para o centro da sala.

— Eu me ofereci — disse a octoaranha — para negociar pessoalmente com os líderes


humanos, a fim de tentar deter um conflito antes que se chegue a uma guerra em alta escala.
Porém, para conseguir isso, vou precisar obviamente de ajuda. Se eu aparecer de repente no
acampamento dos soldados humanos, eles me matarão. E, mesmo que não me matem, não terão
como compreender o que eu vou lhes falar. Portanto, algum humano que compreenda a nossa
língua deve me acompanhar para traduzir minhas cores, caso contrário não haverá
possibilidade de ser iniciado um diálogo significativo...

Depois que Richard e Nicole disseram ao Chefe Otimizador que concordavam com o conceito
básico proposto por Archie, os dois humanos e seu colega octoaranha foram deixados a sós
para discussão dos detalhes. A idéia de Archie era direta. Nicole e ele chegariam juntos, perto
do acampamento próximo ao mar Cilíndrico, e solicitariam um encontro com Nakamura e os
outros chefes humanos. Nesse encontro, Archie e Nicole explicariam que as octoaranhas eram
uma espécie pacífica que não tinha reivindicações territoriais do lado norte do mar Cilíndrico.
Archie pediria que os humanos se retirassem do acampamento deles e parassem de sobrevoar
aquela área. Se necessário, em sinal de boa vontade das octoaranhas, Archie ofereceria
suprimentos de comida e água para ajudar os humanos nas dificuldades que estavam
atravessando. Seria estabelecido um relacionamento permanente entre as duas espécies e
preparado um tratado para codificar o acordo.
— Meu Deus — disse Richard, ao terminar a tradução dos comentários de Archie. — E eu
que pensei que Nicole é que fosse idealista!
Archie não entendeu a observação de Richard, e Nicole explicou pacientemente à octoaranha
que os líderes do Novo Éden provavelmente não seriam tão razoáveis quanto Archie supunha.
— É bem possível — falou ela, mostrando o perigo da proposta de Archie — que eles matem
a nós dois, antes mesmo que possamos dizer alguma coisa.
Archie insistiu que sua proposta acabaria sendo aceita, pois atendia claramente aos interesses
dos humanos que viviam no Novo Éden.
— Olhe, Archie — disse Richard irritado —, o que você disse não está certo. Há muitos seres
humanos, inclusive Nakamura, que não dão a mínima para o que é bom para a sua colônia. Na
verdade, o bem-estar comum nem ao menos é considerado na função objetiva subconsciente,
para usar os termos de vocês, que rege o comportamento deles. Toda decisão é considerada a
partir do aumento de poder ou influência pessoal que poderá trazer. Na nossa história, os
líderes sempre destroem seu próprio país, ou colônias, na tentativa de manter o poder.
A octoaranha permaneceu obstinada.
— O que você está descrevendo não pode ser verdade em espécies avançadas — insistiu
Archie. — As leis fundamentais da evolução indicam claramente que as espécies cujo valor
básico é o bem-estar do grupo sobreviverão àquelas em que o indivíduo é supremo... Você
está sugerindo que os seres humanos são uma aberração, uma anomalia da natureza que viola
um fundamento...
Nicole interrompeu.
— Isso tudo é muito interessante, mas nós temos assuntos mais urgentes. Precisamos fazer um
plano de ação que não tenha ciladas... Richard, se você não aprova o plano de Archie, o que
sugere?
Richard refletiu um instante antes de falar.
— Creio que Nakamura levou o Novo Éden a essa ação contra as octoaranhas por muitas
razões, uma das quais é afastar a crítica das falhas internas de seu governo. Acho que ele só
será dissuadido de sua idéia se os cidadãos forem ferozmente contra a guerra, e, sinto dizer,
acho que isso só acontecerá se os colonos se convencerem de que a guerra será um desastre.
— Então você acha que haverá necessidade de ameaças? — perguntou Nicole.
— Pelo menos um mínimo. Uma demonstração do poder militar das octoaranhas seria perfeito
— falou Richard.
— Mas isso é impossível — comentou Archie —, pelo menos nas circunstâncias atuais.
— Por quê? — perguntou Richard. — O Chefe Otimizador falou com confiança que ganharia
qualquer guerra que houvesse. Se vocês atacassem e destruíssem aquele acampamento...
— Agora é você que não está nos entendendo — disse Archie. — Como a guerra, ou qualquer
conflito que possa resultar em mortes deliberadas, é uma forma não-ótima de resolver atritos,
nossa colônia tem regras muito rígidas relativas a ações hostis conjuntas. Os controles são
construídos na nossa sociedade para que a guerra seja um recurso extremo... Nós não temos
um exército permanente nem armamentos em estoque, por exemplo... E há outras restrições
também. Todos os otimizadores que participam de uma declaração de guerra, e todas as
octoaranhas que se engajam em um conflito armado, são exterminados imediatamente após a
guerra.
— O quê? — disse Richard, sem acreditar no seu tradutor. — Isso não é possível.
— É sim — replicou Archie. — Como você pode imaginar, esses fatores detêm
significativamente nossa participação em hostilidades não-defensivas. O Chefe Otimizador
sabe que assinou a própria morte duas semanas atrás, quando autorizou o início das
preparações de guerra. As oitenta octoaranhas que trabalham agora no Domínio da Guerra
serão exterminadas quando a guerra acabar ou a ameaça de guerra for oficialmente afastada...
Eu próprio, por fazer parte das discussões de hoje, serei colocado na lista de extermínio se a
guerra for declarada.
Richard e Nicole estavam sem fala.
— A única justificativa possível de uma octoaranha para a guerra — continuou Archie — é
uma ameaça incontestável aos próprios sobreviventes da colônia. Uma vez identificada e
reconhecida a ameaça, nossa espécie passa por uma metamorfose e leva avante a guerra, sem
misericórdia, até a ameaça ser extinta ou nossa colônia ser destruída... Há algumas gerações,
otimizadores muito sábios perceberam que os indivíduos octoaranhas que se ocupavam em
matar e com o projeto de matar ficavam tão alterados psicologicamente por suas experiências
que se tornavam um grande problema para as operações de uma colônia pacífica. Por isso
foram estabelecidas as cláusulas adicionais de extermínio.
Richard e Nicole continuaram em silêncio, mesmo depois que Archie terminou de falar. A
certa altura, Richard pediu a Archie para sair da sala para que pudesse falar com sua mulher
em particular, mas logo se lembrou dos quadróides que estavam presentes em toda parte.
— Nicole, querida — disse finalmente —, não aprovo o plano de Archie por vários motivos.
Para começar, eu devo ir com ele e não você...
Quando Nicole fez menção de interrompê-lo, Richard fez um gesto com as mãos para que ela
se calasse.
— Agora quero que você me ouça. Ao longo do nosso casamento, especialmente desde que
saímos de Nodo, foi sempre você quem tomou a dianteira das coisas, quem deu seu tempo e
energia em prol da família ou da colônia... Agora é a minha vez... Neste caso específico,
acredito que sou mais adequado para a tarefa proposta. Posso facilmente assustar nossos
conterrâneos, descrevendo imagens dos golpes terríveis proferidos pelas octoaranhas...
— Mas você não fala a língua deles muito bem — protestou Nicole. — Sem o seu tradutor...
— Já pensei nisso — falou Richard. — E acho que, por várias razões, Ellie e Nikki devem ir
com Archie e comigo. Primeiro, levando uma criança, a probabilidade de sermos mortos pela
tropa de Nakamura é muito menor. Segundo, Ellie é completamente fluente na língua das
octoaranhas e pode me ajudar, caso eu não tenha o tradutor à mão ou ele falhe na tradução.
Terceiro, e talvez a razão mais importante, é que o único crime que Nakamura e sua corja
podem atribuir às octoaranhas é o seqüestro de Ellie. Se Ellie aparecer, saudável e elogiando
o inimigo alienígena, o motivo da guerra acabará.
Nicole franziu a testa.
— Não gosto da idéia de meter Nikki nisso... É muito perigoso. Eu não me perdoaria se
alguma coisa acontecesse com a menina...
— Nem eu — falou Richard. — Mas acho que Ellie não iria sem ela... Nicole, não existem
bons planos... Teremos de escolher o que for menos insatisfatório.
Durante uma breve pausa na conversa, Archie falou em cores.
— Os pontos levantados por Richard são excelentes — disse a octoaranha para Nicole. — E
há mais uma razão para você ficar na Cidade de Esmeralda: o resto dos humanos que forem
deixados aqui irá precisar de sua liderança nos dias difíceis que terão pela frente.
A cabeça de Nicole estava fervendo. Ela não tinha pensado em Richard se apresentar como
voluntário.
— Você está me dizendo que aprova a sugestão de Richard, inclusive de levar Ellie e Nikki
junto? — perguntou Nicole.
— Isso mesmo — respondeu a octoaranha.
— Mas, Richard — continuou ela, virando-se para o marido —, você odeia toda essa
baboseira política, para usar suas próprias palavras. Tem certeza de que pensou bem nisso?
Richard fez que sim, e Nicole deu de ombros.

— Tudo bem, então. Vamos falar com Ellie. Se ela concordar, o plano está feito.

O Chefe Otimizador achou que a emenda à proposta tinha possibilidade de sucesso, mas viu-
se forçado a lembrar a todos que, com base na análise das octoaranhas, havia uma grande
probabilidade de Archie e Richard serem mortos. O coração de Nicole quase parou de bater
quando ela traduziu as palavras do líder das octoaranhas. O Chefe Otimizador não estava
dizendo nada que Nicole não soubesse, mas ela tinha estado tão envolvida no plano e nas
discussões sobre o assunto que não pensara nos possíveis resultados das decisões tomadas.
Nicole falou muito pouco enquanto os chefes traçavam uma linha de ação. Quando ouviu
Richard dizer que Archie e ele sairiam da Cidade de Esmeralda um tert depois do próximo
alvorecer, com ou sem Ellie e Nikki, Nicole estremeceu. Amanhã, passou-lhe rapidamente
pela cabeça. Amanhã nossa vida vai mudar de novo.
Ela ficou calada na viagem de volta para a sua zona. Enquanto Richard e Archie falavam
sobre vários assuntos diferentes, Nicole tentava lutar contra o medo cada vez maior que
sentia. Uma voz interior, que não ouvia há anos, dizialhe que nunca mais veria Richard depois
que ele partisse. Será uma reação peculiar da minha parte?, perguntou a si mesma em tom
crítico. Estarei com dificuldade de deixar Richard ser o herói?
A premonição ficou mais forte, apesar de Nicole tentar combatê-la. Ela lembrou-se de um
terrível pesadelo que tivera aos dez anos de idade, quando acordou gritando no seu quarto da
casinha de Chilly-Mazarin: "Mamãe morreu."
Seu pai tentara consolá-la, explicando que sua mãe estava viajando, visitando a família na
Costa do Marfim. O telegrama anunciando a morte da sua mãe chegara sete horas depois.
— Se vocês não têm armas em estoque nem soldados treinados — disse Richard —, como vão
poder se preparar para se defender numa guerra?
— Isso eu não posso lhe dizer — falou Archie. — Mas só sei que um conflito agora entre as
duas espécies resultaria na aniquilação da civilização humana de Rama.
Nicole não conseguia acalmar seu coração atormentado. Por mais que se dissesse que estava
exagerando, o medo premonitório não passava. Ela pegou a mão de Richard, e ele continuou a
conversar com Archie.
Nicole olhou dentro dos olhos dele. Estou orgulhosa de você, Richard, mas também estou
assustada. Continuou a pensar, sentindo as lágrimas escorrendolhe pelo rosto. E ainda não
estou pronta para dizer adeus.

Era muito tarde quando Nicole foi para a cama. Ela tinha acordado Ellie suavemente, sem
perturbar Nikki nem os gêmeos Watanabe, que estavam dormindo com os Wakefield para que
Nai e Patrick pudessem passar a noite de núpcias sozinhos. Ellie fez muitas perguntas. Richard
e Nicole lhe explicaram o plano, inclusive tudo de importante que tinham ouvido de Archie e
do Chefe Otimizador naquela noite. Ellie ficou com medo, mas finalmente concordou em
acompanhar Richard e Archie no dia seguinte, levando Nikki.

Nicole não conseguiu dormir de verdade. Virou-se na cama durante uma hora, até entrar numa
seqüência de sonhos curtos e caóticos. No último sonho, estava com sete anos, na Costa do
Marfim, no meio de uma cerimônia Poro. Estava seminua na água, e a leoa rondava à beira do
lago. A pequena Nicole respirou fundo e mergulhou na água. Quando subiu à tona viu Richard,
jovem e sorrindo, no lugar onde a leoa tinha estado. Mas, à medida que o olhava, ele ia
envelhecendo rapidamente, tornando-se o Richard que estava ao seu lado na cama. Então ela
ouviu a voz de Omeh. "Olhe com cuidado, Ronata", disse a voz. "E lembre-se..."
Nicole acordou. Richard dormia tranqüilamente. Ela sentou-se na cama e deu uma batida na
parede. Um vaga-lume solitário apareceu na porta, iluminando um pouco o quarto. Nicole
olhou para o marido, viu o cabelo e a barba grisalhos e lembrou-se do tempo em que eram
pretos. Lembrou-se do ardor e do humor dele quando começou a cortejá-la em Nova York.
Nicole fez uma careta, respirou fundo, beijou seu dedo indicador e colocou-o nos lábios de
Richard. Ele não se mexeu. Nicole ficou imóvel por uns minutos, estudando as feições do
marido. As lágrimas desceram pelo seu rosto, caindo pelo queixo e pelos lençóis.

— Eu te amo, Richard — disse baixinho.


GUERRA EM RAMA

RELATÓRIO Número 319


Hora da Transmissão: 156 307 872 574.2009
Hora desde o Primeiro Estágio de Alerta: 111.9766
Referências: Nodo 23-419
Espaçonave 947
Viajantes espaciais 47 249 (A & B)
32 806
2 666

Durante o último intervalo, a estrutura e a ordem das comunidades dos viajantes espaciais
dentro da nave continuaram a desintegrar-se. Apesar das advertências das octoaranhas
(viajante espacial # 2 666) e suas louváveis tentativas de evitar um grande conflito entre os
humanos (# 32 806), agora é mais provável que uma guerra desastrosa entre as duas espécies,
que deixaria muito poucos sobreviventes, venha a ocorrer nos próximos intervalos. A
situação, portanto, reúne todas as condições necessárias para uma intercessão de estágio dois.
A atividade intercessionária anterior foi declarada um fracasso, basicamente porque a espécie
mais agressiva, a dos humanos, é insensível a toda uma série de técnicas intercessionárias
sutis. Só poucos humanos responderam às várias tentativas de alterar seu comportamento
hostil, e os que reagiram não foram capazes de parar o genocídio das aves e dos sésseis (# 47
249 — A & B) perpetrado por seus dirigentes.
Os humanos são organizados de uma forma hierárquica rígida, encontrada com freqüência em
espécies anteriores à dos viajantes espaciais. Eles continuam a ser dominados por uma
liderança centralizada na manutenção do poder pessoal. O bem-estar da comunidade humana e
até mesmo sua sobrevivência são subordinados na função objetiva implícita dos atuais líderes
humanos à continuação de um sistema político que lhes dê absoluta autoridade.
Conseqüentemente, há pouca probabilidade de que a ameaça de um grande conflito entre os
humanos e as octoaranhas seja evitada através de apelos lógicos.
Um pequeno quadro de humanos, inclusive quase toda uma família que viveu em Nodo por
mais de um ano, permanece na cidade principal das octoaranhas. Seu intercâmbio com seus
hospedeiros demonstrou que é possível as duas espécies viverem juntas em harmonia.
Recentemente, uma delegação mista desses humanos e de uma octoaranha decidiu fazer um
esforço conjunto para evitar uma guerra em larga escala entre as espécies, entrando em contato
para evitar uma guerra em larga escala entre as espécies, entrando em contato direto com os
líderes da colônia humana. Porém, a probabilidade de essa delegação ter sucesso é muito
pequena.

Até agora as octoaranhas não tiveram nenhuma atitude hostil, porém já começaram a preparar-
se para a guerra contra os humanos. Embora elas só venham a lutar se concluírem que a
sobrevivência da sua comunidade está em perigo, suas avançadas técnicas biológicas fazem
com que o resultado de uma guerra dessas possa ser previsto.
O que não se sabe ao certo é como os humanos reagirão quando o conflito aumentar e eles
tiverem grandes baixas. É possível que a guerra termine rapidamente, e que com o tempo as
duas comunidades sobreviventes possam chegar de novo a uma condição próxima do
equilíbrio. Porém, com base nos dados disponíveis pela observação dos humanos, há
probabilidade de que essa espécie continue a guerrear até que quase todos estejam mortos. Tal
resultado destruiria todos os vestígios de pelo menos uma das duas sociedades de viajantes
espaciais restantes na nave. Para evitar um resultado tão desvantajoso para o projeto, é
recomendada a consideração da intercessão do estágio dois.

Nicole acordou com o barulho das três crianças na sala de estar. Quando estava vestindo o
roupão, Ellie chegou na porta do quarto e perguntou se ela tinha visto a boneca favorita de
Nikki.
— Acho que está debaixo da cama — respondeu Nicole.
Ellie voltou a fazer as malas. Nicole ouviu Richard no banheiro. Está chegando a hora,
pensou, quando sua neta apareceu de repente na porta.
— Mamãe e eu estamos indo embora, vovó — disse a menininha sorrindo. — Nós vamos ver
o papai.
Nicole abriu os braços e Nikki correu para lhe dar um abraço.
— Eu sei, querida — falou Nicole, apertando a neta nos braços e passando a mão em seus
cabelos. — Vou sentir a sua falta, Nikki — disse.
Um instante depois, os gêmeos Watanabe entraram no quarto.
— Estou com fome, sra. Wakefield — disse Galileu.
— Eu também — acrescentou Kepler.
Nicole soltou sua neta com relutância e atravessou o quarto.
— Tudo bem, meninos. Vou preparar seu café da manhã em um instante. Quando as três
crianças tinham quase terminado de comer, Max, Eponine e Marius chegaram na porta.
— Adivinhe uma coisa, tio Max — falou Nikki antes que Nicole tivesse tempo de
cumprimentar os Pucketts. — Eu vou ver o meu papai.

As quatro horas passaram depressa. Richard e Nicole explicaram tudo duas vezes, primeiro
para Max e Eponine e depois para os recém-casados, que ainda estavam radiantes com os
prazeres de sua noite de núpcias. Quando foi chegando a hora de Richard, Ellie e Nikki
partirem, a excitação e energia que tinham caracterizado a conversa da manhã começaram a
diminuir. Nicole sentiase tonta. Relaxe e sorria, disse para si mesma. Você não vai facilitar
as coisas se ficar triste.

Max foi o primeiro a despedir-se.


— Venha cá, princesa, dar um beijão no tio Max — disse para Nikki, que seguiu as ordens
obedientemente. Então Max levantou-se e atravessou a sala para falar com Ellie, que estava
conversando com sua mãe. — Cuide bem dessa garotinha, Ellie — disse, abraçando-a —, e
não deixe aqueles cretinos criarem uma encrenca. — Max apertou a mão de Richard e levou
os gêmeos Watanabe para fora da sala.
O astral na sala estava ligeiramente alterado. Apesar de ter prometido a si mesma manter-se
calma, Nicole sentiu um certo pânico quando percebeu de repente que tinha apenas alguns
minutos para se despedir de todos. Patrick, Nai, Benjy e Eponine tinham seguido Max e
estavam se despedindo do trio, já pronto para partir.
Nicole tentou abraçar Nikki outra vez, mas a menina correu para fora, para brincar com os
gêmeos. Ellie terminou de despedir-se de Eponine e virou-se para Nicole.
— Vou sentir sua falta, mamãe. Te amo muito. Nicole lutou para manterse equilibrada.
— Eu não podia ter tido uma filha melhor que você — disse. Enquanto as duas mulheres se
abraçavam, Nicole falou baixinho no ouvido da filha. — Tome cuidado. Há muita coisa em
jogo...
Ellie se soltou e olhou dentro dos olhos da, mãe, respirando fundo.
— Eu sei, mamãe — disse ela com um ar sombrio —, e estou assustada. Espero não
desapontar...
— Você não vai desapontar ninguém — disse Nicole, batendo no ombro da filha. — Lembre-
se do que o grilo do Pinóquio disse.
Ellie sorriu.
— E sempre deixe sua consciência ser seu guia.
— Archie chegou! — Nicole ouviu Nikki gritar, e procurou o marido. Onde está Richard?,
pensou assustada. Eu não me despedi dele... Ellie já se dirigia para a porta, carregando duas
mochilas.
Nicole mal pôde respirar quando ouviu Patrick dizer:
— Onde está o tio Richard?
E uma voz respondeu do escritório:
— Estou aqui.
Nicole saiu correndo pelo corredor até o escritório. Richard estava sentado no chão no meio
dos seus componentes eletrônicos, com a mochila aberta. Nicole parou na porta por um
segundo para tomar fôlego.
Richard ouviu-a por trás da porta e virou-se.
— Oi, querida — disse ele calmamente. — Ainda estou tentando descobrir quantos
componentes de back-up devo levar para os meus tradutores.
— Archie chegou — disse Nicole com tranqüilidade. Richard olhou para o relógio.
— Acho que está na hora de ir. — Pegou um punhado de peças eletrônicas e enfiou-as na
mochila. Depois levantou-se e foi para perto de Nicole.
— Tio Richard — gritou Patrick.
— Estou indo num minuto — respondeu Richard.
Nicole começou a tremer assim que Richard pôs os braços à sua volta.
— Ei, está tudo bem... Nós já nos separamos antes — disse ele.
O medo de Nicole tornou-se tão grande que ela não conseguia falar. Tentou desesperadamente
armar-se de coragem, mas tudo em vão. Sabia que era a última vez que tocaria no marido.
Nicole pôs uma das mãos por trás da cabeça de Richard para poder beijálo. As lágrimas
escorriam-lhe pelo rosto. Queria deter o tempo, fazer com que aquele momento durasse uma
eternidade. Seus olhos fotografaram o rosto de Richard, e ela beijou-o suavemente nos lábios.
— Eu te amo, Nicole — disse Richard.
Por um instante, ela achou que não seria capaz de responder, mas finalmente conseguiu dizer:
— Eu também te amo.
Richard pegou a mochila e acenou um adeus para Nicole, que ficou de pé na porta vendo-o
sair. Dentro de sua cabeça, ela ouviu a voz de Omeh dizendo: "Lembre-se."

Nikki mal podia acreditar no que via. Ali em frente, fora dos portões da Cidade de Esmeralda,
um emassauro esperava por eles, como Archie dissera. Ela ficou impaciente quando sua mãe
ajeitou seu zíper.
— Posso dar comida para ele, mamãe? Posso? Posso? — perguntava Nikki. Mesmo com o
emassauro sentado no chão, Richard teve de ajudar Nikki a montar o animal.
— Obrigado, vovô — disse a menina quando se acomodou confortavelmente na concavidade
do bicho.
— Os horários foram estudados com muito cuidado — disse Archie a Richard e Ellie, quando
se dirigiam para a floresta. — Chegaremos ao acampamento quando as tropas estiverem
começando a tomar o café da manhã. Assim, todos nos verão.
— Como saberemos precisamente quando devemos aparecer? — perguntou Richard.
— Uns quadróides estão sendo orientados dos acampamentos do extremo norte. Logo depois
que os primeiros soldados acordarem e estiverem se movimentando nas barracas, Timmy, sua
ave amiga, sobrevoará as barracas no escuro carregando uma mensagem escrita sobre a nossa
chegada iminente. Nessa mensagem informará que seremos precedidos pelos vaga-lumes, e
que levaremos uma bandeira branca, como você sugeriu.
Nikki percebeu uns olhos estranhos olhando para ela da floresta escura.
— Não é engraçado? — disse ela para sua mãe. Ellie não respondeu.

Archie parou o emassauro a cerca de um quilômetro do acampamento humano. As lanternas e


outras luzes do lado de fora das barracas distantes pareciam estrelas brilhando à noite.
— Timmy deve estar jogando nossa mensagem agora — falou Archie. Eles se moviam
cautelosamente no escuro há quase um tert; não queriam usar os vaga-lumes para que não
houvesse a menor possibilidade de serem notados antes da hora. Nikki dormia pacificamente,
com a cabeça no colo da mãe. Richard e Ellie estavam tensos.
— O que faremos — perguntou Richard antes de pararem — se as tropas atirarem em nós
antes de podermos falar alguma coisa?
— Daremos meia-volta e fugiremos o mais rápido possível — respondeu Archie.
— E se eles nos perseguirem com helicópteros e holofotes? — perguntou Ellie.
— Em alta velocidade, o emassauro leva quase quatro wodens para chegar à floresta — disse
Archie.
Timmy voltou para o grupo e relatou a Archie, numa língua que misturava guinchos e cores,
que sua missão fora cumprida. Depois, Richard e Timmy se despediram. Quando Richard fez
um carinho na barriga da ave, percebeu em seus olhos grandes uma emoção que nunca vira
antes. Um instante depois, quando Timmy voou para a Cidade de Esmeralda, um par de vaga-
lumes iluminou o caminho e dirigiu-se para o acampamento humano. Richard liderava o
cortejo, agarrando a bandeira branca com a mão direita. O emassauro vinha uns cinqüenta
metros atrás, carregando Ellie, Archie e Nikki, que ainda dormia.
Richard viu os soldados através dos seus binóculos quando estava a uns quatrocentos metros
de distância deles. Contou vinte e seis soldados ao todo, inclusive três com rifles e dois
vasculhando a escuridão com binóculos.
Conforme planejado, Ellie, Nikkie e Archie desmontaram quando estavam a uns duzentos
metros do acampamento. O emassauro foi mandado de volta para a Cidade de Esmeralda antes
de os quatro se aproximarem dos soldados humanos. Nikki, que ainda não estava bem
acordada, começou a reclamar; mas, ao sentir a importância do pedido de sua mãe, ficou em
silêncio.
Archie caminhava entre os dois adultos. Nikki segurava a mão de sua mãe e tentava seguir seu
passo.
— Ei, vocês aí — gritou Richard quando achou que já podia ser ouvido. — Eu sou Richard
Wakefield. Nós viemos em paz — disse, acenando a bandeira branca com força. — Estou com
minha filha Ellie, minha neta Nikki e um representante das octoaranhas.
Deve ter sido uma cena incrível para os soldados, pois nenhum deles tinha visto uma
octoaranha antes. Com os vaga-lumes sobrevoando as tropas, Richard e seu grupo emergiram
do escuro.

Um dos soldados deu um passo à frente.

— Eu sou o capitão Enrico Pioggi, comandante deste acampamento... Aceito sua rendição em
nome das forças armadas do Novo Éden.

Como a chegada iminente deles tinha sido anunciada no acampamento menos de meia hora
antes, o comando do Novo Éden não teve tempo de formular um plano para os prisioneiros.
Assim que foi confirmado que um grupo composto de um homem, uma mulher, uma criança e
uma octoaranha alienígena aproximava-se do acampamento, o capitão Pioggi comunicou-se de
novo pelo rádio com o quartel-general de Nova York e pediu instruções de procedimento. O
coronel encarregado da campanha lhe disse para cuidar dos prisioneiros e esperar novas
ordens.
Richard previra que nenhum dos oficiais se disporia a tomar qualquer atitude definitiva sem
antes consultar o próprio Nakamura. Ele dissera a Archie, durante a longa viagem no
emassauro, que seria importante aproveitar o contato com os soldados para começar a rebater
a propaganda que o governo do Novo Éden estava espalhando.
— Esta criatura — disse Richard em voz alta, depois que os prisioneiros foram revistados e
as tropas curiosas os rodearam — é uma octoaranha. Todas as octoaranhas são muito
inteligentes, de certa forma mais inteligentes do que nós; cerca de quinze mil vivem no
Hemicilindro Sul, que se estende daqui até a base do pólo sul. Minha família e eu vivemos no
território delas há mais de um ano, por livre escolha, e consideramos as octoaranhas muito
pacíficas. Minha filha Ellie e eu viemos aqui com este representante, a quem chamamos de
Archie, para tentar encontrar um meio de deter um confronto militar entre nossas duas
espécies.
— A senhora não é esposa do dr. Robert Turner? — perguntou um soldado. — A que foi
raptada pelas octoaranhas?
— Sou — respondeu Ellie com uma voz bem clara. — Só que não fui exatamente raptada. As
octoaranhas queriam estabelecer comunicações conosco e não conseguiam. Eu fui levada
porque elas acreditavam que pudesse aprender a sua língua.
— Essa coisa fala? — perguntou outro soldado incrédulo.
Até aquele momento, Archie tinha ficado quieto, como planejado. Os soldados olharam
estupefatos quando as cores começaram a jorrar do lado direito da sua fenda e a passar em
volta da sua cabeça.
— Archie está cumprimentando vocês — traduziu Ellie. — Disse que quer que vocês saibam
que nem ele nem qualquer membro da sua espécie pretendem lhes fazer mal. Disse também
que sabe ler os lábios, e que terá prazer em responder a qualquer pergunta de vocês...
— Isso é verdade? — perguntou um soldado.
Enquanto isso, o capitão Pioggi, irritado, relatava pelo rádio ao coronel em Nova York o que
estava presenciando.
— Sim, senhor — dizia ele —, cores em volta da cabeça dela... cores diferentes, senhor,
vermelho, azul, amarelo... como se fossem retângulos, retângulos móveis em volta da cabeça
dela, e depois outros... O quê, senhor? A mulher, a esposa do doutor, senhor... aparentemente
sabe o significado das cores... Não, senhor, não são letras coloridas, só faixas coloridas...
Nesse instante, senhor, o alienígena está conversando com os soldados... Não, senhor, eles não
estão usando cores... Segundo a mulher, a octoaranha sabe ler os lábios... como se fosse uma
pessoa surda, senhor... eu creio que é a mesma técnica... de qualquer forma, ela responde em
cores e a esposa do doutor traduz... Nenhuma arma, senhor... muitos brinquedos, roupas,
objetos de aspecto estranho que o prisioneiro Wakefield diz serem componentes eletrônicos...
Brinquedos, senhor, eu disse brinquedos... a menininha trouxe vários brinquedos na sua
mochila... Não, nós não temos um escaneador aqui... Muito bem, senhor... o senhor tem idéia
de quanto tempo vamos ter de esperar?

Quando o capitão Pioggi finalmente recebeu ordens para mandar os prisioneiros para Nova
York em um dos helicópteros, Archie tinha impressionado todos os soldados do acampamento.
A octoaranha começara a demonstrar suas prodigiosas habilidades mentais multiplicando de
cabeça números de cinco e seis casas decimais.
— Como podemos saber que aquela octoaranha está dando a resposta certa? — perguntou um
dos soldados. — Ela jorra uma porção de cores e está acabado.
— Meu rapaz — disse Richard dando uma gargalhada —, você não acabou de verificar na
calculadora do tenente que o número dado pela minha filha estava correto? Você acha que ela
computou o resultado de cabeça?
— Ah, é mesmo — disse o jovem. — Entendo o que o senhor quer dizer. O que realmente
assombrou os soldados foi a memória fenomenal de
Archie. A um sinal de Richard, um dos elementos da tropa listou uma seqüência de centenas
de números em uma folha de papel, e depois leu para Archie um número de cada vez. A
octoaranha repetiu os números todos através de Ellie, sem errar nenhum. Alguns soldados
acharam que havia algum truque naquilo, que talvez Richard estivesse passando sinais
codificados para Archie. Mas quando Archie duplicou sua façanha em condições
cuidadosamente controladas, quem ainda tinha dúvidas saiu convencido de sua memória
prodigiosa.
O ambiente do acampamento era de congraçamento quando chegaram as ordens para que os
prisioneiros fossem transportados para Nova York. A primeira parte do plano deles teve mais
sucesso do que o esperado. Entretanto, Richard não estava muito confiante quando eles
subiram no helicóptero para atravessar uma parte do mar Cilíndrico.

Eles só ficaram em Nova York por aproximadamente uma hora. Guardas armados receberam
os prisioneiros no heliporto, na praça ocidental, confiscaram as mochilas, apesar dos
protestos veementes de Richard e Nikki, e fizeram com que eles caminhassem até o Porto.
Richard carregava Nikki nos braços, e mal teve tempo de admirar seus arranha-céus
preferidos projetando-se na escuridão.
O iate que atravessou com eles a parte norte do mar Cilíndrico era semelhante aos barcos que
Nakamura e seus asseclas usavam em suas farras no lago Shakespeare. Em hora alguma
durante a travessia os guardas falaram com os prisioneiros.

— Vovô — cochichou Nikki para Richard depois de fazer várias perguntas que não foram
respondidas —, esses homens não sabem falar?

Um aerobarco os esperava em um cais, recentemente construído para fazer face às novas


atividades em Nova York e no Hemicilindro Sul. Com grande esforço e despesa, os humanos
haviam feito uma abertura na barreira do sul, numa área adjacente ao habitat das aves e dos
sésseis, e construído um grande ancoradouro.
No início, Richard ficou pensando por que seria que ele e seus companheiros não tinham sido
enviados diretamente para o Novo Éden de helicóptero. Mas depois de um instante concluiu
que, em virtude da enorme altura da barreira, que se estendia bem acima da região em que a
gravidade artificial causada pelo movimento giratório da nave Rama começava a diminuir
substancialmente, e da provável falta de pilotos hábeis, havia um limite máximo de altitude
para aqueles helicópteros construídos às pressas. Quer dizer, pensou Richard quando entrou
no aerobarco, que os humanos devem movimentar todo o seu equipamento e seu pessoal por
esse cais ou através de um fosso e um túnel debaixo do segundo habitat.
O aerobarco era guiado por uma biota Garcia. Em frente e atrás deles havia dois outros
aerobarcos, ambos com homens armados. Eles atravessaram a escuridão da planície Central,
Richard sentado no banco da frente ao lado da Garcia, e Archie, Ellie e Nikki instalados no
banco de trás. Richard virou-se para Archie e ia lembrar-lhe dos cinco tipos de biotas do
Novo Éden quando a Garcia o interrompeu:
— O prisioneiro Wakefield deve olhar para a frente e permanecer em silêncio — disse ela.
— Isso não é um tanto ridículo? — perguntou Richard.
A Garcia tirou o braço direito do timão e deu um tapa no rosto de Richard com as costas da
mão.
— Olhe para a frente e permaneça em silêncio — repetiu a biota, enquanto Richard se
encolhia com o impacto do tapa.
Nikki começou a chorar depois da súbita demonstração de violência. Ellie tentou acalmar e
confortar sua filha.
— Eu não gosto dela, mamãe — disse a garota. — Não gosto mesmo. Era noite no Novo Éden
quando eles passaram pela guarda na entrada do habitat. Archie e os três humanos foram
colocados em um carro elétrico aberto, guiado por outra biota Garcia. Richard notou
imediatamente que estava quase tão frio no Novo Éden quanto em Rama. O carro balançava
pela estrada, que estava em péssimo estado de conservação, e dobrou em direção ao norte
num lugar que antes fora uma estação ferroviária para o vilarejo de Positano. Quinze a vinte
pessoas amontoavam-se em torno de fogueiras nas áreas de concreto que rodeavam a antiga
estação, e mais três a quatro dormiam pelo chão debaixo de caixas de papelão e roupas
velhas.
— O que essa gente está fazendo, mamãe? — perguntou Nikki. Ellie não respondeu porque a
Garcia virou-se rapidamente com ar hostil.

Já dava para ver em frente as luzes de neon de Vegas quando o carro fez uma curva fechada
para a esquerda, entrando numa área residencial em uma seção arborizada que tinha sido parte
da floresta de Sherwood. O carro fez uma parada súbita em frente a uma grande casa tipo
rancho. Dois orientais armados com pistolas e punhais aproximaram-se do carro, fazendo
gestos para os passageiros descerem e dispensando a biota.

— Venham conosco — disse um dos homens.


Archie e seus companheiros humanos entraram na casa e foram levados por uma longa escada
que dava num porão sem janelas.
— Há comida e água na mesa — disse o outro homem, virando-se para subir as escadas.
— Espere um instante — falou Richard. — Nossas mochilas... nós precisamos das mochilas.
— Elas serão devolvidas — disse o homem com impaciência — assim que seu conteúdo for
inspecionado.
— E quando nós vamos ver Nakamura? — perguntou Richard.
O homem deu de ombros com um ar inexpressivo e subiu rapidamente as escadas.

3
Os dias se passavam lentamente. No começo, Richard, Ellie e Nikki perderam a referência do
tempo, mas logo souberam que as octoaranhas têm um relógio interno absolutamente preciso,
que é calibrado e aprimorado durante sua educação. Depois que Archie passou a usar as
medidas humanas de tempo (Richard usou sua eterna citação "Em Roma, como os romanos"
para convencer Archie a abandonar, pelo menos temporariamente, seus terts, wodens, fengs e
nillets), eles descobriram, olhando de relance os relógios digitais dos guardas que lhes
traziam comida e água, que o relógio interno de Archie não variava mais de dez segundos em
cada vinte e quatro horas.
Nikki divertia-se perguntando constantemente as horas a Archie. De tanto observarem suas
respostas, Richard e Nikki aprenderam a ler as cores de Archie referentes ao tempo e a
pequenos números. Na verdade, à medida que se passavam os dias, as conversas rotineiras no
porão ampliavam sensivelmente a compreensão geral de Richard da língua das octoaranhas.
Embora sua capacidade de compreender as faixas coloridas ainda não fosse igual à de Ellie,
depois de uma semana Richard pôde conversar à vontade com Archie sem que sua filha
precisasse servir de intérprete.
Os humanos dormiam em futons no chão, e Archie enroscava-se por trás deles nas poucas
horas em que dormia por noite. Um dos orientais trazia-lhes comida uma vez por dia, e sempre
que um deles entrava Richard dizia que suas mochilas ainda não tinham sido devolvidas e que
eles estavam esperando pela audiência com Nakamura.

Depois de oito dias, os banhos diários de esponja na bacia ao lado do banheiro do porão não
foram mais satisfatórios. Richard perguntou se podiam tomar um banho de chuveiro com
sabão. Algumas horas depois, um grande tanque de lavar roupa foi trazido pelas escadas.
Todos os humanos se banharam, embora de início Nikki tivesse vergonha de ficar nua na frente
de Archie. Richard e Ellie sentiram-se bem melhor depois do banho e ficaram mais otimistas.

— Ele não vai poder nos manter escondidos aqui para sempre — disse Richard. — Muitos
soldados das tropas nos viram... e vão acabar revelando alguma coisa, por mais que
Nakamura os proíba.
— Tenho certeza de que virão nos buscar em breve — acrescentou Ellie, animada.
Porém, no final da segunda semana de prisão, seu otimismo temporário enfraqueceu. Richard e
Ellie começaram a perder as esperanças. Nikki começou a dar trabalho, reclamando o tempo
todo que não tinha nada para fazer ali, e Archie passou a lhe contar histórias para mantê-la
ocupada. Suas lendas das octoaranhas (ele teve uma longa discussão com Ellie sobre o sentido
exato da palavra, até que finalmente aceitou o termo) encantaram a menininha.
Quando as traduções de Ellie vinham com as frases ressonantes que Nikki já associava aos
contos de fadas contados na hora de dormir, "Era uma vez..." ou "Antigamente, na época dos
precursores...", ela começava a dar gritinhos de alegria.
— Como eram os precursores, Archie? — perguntou a menina depois de uma dessas histórias.
— As lendas não dizem — respondeu Archie. — Portanto, você pode criar na sua imaginação
a imagem que desejar.
— Essa história é verdadeira? — perguntou ela em outra ocasião. — As octoaranhas
realmente nunca teriam deixado seu próprio planeta se os precursores não as tivessem levado
para o espaço?
— Assim dizem as lendas — replicou Archie. — Dizem que quase tudo o que aprendemos até
há mais ou menos cinqüenta mil anos nos foi ensinado originalmente pelos precursores.
Certa noite, depois que Nikki dormiu, Richard e Ellie perguntaram a Archie sobre a origem
das lendas.
— Elas existem há dezenas de milhares dos anos de vocês — disse a octoaranha. — Os
primeiros documentos referentes à nossa espécie contêm muitas das histórias que tenho lhes
contado nos últimos dias... As opiniões quanto à veracidade das lendas são diversas... o dr.
Azul acredita que elas sejam verdadeiras, e provavelmente obra de algum exímio contador de
histórias, um alternativo cujo gênio não foi reconhecido durante sua vida.
— Se as lendas são verdadeiras — disse Archie respondendo a outra pergunta de Richard —,
há muitos e muitos anos as octoaranhas eram criaturas marinhas simples, que evoluíram com
um mínimo de inteligência e consciência. Foram os precursores que descobriram nosso
potencial através do mapeamento da nossa estrutura genética e que nos alteraram ao longo das
gerações até nos tornarmos o que éramos na época da Grande Calamidade.
— O que aconteceu com os precursores? — perguntou Ellie.
— Há muitas histórias sobre eles, algumas contraditórias. A maioria ou todos os precursores
que viviam originalmente no planeta conosco foram provavelmente mortos na Grande
Calamidade. Segundo algumas lendas, seus povoados remotos em volta das estrelas próximas
sobreviveram durante centenas de anos, mas acabaram sucumbindo também. Uma das lendas
diz que os precursores continuaram a prosperar em outros sistemas estelares mais favoráveis,
e se tornaram a forma dominante de inteligência da galáxia. Não sabemos. Só temos certeza de
que a porção da terra do nosso planeta primitivo ficou inabitável durante muitos e muitos
anos, e que, quando a civilização das octoaranhas aventurou-se novamente no mar, nenhum dos
precursores estava vivo.

Os quatro prisioneiros do porão desenvolveram seu próprio ritmo diário à medida que as
semanas se passavam. Toda manhã, antes que Nikki e Ellie acordassem, Archie e Richard
conversavam sobre uma série de assuntos de interesse mútuo. Aquela altura, a leitura de
lábios de Archie era quase perfeita, e a compreensão de Richard das cores das octoaranhas
era tão boa que Archie raramente tinha de repetir o que havia dito.
Muitas conversas versavam sobre ciência. Archie era fascinado pela história da ciência na
espécie humana. Ele queria saber que descobertas haviam sido feitas e quando, o que havia
suscitado as investigações ou experiências básicas, e que modelos incorretos explicando
fenômenos haviam sido descartados em função de novos conceitos.
— Então foi a guerra que acelerou o desenvolvimento da aeronáutica e da física nuclear na
sua espécie — disse Archie certa manhã. — Que conceito fantástico!... Você não pode
imaginar — disse uns segundos depois — como é espantoso para mim experimentar, ainda que
indiretamente, a progressão do conhecimento de vocês sobre a natureza... Nossa história é
completamente diferente. No início nossa espécie era ignorante de todo. Logo depois foi
criado um novo tipo de octoaranha, que não só pensava mas também observava o mundo e
compreendia o que estava vendo. Nossos mentores e criadores, os precursores, já tinham
explicações para tudo. Nossa tarefa como espécie era muito simples. Aprendemos o que
pudemos com nossos mestres. Naturalmente, não tínhamos o conceito de tentativa e erro que
faz parte da ciência. Portanto, não tínhamos idéia alguma de como evoluem os componentes de
uma cultura. A brilhante engenharia dos precursores nos permitiu pular centenas de milhões de
anos de evolução. Nem preciso dizer que, infelizmente, não tínhamos nenhum preparo para
cuidar de nós próprios depois que ocorreu a Grande Calamidade. Segundo a mais histórica de
nossas lendas, nossa atividade intelectual primitiva durante as centenas de anos seguintes
limitou-se a acumular e compreender o maior número possível das informações dos
precursores que encontrássemos ou de que nos lembrássemos. Nesse ínterim, como não
tínhamos mais benfeitores para nos transmitirem princípios éticos, nosso progresso
sociológico foi negativo. Entramos em um longo período no qual se questionava se as novas
octoaranhas inteligentes criadas pelos precursores sobreviveriam ou não...
Richard estava tomado pela idéia do que chamou de "espécie tecnológica derivativa".
— Nunca pensei — disse ele a Archie certa manhã, com seu habitual entusiasmo por
descobertas — que pudesse haver uma espécie de viajantes do espaço que nunca tivesse
elaborado por conta própria as leis da gravidade, e nunca tivesse deduzido, através de uma
longa seqüência de experiências, as essências da física, tais como as características do
espectro eletromagnético. É uma coisa incrível... Mas, agora que compreendo o que você está
me dizendo, me parece natural. Se a espécie A, de avançados viajantes do espaço, entrar em
contato com a espécie B, inteligentes mas de certa forma mais lentos tecnologicamente, é
perfeitamente lógico supor que, depois do contato, a espécie B omita os degraus
intermediários...
— O nosso caso — explicou Archie naquela mesma manhã — foi ainda mais inusitado. O
paradigma que você está descrevendo é na verdade bem natural e aconteceu, segundo nossa
história e as lendas, com grande freqüência. Vários viajantes espaciais são mais derivativos,
para usar o seu termo, do que evolutivos. Vejamos as aves e os sésseis. A simbiose deles, que
se desenvolveu sem qualquer interferência externa, já existia em um sistema estelar próximo
do nosso planeta há milhares de anos, quando os precursores exploraram esse sistema. As
aves e os sésseis certamente nunca teriam desenvolvido a capacidade de viajar no espaço por
conta própria. Contudo, depois de encontrarem os precursores e verem a primeira nave
espacial, eles solicitaram e obtiveram a tecnologia necessária para a viagem espacial... Nossa
situação é genericamente distinta, e definitivamente mais derivativa. Se nossas lendas forem
verdadeiras, os precursores já eram viajantes do espaço quando as octoaranhas ainda eram
totalmente inconscientes. Naquela época, nós não éramos capazes de conceber a idéia de um
planeta, e muito menos do espaço que o rodeava. Nosso destino era decidido pelos seres
avançados com os quais compartilhávamos nosso mundo. Os precursores reconheceram o
potencial da nossa estrutura genética e, através da sua engenharia, nos aprimoraram, deram-
nos uma inteligência, passaram-nos informações e criaram uma cultura avançada que
provavelmente nunca teria existido...
Uma ligação profunda desenvolveu-se entre Richard e Archie em função dessas conversas
regulares no início das manhãs. Sem quaisquer outras distrações, os dois intercambiavam seu
amor fundamental pelo conhecimento. Um passava seu conhecimento para o outro,
enriquecendo assim sua admiração mútua pelas maravilhas do universo.
Nikki quase sempre acordava antes de Ellie. Logo depois que ela terminava o café da manhã,
os adultos entravam na segunda parte da sua rotina diária. Embora Nikki às vezes jogasse
cartas com Archie, ela passava a maior parte da manhã estudando. Eram três os professores.
Nikki lia um pouco, fazia contas de somar e subtrair, conversava com seu avô sobre ciência e
natureza, e com Archie sobre moral e ética. E também aprendeu o alfabeto das octoaranhas e
umas frases simples. Nikki era muito rápida com a língua das cores, fato que os outros
atribuíram aos seus genes alterados e à sua inteligência natural.
— Nossos jovens passam uma boa parte do tempo na escola discutindo e interpretando casos
que envolvem problemas morais — disse Archie a Richard e Ellie certa manhã, durante uma
discussão sobre educação. — Escolhem-se situações reais de vida como exemplos, embora às
vezes os fatos sejam ligeiramente mudados para aguçar o interesse, e as jovens octoaranhas
avaliam a aceitabilidade das várias respostas possíveis. Isso é feito em discussões abertas.
— Isso é feito para expor os jovens bem cedo ao conceito de Otimização? — perguntou
Richard.
— Não exatamente — replicou Archie. — O que tentamos fazer é preparar a juventude para a
vida real, o que envolve um intercâmbio com outros, com muitas escolhas comportamentais.
Todo jovem é encorajado a usar os estudos de casos para desenvolver seu próprio sistema de
valor. Nossa espécie acredita que o conhecimento não existe no vácuo. Só quando ele é parte
integrante de uma forma de viver é que tem um significado real...
Archie apresentava a Nikki estudos de casos com problemas éticos simples porém clássicos.
Os temas básicos sobre mentira, justiça, preconceito e egoísmo foram examinados nas oito
primeiras aulas. As respostas da menina às situações em geral eram tiradas de exemplos da
sua própria vida.
— Galileu sempre vai fazer ou dizer o que for necessário para sua opinião prevalecer —
disse Nikki durante uma aula, mostrando que compreendia o princípio fundamental levantado
pelo caso em questão. — Para ele, o que ele quer é mais importante do que qualquer outra
coisa... Kepler é diferente. Ele nunca me faz chorar...
Nikki fazia a sesta à tarde. Enquanto ela dormia, Richard, Ellie e Archie trocavam
comentários e impressões que salientavam as semelhanças e as diferenças entre as duas
espécies.
— Se entendi direito — disse Ellie um dia, depois de uma conversa animada sobre como os
seres inteligentes e sensíveis deviam lidar com os membros da sua comunidade que se
comportam de modo anti-social —, sua sociedade é muito menos tolerante do que a nossa...
Há claramente uma forma preferida de viver nas suas comunidades. As octoaranhas que não
seguem esse modelo preferido não só são afastadas cedo como não têm permissão para
participar de muitas atividades gratificantes e são exterminadas depois de um período de vida
mais curto que o normal...
— Na nossa sociedade — disse Archie em resposta —, o aceitável é sempre claro; não é
dúbio como na sua. Assim, os nossos indivíduos fazem suas escolhas com pleno conhecimento
das conseqüências... A propósito, o Domínio Alternativo não é como uma das suas prisões. É
um lugar onde as octoaranhas, e também outras espécies, podem viver sem a regulamentação e
a otimização necessárias para o contínuo desenvolvimento e sobrevivência da colônia. Alguns
alternativos vivem até muito tarde, e são bastante felizes... Sua sociedade, pelo menos o que
eu pude observar dela, parece não compreender a inconsistência básica entre liberdade
individual e bem-estar comum. Essas duas coisas devem ser cuidadosamente equilibradas.
Nenhum grupo pode sobreviver, que dirá prosperar, se o bem-estar de toda a comunidade não
for mais importante do que a liberdade individual. Tomemos como exemplo a alocação de
recursos. Como pode um ser dotado de inteligência justificar, em termos da comunidade como
um todo, o acúmulo de bens materiais por poucos indivíduos quando outros mal têm o que
comer, vestir e outras coisas essenciais?
No porão Archie não era reticente nem evasivo, como era às vezes na Cidade de Esmeralda.
Falava abertamente a respeito de todos os aspectos da sua civilização, como se a missão que
estava desempenhando junto com os humanos o tivesse liberado, de certa forma, de todas as
suas contenções. Estaria ele enviando inconscientemente uma mensagem aos outros humanos
que deviam estar gravando aquelas conversas? Talvez. Mas até que ponto aquelas conversas
seriam compreendidas pelos homens de Nakamura, se eles não conheciam nada da linguagem
das cores? Não, era mais provável que Archie tivesse percebido, melhor que seus
companheiros humanos, que sua morte era iminente, e quisesse que seus últimos dias fossem
os mais significativos e estimulantes possíveis.
Certa noite, antes de Richard e Ellie dormirem, Archie disse que tinha uma coisa pessoal para
lhes contar.

— Eu não desejo alarmar vocês, mas já consumi quase todo o suprimento de barrican da
minha reserva. Se ficarmos aqui muito tempo e meu barrican acabar, vou entrar na minha
maturidade sexual, como vocês sabem. Segundo nossos arquivos, vou me tornar agressivo e
possessivo ao mesmo tempo. Espero que não...

— Não se preocupe com isso — disse Richard, dando uma gargalhada. — Eu já lidei com
adolescentes antes... E certamente posso lidar com uma octoaranha que não tem mais um
temperamento perfeito.
Uma manhã, o guarda que trazia comida e água disse a Ellie para preparar-se para sair com a
menina.
— Quando? — perguntou Ellie.
— Daqui a dez minutos — respondeu o guarda.
— Para onde nós vamos? — perguntou ela outra vez. O guarda não disse nada e desapareceu
escada acima.
Enquanto Ellie se esforçava para ajeitar-se o melhor possível (tinha trazido apenas três mudas
de roupa e era difícil lavá-las), foi treinando com Richard e Archie o que diria caso se
encontrasse com Nakamura ou algum dos líderes da colônia.
— Embora você vá dizer que as octoaranhas são uma espécie pacífica — disse seu pai aos
cochichos em um canto da sala —, não se esqueça de acrescentar que só conseguiremos deter
uma guerra se pudermos convencer Nakamura de que ele não se sairá vitorioso de um conflito
armado. É importante que eles saibam que a tecnologia das octoaranhas é muito mais
avançada do que a nossa.
— Mas se me pedirem exemplos específicos?
— Eles não esperam que você saiba detalhes. Diga-lhes que eu posso dar vários exemplos da
tecnologia delas.
Ellie e Nikki foram levadas no carro elétrico até o hospital da colônia na Cidade Central. As
duas foram conduzidas pela entrada de emergência e chegaram a um consultório árido, com
duas cadeiras, um sofá que servia de cama de exame e alguns equipamentos eletrônicos
complexos. Ellie e Nikki ficaram sentadas ali durante uns dez minutos, até o dr. Robert Turner
entrar.
Ele estava muito envelhecido.
— Oi, Nikki — disse, sorrindo e agachando-se com os braços estendidos. — Venha dar um
abração no papai.
A menina hesitou por um instante e depois saiu correndo para o colo do pai. Robert levantou-a
e girou-a pela sala.
— Que bom te ver, Nikki.
Ellie levantou-se e ficou esperando. Depois de alguns segundos Robert colocou a filha no
chão e olhou para a esposa.
— Como vai, Ellie? — perguntou.
— Bem — disse ela, sentindo-se pouco à vontade de repente. — E como vai você, Robert?
— Mais ou menos na mesma.
Os dois encontraram-se no meio da sala e abraçaram-se. Ellie tentou beijá-lo com ternura,
mas ele beijou-a secamente e virou-se de lado. Ellie pôde sentir como seu marido estava
tenso.
— O que foi, Robert? — perguntou ela de forma carinhosa. — O que aconteceu?
— Tenho trabalhado demais, como sempre — respondeu Robert, andando até a cama de
exame. — Por favor, tire sua roupa e deite-se aqui, Ellie. Quero ter certeza de que você está
bem.
— Nesse instante? — perguntou Ellie incrédula. — Antes de falarmos sobre tudo o que
aconteceu nesses meses em que estivemos separados?
— Sinto muito, Ellie — disse Robert, com um ligeiro sorriso. — Estarei muito ocupado hoje à
noite. A equipe do hospital está muito reduzida. Eu os convenci a soltar vocês prometendo
que...
Ellie chegou-se para o lado do marido e pegou a mão dele.
— Robert, eu sou sua esposa. Eu te amo. Não nos vemos há mais de um ano. Certamente você
pode tirar um minuto para...
Os olhos de Robert encheram-se de lágrimas.
— O que foi, Robert? Conte para mim — falou Ellie assustada. Ele se casou com outra
mulher, pensou ela em pânico.
— O que aconteceu com você, Ellie? — disse ele de repente em voz alta. — Como você pôde
dizer àqueles soldados que não foi raptada e que as octoaranhas não eram hostis?... Você fez
de mim motivo de chacota... Todos os cidadãos do Novo Éden me viram na televisão,
descrevendo aquele momento terrível em que você foi seqüestrada... Minha lembrança desse
dia é tão clara...
Ellie dera um passo atrás quando Robert começou a falar alto. Ficou ali ouvindo, ainda
segurando na sua mão, sentindo toda a angústia do marido.
— Fiz aqueles comentários, Robert, porque estava, e estou, tentando fazer o possível para
deter o conflito entre nós e as octoaranhas... Sinto muito se minhas observações prejudicaram
você.
— As octoaranhas fizeram lavagem cerebral em você, Ellie — disse Robert num tom amargo.
— Percebi isso assim que os homens de Nakamura me mostraram os relatórios. De alguma
forma, elas adulteraram sua mente a fim de que você perdesse o senso de realidade.
Nikki ficou choramingando quando seu pai elevou a voz. Ela não compreendia por que seu pai
e sua mãe estavam discutindo, mas sabia que as coisas não iam bem. Agarrou-se na saia da
mãe e pôs-se a chorar.
— Está tudo bem, Nikki — disse Ellie consolando a filha. — Seu pai e eu estamos só
conversando.
Quando Ellie olhou para o alto, viu Robert tirando da gaveta um capuz transparente.
— Então você vai me fazer um eletroencefalograma para ter certeza de que não me tornei uma
octoaranha? — perguntou, nervosa.

— Isso não tem graça nenhuma, Ellie — replicou Robert. — Os meus eletroencefalogramas
saem esquisitos desde que voltei para o Novo Éden. Nem eu nem o neurologista da minha
equipe temos uma explicação para isso. Ele disse que nunca viu mudanças tão radicais na
atividade cerebral de um indivíduo, a não ser por lesão grave.

— Robert — disse Ellie, segurando a mão dele de novo —, as octoaranhas bloquearam sua
memória quando você foi embora, para se protegerem... Talvez isso explique em parte suas
ondas cerebrais peculiares.
Robert olhou para Ellie durante longo tempo sem falar nada.
— Elas raptaram você, adulteraram meu cérebro... E só Deus sabe o que terão feito com a
nossa filha... E você ainda defende as octoaranhas?

Ellie submeteu-se ao eletroencefalograma e os resultados não mostraram nenhuma


irregularidade nem grandes diferenças dos testes de rotina que lhe tinham feito nos primeiros
dias da colônia, o que deixou Robert muito aliviado. Depois ele disse a Ellie que Nakamura e
o governo estavam dispostos a retirar as acusações contra ela e deixá-la voltar para casa com
Nikki, onde ficaria em prisão domiciliar, se desse informações sobre as octoaranhas. Ellie
pensou bem no assunto e concordou. Robert sorriu e lhe deu um abraço.
— Ótimo. Você vai começar amanhã... Vou lhes dizer imediatamente.
Richard avisara Ellie, durante a viagem no emassauro, que Nakamura poderia tentar usá-la de
alguma forma, provavelmente para justificar a realização da guerra. Ellie sabia que, se
aparentemente concordasse em ajudar o governo do Novo Éden, estaria tomando um rumo
muito perigoso. Preciso ter cuidado, disse a si mesma enquanto mergulhava numa banheira
com água quente, para não dizer nada que possa prejudicar meu pai e Archie. Ou que possa
dar às tropas de Nakamura uma vantagem injusta em caso de uma guerra.
De início, Nikki estranhou o seu antigo quarto, mas depois de uma hora brincando com seus
brinquedos pareceu muito contente. Foi até a banheira e perguntou à mãe:
— A que horas o papai vai chegar em casa?
— Ele vai chegar tarde, querida. Depois que você for para a cama dormir — respondeu Ellie.
— Eu gostei do meu quarto, mamãe. É muito melhor do que aquele lá no porão.
— Que bom — replicou Ellie. A menininha sorriu, saiu do banheiro e Ellie respirou fundo.
Não teria adiantado nada se eu tivesse me recusado, e eles nos mandariam de novo para a
prisão.

4
Katie não havia terminado sua maquiagem quando ouviu o zumbido. Deu uma baforada no
cigarro que queimava no cinzeiro ao seu lado e apertou o botão em que estava escrito "Falar".

— Quem é? — perguntou.

— Sou eu — foi a resposta.


— O que está fazendo aqui no meio do dia?
— Tenho notícias importantes — disse o capitão Franz Bauer. — Abra a porta para eu subir.
Katie tragou o cigarro e largou a guimba. Levantou-se, foi até o espelho e ajeitou o cabelo
antes que batessem à porta.
— As notícias devem ser importantes mesmo, Franz — disse Katie abrindo a porta para ele.
— Você sabe que eu tenho de dar orientações a duas garotas daqui a uns minutos e detesto me
atrasar.
Franz deu uma risada.
— Você pegou as duas saindo da linha de novo? Meu Deus, Katie, eu detestaria se você fosse
minha chefe.
Katie olhou para Franz com um ar de impaciência.
— Então? O que era tão importante assim?
Franz começou a andar pela sala sofisticada, onde se via um sofá branco e preto, um
conversador, duas cadeiras combinando e diversos objetos de arte interessantes nas mesas
laterais e na de centro.
— Não há possibilidade de nossa conversa estar sendo grampeada, não é?
— Você é quem deve saber, sr. Capitão de Polícia. Francamente, Franz — disse ela olhando o
relógio —, eu não tenho....
— Nós fomos informados por fonte segura — disse Franz — de que seu pai está no Novo
Éden neste instante.
— O quê? Como é possível isso? — falou Katie atônita, sentando-se no sofá e pegando outro
cigarro na mesa de centro.
— Um tenente da minha divisão é muito amigo de um dos guardas do seu pai, que disse que
Richard e uma daquelas octoaranhas estão presos num porão de uma residência particular
perto daqui.
Katie atravessou a sala e pegou o telefone.
— Daria — disse ela —, diga a Lauren e Atsuko que o encontro de hoje está cancelado...
Houve um imprevisto... Marque para amanhã às duas horas da tarde... Ah, é mesmo, já ia me
esquecendo... Que droga... Tudo bem, marque então para as onze da manhã... Não, onze e
meia, eu não quero acordar muito cedo.
Katie voltou para o sofá, pegou o cigarro, deu uma tragada e soprou os círculos para cima da
cabeça.
— Quero que você me conte tudo o que soube a respeito do meu pai. Franz informou Katie
que, segundo lhe haviam dito, seu pai, sua irmã Ellie, sua sobrinha e uma octoaranha tinham
aparecido de repente, uns dois meses atrás, levando uma bandeira branca, no acampamento do
extremo sul do mar Cilíndrico. Eles estavam bastante descontraídos e tinham brincado com os
soldados, disse Franz. Seu pai e sua irmã disseram para as tropas que estavam ali, com um
representante das octoaranhas, para ver se evitavam um conflito armado entre as duas espécies
através de negociações. Nakamura ordenou que o caso fosse mantido em segredo e os levou...
Katie estava andando pela sala.
— Meu pai está vivo — disse excitada —, e está aqui, no Novo Éden... Eu já te disse, Franz,
que meu pai é absolutamente o ser humano mais inteligente que já existiu?
— Já disse isso umas dez vezes — disse Franz rindo. — Eu não imagino como alguém possa
ser mais inteligente do que você.
Katie balançou a mão.
— Ao lado dele eu pareço uma perfeita idiota... Ele sempre foi muito querido. Eu podia fazer
qualquer coisa — disse ela, parando de andar e tragando seu cigarro. Seus olhos brilhavam
quando ela soltou a fumaça. — Franz, eu preciso ver meu pai... preciso mesmo.
— Isso é impossível, Katie — disse ele. — Ninguém deve saber que ele está aqui. Eu seria
expulso, ou talvez mais que isso, se alguém descobrisse que lhe contei...
— Eu lhe imploro, Franz — disse Katie, atravessando a sala e pegando-o pelos ombros. —
Você sabe como detesto pedir favores a alguém... mas isso é muito importante para mim.
Franz adorou que pelo menos uma vez Katie lhe pedisse alguma coisa. Mas mesmo assim lhe
disse a verdade.
— Katie, você ainda não entendeu. Há um guarda armado em volta da casa o tempo todo. O
porão inteiro está grampeado com monitores de áudio e vídeo. Não há jeito de você entrar lá.
— Há sempre um jeito — falou Katie com ênfase — quando a coisa é muito importante. —
Ela enfiou a mão na camisa dele e começou a mexer no seu mamilo. — Você me ama, não é,
Franz? — Beijou-o com a boca toda aberta, brincando com a língua dentro da boca de Franz.
Depois empurrou-o ligeiramente, continuando a mexer no seu mamilo.
— É claro que te amo, Katie — disse Franz, já muito excitado. — Mas não sou louco.
Katie entrou no quarto e voltou menos de um minuto depois com dois maços de notas.
— Eu vou ver meu pai, Franz — disse ela, jogando o dinheiro na mesa de centro. — E você
vai me ajudar... Pode subornar qualquer pessoa com esse dinheiro.
Franz ficou impressionado com a soma de dinheiro.
— E o que você vai fazer por mim? — perguntou, quase brincando.
— O que eu vou fazer por você? O que eu vou fazer por você? — disse Katie puxando-o pela
mão para dentro do quarto. — Agora, capitão Bauer, você vai tirar a roupa toda e deitar-se de
costas. E vai ver o que eu vou fazer por você.

Ao lado do quarto de Katie havia um quarto de vestir. Ela entrou lá, fechou a porta, destrancou
uma grande caixa decorada que estava em cima do balcão e tirou uma seringa que estava
preparada desde o começo da manhã. Levantou o vestido e fez um torniquete na coxa com uma
borrachinha preta. Esperou até poder identificar claramente uma veia no meio das marcas na
sua coxa, e enfiou a agulha com agilidade. Depois de injetar todo o líquido na corrente
sangüínea, esperou uns segundos pela fantástica reação e então tirou o torniquete.

— O que eu faço enquanto estou esperando?


— Rilke está no meu ledor eletrônico, querido, em alemão e em inglês. Daqui a um instante
vou para aí.
Katie estava voando. Começou a cantarolar, jogou fora a seringa e colocou o torniquete de
volta na caixa. Tirou toda a roupa, parou duas vezes para admirar seu corpo no espelho e
empilhou a roupa no banquinho da penteadeira. Depois abriu um gavetão da penteadeira e
tirou uma venda.
Quando Katie entrou no quarto, Franz ficou olhando embasbacado para aquele corpo flexível.
— Olhe bem — disse ela —, pois é só isso que você vai ver durante toda a tarde.
Katie esfregou seu corpo no dele e beijou-o enquanto amarrava a venda em seus olhos. Depois
de certificar-se de que a venda estava bem presa, saiu da cama.
— E agora, o que vai acontecer? — perguntou Franz.
— Você vai ter de esperar para ver — disse Katie em tom de brincadeira, enquanto remexia
numa gaveta grande onde havia uma parafernália sexual, inclusive ajudas eletrônicas de todo
tipo, loções, cordas e outros equipamentos do gênero, máscaras e vários modelos de genitália.
Katie selecionou um vidrinho de loção, um frasco com um pó branco e umas contas enfiadas
em um cordão fino.
Ainda cantarolando e rindo para si mesma, Katie foi para a cama e começou a correr os dedos
no peito de Franz, beijando-o provocativamente com o corpo colado no dele. Depois sentou-
se, despejou a loção nas mãos e esfregou-as com força. Afastou as pernas de Franz, sentou por
cima da barriga dele e começou a aplicar a loção nas suas partes mais sensíveis.
— Ummmmm — murmurou Franz quando a loção quente começou a fazer efeito. — Que
maravilha!
Katie passou o pó branco na genitália dele e montou-o devagar. Franz entrou em êxtase. Katie
ficou se mexendo para a frente e para trás num ritmo lento. Quando notou que Franz estava
quase gozando, parou de mexer um instante e passou a mão por baixo dele para enfiar as
contas. Voltou a mexer-se mais umas três vezes e parou de novo.
— Não pare agora — gritou Franz.
— Então repita o que eu vou dizer — falou Katie, rindo e dando mais uma mexida. — Eu
prometo...
— Prometo qualquer coisa, mas não pare agora — disse Franz.
— Eu prometo — continuou Katie — que Katie Wakefield vai ver seu pai nos próximos dias.
Franz repetiu a promessa e Katie recompensou-o. Quando puxou o cordão depois que ele
atingiu o clímax, Franz deu um grito com toda a força dos seus pulmões, como um animal
selvagem.

Ellie não gostou de seus interrogadores. Eles eram secos, não tinham senso de humor e
trataram-na com desprezo.

— Assim não vai funcionar, meus senhores — disse ela exasperada, no primeiro dia de
interrogatório. — Se vocês insistirem em fazer as mesmas perguntas a toda hora... Pelo que
entendi, vocês queriam que eu desse umas informações sobre as octoaranhas... mas até agora
as perguntas todas foram sobre meu pai e minha mãe.
— Sra. Turner — disse o primeiro homem —, o governo está tentando juntar todas as
informações possíveis sobre este caso. Sua mãe e seu pai são fugitivos há muitos...
— Olhe — interrompeu Ellie —, eu já disse que não sei nada sobre como, quando e por que
meus pais saíram do Novo Éden. Nem sei se eles foram ajudados na sua fuga pelas
octoaranhas... Portanto, se vocês não mudarem a linha do interrogatório...
— Não é você, mocinha — falou o segundo homem, com os olhos brilhando de raiva —, quem
decide quais são as perguntas que devem ser feitas. Talvez você não tenha percebido como sua
situação é séria. Você só não será julgada, e devo dizer que as acusações são graves, se
cooperar completamente conosco.
— De que sou acusada? — perguntou Ellie. — Estou curiosa para saber... pois nunca fui
considerada uma criminosa antes.
— Você pode ser acusada de alta traição — disse o homem — por ajudar deliberadamente e
favorecer o inimigo durante um período de declaradas hostilidades.
— Mas isso é absurdo — replicou Ellie, já um tanto assustada. — Não tenho idéia do que
vocês estão falando.
— Você nega que, durante o período em que ficou com os alienígenas, passou-lhes
informações sobre o Novo Éden que poderão ser usadas durante a guerra?
— É claro que dei informações — disse Ellie, com um riso nervoso. — Contei tudo o que
sabia sobre a nossa colônia, e as octoaranhas também nos contaram tudo sobre a colônia
delas.
Os dois homens escreviam furiosamente nos seus blocos. Como eles ficaram assim?, pensou
Ellie de repente. Como uma criança risonha e curiosa pode se transformar num adulto hostil e
inflexível? Será conseqüência do ambiente ou da hereditariedade?
— Vejam bem, meus senhores — disse Ellie quando eles fizeram a próxima pergunta —, isso
não vai dar certo. Quero fazer uma interrupção para organizar meus pensamentos. Talvez eu
faça algumas anotações antes de recomeçarmos... Pensei num processo completamente
diferente, numa coisa muito mais descontraída...
Os dois homens concordaram em parar. Ellie atravessou o corredor para encontrar-se com
Nikki, que estava sendo cuidada por uma funcionária do governo.
— Pode ir agora, sra. Adams — disse Ellie. — Nós vamos almoçar. Nikki sentiu que sua mãe
estava muito preocupada.
— Esses homens estão sendo maus com você, mamãe? — perguntou ela. Ellie não pôde deixar
de sorrir.
— Você acertou, Nikki. Você acertou em cheio.
Richard deu suas últimas passadas em volta do porão e foi para o tanque no canto da sala,
parando primeiro na mesa para tomar um pouco de água. Archie continuava imóvel no chão,
por trás do colchão de Richard.
— Bom dia — disse Richard, limpando o suor com um pedaço de pano. — Está pronto para
tomar o café da manhã?
— Não estou com fome — disse a octoaranha em cores.
— Você tem de comer alguma coisa — falou Richard animado. — Eu também acho a comida
horrível, mas não se pode viver só de água.
Archie não se mexeu nem disse nada. Nos últimos dias, desde que seu suprimento de barrican
se esgotara, ele não tinha sido das melhores companhias. Richard não conseguia manter as
conversas estimulantes com Archie, e estava preocupado com a sua saúde. Colocou um pouco
de cereal na tigela, jogou um pouco de água em cima e passou a tigela para o amigo.
— Tente comer um pouco — disse com gentileza.
Archie levantou um par de tentáculos e pegou a tigela. Quando começou a comer, um feixe cor
de laranja jorrou da sua fenda, desceu por um de seus tentáculos e esmaeceu.
— O que foi isso? — perguntou Richard.
— Uma expressão emocional —- respondeu Archie, soltando mais feixes coloridos
irregulares.
Richard sorriu.
— OK, mas que tipo de emoção?
Depois de longa pausa, os feixes de cor de Archie ficaram mais fortes.
— Acho que você chamaria isso de depressão — disse a octoaranha.
— É isso que acontece quando o barrican acaba? — perguntou Richard.
Archie não respondeu. A certa altura, Richard voltou para a mesa e preparou para si próprio
uma tigela cheia de cereais. Depois voltou e sentou-se no chão ao lado de Archie.
— É melhor você falar sobre isso — disse Richard gentilmente. — Não temos mais nada para
fazer.
Pelo movimento da lente de Archie, Richard percebeu que a octoaranha o estudava com
cuidado. Deu umas colheradas no cereal, antes de Archie começar a falar.
— Na nossa sociedade, os rapazes e as moças que estão atravessando sua maturidade sexual
são retirados da sua vida habitual e levados para um ambiente apropriado, com indivíduos que
passaram por esse processo antes. Aí eles descrevem o que estão sentindo e são informados
de que aquelas emoções novas e complexas são absolutamente normais. Agora eu entendo
como esse programa de atenção intensiva é necessário.
Archie fez uma pausa e Richard deu um sorriso simpático.
— Nestes últimos dias — continuou a octoaranha —, pela primeira vez, desde que eu era
criança, minhas emoções não aceitaram ser controladas por minha mente. Durante o
treinamento de otimização, sempre que tínhamos de tomar uma decisão, separávamos com
cuidado todas as evidências disponíveis e eliminávamos todos os pensamentos preconcebidos
decorrentes de reações emocionais pessoais. Com a minha atual intensidade de sentimentos,
seria quase impossível relegar esses sentimentos a um segundo plano. Richard riu.
— Por favor, não me leve a mal, Archie. Não é de você que estou rindo. Mas você acabou de
descrever, numa típica frase das octoaranhas, o que a maioria dos humanos sente o tempo
todo. Muito poucos humanos chegam a controlar suas "reações emocionais pessoais" como
gostariam... Talvez esta tenha sido a primeira vez em que você realmente nos compreendeu, se
é que entende o que estou falando.
— É terrível — continuou Archie. — Estou tendo um profundo senso de perda, sinto falta do
dr. Azul e de Jamie, e uma grande raiva de Nakamura por nos manter prisioneiros aqui...
Tenho receio de que essa raiva me leve a fazer um ato não-ótimo.
— Mas as emoções que você está descrevendo nem sempre são ligadas à sexualidade, pelo
menos entre os humanos — disse Richard. — O barrican também age como uma espécie de
tranqüilizante, arrefecendo todos os sentimentos?
Archie terminou de comer antes de responder.
— Você e eu somos criaturas muito diferentes, e, como eu já disse, é perigoso fazer projeções
de uma espécie para a outra... Lembro-me das nossas primeiras discussões sobre os humanos
na reunião com os Otimizadores, logo depois que você violou a integridade do seu habitat...
No meio da reunião, o Chefe otimizador enfatizou que nós não devíamos olhar a sua espécie
nos nossos termos. Devíamos observar com cuidado, obter dados e fazer uma correlação
congruente entre eles, sem revesti-los com a nossa própria experiência... Suponho que tudo
isso leve a um repúdio, em certo sentido, do que vou falar para você. No entanto, tenho para
mim, baseado nas minhas observações dos humanos, que para vocês o desejo sexual é a força
motora por trás de todas as emoções fortes... Nós, octoaranhas, sofremos uma descontinuidade
na maturidade sexual. De uma hora para outra deixamos de ser completamente assexuados e
nos transformamos num ser sexual. Nos humanos o processo é muito mais lento e mais sutil.
Os hormônios sexuais estão presentes, em quantidades variadas, desde cedo, no
desenvolvimento fetal. Sou de opinião, e disse isso ao Chefe Otimizador, que talvez todas as
suas emoções incontroláveis estejam ligadas a esses hormônios sexuais. Um ser humano sem
nenhuma sexualidade talvez seja capaz do mesmo pensamento otimizado de uma octoaranha.
— Que idéia interessante! — comentou Richard animado, levantando-se e começando a andar
em volta. — Então você está sugerindo que mesmo coisas simples como, por exemplo, a
recusa de uma criança em compartilhar seus brinquedos podem estar de certa forma ligadas à
sexualidade?...
— Talvez — respondeu Archie. — Talvez Galileu esteja praticando a possessividade de sua
sexualidade adulta quando se recusa a dividir seus brinquedos com Kepler... Certamente a
dedicação do menino à mãe e da menina ao pai é uma prévia de atitudes adultas...
Archie parou, pois Richard estava de costas e tinha intensificado suas passadas.
— Desculpe — disse ele, voltando um pouco depois e sentando-se de novo ao lado da
octoaranha. — Passou pela minha cabeça agora mesmo uma coisa na qual pensei ligeiramente
hoje de manhã, quando estávamos falando sobre controle de emoções... Você se lembra de
que, numa conversa anterior, atribuiu o conceito de um Deus pessoal a uma aberração
evolutiva necessária a todas as espécies em desenvolvimento, como uma ponte temporária na
transição entre a fase da primeira conscientização e a era de informação? As recentes
mudanças ocorridas com você alteraram de alguma forma sua atitude com relação a Deus?
Várias faixas multicores, que Richard reconheceu como uma risada, jorraram sobre a parte
superior do corpo da octoaranha.
— Vocês humanos são absolutamente preocupados com a noção de Deus. Até mesmo aqueles,
como você, Richard, que dizem não crer em Deus passam grande do seu tempo pensando no
assunto ou discutindo-o... Como falei alguns meses atrás, nós octoaranhas valorizamos em
primeiro lugar as informações, de acordo com o que nos ensinaram os precursores... Não há
informações sobre nenhum Deus que possam ser constatadas, especialmente sobre um Deus
envolvido com os assuntos diários do universo...
— Você não entendeu exatamente a minha pergunta — interrompeu Richard —, ou talvez eu
não tenha me explicado bem... O que quero saber é se nesse seu novo estado mais emocional
você pode compreender por que outros seres inteligentes criaram um Deus pessoal, para lhes
dar conforto e também para explicar todas essas coisas que eles não podem abranger.
Archie riu de novo em cores.
— Você é muito esperto, Richard — disse a octoaranha. — Quer que eu confirme o que você
pensa, ou seja, que Deus também é um conceito emocional, nascido de um anseio não tão
diferente do desejo sexual. Portanto, Deus também derivaria de hormônios sexuais... Eu não
vou até esse ponto. Não tenho informações suficientes. Mas posso dizer que, baseado no
tumulto dentro de mim nesses últimos dias, agora compreendo essa palavra "anseio", que antes
não fazia sentido para mim...
Richard sorriu. Estava contente. O intercâmbio dos dois voltara a ser como era antes de
terminar o suprimento de barrican de Archie.
— Seria ótimo se pudéssemos conversar com todos os nossos amigos da Cidade de
Esmeralda, não é? — perguntou Richard de repente.
Archie sabia o que Richard estava sugerindo. Os dois não haviam mencionado os quadróides,
nem tampouco sugerido que as octoaranhas tinham um sistema de coleta de inteligência, pois
não queriam que Nakamura e seus guardas soubessem disso. Enquanto Richard observava em
silêncio, faixas coloridas passaram em torno da cabeça de Archie. Embora a octoaranha não
estivesse mais usando a língua derivativa que fora desenvolvida para a comunicação com os
humanos, Richard foi capaz de compreender a essência da transmissão.

Depois de cumprimentar formalmente o Chefe Otimizador e desculpar-se pelo insucesso de


sua missão, Archie enviou duas mensagens pessoais, uma curta para Jamie e outra mais longa
para o dr. Azul. Durante a transmissão para seu parceiro dr. Azul, cores variadas jorraram de
Archie ao longo de sua mensagem. Richard, que aprendera a conhecer bem seu companheiro
durante os dois meses em que estavam presos, ficou fascinado e comovido com aquela bela
demonstração de emoção desinibida.

Quando Archie terminou, Richard chegou perto dele e pôs a mão nas suas costas.
— Está se sentindo melhor agora? — perguntou.
— De certa forma sim — respondeu Archie. — Mas ao mesmo tempo me sinto pior. Estou
mais consciente agora de que talvez eu nunca mais veja o dr. Azul e Jamie...
— Às vezes fico imaginando o que eu diria para Nicole — interrompeu Richard — se pudesse
falar com ela no telefone. — Ele pronunciou bem as palavras, exagerando o movimento dos
lábios. — Eu sinto muito sua falta, Nicole, e te amo de todo o meu coração.

Richard não era de ter sonhos vividos. Portanto, não incorporava sons externos a sonhos.
Quando ouviu o que achou que fossem pés arrastando-se acima dele, no meio da noite,
acordou depressa.
Archie estava dormindo. Richard olhou em volta e percebeu que a luz do banheiro estava
apagada. Alarmado, acordou a octoaranha.
— O que foi? — perguntou Archie em cores.
— Ouvi alguma coisa lá em cima — sussurrou Richard.
Os dois ouviram a porta para as escadas do porão abrir-se lentamente. Depois Richard
percebeu um passo cuidadoso e depois outro no alto da escada. Franziu os olhos, mas não
conseguiu ver nada naquela escuridão.
— É uma mulher seguida de um policial — disse Archie, cuja lente podia captar o calor
infravermelho dos intrusos. — Eles pararam por um instante no terceiro degrau.
Eles vieram nos matar, pensou Richard, apavorado, aproximando-se de Archie. Então ouviu a
porta do porão fechando-se lentamente e depois passos na escada.
— Onde eles estão agora? — sussurrou ele.
— Aqui embaixo — disse Archie. — Estão vindo... acho que a mulher é...
— Papai — ouviu Richard, como se estivesse no passado. — Onde está você, papai?
Meu Deus! É Katie! — Aqui, Katie — disse Richard bem alto. — Aqui — repetiu, tentando
conter sua agitação.
Uma lanterna pequena iluminou a parede por trás do colchão e acabou clareando a barba de
Richard. Um instante depois, Katie tropeçou sobre Archie e literalmente caiu nos braços do
pai.
Katie beijou-o e abraçou-o, com lágrimas correndo-lhe no rosto. Richard estava tão espantado
com tudo aquilo que de início não conseguiu responder às perguntas da filha.
— Sim... sim... estou bem — disse depois. — Não posso acreditar que seja você, Katie... Oh,
Katie... Oh, sim, aquela massa cinzenta lá, na qual você acabou de tropeçar, é meu amigo e
companheiro de cela, Archie, a octoaranha...
Um segundo depois, Richard deu um forte aperto de mão em um homem que Katie apresentou
como "meu amigo".
— Não temos muito tempo — disse Katie apressada, depois de alguns minutos de conversa
sobre a família. — Nós criamos um curto-circuito em toda essa área residencial, e daqui a
pouco a energia já deve estar de volta.
— Então nós vamos fugir? — perguntou Richard.
— Não — disse Katie. — Eles pegariam você e o matariam... Eu só queria lhe ver... Quando
ouvi o boato de que você estava preso em algum lugar no Novo Éden... Oh, papai, com eu
estava com saudades! Eu o amo tanto...
Richard pôs os braços em volta da filha e abraçou-a enquanto ela chorava. Ela está tão
magra, pensou ele, parece até um fantasma.
— Eu também a amo, Katie — falou Richard, afastando-a ligeiramente. — Ilumine seu rosto...
eu quero ver esses olhos bonitos.
— Não, papai — falou Katie, enfiando o rosto no peito dele. — Estou envelhecida e gasta...
Quero que você se lembre de mim como eu era. Minha vida tem sido dura...
— Não é provável que eles os mantenham aqui por muito tempo, sr. Wakefield — disse o
homem no escuro. — Quase todo mundo da colônia ouviu a história da sua chegada no
acampamento dos soldados.
— Você está bem, papai? — perguntou Katie depois de um longo silêncio. — Estão lhe dando
comida direito?
— Estou bem, Katie... mas não falamos nada sobre você. O que anda fazendo? Está feliz?
—- Eu tive outra promoção — falou ela depressa. — E meu novo apartamento é bonito... você
devia ver... e tenho um amigo que gosta de mim...
— Fico contente com isso — disse Richard, enquanto Franz lembrava Katie que estava na
hora de irem embora. — Você sempre foi a mais inteligente das minhas filhas... você merece
um pouco de felicidade.
De repente, Katie começou a soluçar e baixou a cabeça no peito do pai.
— Papai, oh, papai — dizia ela aos soluços —, por favor, me abrace. Richard pôs os braços
em volta da filha.
— O que foi, Katie? — perguntou ele em tom carinhoso.
— Não quero mentir para você — falou Katie. — Eu trabalho para Nakamura, gerenciando
prostitutas. E sou viciada em drogas... Absolutamente viciada em drogas.
Katie chorou durante muito tempo. Richard abraçou-a com força e bateu em suas costas.
— Mas eu te amo, papai — disse ela, finalmente levantando a cabeça. — Sempre te amei, e
sempre te amarei... sinto muito ter decepcionado você.

— Katie, nós temos de ir agora — falou Franz com firmeza. — Se a energia voltar enquanto
estivermos aqui, vai ser uma merda.

Katie beijou seu pai nos lábios às pressas e passou mais uma vez os dedos em sua barba.
— Fique em paz, papai — disse ela. — E não perca a esperança.
O facho de luz estreito da lanterna precedeu os dois visitantes enquanto eles rapidamente
atravessavam o quarto em direção à escada.
— Adeus, papai — disse Katie.
— Eu também a amo, Katie — murmurou Richard, ouvindo os passos de sua filha subindo os
degraus.

A octoaranha sobre a mesa estava inconsciente. Nicole passou para o dr. Azul o pequeno
recipiente de plástico que o médico alienígena pedira e ficou observando aquelas criaturas
mínimas serem jogadas no líquido preto-esverdeado que cobria o ferimento aberto. Em menos
de um minuto o líquido sumiu e seu colega octoaranha suturou o corte usando cinco
centímetros de três dos seus tentáculos.
— Este é o último por hoje — disse o dr. Azul em cores. — Como sempre, Nicole, muito
obrigado por sua ajuda.
Os dois atravessaram juntos a sala de cirurgia e passaram para um aposento ao lado. Nicole
ainda não se acostumara àquele processo de limpeza. Ela respirou fundo, retirou o avental e
colocou os braços em um grande recipiente com dezenas de seres parecendo peixinhos
dourados. Nicole sentiu-se repugnada quando aqueles bichinhos subiram pelos seus braços e
mãos.
— Sei que isso não lhe agrada — falou o dr. Azul —, mas não temos escolha, agora que o
suprimento de água foi contaminado pelo bombardeio... E não podemos correr o risco de
alguma coisa daqui intoxicá-la.
— Tudo no norte da floresta foi destruído? — perguntou Nicole, enquanto o dr. Azul
terminava sua limpeza.
— Quase tudo — respondeu a octoaranha. — E parece que os engenheiros humanos já
terminaram as modificações nos seus helicópteros. O Chefe Otimizador teme que eles
comecem a sobrevoar a floresta dentro de uma a duas semanas.
— E as mensagens que o senhor mandou ficaram sem resposta?
— Ficaram... Sabemos que Nakamura leu as mensagens... mas eles raptaram e mataram o
último mensageiro octoaranha perto da usina elétrica... apesar de ele estar carregando uma
bandeira branca.
Nicole deu um suspiro, lembrando-se do que Max dissera na noite anterior, quando ela
expressou seu espanto por Nakamura ter ignorado todas as mensagens.

— Aquele homem não entende nada além de força bruta... — Max gritara irritado. — Tudo o
que aquelas mensagens idiotas dizem é que as octoaranhas desejam paz, e que terão de se
defender se os humanos não desistirem... As ameaças que se seguem não fazem sentido. O que
Nakamura vai pensar quando suas tropas e helicópteros se espalharem por aí desimpedidos,
destruindo tudo à vista?... O Chefe Otimizador aprendeu alguma coisa sobre os humanos? As
octoaranhas devem levar o exército de Nakamura a algum tipo de batalha...
— As octoaranhas não funcionam assim — dissera Nicole. — Elas não se envolvem em
escaramuças ou guerras limitadas. Só lutam quando sua sobrevivência está ameaçada... Nas
mensagens tudo isso era exposto com muito cuidado e foram feitos vários pedidos para
Nakamura conversar com Richard e Archie...
No hospital, o dr. Azul continuava sua conversa em cores com Nicole. Ela sacudiu a cabeça e
voltou ao presente.
— Você vai esperar por Benjy hoje? — perguntou a octoaranha. — Ou vai direto para o centro
administrativo?
Nicole olhou o relógio.
— Acho que vou agora. Em geral, levo umas duas horas para assimilar todos os dados dos
quadróides do dia anterior... Tanta coisa está acontecendo... Por favor, peça ao Benjy para
dizer aos outros que estarei em casa para o jantar.
Nicole saiu do hospital um pouco depois e dirigiu-se para o centro administrativo. Embora
ainda fosse dia, as ruas da Cidade de Esmeralda estavam quase desertas. Nicole passou por
três octoaranhas, todas andando apressadas do outro lado da rua, e por um par de biotas
caranguejos que pareciam deslocados ali. O dr. Azul dissera a ela que os biotas caranguejos
tinham sido recrutados para trabalharem como garis na Cidade de Esmeralda.
A cidade mudou muito desde o decreto, pensou Nicole. A maioria das octoaranhas mais velhas
está no Domínio da Guerra. E nós nunca vimos um biota aqui até o mês passado, depois que a
maioria das criaturas do grupo de apoio foi enviada para outra locação. Max acha que muitas
delas foram exterminadas por causa dos racionamentos. Max sempre pensa o pior das
octoaranhas.
Em geral, depois do trabalho Nicole acompanhava Benjy até a parada do carro de transporte.
Seu filho também estava dando uma ajuda no hospital. A medida que ele foi se
conscientizando do que estava ocorrendo na Cidade de Esmeralda, ficou cada vez mais difícil
para Nicole esconder a seriedade da situação que viviam.
— Por que nosso po-vo es-tá lu-tan-do contra as oc-to-a-ra-nhas? — perguntara Benjy na
semana anterior. — As octoaranhas não querem machucar ninguém...
— Os colonos do Novo Éden não entendem as octoaranhas — dissera Nicole. — E não vão
deixar Archie e o tio Richard explicar nada.
— Então eles são mais es-tú-pi-dos do que eu — dissera Benjy carrancudo. O dr. Azul e os
outros membros da equipe do hospital das octoaranhas que não haviam sido deslocados pela
guerra estavam muito impressionados com Benjy. No início, quando ele se apresentou como
voluntário para ajudar, as octoaranhas tiveram reservas quanto às suas limitações. Mas Nicole
explicava-lhe suas tarefas, ele repetia tudo para a mãe e nunca cometeu um erro. Sua ajuda era
especialmente preciosa nos trabalhos pesados, por ele ser forte e jovem, um valioso atributo
naquela hora em que várias das criaturas maiores não estavam mais por ali.
Enquanto Nicole caminhava até o centro administrativo, com a cabeça tomada de pensamentos
agradáveis sobre Benjy, uma súbita imagem de Katie superpôs-se à figura sorridente de seu
filho retardado. A mente de Nicole ficou dividida entre as duas imagens. Como pais, pensou
ela suspirando, nós passamos tempo demais envolvidos com o potencial intelectual, e
deixamos de dar certa atenção a outras qualidades mais palpáveis. O que mais importa não
é o nível do intelecto da criança, mas o que ela decide fazer com esse intelecto... Benjy
superou nossas expectativas, basicamente por causa da pessoa que ele é por dentro...
Quanto a Katie, nunca, em meus piores pesadelos...
Nicole interrompeu seus pensamentos quando entrou no prédio. Um guarda octoaranha lhe
acenou e ela sorriu. Ao chegar à sala de vídeo, Nicole ficou surpresa ao ver que o Chefe
Otimizador esperava por ela.
— Eu queria aproveitar essa oportunidade — disse o chefe das octoaranhas — para agradecer
sua contribuição nesse período difícil, e assegurar-lhe que sua família e seus amigos que
vivem aqui na Cidade de Esmeralda serão cuidados como se fossem membros da nossa
espécie, aconteça o que acontecer nas próximas semanas.
Quando o Chefe Otimizador ia saindo da sala, Nicole perguntou:
— Então a situação está piorando?
— Está — respondeu a octoaranha. — Assim que os humanos sobrevoarem a floresta,
seremos forçados a retaliar.
Depois que a octoaranha saiu, Nicole sentou-se em frente ao console para escanear os dados
dos quadróides do dia anterior. Ela não tinha acesso a todas as informações do Novo Éden,
mas podia colocar na tela as imagens das atividades diárias de todos os membros de sua
família. Nicole via todo dia o que acontecia no porão com Richard e Archie, como Ellie e
Nikki estavam se adaptando no Novo Éden e o que ocorria no mundo de Katie.
À medida que o tempo passava, Nicole observava Katie cada vez menos, pois lhe era muito
penoso ver a filha naquele estado. Por outro lado, observar Nikki era uma delícia. Ela gostava
especialmente de ver a neta brincando à tarde com outras crianças, no playground de
Beauvois. Embora as imagens fossem mudas, quase podia ouvir os gritinhos de felicidade de
Nikki e das outras crianças, emboladas umas sobre as outras enquanto jogavam bola.
Nicole andava muito preocupada com Ellie. Apesar dos seus esforços heróicos, Ellie não
estava conseguindo refazer seu casamento. Robert mantinhase ausente, trabalhava
exageradamente e usava as demandas do hospital para evitar toda e qualquer emoção,
inclusive as suas próprias. Como pai, cumpria suas obrigações, mas era contido, raramente
mostrando seu contentamento com Nikki. Robert não fazia amor com Ellie e nem falava sobre
isso; quando ela tocou no assunto três semanas depois de ter chegado ao Novo Éden, ele disse
apenas que não estava pronto.

Durante as longas e solitárias sessões de vídeo, Nicole ficava imaginando se era possível,
como mãe, observar uma filha em dificuldade sem se perguntar o que poderia fazer para
facilitar a vida dela. Ser mãe é uma aventura sem resultados garantidos, pensou Nicole,
estremecendo enquanto passava rapidamente pelas imagens de Ellie chorando sozinha à noite.
A única coisa que a gente sabe ao certo é que nunca se convencerá de ter feito o melhor
possível.

Nicole sempre deixava Richard por último. Embora não tivesse se libertado da premonição de
que nunca mais tocaria no seu querido esposo, não deixava que aquele sentimento empanasse
sua alegria diária quando ficava observando a vida de Richard no porão do Novo Éden.
Gostava em especial das conversas dele com Archie, embora fosse difícil ler os lábios do
marido. As discussões dos dois lembravam a Nicole os dias passados, a época em que ela
fugira da prisão e do Novo Éden, quando ficava conversando com ele sobre os assuntos mais
variados. Ver Richard sempre deixava Nicole animada, e muito mais capaz de lidar com a sua
própria solidão.
O encontro de Katie com Richard pegou Nicole de surpresa. Não estava acompanhando a vida
da filha em detalhes para saber que ela e Franz tinham feito um plano para visitar Richard.
Como as imagens dos quadróides cobriam a porção infravermelha do espectro, além da
porção visível, Nicole teve uma visão mais nítida do encontro do que os próprios
participantes. Ficou muito comovida com a ação de Katie, e mais ainda com sua súbita
confissão de que era viciada em drogas (cena que Nicole repetiu diversas vezes, em câmera
lenta, para ter certeza de que estava lendo corretamente os lábios da filha). O primeiro passo
para superar um problema, Nicole lembrou de ter lido em algum lugar, é admitir a alguém
que se ama que o problema existe.
Nicole tinha os olhos cheios de lágrimas quando entrou no transporte, quase vazio, que a
levaria para o enclave humano na Cidade de Esmeralda. Mas eram lágrimas felizes. Embora o
estranho mundo à sua volta estivesse se transformando num caos, sentia-se otimista em relação
a Katie.

Patrick e os gêmeos estavam do lado de fora da casa quando Nicole desceu do transporte, no
fim da rua. Quando ela se aproximou, pôde ver que Patrick estava tentando apartar uma das
inúmeras brigas dos meninos.
— Ele sempre rouba — dizia Kepler. — Eu disse que não queria brincar mais e ele me bateu.
— Isso é mentira — gritou Galileu. — Eu bati nele porque ele fez careta para mim... Kepler
não sabe perder. Quando não ganha, acha que é direito sair da brincadeira.
Patrick separou os dois e mandou-os ficar de castigo em cantos opostos da casa. Ao ver a
mãe, deu-lhe um beijo e um abraço.
— Tenho novidades — disse Nicole sorrindo para o filho. — Richard teve uma visita de
surpresa hoje: Katie.
Patrick quis saber todos os detalhes da visita. Nicole fez um resumo do que tinha visto e
admitiu que ficara esperançosa quando Katie confessou que era viciada em drogas.
— Não acredite tanto no que ela diz — falou Patrick. — A Katie que eu conheci preferiria
morrer a ficar sem sua preciosa droga.

Patrick virou-se de costas, e, quando estava prestes a dizer para os gêmeos que eles podiam
voltar a brincar, dois foguetes riscaram o céu, caindo em bolas vermelhas e brilhantes logo
abaixo da cúpula. Um instante depois a cidade ficou na escuridão.

— Vamos para dentro, meninos — disse Patrick.


— É a terceira vez hoje — comentou Patrick, quando ele e a mãe entraram em casa com os
gêmeos.
— O dr. Azul disse que eles apagam as luzes da cidade quando algum helicóptero passa a
vinte metros do topo da floresta. Em nenhuma circunstância as octoaranhas querem que se
descubra onde fica a Cidade de Esmeralda.
— Você acha que Archie e o tio Richard conseguirão se encontrar com Nakamura? —
perguntou Patrick.
— Duvido um pouco — replicou Nicole. — Se ele tivesse intenção de receber os dois, já o
teria feito.
Eponine e Nai vieram dar um abraço em Nicole, e as três conversaram rapidamente sobre o
blecaute. Eponine segurava no colo o pequeno Marius, que se tornara um bebê grande, feliz e
babão. Limpou o rosto do bebê para Nicole poder beijá-lo.
— Ah — ela ouviu Max dizer —, a Rainha dos Carrancudos beijando o Príncipe dos Babões.
Nicole virou-se e abraçou Max.
— Que história é essa de Rainha dos Carrancudos? Max passou-lhe um copo com um líquido
transparente.
— Tome um pouco disso aqui, Nicole. Não é tequila, mas é o mais parecido que as
octoaranhas conseguiram fazer a partir da minha descrição... Nós todos esperamos que você
volte ao seu senso de humor antes de terminar o drinque.
— Deixe disso, Max — disse Eponine. — Vai ficar parecendo que nós todos estamos nessa...
Afinal de contas, a idéia foi sua. Patrick, Nai e eu só dissemos que também achamos que
Nicole anda muito séria ultimamente.
— Agora, minha senhora — falou Max, tocando seu copo no dela —, quero propor um
brinde... A todos nós, que não temos controle algum sobre o nosso futuro. Que a gente se ame e
seja capaz de rir até o fim, quando e como isso ocorrer.
Nicole não via Max bêbado desde o dia em que fora presa. Por insistência dele, deu um gole
na bebida. Sentiu a garganta e o esôfago queimarem, e os olhos encheram-se de lágrimas. A
bebida tinha alto teor alcoólico.
— Antes do jantar — disse Max de novo, abrindo os braços em um gesto dramático —, nós
vamos contar histórias da roça... para podermos dar boas risadas, de que tanto precisamos...
Você, Nicole des Jardins Wakefield, como nossa líder, será a primeira a entrar em cena.
Nicole tentou dar um sorriso.
— Mas eu não conheço nenhuma história da roça — protestou. Eponine ficou aliviada ao ver
que Nicole não se ofendera com as brincadeiras de Max.
— Não se importe, Nicole — disse ela. — Nenhum de nós conhece... Max sabe as histórias
por todos nós.
— Era uma vez — começou Max depois de algum tempo — um fazendeiro de Oklahoma que
tinha uma esposa chamada Assobio. Ela era chamada assim porque quando ia gozar na cama
fechava os olhos, apertava a boca e soltava um longo assobio...
Max deu um arroto e os gêmeos caíram na risada. Nicole ficou receosa de que as histórias de
Max não fossem apropriadas para os meninos, mas viu Nai sentada atrás deles, rindo também.
Relaxe, disse Nicole consigo mesma. Você está se tomando mesmo a Rainha dos
Carrancudos.
— Certa noite — continuou Max —, o fazendeiro e Assobio tiveram uma briga feia, e ela foi
para a cama cedo, furiosa. O fazendeiro ficou sentado à mesa tomando tequila. Com o passar
das horas, arrependeu-se de ter sido um filho da puta com a sua mulher, e começou a
desculpar-se em voz alta. Assobio, que ficou ainda mais furiosa por ter sido acordada, sabia
que quando o marido terminasse sua tequila ia entrar no quarto e tentar fazer amor com ela em
sinal de desculpa. Enquanto ele esvaziava a garrafa, ela saiu de mansinho de casa, foi até o
chiqueiro, pegou a porca mais nova e menor que encontrou e levou-a para o seu quarto.
Quando mais tarde, o fazendeiro, bêbado entrou cambaleando no quarto escuro, cantando um
de seus hinos favoritos, Assobio ficou espiando do canto do quarto a porca que estava na
cama. O fazendeiro tirou a roupa e enfiou-se debaixo das cobertas. Pegou a porca pela orelhas
e beijou-a nos lábios. A porca deu um guincho e o fazendeiro recuou para trás. "Assobio, meu
amor", disse ele, "você se esqueceu de escovar os dentes essa noite?" Então a esposa deu um
pulo do canto do quarto e começou a bater nele com uma vassoura...
Todos estavam rindo. Max ria tanto da sua própria história que quase perdeu o equilíbrio.
Nicole olhou em volta da sala. Max tem razão, pensou. Nós precisamos disso. Temos andado
muito preocupados.
—...Meu irmão Clyde — falou Max — sabia mais histórias da roça do que todo mundo. Ele
namorou Winona contando essas histórias, ou pelo menos foi o que disse.. Clyde dizia que
"quando a mulher ri já está pronta para tirar as calcinhas"... Quando nós saíamos para caçar
pato com o pessoal, não dávamos um único tiro. Clyde ficava contando piadas, e nós ríamos e
bebíamos o tempo todo... Depois de algum tempo, não sabíamos mais por que tínhamos
acordado às cinco da madrugada para ficar sentados no frio...
Max parou de falar e a sala ficou em silêncio.
— Que merda — disse ele enfim. — Por um instante, achei que tinha voltado para o Arkansas.
— Max levantou-se. — Nem ao menos sei dizer para que lado fica o Arkansas, ou a quantos
bilhões de quilômetros de distância... — Max sacudiu a cabeça. — Às vezes, quando estou
sonhando e meu sonho parece realidade, penso que voltei para o Arkansas. E, quando acordo,
não sei onde estou, e acho, por um instante, que essa vida aqui na Cidade de Esmeralda é um
sonho.
— A mesma coisa acontece comigo — falou Nai. — Há duas noites sonhei que estava fazendo
minha meditação de manhã no hawng pra da casa da minha família, em Lampun. Quando
comecei a recitar meu mantra, Patrick me acordou e disse que eu estava falando no sonho. E
por um instante fiquei sem saber quem ele era... fiquei muito assustada.
— Tudo bem — disse Max depois de um longo silêncio. — Acho que estamos prontos para
ouvir as notícias do dia. O que você tem para nos contar? — falou, virando-se para Nicole.
— Os vídeos dos quadróides estavam muito especiais hoje — disse Nicole sorrindo. — Nos
primeiros minutos, cheguei a achar que tinha entrado no arquivo errado... As imagens todas
mostravam porcos, galinhas e um jovem fazendeiro de Oklahoma namorando uma mocinha
linda... Na última série das imagens, o rapaz tentava beber tequila, comer galinha frita e fazer
amor com sua namorada, tudo ao mesmo tempo... Aliás, isso me fez lembrar que aquela
galinha parece estar ótima; por acaso alguém mais está com fome?
6

— Acho que eles se sentiram mais tranqüilos com o que o Chefe Otimizador me disse —
Nicole comentou com o dr. Azul. — É claro que Max teve suas dúvidas... Ele não acredita que
as octoaranhas darão prioridade à nossa segurança, caso a situação se torne desesperadora.
— Isso é muito pouco provável — replicou a octoaranha. — Qualquer retomada de
hostilidades terá uma maciça retaliação... Muitas octoaranhas vêm trabalhando nesses planos
há quase dois meses.
— Será que entendi bem? — perguntou Nicole. — É verdade que qualquer membro da sua
espécie que se envolver no projeto e na realização dessa guerra será exterminado quando a
guerra acabar?
— É isso mesmo — respondeu o dr. Azul. — Mas eles não serão mortos imediatamente...
Serão notificados de que foram colocados na lista de extermínio... O novo Chefe Otimizador
definirá o programa exato do extermínio, dependendo das necessidades da colônia e do ritmo
do reabastecimento.
Nicole e seu colega octoaranha estavam almoçando juntos no hospital. Eles tinham passado a
manhã tentando em vão salvar a vida de duas criaturas utilitárias de seis braços, que haviam
sido feridas pelas tropas dos humanos enquanto trabalhavam em uma das plantações
remanescentes de cereais, ao norte da floresta.
Durante o almoço, um biota centopéia apareceu no corredor ao lado deles, e o dr. Azul notou o
ar intrigado de Nicole.
— Quando entramos em Rama, antes de preenchermos todo o nosso quadro de animais de
apoio, nós usávamos os biotas disponíveis nas tarefas de rotina, como manutenção... Agora
estamos precisando da ajuda deles de novo.
— Mas como o senhor lhes dá instruções? — perguntou Nicole. — Nós nunca conseguimos
nos comunicar com esses biotas.
— A programação deles é feita na hora em que são fabricados... O que fazíamos antigamente,
com um tipo de teclado semelhante ao que você tem na sua toca, era pedir aos ramaianos que
alterassem a programação deles para nosso uso específico... É para isso que todos os biotas
estão aqui... para serem transformados em empregados úteis pelos passageiros a bordo.
Bem, Richard, pensou Nicole, pelo menos esse conceito nós não conhecíamos. Na verdade,
acho que essa idéia nunca nos ocorreu...
— ...Queríamos que nosso assentamento aqui em Rama não se distinguisse de todas as nossas
outras colônias — dizia o dr. Azul. — Portanto, como não precisamos mais dos biotas,
pedimos que eles fossem então retirados do nosso território em Rama.
— E desde então vocês não tiveram mais nenhum contato direto com os ramaianos?
— Não muito — respondeu o dr. Azul. — Mas mantivemos a possibilidade de comunicação
com as fábricas de alta tecnologia, debaixo da superfície... basicamente para podermos
solicitar a fabricação de certas matérias-primas que não temos em nossos armazéns...
Uma porta do corredor abriu-se e uma octoaranha entrou. Ela falou rapidamente com o dr.
Azul em sua língua oficial, com faixas coloridas muito estreitas. Nicole reconheceu as
palavras permissão e esta tarde, mas quase nada além disso.
Depois que a octoaranha saiu, o dr. Azul disse a Nicole que tinha uma surpresa para ela.
— Hoje uma das nossas rainhas vai expelir o ovo. Seus atendentes calculam que isso vá
acontecer em menos de um tert. O Chefe Otimizador atendeu o meu pedido para você assistir...
Ao que eu saiba, você é a única alienígena, fora os precursores, que teve o privilégio de
assistir à rainha expelindo o ovo... Penso que vai achar interessante.
Durante o percurso no transporte até o Domínio das Rainhas, em uma parte da Cidade de
Esmeralda onde Nicole nunca estivera, o dr. Azul lembrou-lhe alguns dos aspectos mais
inusitados da reprodução das octoaranhas.
— Em tempos normais, cada uma das três rainhas da nossa colônia é fertilizada uma vez a
cada três ou cinco anos, e só uma pequena fração dos ovos fertilizados chega à maturidade.
Porém, em razão dos preparativos de guerra, o Chefe Otimizador declarou recentemente um
Evento de Reabastecimento. Nossas três rainhas estão agora produzindo um conjunto completo
de ovos. Elas foram fertilizadas pelos novos machos guerreiros, as octoaranhas selecionadas
para os preparativos de guerra que passaram recentemente pela transição sexual. Essa
atividade é muito importante, pois garante, ao menos simbolicamente, que todas essas
octoaranhas terão um permanente envolvimento genético na colônia... Lembre-se de que eles
sabem, assim que são indicados como guerreiros, que seu tempo de extermínio não está muito
longe.
Sempre que penso que temos muito em comum com as octoaranhas, refletiu Nicole, vejo
alguma coisa bizarra que me faz lembrar como somos diferentes. Mas, como diria Richard,
como poderia ser de outra forma? Elas são produto de um processo totalmente alheio a nós.
— ...Não fique alarmada com o tamanho da rainha... e, por favor, em nenhuma circunstância
expresse outra coisa senão admiração pelo que vir. Quando sugeri que você assistisse à
expulsão do ovo, um dos membros da equipe do Chefe Otimizador fez objeção, e disse que
não havia hipótese de você poder apreciar o que iria ver. Outros membros da equipe ficaram
receosos de que você manifestasse mal-estar ou nojo, influenciando negativamente outras
octoaranhas que ainda deveriam passar por aquela experiência...
Nicole garantiu ao dr. Azul que ela não agiria de forma inconveniente durante a cerimônia.
Sentiu-se envaidecida por ter sido incluída naquela atividade, e ficou muito agitada quando o
carro de transporte deixou-os do lado de fora do grossos muros do Domínio das Rainhas.

O prédio em que ela entrou com o dr. Azul era construído em pedra branca, com teto em forma
de cúpula, pé-direito de uns dez metros, e cobria uma área de aproximadamente três mil e
quinhentos metros quadrados. Havia um grande mapa no hall de entrada e uma mensagem
escrita em cores explicando onde teria lugar a expulsão do ovo. Nicole, o dr. Azul e várias
outras octoaranhas subiram duas rampas e depois desceram por um longo corredor. No final
desse corredor viraram à direita e chegaram a um balcão, quatro metros acima de uma área
retangular de quinze metros de comprimento e cinco a seis de largura.

O dr. Azul levou Nicole para a primeira fila, protegida por uma balaustrada de um metro de
altura. As outras cinco filas por trás deles ficaram logo lotadas. Do outro lado havia outro
balcão semelhante, onde se aglomeravam umas sessenta octoaranhas.
Ao olhar para baixo, Nicole viu um curso de água parecendo um amplo canal, que corria pelo
chão e desaparecia sob um arco à direita. Dos dois lados do canal havia um passadiço
estreito. Mas, do lado oposto, esse passadiço alargavase e acabava numa plataforma de cerca
de três metros, que terminava na parede de pedra à esquerda da grande sala. Nessa parede,
pintada com várias cores e desenhos variados, embutiam-se uns cem bastões de prata, ou
pregos, com um metro de saliência da parede. Nicole percebeu imediatamente a semelhança
entre essa parede e o corredor em declive e forma de barril por onde ela e seus amigos tinham
descido na toca das octoaranhas em Nova York.
Menos de dez minutos depois de os dois balcões ficarem lotados, o Chefe Otimizador
apareceu de uma porta lateral lá embaixo, postou-se ao lado do canal e fez um curto discurso.
O dr. Azul esclareceu as partes do discurso que Nicole não conseguiu interpretar. O Chefe
Otimizador lembrava à platéia que nunca se sabia o tempo exato para a expulsão do ovo, mas
que tudo indicava que a rainha estaria pronta para entrar na sala dentro de mais uns fengs.
Depois de comentar a importância vital do reabastecimento para a continuidade da colônia, o
Chefe Otimizador saiu da sala.
E teve início a espera. Nicole passou o tempo observando as octoaranhas do balcão em frente
e tentando ouvir as conversas. Ela compreendia um pouco do que estava sendo dito, mas não
tudo. E pensou consigo mesma que ainda tinha muito a aprender antes de se tornar fluente na
língua natural das octoaranhas.
Finalmente as grandes portas da extrema esquerda do corredor abriramse e a rainha apareceu.
Ela era colossal, com pelo menos seis metros de altura e um corpo gigantesco acima dos seus
oito longos tentáculos. Parou na plataforma e disse alguma coisa para a platéia. Cores
brilhantes espalharam-se em profusão por todo o seu corpo, criando um verdadeiro
espetáculo. Nicole não entendeu o que a rainha estava dizendo porque não conseguiu
acompanhar a seqüência exata das cores que saíam de sua fenda.
A rainha virou-se lentamente para a parede, estendeu seus tentáculos e deu início ao
trabalhoso processo de subir pelos pregos. Ao longo da escalada, desordenadas explosões de
cor decoraram seu corpo. Nicole supôs que fossem algum tipo de expressão emocional, talvez
de dor ou de cansaço. Ao olhar novamente para o outro balcão, notou que ninguém conversava
na platéia.

Quando finalmente se posicionou no centro da parede, a rainha enrolou os oito tentáculos em


volta dos pregos e expôs sua barriga de cor creme. O trabalho de Nicole no hospital deixara-a
familiarizada com a anatomia das octoaranhas, mas ela nunca imaginara que o tecido macio
debaixo da barriga delas pudesse se distender tanto. Enquanto Nicole observava, a rainha
começou a balançar-se ligeiramente para a frente e para trás, fazendo a parede de pedra vibrar
a cada movimento. As cores emocionais continuaram a jorrar do seu corpo, chegando ao auge
de intensidade quando um líquido preto esverdeado escorreu da lateral da rainha, seguido
imediatamente de um fluxo de objetos de tamanhos diferentes contidos em um líquido grosso e
viscoso.

Nicole estava estupefata. Abaixo dela, umas doze octoaranhas espalhadas dos dois lados do
canal faziam cair na água uns ovos e parte do líquido que se encontravam nos passadiços.
Outras oito octoaranhas esvaziavam na água o conteúdo de imensos containers. A água
fervilhava de sangue, de ovos e do líquido viscoso misturado aos ovos. Em menos de um
minuto, toda aquela mistura que sujava o canal passou por baixo do arco à direita.
A rainha continuava na mesma posição. Depois que a água ficou limpa, todas as lentes
viraram-se para olhá-la. Nicole ficou espantada ao ver como a octoaranha tinha encolhido.
Calculou que a rainha havia perdido metade do seu peso na fração de segundo que o ovo e os
líquidos levaram para sair do seu corpo. Ainda estava sangrando quando duas octoaranhas de
tamanho normal subiram na parede para lhe dar assistência. A essa altura, o dr. Azul bateu no
ombro de Nicole, em sinal de que estava na hora de irem embora.

Sentada sozinha em uma das salinhas do hospital das octoaranhas, Nicole lembrava-se sem
parar da cena da expulsão do ovo. Não tinha imaginado que aquele acontecimento pudesse
afetá-la tanto, do ponto de vista emocional. Nicole ouviu só a metade das explicações do dr.
Azul quando voltavam para o hospital. Os containers esvaziados no canal continham
animaizinhos que iriam procurar e matar embriões específicos. Daquela forma, as octoaranhas
controlavam a composição exata da próxima geração, inclusive o número de rainhas, de
"repletas", de morfoses midgets e todas as outras variações.
A mãe dentro de Nicole lutava para compreender o que uma rainha octoaranha deveria sentir
durante a expulsão do ovo. De certa forma, Nicole sentia-se profundamente ligada àquela
criatura colossal que tinha subido nos pregos das paredes. No instante da expulsão do ovo, o
corpo de Nicole tinha se contraído, e ela se lembrara da dor e da alegria do parto de seus seis
filhos. O que acontece no parto, pensou ela, que une todas as criaturas que já passaram por
isso?
Lembrou-se de uma conversa, muito tempo atrás, em Rama II, com Michael O'Toole, depois
que Simone e Katie tinham nascido, quando tentou lhe explicar o que a mulher sentia no parto.
Depois daquela conversa ela concluíra, com certa relutância, que o parto era uma experiência
impossível de ser transmitida de uma pessoa para outra. O mundo divide-se em dois grupos,
dissera na época. O das mulheres que passaram pela experiência do parto e o das que não
passaram. Agora, dezenas de anos depois e a bilhões de quilômetros de distância, ela gostaria
de acrescentar um corolário a essa sua observação anterior. As mulheres que são mães têm
mais em comum, fundamentalmente, com mães de outras espécies do que com mulheres
humanas que nunca tiveram filhos.

Enquanto continuava a refletir sobre a cena que tinha presenciado, Nicole foi tomada por um
desejo de comunicar-se com a rainha octoaranha, para saber o que aquela outra mãe
inteligente sentiu e pensou imediatamente antes e durante a expulsão do ovo. Teria a rainha, em
meio à dor e à maravilha do momento, sentido uma serenidade divina, uma visão da sua
própria prole e da prole seguinte, continuando, no futuro imprevisto, o milagroso ciclo da
vida? Teria sentido uma profunda e inefável paz logo depois da expulsão, uma paz que criatura
alguma jamais sentiu senão logo após o parto?

Nicole sabia que aquela conversa imaginária com a rainha nunca aconteceria. Fechou os olhos
mais uma vez, tentando reconstruir exatamente os jatos de cor que vira no corpo da rainha
pouco antes e depois do acontecimento. Aquelas cores mostravam às outras octoaranhas o que
a rainha estava sentindo? Através de sua rica linguagem de cores, as octoaranhas podiam
comunicar sentimentos complexos como o êxtase, melhor do que os humanos com sua limitada
linguagem de palavras?
Não houve respostas. De repente, Nicole lembrou-se de que tinha coisas a fazer no hospital
das octoaranhas, mas que ainda não estava pronta para sair do seu isolamento. Não queria que
as fortes emoções que estava sentindo fossem arrefecidas pelas exigências da vida diária.
Algum tempo depois, Nicole começou a sentir uma profunda solidão. A princípio não ligou
essa solidão à expulsão do ovo. Mas sabia que estava sentindo um forte desejo de conversar
com um amigo íntimo, de preferência Richard. Queria compartilhar com alguém o que tinha
sentido e visto no Domínio da Rainha. No seu isolamento, Nicole lembrou-se de repente de
umas linhas de um poema de Benita Garcia. Abriu seu computador portátil, e depois de muito
procurar encontrou o poema inteiro.

Em momentos de profunda dúvida ou intensa dor,


Quando sou subjugada pela vida,
Procuro por todo lado possível
Caridosas almas com força para mitigar
O que me faz tremer, chorar e meditar.
Elas me dizem que não posso viver do meu jeito
Quando todos os meus sentimentos regem minha consciência.
Preciso me controlar antes do ato,
Ou aceitar o que há tanto tempo agüento,
Os dias brutais de solidão e cegueira.

Houve vezes, não muitas mas algumas,


Em que o bálsamo calmante de alguém
Pôs termo à minha angústia ou dor.
Mas a idade ensinou-me uma regra simples.
Dentro de mim preciso conter os gritos,
Quaisquer que sejam os demônios a enfrentar,

As lições aprendidas não mais serão perdidas.

Nós caminhamos sozinhos na viagem final.


Nenhuma mão pode nos ajudar no dia da morte.
É melhor aprendermos enquanto é tempo, amigo,
A confiar em nós mesmos e a manter o fôlego.

Nicole leu o poema várias vezes, e logo depois percebeu que estava completamente exausta.
Debruçou-se sobre a mesa da sala e mergulhou no sono.

O dr. Azul bateu de mansinho no ombro de Nicole com um de seus tentáculos. Nicole se mexeu
e abriu os olhos.
— Você está dormindo há quase duas horas — disse a octoaranha. — Estão esperando-a no
centro administrativo.
— O que está acontecendo? — perguntou Nicole esfregando os olhos. — Por que estão me
esperando?
— Nakamura fez um longo discurso no Novo Éden, e o Chefe Otimizador quer discutir o
assunto com você.
Nicole deu um pulo. Apoiou a mão na mesa e em alguns segundos sua tontura havia passado.
— Obrigada, dr. Azul, por tudo — disse. — Estarei lá num minuto.

— Eu realmente acho que Nikki não deve assistir ao discurso — disse Robert. — Ela vai
ficar assustada.
— O que Nakamura disser vai afetar tanto a vida de Nikki quanto a nossa — disse Ellie. —
Se ela quiser ir, acho que devemos deixar... Afinal, Robert, ela viveu com as octoaranhas.
— Mas ela não pode entender o que tudo isso significa — argumentou Robert. — Nikki ainda
não tem nem quatro anos.
O assunto continuou em suspenso até um instante antes de avisarem que o ditador do Novo
Éden iria aparecer na televisão. Naquela hora, Nikki entrou na sala e aproximou-se da mãe.
— Eu não vou assistir — disse a menininha com uma incrível percepção — porque não quero
que você e papai briguem.

Uma das salas do palácio de Nakamura fora convertida num estúdio de televisão, e era daí
que o tirano geralmente se dirigia aos cidadãos do Novo Éden. Seu último discurso fora há
três meses, quando anunciou que as tropas seriam mandadas ao Hemicilindro Sul para
enfrentar a ameaça alienígena. Embora os jornais e a televisão controlados pelo governo
dessem notícias regulares do front, muitas delas criando a idéia de uma intensa resistência
oferecida pelas octoaranhas, aquele era o primeiro comentário público de Nakamura sobre o
desenrolar e a direção da guerra no sul.

Para o discurso, Nakamura tinha ordenado que seus alfaiates lhe confeccionassem uma roupa
completa de shogun, ornamentada com espada e adaga. Ele ia aparecer com esse traje marcial
japonês, dissera aos seus assessores, para reforçar seu papel de chefe guerreiro e protetor dos
colonos. No dia da transmissão, os assessores de Nakamura ajudaram-no a colocar dois
cinturões pesados para que ele passasse a idéia de guerreiro poderoso e ameaçador.
Nakamura falou de pé, olhando na direção da câmera, sem mudar sua expressão séria durante
todo o discurso.
— Todos nós nos sacrificamos nestes últimos meses — começou ele — para apoiar nossos
valentes soldados que lutam ao sul do mar Cilíndrico contra um hediondo e implacável
inimigo alienígena. Nosso serviço de inteligência nos informou que essas octoaranhas,
descritas em detalhes a vocês pelo dr. Robert Turner depois de sua corajosa fuga, estão
planejando um grande ataque contra o Novo Éden em futuro próximo. Neste momento crítico
da nossa história, devemos redobrar nossa determinação e nos mantermos unidos contra o
agressor alienígena. Nossos generais da frente de batalha recomendaram que penetremos além
da barreira da floresta que protege a maior parte do domínio das octoaranhas e interditemos
seus suprimentos e material bélico antes que elas comecem a nos atacar. Nossos engenheiros,
que trabalham dia e noite para a sobrevivência da colônia, fizeram modificações na nossa
frota de helicópteros para que essa interdição seja possível. Nossa ofensiva começará muito
em breve. Convenceremos os alienígenas de que eles não podem nos atacar impunemente.
Nesse meio-tempo, nossos guerreiros terminaram de fortificar toda a área de Rama entre o
mar Cilíndrico e a barreira da floresta. Durante ferozes batalhas, destruímos centenas de
inimigos e também suprimentos de água e usinas elétricas. Nossas baixas foram poucas,
basicamente em razão de nossos excelentes planos de batalha e do heroísmo das nossas
tropas. Mas não devemos ficar excessivamente confiantes. Ao contrário, temos sobejas razões
para acreditar que ainda não enfrentamos a elite do Corpo da Morte que o dr. Turner ouviu as
octoaranhas mencionarem quando era prisioneiro delas. Temos certeza de que é esse Corpo da
Morte que estará na vanguarda dos alienígenas se não nos mobilizarmos depressa para evitar
um ataque ao Novo Éden. Lembrem-se, o tempo é nosso inimigo. Devemos agir agora e
destruir totalmente a capacidade guerreira das octoaranhas. Há um pequeno item que eu
gostaria de abordar esta noite. Recentemente, o traidor Richard Wakefield e uma octoaranha
renderam-se às nossas tropas no sul. Disseram-se representantes do comando militar
alienígena em missão de paz. Suspeito que isso seja um truque, uma espécie de cavalo-de-
tróia, mas é meu dever, como chefe, promover um encontro com eles nos próximos dias.
Tenham certeza de que não negociarei nossa segurança, e comunicarei o resultado desse
encontro tão logo ele seja consumado.

— Mas, Robert — disse Ellie —, você sabe que grande parte do que ele está dizendo é
mentira... Não há Corpo da Morte, e as octoaranhas não ofereceram resistência. Como pode
ficar calado? Como permite que ele lhe atribua declarações que você nunca fez?
— Isso é política, Ellie — falou Robert. — Todo mundo sabe disso. Ninguém acredita
realmente...
— Mas isso é pior ainda. Você não vê o que está acontecendo? Robert fez menção de sair de
casa.
— Aonde você vai agora? — perguntou Ellie.
— Vou voltar para o hospital — respondeu Robert. — Tenho de visitar os doentes.
Ellie não podia acreditar. Ficou olhando para o marido um instante e depois descontrolou-se.
— É esta a sua reação — gritou Ellie. — Política, como sempre. Um lunático anuncia um
plano que provavelmente resultará na morte de todos nós e você acha que é política... Robert,
quem é você? Você não liga para nada?
Robert deu um passo até Ellie, furioso.
— Não venha de novo com essa atitude santificada — disse. — Nem sempre você tem razão,
Ellie, e não pode ter certeza de que todos nós seremos mortos. Talvez o plano de Nakamura
funcione...
— Você está se iludindo, Robert. Você se vira para o outro lado e diz a si próprio que,
enquanto seu pequeno mundo não for afetado, talvez as coisas estejam bem... Você está errado,
Robert. Muito errado. E, se não vai fazer nada a respeito disso, então eu vou.
— Vai fazer o quê? — perguntou Robert elevando a voz. — Dizer ao mundo que seu marido é
um mentiroso? Tentar convencer a todos que aquelas octoaranhas repugnantes são pacíficas?
Ninguém vai acreditar em você, Ellie... E ainda digo mais; assim que você abrir a boca será
presa e julgada por traição. Eles matarão você, Ellie, como vão matar seu pai... É isso que
você quer? Nunca mais ver sua filha?
Ellie percebeu um misto de tristeza e raiva nos olhos de Robert. Eu não conheço esse homem,
pensou ela. Como pode ser o mesmo homem que passou milhares de horas cuidando de graça
de pacientes terminais? Isso não faz sentido.
Ellie resolveu não dizer mais nada.
— Agora vou embora — falou Robert enfim. — Devo chegar em casa por volta de meia-noite.
Ellie foi para os fundos da casa e abriu a porta do quarto de Nikki, que por sorte estava
dormindo. Ellie sentia-se muito deprimida ao voltar para a sala, mais arrependida do que
nunca por ter saído da Cidade de Esmeralda. Mas tinha saído, e agora, o que faria? Seria fácil
se eu não tivesse de pensar em Nikki, disse para si mesma, sacudindo a cabeça para a frente e
para trás, e finalmente soltando as lágrimas que estava contendo.
— Então, como é que eu estou? — perguntou Katie, fazendo uma pirueta para Franz.
— Bonita, deslumbrante — respondeu ele. — Mais linda do que nunca. Katie estava com um
vestido preto simples, justo no corpo, com uma faixa branca descendo dos dois lados. Era
decotado na frente, mas um decote discreto, e ela usava um colar de brilhantes e ouro.
Katie deu uma olhada no relógio.

— Meu Deus, pelo menos uma vez estou adiantada — disse, atravessando a sala para acender
um cigarro que tirou de cima da mesa.

A farda de Franz estava recém-passada e os sapatos engraxados à perfeição.


— Então acho que temos tempo para a minha surpresa — disse ele, seguindo Katie até o sofá
e entregando-lhe uma caixinha de veludo.
— O que é isso? — perguntou Katie.
— Abra — disse Franz.
Dentro da caixa havia um anel de brilhante, um solitário.
— Katie — disse Franz desajeitado —, quer se casar comigo?
Katie olhou para ele e depois para o lado. Deu uma tragada no cigarro e soprou a fumaça no
ar.
— Sinto-me lisonjeada, Franz — disse, levantando-se e beijando-o no rosto. — De verdade...
Mas isso não funcionaria. — Fechou a caixa e devolveu-lhe o anel.
— Por que não? Você não me ama?
— Amo... acho que sim... se eu for capaz de ter esse tipo de emoção... Mas, Franz, já falamos
sobre isso. Não sou o tipo de mulher com quem você deve se casar.
— Por que não me deixa decidir isso, Katie? Como pode saber de que tipo de mulher eu
preciso?
— Olhe, Franz — disse Katie, mostrando uma certa agitação —, prefiro não falar nisso
agora... Como eu disse, estou lisonjeada... mas ando nervosa com essa audiência do meu pai, e
você sabe que não lido bem com muita merda ao mesmo tempo...
— Você sempre dá alguma razão para não querer falar sobre isso — reclamou Franz, irritado.
— Se você me ama, acho que mereço uma explicação. E já...
Os olhos de Katie faiscaram.
— Você quer uma explicação agora, capitão Bauer... Muito bem, eu vou dar... Siga-me, por
favor... — Katie levou-o para o seu quarto de vestir. — Agora fique aí, Franz, e preste bem
atenção.
Katie abriu a penteadeira, tirou uma seringa e uma tira de borracha, colocou a perna direita no
banquinho e levantou o vestido acima das marcas de sua coxa. Franz instintivamente virou o
rosto para o lado.
— Não — disse Katie, virando-lhe o rosto para que ele a olhasse de frente. — Não olhe para
o lado, Franz... Quero que você me veja como eu sou...
Ela desceu a meia-calça e apertou a borracha. Olhou para cima para ver se Franz ainda estava
observando a cena, e viu que seu olhar estava triste.
— Está vendo, Franz? Não posso me casar com você porque já sou casada... com essa droga
mágica que nunca me desaponta... Está entendendo? Não há jeito de você competir com essa
droga.

Katie enfiou a seringa na veia e esperou uns segundos pelo efeito.

— Você me contentaria por umas semanas ou uns meses — disse Katie, falando mais rápido
agora —, porém mais cedo ou mais tarde entraria em baixa... E eu o substituiria de coração
por essa droga de novo.
Katie limpou as duas gotas de sangue com um papel fino e colocou a seringa na pia. Franz
estava desesperado.
— Anime-se — disse Katie, dando-lhe uma palmadinha no rosto. — Você não perdeu sua
parceira de cama... Ainda estarei aqui para todas as maluquices que sonharmos fazer...
Franz virou-se e colocou a caixa de veludo no bolso da farda. Katie foi até a mesa e deu uma
última tragada no cigarro que estava queimando no cinzeiro.
— Agora, capitão Bauer, temos de ir à audiência.

A audiência foi realizada no salão de baile, no andar térreo do palácio de Nakamura. Havia
cerca de sessenta cadeiras ao longo das paredes, distribuídas em quatro fileiras, para os
convidados especiais. O próprio Nakamura, com a mesma roupa japonesa do discurso na
televisão dois dias antes, sentou-se em uma grande cadeira entalhada, sobre um estrado
colocado numa extremidade da sala. Dois guarda-costas, também vestidos de samurais,
estavam a seu lado. O salão de baile era decorado em estilo japonês do século dezesseis, o
que reforçava a imagem do todo-poderoso shogun do Novo Éden que Nakamura tentava criar.
Richard e Archie, que só tinham sido avisados da audiência quatro horas antes de saírem do
porão, foram trazidos por três policiais e sentaram-se numas almofadas pequenas no chão, a
vinte metros de Nakamura. Katie notou que seu pai parecia cansado e muito velho, e teve de
resistir ao impulso de correr para lá e falar com ele.
Um funcionário anunciou que a audiência estava aberta e lembrou a todos os espectadores que
não deviam falar nada nem interferir de forma alguma nos procedimentos. Terminado o
anúncio, Nakamura levantou-se e desceu pomposamente os dois degraus do estrado.
— Esta audiência foi convocada pelo governo do Novo Éden — disse ele de forma áspera,
andando de um lado para o outro — para determinar se o representante do inimigo alienígena
está preparado, em nome da sua espécie, a aceitar a rendição incondicional que exigimos
como pré-requisito indispensável à cessação das hostilidades entre nós. Se o ex-cidadão
Wakefield, que é capaz de comunicar-se com os alienígenas, for capaz de convencê-lo de que
deve aceitar nossas exigências, inclusive a de entregar todas as armas de guerra e preparar-se
para a nossa ocupação e administração de todas as terras alienígenas, então, estaremos
dispostos a ser misericordiosos. Em recompensa à sua ajuda para a conclusão desse terrível
conflito, estaríamos até dispostos a trocar a sentença de morte do sr. Wakefield para prisão
perpétua. Porém —, continuou Nakamura, elevando a voz —, se este traidor e seu cúmplice
alienígena se entregaram às nossas tropas vitoriosas como parte de um plano traiçoeiro para
minar nossa vontade coletiva de punir os alienígenas por seus ataques agressivos contra nós,
então usaremos esses dois como exemplo para mandar uma mensagem incontestável ao nosso
inimigo. Queremos que os líderes alienígenas saibam que os cidadãos do Novo Éden se
mantêm inabaláveis contra as metas expansionistas deles.
Até aquele momento, Nakamura havia se dirigido a toda a platéia. Agora, dirigia-se aos dois
prisioneiros isolados no chão do salão de baile.
— Sr. Wakefield, este alienígena ao seu lado está autorizado a falar pela sua espécie?
Richard levantou-se.
— Ao que eu saiba, está sim.
— E este alienígena então está preparado para ratificar o documento de rendição
incondicional que lhes foi mostrado?
— Nós só recebemos o documento há poucas horas, e não tivemos tempo ainda de conversar
sobre o seu teor. Expliquei as partes mais importantes para Archie, mas ainda não sei...
— Eles estão criando obstáculos — gritou Nakamura, dirigindo-se à platéia e sacudindo uma
folha de papel no ar. — Esta única folha contém todos os termos da rendição. — Virou-se de
novo para Richard e Archie. — A questão requer apenas uma simples resposta. Sim ou não?
Faixas coloridas jorraram da cabeça de Archie, e houve um murmúrio na platéia. Richard
olhou para Archie, fez uma pergunta a ele aos sussurros e depois interpretou a resposta. Olhou
para Nakamura e disse:
— A octoaranha deseja saber exatamente o que acontecerá caso o documento seja ratificado.
Que acontecimentos se seguirão e em que ordem. Nada disso está especificado no acordo.
Nakamura fez uma ligeira pausa.
— Primeiro, todos os soldados alienígenas deverão apresentar-se com suas armas e entregar-
se às nossas tropas no sul. Segundo, o governo alienígena, ou qualquer que seja o equivalente
a isso, deve nos enviar um inventário completo de tudo o que existe em seu domínio. Terceiro,
eles devem anunciar a todos os membros da sua espécie que ocuparemos sua colônia, e que
todos os alienígenas deverão cooperar de todas as maneiras com nossos soldados e cidadãos.
Richard e Archie conversaram brevemente.
— O que acontecerá a todas as octoaranhas e aos outros animais que apóiam a sociedade
deles? — perguntou Richard.
— Eles terão permissão de voltar à sua vida normal, com algumas restrições, é claro. Nossas
leis e nosso cidadãos funcionarão como o governo atuante das terras ocupadas.
— E então vocês acrescentarão uma emenda ou apêndice a esse documento de rendição,
garantindo a vida e a segurança das octoaranhas, e dos outros animais, desde que eles não
violem nenhuma das leis promulgadas no território ocupado?
Os olhos de Nakamura apertaram-se.
— Eu pessoalmente garantirei a segurança das octoaranhas que obedecerem às leis de
ocupação... exceto os indivíduos alienígenas que forem considerados responsáveis pela guerra
agressiva desencadeada contra nós. Mas isso são detalhes que não precisam ser escritos no
documento de rendição.

Mais uma vez, Richard e Archie conversaram. Do lado da sala, Katie observava de perto a
expressão do rosto do seu pai. De início, Richard pareceu discordar da octoaranha, mas ao
longo da conversa tornou-se mais cordato, quase resignado. Katie teve a impressão de que ele
estava memorizando uma coisa...

A longa pausa durante a audiência irritou Nakamura. Os convidados especiais começaram a


cochichar entre si, e finalmente Nakamura falou de novo.
— Muito bem. Vocês já tiveram bastante tempo. Qual é a resposta?
A cabeça de Archie ainda estava coberta de cores. A uma certa altura, os parceiros pararam
de falar e Richard deu um passo à frente, hesitando um instante antes de falar.
— A octoaranha deseja a paz — disse ele lentamente —, e gostaria de encontrar uma forma de
terminar esse conflito. Se a moral não fosse uma das características dessa espécie, Archie
poderia concordar em ratificar este documento de rendição para ganhar algum tempo. Mas as
octoaranhas não agem assim. Meu amigo alienígena, chamado Archie, só faria um acordo em
nome da sua espécie se tivesse certeza de que o tratado era conveniente para a sua colônia e
de que suas companheiras octoaranhas honrariam esse tratado.
Richard fez uma pausa.
— Nós não precisamos de um discurso — disse Nakamura impaciente. — Só queremos uma
resposta.
— As octoaranhas — falou Richard num tom mais alto — nos disseram para negociar uma paz
honrosa, não para nos rendermos incondicionalmente. Se o Novo Éden não estiver disposto a
negociar e a fazer um acordo respeitando a integridade do domínio das octoaranhas, então elas
não terão escolha... Por favor — gritou Richard, olhando para os convidados dos dois lados
da sala —, compreendam que vocês não poderão vencer se as octoaranhas realmente lutarem.
Até agora elas não ofereceram resistência alguma. Vocês devem convencer seus líderes a
entrarem numa discussão equilibrada...
— Levem os prisioneiros — ordenou Nakamura.
— ...senão todos vocês morrerão. As octoaranhas são muito mais avançadas do que nós.
Acreditem em mim. Estou vivendo no meio delas há mais de...
Um dos policiais deu um soco na nuca de Richard e ele caiu no chão, sangrando. Katie deu um
pulo, mas Franz prendeu-a nos seus braços. Richard estava com a mão na cabeça quando
Archie e ele foram retirados da sala.

Richard e Archie estavam numa pequena cela no posto policial de Hakone, perto do palácio
de Nakamura.
— Como está sua cabeça? — perguntou a octoaranha em cores.
— Está bem — respondeu Richard. — Mas ainda muito inchada.
— Eles vão nos matar, não é? — perguntou Archie.
— Provavelmente — disse Richard entristecido.
— Obrigado por ter tentado — acrescentou Archie depois de longo silêncio.
Richard deu de ombros.

— Não adiantou muito... De qualquer forma, eu é que devia lhe agradecer. Se você não tivesse
se oferecido para vir, estaria seguro na Cidade de Esmeralda.
Richard foi até a bacia no canto para lavar o pano que estava servindo de curativo para sua
cabeça.
— Você não disse que a maioria dos humanos acredita na vida após a morte? — perguntou
Archie quando Richard voltou para o seu lado.
— Disse. Muita gente acredita que nós somos reencarnados e voltamos a viver de novo como
outra pessoa, ou até mesmo como um animal. Outros acreditam que se a vida foi bem vivida há
uma recompensa, uma vida eterna em um lugar bonito e sem sofrimento chamado Céu...
— E você, Richard — interrompeu Archie com as cores —, em que você acredita
pessoalmente?
Richard sorriu e pensou um instante antes de responder.
— Eu sempre acreditei que qualquer coisa única que houvesse em nós, definindo nossa
personalidade especial e individual, desapareceria na hora da morte. É claro que nossa
química pode ser reciclada em outras criaturas vivas, mas não há uma continuidade real, não
em termos do que os humanos chamam de alma... Richard riu.
— Mas agora, quando minha mente lógica diz que não tenho possibilidade de viver muito
mais, uma voz dentro de mim me pede para encampar uma dessas histórias de fadas sobre a
vida do além... Admito que seria fácil... Mas essa conversão de última hora seria incoerente
com a forma como vivi todos esses anos...
Richard foi andando até a frente da cela, pôs as mãos nas barras de ferro e olhou pelo
corredor durante alguns minutos sem dizer nada.
— E o que as octoaranhas acham que ocorre depois da morte? — perguntou ele, virando-se
para seu companheiro de cela.
— Os precursores nos ensinaram que cada vida é um intervalo finito, com um começo e um
fim. Nenhuma criatura individual, embora seja um milagre, é tão importante no esquema das
coisas como um todo. O que importa, diziam os precursores, é a continuidade e a renovação.
Segundo eles, cada um de nós é imortal, não porque uma coisa relacionada a um indivíduo
específico viva para sempre, mas porque cada vida torna-se um elo crítico, em termos
genéticos ou culturais, da infindável cadeia da vida. Quando os precursores nos tiraram da
ignorância, aprendemos a não ter medo da morte, e a aceitar a renovação que se segue a ela.
— Então você não sente tristeza nem medo ao ver que sua morte está próxima?
— Idealmente não — respondeu Archie.
— Essa é a forma aceita na nossa sociedade para enfrentar a morte... Mas é muito mais fácil
quando na hora final o indivíduo está cercado de amigos e de outros que representam a
renovação que sua morte trará.
Richard pôs o braço em volta de Archie.
— Você e eu só temos um ao outro, meu amigo. É também a consciência de que tentamos
juntos parar uma guerra que provavelmente acabará matando milhares. Não pode haver muitas
causas...
Richard se deteve quando ouviu a porta dá cela abrir-se. Do lado de fora estavam o capitão da
polícia local e um dos seus homens, cercados por quatro biotas, duas Garcias e dois Lincolns,
todos de luvas. Nenhum dos biotas falou. Uma das Garcias abriu a porta e os quatro biotas
entraram na cela onde estavam Richard e Archie. Um instante depois, as luzes se apagaram,
ouviu-se um barulho abafado de luta, Richard gritou e um corpo caiu contra as barras da cela.
Depois fez-se silêncio.
— Agora, Franz — disse Katie quando eles abriram a porta do posto policial —, use sua
patente. Ele é apenas um capitão local, e não vai lhe dizer que você não pode ver os
prisioneiros.
Eles entraram um instante depois que os dois funcionários locais fecharam a porta da cela por
trás dos biotas.
— Capitão Miyazawa — disse Franz em tom oficial —, sou o capitão Franz Bauer, do centro
de operações... Vim ver os prisioneiros.
— Tenho ordens estritas da mais alta autoridade, capitão Bauer, para não deixar ninguém
entrar na cela — disse o policial.
A sala de repente ficou às escuras.
— O que está acontecendo? — perguntou Franz.
— Deve ser um fusível queimado — replicou o capitão Miyazawa. — Westermark, vá lá fora
checar o circuito.
Franz e Katie ouviram o grito. Depois do que pareceu uma eternidade, eles ouviram a porta da
cela abrir-se e em seguida uns passos. Três biotas desapareceram pela porta da frente do
posto quando as luzes voltaram.
Katie correu para a porta.
— Olhe, Franz — gritou frenética. — Sangue, eles tinham sangue nas roupas. Precisamos ver
meu pai.
Katie passou correndo pelos três policiais no corredor.
— Oh, meu Deus — gritou ela, quando se aproximou da cela e viu seu pai no chão e sangue
por todo lado. — Ele está morto, Franz. Papai está morto.

Nicole tinha visto o vídeo duas vezes. Apesar dos seus olhos inchados e da exaustão
emocional, ela perguntou se podia ver mais uma vez. O dr. Azul passoulhe um copo de água.
— Tem certeza de que quer ver mais? — perguntou a octoaranha.
Ela fez que sim. Mais uma vez não é demais, pensou Nicole. Quero cada cena, por pior que
seja, guardada para sempre na minha memória.
— Por favor, comece na audiência — pediu Nicole. — Em velocidade normal até os biotas
entrarem na cela. Depois passe em câmara lenta.
Richard nunca quis ser herói, pensou Nicole enquanto voltava à cena da audiência. Não era do
seu feitio. Ele só foi com Archie para que eu não precisasse ir. Nicole estremeceu quando o
guarda bateu em Richard e ele caiu no chão. O plano não poderia ter êxito, disse ela para si
mesma quando os policiais do Novo Éden tiraram Archie e Richard do palácio de Nakamura.
As octoaranhas sabiam disso. Eu também sabia. Por que não abri a boca depois que tive minha
premonição?
Nicole pediu ao dr. Azul que pulasse para os últimos minutos do vídeo. Pelo menos eles
ficaram juntos até o fim, pensou ela quando Richard e Archie estavam conversando pela
última vez. E Archie tentou proteger Richard... Os quatro biotas apareceram na tela e o vídeo
entrou em câmara lenta. Nicole viu a expressão nos olhos de Richard mudarem de surpresa
para medo no momento em que os biotas entraram na cela.
Quando as luzes se apagaram, o filme mudou de qualidade. As imagens infravermelhas tiradas
pelos quadróides mais pareciam negativos de fotos. Os biotas pareciam lúgubres, com os
olhos esbugalhados, nas imagens infravermelhas.
No instante em que a cela ficou escura, uma das Garcias agarrou Richard pela garganta, e as
outras três tiraram as luvas e usaram os dedos pontudos e afiados como lâminas. Quatro dos
poderosos tentáculos de Archie enrolaram-se na Garcia que tentava estrangular Richard.
Quando a Garcia despedaçou-se, formando um monte de cacos no chão da cela, os outros três
biotas atacaram Archie furiosamente. Richard tentou ajudá-lo, mas um Lincoln deu um soco
tão violento no pescoço de Archie que quase o decapitou. Richard gritou quando sentiu o
líquido interno do corpo de Archie empapando sua roupa. Com a octoaranha fora da jogada,
os biotas devastaram Richard, perfurando seu corpo várias vezes com os dedos. Ele caiu
contra as barras de ferro e escorregou pelo chão. Seu sangue e o de Archie, de cores
diferentes na imagem infravermelho, correram pelo chão. da cela, formando uma poça.
O vídeo continuou, mas Nicole não via mais nada. Agora finalmente compreendia que seu
marido Richard, o único amigo íntimo que tivera em sua vida adulta, estava realmente morto.
Na tela, Franz levava Katie pelo corredor, aos prantos, e depois acabavam as imagens. Nicole
não se moveu. Ficou sentada, quieta, olhando para o monitor. Seus olhos estavam secos, seu
corpo não tremia, ela parecia estar completamente controlada. Mas não conseguia se mover.
A luz era mortiça na sala de vídeo. O dr. Azul ainda estava sentado ao lado de Nicole.
— Acho — disse ela devagar, surpresa por sua voz parecer tão distante — que não acreditei
nas duas primeiras vezes... Quer dizer, devo ter ficado tão chocada... talvez ainda esteja... —
Nicole não conseguiu continuar. Estava com dificuldade para respirar.
— Você precisa beber um pouco de água e descansar — disse o dr. Azul.
Richard foi morto. Richard está morto. — Ah, sim, por favor — disse ela baixinho. Nunca
mais vou ver meu marido. Nunca mais vou falar com ele. — Água fria, se for possível. — Eu
vi Richard morrer. Uma vez. Duas vezes. Três vezes. Richard está morto.

Havia outra octoaranha na sala de vídeo. As duas criaturas ficaram conversando, mas Nicole
não conseguiu seguir as cores. Richard se foi para sempre. Estou sozinha. O dr. Azul tentou
fazer Nicole beber a água, mas ela não conseguiu engolir. Richard foi morto. Tudo era
escuridão.

Alguém segurava sua mão. Era uma mão quente e agradável, fazendo carinho na sua. Nicole
abriu os olhos.
— Alô, mamãe — disse Patrick carinhosamente. — Está se sentindo melhor?
Nicole fechou os olhos de novo. Onde eu estou?, pensou. Depois lembrouse. Richard está
morto. Devo ter desmaiado.
— Uhmmmm — disse ela.
— Quer um pouco de água? — perguntou Patrick.
— Por favor — murmurou ela, com voz estranha. Nicole tentou sentar-se e beber a água, mas
não conseguiu.
— Calma — disse Patrick. — Não temos pressa.
Sua cabeça começou a funcionar. Eu preciso contar para eles. Richard e Archie estão mortos.
Os helicópteros estão vindo. Precisamos ter muito cuidado e proteger as crianças.
— Richard... — conseguiu dizer.
— Nós já sabemos, mãe — falou Patrick.
Como eles souberam?, pensou Nicole. Eu sou a única aqui que sabe ler as cores...
— As octoaranhas escreveram tudo, com muita dificuldade. Não ficou perfeito, mas deu para
entender o que elas contavam... E contaram também da guerra...
Meu Deus, eles sabem. Eu posso dormir. Dentro da sua cabeça ela ainda ouvia um eco.
Richard está morto.
— De vez em quando ouço as bombas, mas acho que nenhuma delas atingiu a cúpula — dizia
Max. — Talvez eles não tenham descoberto onde fica a cidade.
— A cidade está completamente escura do lado de fora — disse Patrick.
— Eles aumentaram a cobertura e apagaram as luzes da rua.
— As bombas devem estar caindo no Domínio Alternativo. Não há como esconder aquele
lugar — disse Max.
— O que as octoaranhas estão fazendo? — perguntou Patrick. — Nós nem ao menos sabemos
se elas estão contra-atacando.
— Não se sabe ao certo, mas não posso acreditar que ainda não estejam fazendo nada —
replicou Max.
Nicole ouviu passos no corredor.

— Os meninos estão ficando claustrofóbicos — disse Nai. — Será que

podíamos deixar que eles brincassem lá fora?... Os clarões já passaram há meia hora.
— Não vejo por que não — disse Patrick. — Mas diga para eles entrarem caso vejam um
clarão ou ouçam bombas.
— Eu vou ficar lá fora com eles — falou Nai.
— Onde está minha mulher? — perguntou Max.
— Está lendo com Benjy. Marius está dormindo — respondeu Nai. Nicole virou para o outro
lado. Tentou sentar, mas sentiu-se muito cansada.
Começou a sonhar acordada, lembrando-se de sua infância. O que é preciso para ser uma
princesa?, a pequena Nicole perguntou a seu pai. Ter um pai rei ou um marido príncipe,
respondeu o pai sorrindo e dando-lhe um beijo. Então eu já sou uma princesa, porque você é
um rei para mim...
— Como está Nicole? — perguntou Eponine.
— Ela se mexeu de novo hoje de manhã — falou Patrick. — A nota do dr. Azul diz que talvez
ela consiga sentar-se hoje à noite ou amanhã. Diz também que eles constataram que o ataque
não foi grave, que o coração não sofreu uma lesão permanente, e que ela está respondendo
bem ao tratamento.
— Posso ver minha mãe agora? — perguntou Benjy.
— Ainda não, Benjy, ela está descansando — respondeu Eponine.
— As octoaranhas têm sido maravilhosas, não é? — comentou Patrick. — Mesmo no meio
dessa guerra, elas encontram tempo para nos mandar mensagens...
— Até eu estou acreditando nelas — falou Max. — E nunca pensei que isso fosse possível.
Então eu tive um ataque cardíaco, pensou Nicole. Não foi apenas um desmaio quando eu soube
que Richard... Na primeira vez, ela não conseguiu terminar a frase... que ele tinha morrido.
Ela ficou divagando, meio dormindo meio acordada, até que ouviu uma voz familiar chamando
seu nome. É você, Richard?, perguntou excitada. Sim, Nicole, ele respondeu. Onde você está?
Quero te ver, disse ela, e o rosto dele apareceu em uma nuvem no meio do seu sonho. Você
está parecendo ótimo. Está bem mesmo? Estou, respondeu Richard, mas preciso falar com
você.
O que foi, querido? Nicole perguntou. Você deve continuar sem mim, disse ele, deve ser um
exemplo para os outros. O rosto dele começou a alterar-se quando a forma das nuvens
mudaram. É claro, disse Nicole, mas para onde você vai? Ela não podia mais ver o marido.
Adeus, disse ele. Adeus, Richard, respondeu Nicole.

Quando Nicole acordou da vez seguinte sua cabeça estava clara. Sentouse na cama e olhou em
volta. Estava escuro, mas dava para ver que era o seu próprio quarto na Cidade de Esmeralda.

Nicole não ouviu som algum, e pensou que fosse noite. Empurrou as cobertas e pôs as pernas
para fora da cama. Até agora tudo bem, pensou. Saiu da cama e ficou de pé bem devagar.
Suas pernas estavam trêmulas.

Havia um copo de suco na ponta da mesa-de-cabeceira. Nicole deu dois passos com cuidado,
segurando na cama com a mão direita, e pegou o copo. O suco estava delicioso. Contente
consigo própria, Nicole foi até o armário procurar uma roupa para vestir, mas depois de dar
alguns passos ficou tonta e tentou voltar para a cama.
— Mãe, é você? — disse Patrick, aparecendo na porta.
— Sou eu, Patrick.
— Por que a gente não acende a luz? — disse ele. Bateu na parede e um vaga-lume voou no
meio do quarto. — Meu Deus, o que você está fazendo de pé? — perguntou.
— Não posso ficar na cama a vida toda — respondeu Nicole.
— Mas tem de ir aos pouquinhos no começo — falou Patrick, aproximouse dela, ajudando-a a
chegar até a cama.
Ela se agarrou ao braço do filho.
— Ouça bem, meu filho. Não tenho intenção de ficar inválida nem de ser tratada como tal.
Espero voltar a ser eu mesma em poucos dias, no máximo uma semana.
— Sim, mãe — disse Patrick, com um sorriso preocupado.

O dr. Azul ficou encantado com a recuperação de Nicole. Depois de quatro dias, ela andou até
a parada do carro de transporte e de lá até em casa, apesar de andar devagar e com a ajuda de
Benjy.
— Não force muito seu organismo — disse o dr. Azul durante um exame noturno. — Você está
indo muito bem, mas me preocupa...
Quando a octoaranha terminou e se preparava para sair do quarto, Max entrou e avisou que
havia duas octoaranhas esperando por ele lá fora. O dr. Azul saiu às pressas e voltou um
instante depois com o Chefe Otimizador e um dos membros da sua equipe.
O Chefe Otimizador desculpou-se por chegar sem avisar e por não ter esperado até Nicole
estar completamente restabelecida.
— Mas nós estamos numa situação de emergência e achamos que devíamos nos comunicar
com você imediatamente — disse o líder das octoaranhas.
Nicole sentiu seu pulso acelerar-se e tentou manter a calma.
— O que aconteceu? — perguntou.

— Você provavelmente notou que não tem havido bombardeios nos últimos dias — disse o
Chefe Otimizador. — Os humanos pararam de atacar com os helicópteros enquanto avaliam
nosso ultimato... Há cinco dias levamos a mesma mensagem para os três acampamentos das
tropas. Nessa mensagem nós dizemos que não toleraremos mais os bombardeios e que
usaremos nossa tecnologia superior para desfechar um ataque decisivo caso as hostilidades
não cessem imediatamente... Para ilustrar nossa capacidade tecnológica, incluímos na
mensagem uma cronologia nillet a nillet de tudo o que Nakamura e Macmillan fizeram durante
dois dias úteis na semana passada. Os líderes humanos ficaram frenéticos, achando que nós
havíamos subornado algum oficial do governo de alto escalão e que conhecíamos todos os
seus planos. Macmillan recomendou que fosse aceito o nosso cessar-fogo e que as tropas se
retirassem do nosso território. Nakamura ficou furioso, mandou Macmillan sumir de sua
presença e reorganizou sua estrutura de comando. Em particular, ele admitiu para seu chefe de
segurança que qualquer retirada arruinaria a sua posição na colônia. Anteontem, alguém
sugeriu a Nakamura que talvez sua filha Ellie soubesse como obtivemos essas informações.
Ela foi levada ao palácio e interrogada pelo próprio Nakamura. Ellie informou que em certos
campos nós somos mais avançados do que os humanos. E informou também que acredita que
temos plena capacidade de obter informações sobre acontecimentos no Novo Éden sem usar
espiões nem outros métodos convencionais da inteligência. Como Ellie foi muito direta,
Nakamura convenceu-se de que ela sabia mais do que estava contando. Interrogou-a durante
horas sobre vários assuntos, inclusive nossa capacidade militar e a geografia do nosso
domínio. Ellie astutamente evitou dar qualquer informação relevante, como a existência da
Cidade de Esmeralda, por exemplo, e respondeu várias vezes que nunca havia visto nossas
armas, nem soldados. Nakamura não acreditou nela e a certa altura mandou que a levassem
para a prisão e lhe dessem uma surra. Desde então, Ellie tem se mantido em silêncio, apesar
dos maus-tratos que tem sofrido.

O Chefe Otimizador fez uma pausa. Nicole ficara muito pálida quando ele descreveu o
ocorrido com Ellie. O líder das octoaranhas virou-se para o dr. Azul e perguntou:
— Posso continuar?
Max e Patrick estavam na porta. Eles não podiam compreender o que o Chefe Otimizador
dizia, mas viram a palidez de Nicole. Então Patrick entrou no quarto e falou:
— Minha mãe esteve muito doente...
— Está tudo bem — interrompeu Nicole, fazendo um sinal com a mão e respirando fundo. —
Por favor, continue — disse para o Chefe Otimizador.
— Nakamura — continuou ele — agora convenceu-se, assim como os seus assessores
principais, de que nossa ameaça é um engodo. Ele acredita que, embora nossa tecnologia seja
muito avançada em alguma áreas, nós não temos um bom esquema militar... Na última reunião
com sua equipe, há apenas alguns terts, ele concordou com um plano para nos vencer usando
todo o seu armamento disponível. O primeiro de seus ataques maciços será hoje de manhã.
— Portanto, nós concluímos com relutância que precisamos revidar a esses ataques, caso
contrário a sobrevivência da nossa colônia correrá risco. Antes de vir ver você, autorizei a
implementação do Plano de Guerra número 41, uma de nossas respostas de força
intermediária. Esse plano não resulta na aniquilação dos colonos do Novo Éden, mas será
suficientemente devastador para que a guerra chegue a um rápido fim. Nossos analistas
avaliam que vinte a trinta por cento dos humanos morrerão...
O Chefe Otimizador parou quando viu a expressão de sofrimento no rosto de Nicole. Ela
bebeu um copo de água e perguntou com voz lenta:
— Nós poderemos saber mais detalhes sobre o seu ataque?

— Escolhemos um agente microbiológico, quimicamente muito semelhante a uma enzima, que


interfere na reprodução das células da sua espécie. Os humanos jovens e saudáveis abaixo de
quarenta anos têm defesas naturais fortes o bastante para resistir à investida do agente. Os
humanos mais velhos ou pouco saudáveis sucumbirão rapidamente. Suas células não poderão
se reproduzir de forma adequada, e seus organismos simplesmente pararão de funcionar... Nós
usamos sangue, pele e outras células tiradas de todos vocês aqui da Cidade de Esmeralda para
verificar nossas previsões teóricas. Temos certeza de que os jovens não serão afetados.

— Nossa espécie considera a guerra biológica imoral — disse Nicole depois de uma breve
pausa.
— Nós temos consciência — disse o Chefe Otimizador — de que dentro do seu sistema de
valores alguns tipos de guerra são mais aceitáveis do que outros. Para nós, toda guerra é
inaceitável. Nós só lutamos quando é absolutamente necessário. Não podemos imaginar que
faça diferença ser morto por um fuzil, uma bomba, uma arma nuclear ou um agente biológico...
Além do mais, teremos de lutar com as armas de que dispomos.
Houve um longo silêncio. Nicole deu um suspiro, sacudiu a cabeça e enfim falou.
— Eu devia estar agradecida por vocês nos contarem o que está acontecendo nessa guerra
estúpida, embora o espectro de tantas mortes seja muito assustador. Gostaria que os resultados
tivessem sido outros...
Quando as três octoaranhas fizeram menção de sair, Max e Patrick começaram a fazer
perguntas a Nicole mesmo antes da saída dos visitantes.
— Espere um instante — disse Nicole aflita. — Chame os outros todos aqui. Vou explicar só
uma vez o que as octoaranhas me contaram.

Nicole não conseguiu dormir. Por mais que tentasse, não podia parar de pensar no povo que
iria morrer no Novo Éden. Rostos, a maioria de gente mais velha, rostos de gente que ela
conhecera e com quem tinha trabalhado durante sua época ativa na colônia passavam por sua
cabeça.
E Katie e Ellie?, pensou Nicole. E se as octoaranhas cometeram um erro? Nicole viu Ellie
como a vira da última vez, com seu marido e sua filha em casa. Lembrou-se das brigas que
tinha presenciado entre Ellie e Robert. O rosto cansado e gasto dele ficou fixado em sua
mente. E Robert, oh, meu Deus. Ele é mais velho e não se cuida nada.
Nicole virava-se na cama, frustrada por não poder fazer nada, até que finalmente decidiu ficar
sentada na escuro. Não sei se é tarde demais, disse para si mesma. E pensou em Robert de
novo. Eu não concordo com ele, e nem ao menos tenho certeza de que é um bom marido
para Ellie. Mas mesmo assim é o pai de Nikki.
Um plano começou a desenvolver-se em sua cabeça. Nicole saiu da cama animada e foi até o
closet vestir uma roupa. Talvez eu não possa ajudar, mas pelo menos saberei que tentei,
pensou.

Nicole passou pelo corredor sem fazer o menor ruído. Não queria acordar Patrick ou Nai, que
estavam dormindo no quarto de Ellie desde que ela tivera o ataque cardíaco. Eles me
obrigariam a voltar para a cama.

Na Cidade de Esmeralda, do lado de fora, estava quase tão escuro quanto dentro de casa.
Nicole ficou na porta, esperando que seus olhos se acostumassem para poder ver a casa ao
lado. Depois de alguns minutos, conseguiu ver sombras. Saiu do portal e virou para a direita.
Sua caminhada foi lenta. Dava uma meia dúzia de passos e parava para olhar em volta. Levou
vários minutos para chegar na porta da casa do dr. Azul.
Agora, se eu tiver sorte, pensou Nicole, lembrando-se, ele deve estar dormindo no segundo
quarto à esquerda. Ao entrar no quarto da octoaranha, bateu levemente na parede. Um vaga-
lume iluminou ligeiramente duas octoaranhas empilhadas. O dr. Azul e Jamie dormiam
juntinhos, com os tentáculos emaranhados. Nicole deu uns passos e tocou de leve na cabeça do
dr. Azul, mas não houve resposta. Tocou com um pouco mais de força e a lente do dr. Azul
começou a girar.
— O que está fazendo aqui? — perguntou o dr. Azul em cores um instante depois.
— Preciso da sua ajuda — respondeu Nicole. — É importante.
A octoaranha moveu-se lentamente, tentando soltar seus tentáculos sem perturbar Jamie, mas
em vão. O jovem octoaranha acordou. O dr. Azul disse para Jamie voltar a dormir e foi até a
porta com Nicole.
— Você devia estar na cama —- falou o dr. Azul.
— Eu sei, mas é uma emergência. Preciso falar com o Chefe Otimizador, e queria que o senhor
fosse comigo.
— A essa hora da noite?
— Não sei quanto tempo nos resta — disse Nicole. — Preciso ver o Chefe Otimizador antes
que esses agentes biológicos comecem a matar o povo do Novo Éden... Estou preocupada com
Katie e com toda a família de Ellie...
— Nikki e Ellie não sofrerão nada. Katie também é bem jovem, se é que compreendi...
— Mas o organismo de Katie está corroído pelas drogas — interrompeu Nicole. — O corpo
dela provavelmente está velho... e Robert está desgastado de tanto trabalho...
— Não tenho certeza se compreendi o que você me disse — falou o dr. Azul. — Por que você
quer ver o Chefe Otimizador?
— Para pedir um tratamento especial para Katie e Robert, partindo do princípio de que Ellie e
Nikki estarão bem... Deve haver algum modo, com a sua mágica biológica, de eles serem
identificados e poupados... por isso é que eu quero que venha comigo... Para me apoiar.
A octoaranha não disse nada durante algum tempo.
— Tudo bem, Nicole — falou enfim —, eu vou, mas acho que você devia estar na cama... E
duvido que a gente possa fazer alguma coisa.
— Muito obrigada — falou Nicole, perdendo a formalidade por um instante e abraçando o
pescoço do dr. Azul.
— Você tem de me prometer uma coisa... — falou o dr. Azul enquanto saíam pela porta da
frente. — Não deve se esforçar demais... Se estiver se sen tindo fraca, me diga.
— Vou até me apoiar em você — disse ela sorrindo.
Foram andando devagar pela rua, Nicole apoiada em dois tentáculos do dr. Azul. Porém as
atividades e emoções do dia tinham sugado a pouca energia de Nicole. Ela sentiu-se exausta
antes de chegar no carro do transporte.
Parou para descansar. Os sons distantes que ela vinha ouvindo sem prestar atenção tornaram-
se mais fortes.
— Bombas, muitas bombas — falou Nicole.
— Nós fomos avisados dos ataques de helicópteros — disse a octoaranha. — Mas não sei por
que não estamos vendo os clarões...
De repente, parte da cobertura da cúpula explodiu em uma grande bola de fogo. Um instante
depois, Nicole ouviu um som ensurdecedor. Apertou com força a mão do dr. Azul e olhou para
o inferno a distância. No meio das chamas identificou os restos de um helicóptero. Pedaços
incinerados da cúpula caíam do céu, alguns a menos de um quilômetro de distância.
Nicole não conseguia respirar, e o dr. Azul viu a expressão de exaustão em seu rosto.
— Não vou conseguir — disse Nicole, agarrando-se à octoaranha com a força que lhe restava.
— Vá ver o Chefe Otimizador sozinho, em meu nome. Peça, ou melhor, suplique para que ele
faça alguma coisa por Katie e Robert... Diga que é um favor pessoal... Para mim...
— Vou fazer todo o possível — falou o dr. Azul. — Mas primeiro vamos voltar para sua
casa...
— Mamãe! — Nicole ouviu Patrick gritar. Ele veio correndo pela rua e chegou quando o dr.
Azul entrava no transporte. Nicole olhou para a cúpula exatamente quando a hélice do
helicóptero, ardendo em chamas, caiu do céu e espatifou-se à distância.

Katie jogou a seringa na pia e olhou-se no espelho.


— Agora sim, está bem melhor... Não estou mais tremendo —, disse em voz alta.
Estava com o mesmo vestido que usara na audiência do pai. Também tinha tomado uma
decisão na semana anterior e contara a Franz o que estava planejando fazer.
Virou-se e viu seu reflexo no espelho. O que será esse inchaço no meu braço?, pensou. Era a
primeira vez que reparava naquilo. No braço direito, entre o cotovelo e o pulso, um caroço do
tamanho de uma bola de golfe. Era um caroço macio, não coçava nem doía, a não ser quando o
apertava.
Katie deu de ombros e foi para a sala de estar mexer nos papéis que deixara em cima da mesa.
Fumou um cigarro, organizou os documentos e colocou-os num envelope grande.
Ela recebera o telefonema do escritório de Nakamura naquela manhã. Uma mulher de voz
meiga tinha lhe dito que Nakamura poderia vê-la às cinco da tarde. Quando Katie colocou o
fone no gancho, mal pôde se conter. Tinha quase perdido as esperanças de ver o grande líder.
Três dias antes, quando pediu que marcassem uma hora para falar de assuntos de interesse
mútuo, a recepcionista de Nakamura lhe dissera que ele andava muito ocupado com os
preparativos da guerra e não estava dando audiência a ninguém.
Katie olhou de novo para o relógio. Faltavam quinze minutos para as cinco. Levaria apenas
dez minutos para andar do apartamento até o palácio. Pegou o envelope e abriu a porta do
apartamento.

A espera estava abalando sua autoconfiança. Eram quase seis horas e Katie ainda não havia
sido admitida no santuário interno, a parte japonesa do palácio onde Nakamura trabalhava e
morava. Ela já tinha ido ao banheiro duas vezes, e perguntado na volta se ainda teria de
esperar muito. A recepcionista ao lado da porta respondera nas duas vezes com um gesto vago
e desinteressado.
Katie lutava consigo mesma. O efeito da droga estava diminuindo e ela começou a ter dúvidas.
Enquanto fumava um cigarro no banheiro, tentou esquecer suas ansiedades pensando em Franz.
Lembrou-se da última vez em que fizeram amor. Ele estava muito triste quando foi embora.
Franz me ama do seu jeito, pensou Katie.
A japonesinha parou na porta e disse:
— Pode entrar agora.
Katie atravessou a sala de espera e entrou na parte principal do palácio. Tirou os sapatos,
colocou-os em uma prateleira e andou sobre o tatame só de meias. Uma policial chamada
Marge cumprimentou-a e disse a Katie para seguila. Apertando o envelope na mão, Katie
andou uns,quinze metros até chegar a um biombo à direita.
— Pode entrar — disse Marge.
Outra policial, oriental mas não japonesa, com um revólver na cintura, esperava na sala.
— A segurança em torno de Nakamura-san anda especialmente reforçada — explicou Marge.
— Por favor, tire suas roupas e jóias.
— Toda a minha roupa? — perguntou Katie. — Até a calcinha?
— Tudo — disse a outra moça.
Suas roupas foram dobradas com cuidado e colocadas em uma cesta marcada com seu nome, e
as jóias foram postas em uma caixa especial. Marge examinou-a toda, inclusive suas partes
íntimas, e prendeu sua língua para examinar a boca. Katie recebeu um yucata azul e branco e
um par de sandálias japonesas.
— Pode ir agora com Bangorn até a última sala de espera — falou Marge. Katie pegou o
envelope. Quando estava saindo, a policial oriental a deteve.
— Tudo fica aqui — disse ela.

— Mas é um encontro de negócios — protestou Katie. — O que eu vou discutir com o sr.
Nakamura está neste envelope.

As duas mulheres abriram o envelope, tiraram os papéis, examinaram um a um contra a luz e


depois passaram os papéis por uma máquina. Finalmente colocaram tudo no envelope e a
oriental chamada Bangorn fez sinal para Katie segui-la.
A última sala de espera ficava a mais uns quinze metros dali. Mais uma vez, Katie teve de
sentar-se e esperar, e percebeu que estava começando a tremer. Como pude achar que isso
iria funcionar?, disse de si para si. Como sou idiota!
Quando se sentou, começou a sentir uma falta desesperada da droga, pior do que todas as
outras vezes. Com medo de gritar, disse a Bangorn que precisava ir de novo ao banheiro. A
policial acompanhou-a, e Katie pelo menos pôde lavar o rosto.
Quando as duas voltaram, o próprio Nakamura estava na porta. Katie achou que seu coração ia
pular do peito. Está na hora, disse consigo mesma. Nakamura usava um quimono amarelo e
preto, coberto de flores brilhantes.
— Alô, Katie — disse ele com um sorriso malicioso. — Há quanto tempo não vejo você.
— Alô, Toshio-san — respondeu ela nervosa.
Katie seguiu-o até o escritório e sentou-se de pernas cruzadas ao lado de uma mesa baixa.
Nakamura sentou-se na sua frente. Bangorn ficou na sala, em um canto. Oh, não, pensou Katie
ao ver que a mulher ia ficar ali, o que eu faço agora?
— Eu devia ter entregue há muito tempo um relatório sobre o nosso trabalho — começou ela
um instante depois, tentando falar normalmente e tirando o documento de dentro do envelope.
— Apesar de a economia estar em baixa, nós conseguimos aumentar os lucros em dez por
cento. Neste documento, poderá ver que, embora a renda de Vegas não esteja alta, a retirada
local, onde os preços são mais baixos, subiu consideravelmente. Mesmo em San Miguel...
Nakamura deu uma olhada rápida no papel e colocou-o em cima da mesa.
— Não é preciso mostrar esses dados. Todos sabem que você é uma ótima mulher de
negócios. — Chegou um pouco para a esquerda e pegou uma grande caixa preta de laca. —
Seu trabalho foi muito elogiado. Se os tempos não estivessem tão difíceis, você mereceria um
grande aumento... Mas como as coisas estão, eu gostaria ao menos de lhe oferecer um presente
em sinal da minha apreciação.
Nakamura estendeu a caixa para Katie.
— Obrigada — disse ela, admirando as montanhas e a neve desenhadas na tampa. Era uma
caixa muito bonita.
— Abra-a — falou Nakamura, pegando um dos bombons que estavam num prato sobre a mesa.
Ao abrir a caixa e ver que estava cheia de droga, Katie deu um sorriso.
— Obrigada, Toshio-san. O senhor é muito generoso — disse.
— Pode experimentar — falou ele com um riso de escárnio. — Você não vai me insultar.
Katie colocou um pouco do pó na língua e viu que era uma droga de alta qualidade. Sem
hesitar, tirou uma quantidade maior da caixa e enfiou na narina esquerda com o dedo
mindinho. Depois, tapou a narina, inspirou fundo e ficou esperando a droga fazer efeito. Então,
deu uma risada.
— Oba! — disse, desinibida. — Esta é das boas!
— Achei que você iria gostar — falou Nakamura, jogando o papel do bombom em uma grande
cesta de lixo ao lado da mesa.
Deve estar por aí em algum lugar, pensou Katie, lembrando-se do que Franz dissera. Em algum
lugar que não chame a atenção. Olhe na cesta de lixo. Olhe por trás das cortinas. O ditador do
Novo Éden estava sorrindo do outro lado da mesa.
— Você queria me dizer mais alguma coisa? — perguntou. Katie respirou fundo e sorriu.
— Só isso. — Chegou para a frente, colocou os cotovelos na mesa e beijouo nos lábios.
Imediatamente sentiu as mãos ásperas da policial segurando seus ombros. — Um pequeno
agradecimento pelo que eu ganhei.
O julgamento de Katie foi correto. O desejo nos olhos dele era inconfundível. Nakamura fez
um sinal para Bangorn sair.
— Pode nos deixar — disse ele para a policial, levantando-se. — Venha cá, Katie, para me
dar um beijo de verdade.
Katie deu uma olhada na cesta de lixo quando passou para o outro lado da mesa, mas viu que
só continha papéis. É claro, pensou. Aí seria muito óbvio... Agora preciso fazer a coisa
certa. Provocou Nakamura, dando-lhe um beijo e depois outro, passando a língua pelos lábios
dele. Depois afastou-se depressa rindo, e Nakamura seguiu-a.
— Não — disse ela, dirigindo-se para a porta. — Ainda não... estamos só começando.
Nakamura ficou parado e riu.
— Eu tinha me esquecido como você é talentosa. Aquelas meninas têm sorte de tê-la como
mentora.
— É preciso um homem excepcional para tirar o máximo de mim — falou Katie, trancando a
porta.
Olhou em volta do escritório e seus olhos pararam em outra cesta de lixo menor, do lado
oposto. Aquele parece ser o lugar ideal, disse para si mesma, excitada.
— Você vai ficar de pé aí, Toshio, ou vai me dar um drinque? — perguntou Katie.
— É claro — respondeu Nakamura, encaminhando-se para o bar esculpido à mão. — Uísque
puro, não é?
— Sua memória é fenomenal — disse Katie.
— Lembro-me muito bem — falou Nakamura, enquanto preparava dois drinques. — Nunca me
esquecerei das suas brincadeiras, especialmente da princesa e do escravo, a que mais gostei...
Nós nos divertimos muito naquele dia.

Até você insistir em fazer outras brincadeiras. E duchas douradas. E até mesmo coisas
repugnantes, pensou Katie. Você deixou bem claro que eu não bastava.

— Ei, rapaz — gritou em tom imperioso. — Estou com sede... onde está meu drinque?
Nakamura franziu a sobrancelha, mas depois deu um sorriso.
— Sim, excelência — disse, trazendo um drinque de cabeça baixa e fazendo uma reverência.
— Alguma outra coisa, excelência?
— Sim — respondeu Katie. Tomou o uísque com a mão esquerda, segurou o quimono de
Nakamura com a direita, olhou direto nos seus olhos e beijou-o com paixão para excitá-lo.
De repente, deu um passo atrás. Enquanto ele a observava, Katie foi tirando seu yucata
lentamente. Nakamura andou na sua direção, mas ela o deteve com os braços.
— Agora, rapaz — ordenou ela —, baixe essas luzes e deite-se ali na esteira, de costas, ao
lado da mesa.
Nakamura obedeceu, e Katie foi até onde ele estava deitado.
— Agora — disse, em tom mais suave —, você sabe o que sua princesa precisa, não é?
Devagar, bem devagar, sem correria. — Katie baixou-se e começou a acariciá-lo. — Acho
que Musashi está quase pronto...
Katie beijou Nakamura, acariciando com os dedos seu rosto e seu pescoço.
— Agora feche os olhos — cochichou no seu ouvido — e conte até dez, bem devagarinho.
— Ichi, ni, san... — disse ele ofegante.
Com uma velocidade incrível, Katie atravessou a sala para examinar a outra cesta de lixo. Pôs
uns papéis de lado e encontrou o revólver.
— ... shi, go, ryoku...
O coração de Katie batia furiosamente quando ela pegou a arma, virou-se e voltou para onde
estava Nakamura.
— ... shichi, hachi, kyu...
— Isso é pelo que você fez com meu pai — disse Katie, encostando o cano do revólver na
cabeça dele e puxando o gatilho enquanto Nakamura abria os olhos assustado.
— E isso é pelo que você fez comigo — disse, atirando três vezes seguidas na sua genitália.
Os guardas arrombaram a porta em poucos segundos, mas Katie foi mais rápida.
— E isso, Katie Wakefield — disse em voz alta, enfiando o revólver na boca —, é pelo que
você fez a si própria.

Ellie acordou quando ouviu mexerem nas chaves da sua cela. Esfregou os olhos e perguntou:

— É você, Robert?
— Sou eu, Ellie. — Robert entrou na cela quando ela levantava e abraçoua. — Que bom ver
você — disse ele. — Vim assim que Hans me disse que os guardas tinham saído do posto.
Robert beijou sua esposa atônita.
— Desculpe, Ellie. Eu estava muito, muito errado. Ellie juntou seus pertences em alguns
segundos.
— Eles abandonaram o posto? Por quê, Robert? O que está acontecendo?
— Um caos completo e total — respondeu ele sério, com um ar de derrota.
— O que está dizendo, Robert? — gritou Ellie amedrontada. — Nikki está bem, não é?
— Ela está ótima, Ellie... Mas há gente morrendo aos montes... E nós não sabemos por quê...
Ed Stafford desmaiou há uma hora e morreu antes de poder ser examinado... É algum tipo de
praga monstruosa.
As octoaranhas, pensou Ellie imediatamente, finalmente reagiram. Abraçou-se ao marido e
começou a chorar. Passado um instante, ele afastou-a e falou:
— Desculpe, Ellie... Tem havido tanto tumulto... Você está bem?
— Estou, Robert... Faz dias que ninguém me interroga nem me tortura. Mas onde está Nikki?
— Está com Brian Walsh na nossa casa. Lembra-se de Brian, o companheiro de computador
de Patrick? Ele tem me ajudado a cuidar de Nikki desde que você foi embora... Pobre rapaz,
anteontem quando acordou, viu que seus pais estavam mortos.
Ellie saiu do posto policial com Robert. Ele falava sem parar, passando de um assunto para
outro, mas deu para Ellie compreender algumas partes daquela conversa quase incoerente.
Segundo ele, mais de trezentas pessoas tinham morrido em Novo Éden em apenas dois dias. E
não havia sinal de que as coisas parariam por aí.
— É estranho — observou ele —, só uma criança morreu... Em geral as vítimas são idosas.
Na frente do posto de polícia de Beauvois, uma mulher desesperada, de mais de trinta anos de
idade, reconheceu Robert e agarrou-se a ele.
— O senhor tem de vir comigo imediatamente, doutor — gritou a mulher. — Meu marido está
inconsciente... Ele estava almoçando comigo e começou a queixar-se de dor de cabeça.
Quando voltei da cozinha encontrei-o caído no chão... Tenho medo de que esteja morto.
— Está vendo?... — disse Robert, virando-se para Ellie.
— Vá com ela e depois para o hospital, se precisar... Eu vou para casa cuidar de Nikki, e
ficaremos esperando por você... — Deu um beijo no marido e começou a dizer alguma coisa
sobre as octoaranhas, mas desistiu.

— Mamãe, mamãe — gritou Nikki, correndo pelo corredor e pulando nos braços de Ellie. —
Senti muita falta sua, mamãe.

— E eu senti sua falta também, meu anjo. O que você tem feito?
— Tenho brincado com Brian — respondeu Nikki. — Ele é um homem muito bom. Lê para
mim e está me ensinando os números.
Brian Walsh, um rapaz dos seus vinte anos, apareceu no corredor com um livro infantil na
mão.
— Alô, sra. Turner. Não sei se está se lembrando de mim...
— É claro que estou, Brian. Pode me chamar de Ellie... Quero agradecer a ajuda que você tem
dado com Nikki...
— Foi um prazer, Ellie. Ela é uma criança incrível... Tirou uma porção de pensamentos tristes
da minha cabeça...
— Robert me contou sobre seus pais — interrompeu Ellie. — Sinto muito. Brian sacudiu a
cabeça.
— Foi tão estranho! Os dois estavam perfeitamente bem quando foram dormir — disse, com
os olhos cheios de lágrimas. — Eles pareciam tão pacíficos...
Brian virou-se e pegou um lenço para limpar as lágrimas.
— Vários amigos meus disseram que essa praga, ou o que seja, foi causada pelas octoaranhas.
Você acha possível...
— Acho sim — respondeu ela. — Talvez elas tenham sido pressionadas demais.
— Nós todos vamos morrer? — perguntou Brian.
— Não sei. Realmente não sei.
Os dois ficaram em silêncio por algum tempo.
— Bem, pelo menos sua irmã se livrou de Nakamura — disse Brian de repente.
Ellie achou que não tinha ouvido a frase corretamente.
— De que você está falando, Brian? — perguntou.
— Você não ouviu nada sobre isso? Há quatro dias, Katie matou Nakamura e depois se matou.
Ellie ficou olhando estupefata para Brian.
— Papai me contou ontem sobre a tia Katie — falou Nikki. — Disse que ele é que queria
contar para você.
Ellie não dizia nada. Sua cabeça estava girando. Conseguiu despedir-se de Brian e agradecer-
lhe de novo, e depois sentou-se no sofá. Nikki foi para o lado da mãe e pôs a cabeça no colo
dela. As duas ficaram quietas por um longo tempo.
— E como seu pai ficou depois que eu fui embora? — perguntou Ellie finalmente.
— Ficou bem, com exceção do caroço — disse a menina.
— Que caroço? — perguntou Ellie.
— No ombro, do tamanho da minha mão. Eu vi o caroço quando ele estava fazendo a barba, há
três dias. Papai disse que deve ter sido uma mordida de aranha ou coisa parecida.
10

— Benjy e eu vamos para o hospital — anunciou Nicole. Os outros ainda estavam terminando
o café da manhã.
— Por favor, sente aí, Nicole — disse Eponine. — Pelo menos, termine seu café.
— Obrigada — respondeu ela —, mas prometi ao dr. Azul que chegaríamos cedo hoje. Houve
muitas baixas no ataque aéreo de ontem.
— Mas você tem trabalhado demais, mãe — falou Patrick. — E não tem dormido bastante.
— Isso ajuda a manter minha cabeça ocupada — disse Nicole. — Assim não tenho tempo para
pensar.
— Vamos, ma-mãe — falou Benjy entrando na sala e entregando o casaco a Nicole.
De pé ao lado da mãe, Benjy sorriu e deu adeus para os gêmeos, que por um milagre estavam
quietos. Galileu fez uma careta e Benjy e Kepler riram.
— Ela ainda não se permitiu chorar a morte de Katie — disse Nai um instante depois, assim
que Nicole saiu. — Isso me preocupa. Mais cedo ou mais tarde...
— Ela está com medo, Nai... — disse Eponine — de um outro ataque cardíaco, ou talvez da
sua sanidade... Nicole ainda está negando os fatos.
— Lá vem você, francesinha, com sua maldita psicologia — falou Max.
— Não se preocupe com Nicole... Ela é mais forte que todos nós. Vai chorar a morte de Katie
quando estiver pronta.
— Mamãe não vai à sala de vídeo desde que teve o ataque cardíaco. Quando o dr. Azul contou
a ela sobre o assassinato e suicídio de Katie, eu achei que ela iria querer ver alguns dos
vídeos... para ver Katie pela última vez... ou pelo menos para ver como Ellie estava indo...
— A melhor coisa que sua irmã já fez, Patrick — comentou Max —, foi matar aquele
miserável. Por mais que se possa falar dela, Katie foi um bocado corajosa.
— Katie tinha muitas qualidades — falou Patrick com tristeza. — Ela era brilhante, sabia ser
charmosa... só que tinha aquele outro lado também.
Fez-se um breve silêncio em volta da mesa do café. Eponine ia dizer alguma coisa quando
viram uma luz brilhante na porta da frente.
— Epa! — falou, levantando-se. — Vou passar o Marius para a outra casa. Os ataques aéreos
estão começando de novo.
Nai virou-se para Galileu e Kepler.
— Terminem depressa, meninos... vamos voltar para aquela casa especial que o tio Max fez
para nós.
Galileu fez uma careta.
— De novo? — reclamou.

Nicole e Benjy mal tinham chegado ao hospital quando as primeiras bombas começaram a cair
pela cúpula arrebentada. Todo dia ocorriam fortes ataques aéreos. Mais de metade da
cobertura da Cidade de Esmeralda fora destruída. As bombas caíam em quase todas as partes
da cidade.
O dr. Azul cumprimentou os dois e mandou logo Benjy para a área de recepção.
— Mas eles estão finalmente sofrendo um impacto. O Chefe Otimizador disse que os
bombardeios devem cessar dentro de uns dois dias no máximo. Ele e sua equipe estão fazendo
planos para a próxima fase...
— Certamente os colonos não continuarão com a guerra — disse Nicole forçando-se a não
pensar muito no que estava ocorrendo no Novo Éden — principalmente agora que Nakamura
está morto.
— Devemos estar preparados para qualquer contingência — observou o dr. Azul. — Mas eu
espero que você esteja certa.
Ao passarem pelo corredor, foram abordados por outro médico octoaranha que Benjy
chamava de Penny, por causa da marca vermelha do lado direito da sua fenda, que parecia
com uma moeda do Novo Éden. Penny descreveu ao dr. Azul as terríveis cenas que havia
presenciado no começo da manhã, fora do Domínio Alternativo. Nicole compreendeu grande
parte do que Penny dizia, não só porque a octoaranha repetiu as histórias várias vezes como
também porque usou frases muito simples na sua linguagem de cor.
Penny informou ao dr. Azul que havia necessidade urgente de pessoal e suprimentos do
departamento médico para cuidar dos feridos do Domínio Alternativo. O dr. Azul tentou
explicar a Penny que eles não tinham gente suficiente nem para cuidar dos pacientes do
hospital.
— Eu podia ficar com Penny algumas horas esta manhã — sugeriu Nicole —, se puder ajudar.
O dr. Azul olhou para a sua amiga humana.
— Tem certeza de que vai agüentar, Nicole? Ouvi dizer que as coisas estão muito feias por lá.
— Tenho me sentindo melhor a cada dia — replicou Nicole. — E quero ir para onde possa ser
mais necessária.
O dr. Azul disse a Penny que Nicole iria ajudá-la no Domínio Alternativo no máximo durante
um tert, desde que o próprio Penny se comprometesse a trazê-la de volta para o hospital.
Penny concordou e agradeceu a Nicole por ter se oferecido como voluntária.
Logo que entraram no transporte, Penny explicou a Nicole o que estava ocorrendo no Domínio
Alternativo.
— Os feridos estão sendo levados para qualquer prédio que ainda esteja de pé; ali são
examinados, tratados com medicações de emergência se necessário e depois levados para o
hospital... A situação está pior a cada dia. Muitos alternativos já perderam a esperança.
O resto da viagem foi deprimente. A luz dos poucos vaga-lumes, Nicole viu destruição por
todo lado. Na hora de abrirem o portão do sul, os guardas tiveram de empurrar duas dúzias de
alternativos, alguns deles feridos, que queriam entrar na cidade. O teatro onde Nicole e seus
amigos tinham assistido à peça de moralidade estava em escombros. Mais de metade das
construções junto ao Distrito de Artes estava no chão. Nicole começou a sentir-se mal. Eu não
tinha idéia de que a coisa estivesse tão feia, pensou. De repente, uma bomba explodiu no alto
do carro de transporte.
Nicole foi jogada na rua. Tonta, ela tentou ficar de pé devagarinho. O carro de transporte foi
partido em dois. Penny e o outro médico octoaranha estavam enterrados nos escombros.
Nicole tentou tirar Penny de lá, mas depois de algum tempo compreendeu que era impossível.
Outra bomba explodiu ali perto. Nicole agarrou sua maleta, que caíra na rua ao seu lado, e foi
cambaleando por uma ruela lateral em busca de um abrigo.
Uma octoaranha solitária estava caída no meio da rua. Nicole abaixou-se e tirou a lanterna da
bolsa. A lente da octoaranha estava imóvel. Nicole rolou a criatura de lado e viu
imediatamente o ferimento na sua cabeça. Uma grande quantidade de material branco e
corrugado saía do ferimento e escorria para a rua. Nicole estremeceu e quase vomitou. Olhou
em volta rapidamente para ver se encontrava alguma coisa para cobrir a octoaranha. Nesse
instante, uma bomba atingiu um prédio a menos de duzentos metros dali, e Nicole resolveu
levantar-se e continuar seu caminho.
Encontrou um pequeno abrigo do lado direito da rua, mas já estava ocupado por cinco ou seis
animaizinhos tipo salsicha polonesa que a expulsaram. Um deles foi mordendo seu calcanhar
ao longo de uns vinte metros. A uma certa altura, o animal foi embora, e Nicole parou para
tomar fôlego. Passou um instante examinando-se e descobriu, para seu espanto, que não estava
muito machucada, só tinha umas mordidas esparsas.
Houve um intervalo nos bombardeios. Fez-se um silêncio sepulcral no Domínio Alternativo.
Em frente a Nicole, a uns cem metros, um vaga-lume sobrevoava um prédio que parecia
intacto. Nicole viu duas octoaranhas, uma delas obviamente ferida, entrarem no prédio. Deve
ser um dos hospitais temporários, pensou, dirigindo-se para lá.
Um instante depois, Nicole ouviu um som peculiar, logo acima de onde ela estava. No início
não registrou aquele som, mas da segunda vez percebeu que era um choro e parou
abruptamente na rua, toda arrepiada. É um choro de bebê, pensou, permanecendo imóvel.
Durante uns segundos não ouviu mais nada. Seria imaginação minha?, perguntou a si própria.
Nicole apertou os olhos e olhou para a direita, tentando ver naquela escuridão de onde vinha o
choro. Viu uma cerca de arame quase toda caída, a uns quarenta metros de uma rua transversal.
Olhou de novo para o prédio vizinho. As octoaranhas certamente estão precisando de mim
ali, pensou. Mas não posso deixar de... O choro ressoou na noite, dessa vez mais claro,
subindo e descendo de amplitude como um típico choro de bebê humano.

Nicole foi depressa para a cerca derrubada e viu um cartaz colorido, quebrado no chão.
Ajoelhou-se e pegou um pedaço do cartaz. Quando reconheceu as cores do zoológico, seu
coração deu um pulo. Richard ouviu o choro quando esteve no zôo, lembrou-se.

Houve uma explosão a cerca de um quilômetro à esquerda, e depois outra mais perto. Os
helicópteros tinham voltado à carga. O choro do bebê tornou-se contínuo. Nicole tentou andar
naquela direção, mas seu progresso era lento. Era difícil identificar o choro em meio ao
barulho das explosões.
Uma bomba explodiu na sua frente, a menos de cem metros, e fez-se um silêncio total. Oh,
não, pensou aflita, logo agora que eu estava quase chegando. Houve outra explosão a
distância, seguida de um período de silêncio. Talvez fosse um tipo diferente de animal,
Nicole lembrou-se de ter dito a Richard. Em algum lugar do universo deve haver uma
criatura que chore como um bebê humano.
Tudo o que ela podia ouvir agora era a sua própria respiração. O que faço agora? Continuo a
busca, esperando que... ou viro as costas e vou embora?, perguntou para si mesma.
Seu pensamento foi interrompido pelo reinicio do choro penetrante. Nicole moveu-se tão
depressa quanto podia. Não, continuou dizendo consigo mesma, seu coração de mãe
dilacerado por aquele choro, é inconfundível. Não pode haver outro som como esse. A cerca
estava caída do lado direito da rua estreita. Nicole passou por cima dela e viu uma certa
movimentação nas sombras à sua frente.
O bebê estava sentado no chão ao lado de um adulto humano sem vida, possivelmente sua
mãe. A mulher estava emborcada no chão de terra, coberta de sangue. Depois de constatar
rapidamente que a mulher estava morta, Nicole abaixou-se e pegou a criança de cabelos
escuros. Espantado, o bebê ofereceu resistência e deu um berro no meio da noite. Nicole
encostou-o no ombro e bateu ligeiramente nas suas costas.
— Não, não, pare de chorar, tudo vai dar certo — falou, enquanto o bebê continuava a gritar.
Na luz mortiça, Nicole viu que as roupas bizarras, duas camadas de sacos com aberturas nos
lugares apropriados, estavam manchadas de sangue. Apesar dos protestos da criança, Nicole
lhe fez um ligeiro exame. A não ser por um pequeno ferimento na perna e a sujeira que cobria
todo o seu corpo, a menina, de cerca de um ano, parecia estar bem.
Nicole deitou a criança com cuidado em um pequeno pano limpo, tirado de sua maleta médica,
e começou a limpá-la. Toda vez que uma bomba explodia na vizinhança, o corpo da menina
estremecia. Nicole tentou acalmá-la cantando uma canção de ninar de Brahms. A certa altura,
a menina parou de chorar e olhou-a com seus imensos olhos azuis. Quando Nicole começou a
tirar sua sujeira com um pano úmido, ela não protestou. Continuou a limpar por baixo da roupa
de saco e descobriu, assustada, um colarzinho de corda no peitinho da menina, que começou a
gritar de novo.

Nicole pegou a criança nos braços e levantou-se. Ela está com fome, pensou, olhando em
volta para ver se encontrava algum abrigo. Deve haver alguma comida por aqui. Por baixo de
uma saliência de pedra a uns quinze metros de distância, que parecia ter sido uma área
fechada antes do início dos bombardeios, Nicole descobriu uma grande panela com água, uns
pequenos objetos com finalidade desconhecida, uma esteira de dormir e vários outros pedaços
de saco com os quais a criança e a mulher estavam vestidas. Mas não viu qualquer comida.
Tentou em vão fazer com que a menina bebesse um pouco de água, e depois teve uma idéia.

Voltou para o corpo da mãe e verificou que ainda havia algum leite naqueles seios, pois a
mulher tinha morrido recentemente. Nicole levantou o tronco da mulher e sentou-se por trás
dela no chão. Apoiando o corpo morto no seu, segurou o bebê contra os peitos da mãe e viu
que ela mamava.
A criança estava faminta. No meio da mamada, uma bomba estourou e iluminou o rosto da
mulher morta. Era o mesmo rosto que Nicole vira na pintura feita pelas octoaranhas na Praça
dos Artistas. Então não era minha imaginação, pensou.
A menininha dormiu quando terminou de mamar. Nicole enrolou-a em um dos sacos que
estavam por ali, colocou-a no chão e examinou a mulher morta pela primeira vez. Dois
grandes estilhaços de bombas haviam perfurado sua coxa direita e ela sangrara até a morte.
Quando examinava aqueles ferimentos, sentiu uma saliência estranha na nádega direita da
mulher. Curiosa, Nicole levantou ligeiramente o corpo do chão, passou os dedos pela
saliência e teve a impressão de que um objeto duro fora implantado por baixo da pele da
mulher.
Pegou a tesoura na sua maleta, fez uma incisão ao lado da saliência e retirou um objeto que
parecia ser de prata, do tamanho e forma de um charuto pequeno, de doze a quinze centímetros
de comprimento e cerca de dois centímetros de diâmetro. Estupefata, Nicole colocou o objeto
na mão direita e tentou imaginar o que poderia ser aquilo. Provavelmente é uma espécie de
marcação do zôo, pensou. Nesse instante, uma bomba explodiu ali perto, e a criança acordou.
Na direção da Cidade de Esmeralda, bombas caíam com intensidade cada vez maior.
Enquanto confortava a criança, Nicole pensava no que fazer. Uma grande bola de fogo cortou
o céu enquanto uma bomba produzia uma explosão ainda maior no solo. Em meio ao clarão,
Nicole pôde ver que ela e a criança estavam no topo de um morro, muito perto da parte
desenvolvida do Domínio Alternativo. A planície Central começava a uns cem metros dali.
Nicole levantou-se com o bebê apoiado no ombro e sentiu-se exausta. — Vamos sair desse
bombardeio todo — disse em voz alta para o bebê, dirigindo-se para a planície Central. Jogou
o objeto cilíndrico dentro da sua maleta e pegou mais uns dois sacos limpos. Eles podem ser
úteis se fizer frio, pensou, jogando os sacos pesados por cima dos ombros.
Foi preciso caminhar uma hora, carregando o bebê e os sacos, para chegar a um ponto da
planície Central onde parecia a salvo do bombardeio. Nicole deitou-se de costas, com o bebê
em cima do peito, e enrolou os sacos em volta delas duas. Um segundo depois estava
dormindo.

Nicole acordou com o bebê se mexendo. Ela acabara de sonhar que estava conversando com
Katie, mas não se lembrava do que haviam dito uma à outra. Sentou-se e improvisou uma
fralda para o bebê com um pano limpo, tirado de sua maleta. A criança olhava-a com um ar
curioso, os olhos azuis bem abertos.
— Bom dia, menininha, quem quer que você seja — disse Nicole animada. E a criança sorriu
pela primeira vez.

Já não estava muito escuro. Um grupo de vaga-lumes iluminava a Cidade de Esmeralda a


distância, e os grandes buracos feitos na cúpula deixavam a luz passar, clareando toda a área
em volta de Rama. A guerra deve ter terminado, pensou Nicole, ou pelo menos os
bombardeios. Senão a cidade não estaria tão iluminada.

— Bem, minha nova amiguinha — disse Nicole, colocando o bebê sobre um dos sacos limpos
e ficando de pé para dar uma boa espreguiçada — vamos ver que aventuras nos foram
reservadas para hoje.
A menina saiu de cima do saco e engatinhou pela terra da planície Central. Nicole pegou-a e
colocou-a de novo sobre o saco, porém mais uma vez ela saiu engatinhando.
— Espere aí, garotinha — disse Nicole com uma risada, pegando a menina pela segunda vez.
Foi difícil juntar seus pertences com o bebê no colo, mas enfim conseguiu e foi andando
lentamente na direção da civilização. Os prédios mais próximos do Domínio Alternativo
ficavam a uns trezentos metros; durante a caminhada, ela decidiu ir direto procurar o dr. Azul
no hospital. Partindo do princípio de que a guerra terminara, ou que estava temporariamente
suspensa, Nicole pensou em passar a manhã tentando descobrir o que fazer com a criança.
Quem são seus pais e há quanto tempo eles foram raptados do Novo Éden seriam suas
primeiras perguntas. Ela estava zangada com as octoaranhas. Por que vocês não me contaram
que havia outros humanos na Cidade de Esmeralda? E como vocês podem explicar a forma
como trataram esta criança e sua mãe? Era o que pretendia perguntar ao Chefe Otimizador.
A menina, que estava bem acordada, não parava quieta nos braços de Nicole, que começou a
sentir-se cansada. Decidiu então parar para descansar. Enquanto a menina brincava na terra,
ela ficou olhando a destruição à sua frente, ali no Domínio Alternativo e na Cidade de
Esmeralda ao longe, e de repente sentiu-se muito triste. E para que tudo isso?, perguntou a si
mesma. A imagem de Katie passou pela sua cabeça, mas Nicole afastou-a, preferindo sentar-
se na terra e brincar com o bebê. Cinco minutos depois ouviu um apito.
O som vinha do céu, da própria Rama. Nicole deu um pulo e seu pulso acelerou-se. Sentiu
uma ligeira dor no peito, mas isso não impediu sua excitação.
— Olhe — gritou ela para a menina —, olhe lá ao sul!
Ao longe, raios coloridos brincavam em volta da ponta do Grande Chifre, o obelisco maciço
que subia ao longo do eixo de rotação da nave espacial cilíndrica. Os raios de luz fundiram-se
e formaram um imenso anel vermelho perto da ponta do obelisco. Minutos depois, o anel
planava lentamente para o norte ao longo do eixo de Rama. Em torno do Grande Chifre
juntaram-se mais cores, e um segundo anel cor de laranja se formou e seguiu o anel vermelho
na direção norte do céu de Rama.
O apito continuou, mas não era um apito áspero nem estridente. Para Nicole parecia um som
quase musical.
— Alguma coisa vai acontecer — disse, exultante —, alguma coisa boa! A menininha não
tinha idéia do que acontecia, mas começou a rir quando a mulher levantou-a e balançou-a no
ar. Para ela, aqueles anéis eram fascinantes. Aos poucos um anel amarelo e um verde cruzaram
o céu negro de Rama, e o anel vermelho, na frente da procissão, chegou ao mar Cilíndrico.

Mais uma vez Nicole balançou a menina no ar, e o colar que ela trazia por baixo das roupas
quase voou por cima de sua cabeça. Nicole pegou a menina e deu-lhe um grande abraço.

— Eu tinha me esquecido do seu colar. Agora que a luz está mais forte, vou dar uma olhada
nele.
A menina deu um risinho quando Nicole puxou a corda do colar por cima de sua cabeça para
examinar a peça redonda de madeira, de uns quatro centímetros de diâmetro, com a efígie de
um homem com os braços erguidos, cercado por todos os lados pelo que parecia ser fogo.
Nicole tinha visto uma escultura de madeira assim há muitos anos, na mesa do quarto de
Michael O'Toole em Newton. San Miguel de Siena, disse ela baixinho, virando a peça de
madeira.
No verso vinha escrito "Maria" em letras cuidadosamente gravadas em baixo-relevo.
— Deve ser o seu nome. Maria... Maria — disse Nicole para a menina, que não deu nenhum
sinal de reconhecimento.
E, pela terceira vez, Nicole balançou-a no ar, dando uma risada.
Um instante depois, a criança estava no chão brincando na terra. Nicole vigiava a menina e ao
mesmo tempo observava os anéis coloridos no céu de Rama. Agora podiam ser vistos oito
anéis em azul, marrom, rosa e roxo sobre o Hemicilindro Sul, os quatro primeiros da fila
sobrevoando o norte. Quando o anel vermelho sumiu no horizonte ao norte, outro da mesma
cor formou-se na ponta do Grande Chifre.
Exatamente como há muitos anos, pensou Nicole. Mas sua cabeça ainda não estava
concentrada naqueles anéis. Ela tentava lembrar-se de todas as pessoas dadas como
desaparecidas nos registros do Novo Éden. Tinha havido alguns acidentes de barco no lago
Shakespeare, e de vez em quando um doente mental do sanatório de Avalon desaparecia... Mas
como um casal pôde desaparecer assim? E onde estava o pai de Maria? Eram muitas as
perguntas que pensava em fazer para as octoaranhas.
Os deslumbrantes anéis continuavam a flutuar sobre sua cabeça. Nicole lembrou-se que
quando Katie tinha uns onze anos ficou tão encantada com uns anéis como aqueles que gritou
de alegria. Ela sempre foi minha filha mais desinibida, pensou Nicole, sem conseguir deter
seus pensamentos. Sua risada era contagiante e espontânea... Katie tinha muito potencial.
Seus olhos encheram-se de lágrimas. Nicole limpou os olhos, e com grande esforço conseguiu
concentrar-se em Maria, que estava toda feliz comendo terra da planície Central.
— Não, Maria — disse Nicole, limpando com carinho as mãozinhas da menina. — Isso é
sujo.
Maria fez uma careta e começou a chorar. Até parece Katie, pensou Nicole imediatamente.
Não suportava que eu lhe dissesse não. E uma quantidade de lembranças de Katie invadiu sua
cabeça: primeiro Katie bebê e adolescente em Nodo, e finalmente já uma moça no Novo Éden.
Nicole sentiu uma dor forte no coração, seu rosto se cobriu de lágrimas e seu corpo foi
tomado de soluços.
— Oh, Katie — disse em voz alta. — Por quê? Por quê? Por quê? Maria parou de chorar e
ficou olhando assustada para aquela mulher com o rosto coberto com as mãos.
— Não chore, Nicole — disse uma voz por trás dela. — Tudo vai acabar em breve.
Nicole achou que estava delirando. Virou-se lentamente e viu a Águia aproximando-se com os
braços estendidos.
O terceiro anel vermelho tinha atingido o norte, e não havia mais luzes coloridas em volta do
Grande Chifre.
— Então todas as luzes aparecerão quando os anéis sumirem? — perguntou Nicole à Águia.
— Que boa memória! Você deve estar certa.
Maria, no colo de Nicole, deu um sorriso quando foi beijada com carinho.
— Obrigada pela menina — disse Nicole. — Ela é maravilhosa... e compreendo o que você
está me dizendo.
A Águia olhou para Nicole.
— Do que está falando? — perguntou. — Nós não tivemos nada a ver com esse bebê.
Nicole olhou fundo nos olhos azuis místicos da criatura alienígena. Ela nunca vira dois olhos
tão expressivos como aqueles. Mas fazia muito tempo que não lia a linguagem dos olhos da
Águia. Será que estava brincando a respeito de Maria, ou estava falando sério? Certamente
não foi por acaso que ela descobriu a criança logo depois de Katie se matar...
Você está sendo muito severa no seu julgamento, dissera-lhe Richard um dia em Nodo. Só
porque a Águia não é como você e eu biologicamente não quer dizer que não tenha vida. Ela é
um robô, tudo bem, mas é muito mais inteligente do que nós... e muito mais sutil...
— Então você esteve escondida em Rama todo esse tempo? — perguntou Nicole pouco
depois.
— Não — respondeu a Águia, sem maiores explicações. Nicole sorriu.
— Você já me disse que nós não chegamos a Nodo ou a algum lugar equivalente, e estou certa
de que não apareceu por aqui só para uma visita social... Vai me dizer por que está aqui?
— Esta é uma intercessão no estágio dois — disse a Águia. — Nós decidimos interromper o
processo de observação.
— Sim — falou Nicole, pondo o a menina chão. — Eu compreendo o conceito... mas o que irá
acontecer agora?
— Todos irão dormir — respondeu a Águia.
— E quando acordarem?...
— Só posso dizer que todos irão dormir.
Nicole deu um passo na direção da Cidade de Esmeralda e levantou os braços para o céu. Só
restavam agora três anéis coloridos, e eles estavam muito longe, acima do Hemicilindro
Norte.

— Mais uma pergunta, só por curiosidade... Não estou reclamando, você

sabe... — disse Nicole com um traço de ironia na voz, olhando para a Águia. — Por que você
não intercedeu por nós há mais tempo? Antes de tudo isso acontecer? Antes de ocorrerem
tantas mortes?... — disse, estendendo os braços para a Cidade de Esmeralda.
A Águia não respondeu imediatamente.
— Você não pode ter duas coisas ao mesmo tempo — disse afinal. — Não pode ter livre-
arbítrio e um poder superior benevolente que a proteja de si mesma.
— Desculpe — falou Nicole com ar intrigado. — Terei feito por engano uma pergunta
religiosa?
— Não — respondeu a Águia. — Mas você precisa compreender que nosso objetivo é
desenvolver um catálogo completo de todos os viajantes espaciais nessa região da galáxia.
Não somos juízes. Somos cientistas. Não nos importa se vocês forem naturalmente propensos
à autodestruição. Porém, importa-nos se os resultados futuros do nosso projeto não mais
justificarem os recursos significativos que aplicamos.
— O quê? — disse Nicole. — Está me dizendo que não vai interceder contra esse
derramamento de sangue, mas por outra razão?
— Estou. Mas agora tenho de mudar de assunto, pois nosso tempo é extremamente limitado.
As luzes aparecerão daqui a dois minutos, e você dormirá um minuto depois... Se desejar
comunicar alguma coisa a esta menina...
— Nós vamos morrer? — perguntou Nicole assustada.
— Não imediatamente — respondeu a Águia. — Mas não posso garantir que todos estarão
vivos depois desse período de sono.
Nicole sentou-se no chão ao lado da menina. Maria estava novamente com a boca cheia de
terra. Nicole limpou seu rosto com cuidado e ofereceu-lhe um pouco de água. Para sua
surpresa, Maria deu uns goles, derramando o resto pelo queixo.
Nicole sorriu e Maria deu uma risadinha. Nicole fez cócegas debaixo do queixo da menina, e
ela soltou uma gargalhada, um riso mágico, puro e desinibido. Era um som tão bonito e
comovente que os olhos de Nicole encheramse de lágrimas. Tudo bem, se este for o último
som que vou ouvir na vida...
De repente, Rama ficou toda iluminada. O espetáculo era assombroso. O Grande Chifre e os
seis acólitos que o rodeavam dominaram o céu por cima deles.
— Quarenta e cinco segundos? — Nicole perguntou à Águia.
O homem-pássaro alienígena fez que sim. Nicole pegou a menina e disse:
— Sei que nada do que te aconteceu recentemente faz sentido, Maria — disse, com a menina
no colo —, mas quero que saiba que você passou a ser muito importante na minha vida e que
eu te amo muito.
Os olhos da menina demonstravam certa sabedoria. Ela inclinou-se e encostou a cabeça no
ombro de Nicole, que ficou sem saber o que fazer. Depois deu umas palmadinhas nas costas
dela e começou a cantar baixinho:

— Deite aqui... pra descansar... Tenha um sono abençoado...


DE VOLTA A NODO

Os sonhos vieram antes da luz. Eram sonhos desconexos, imagens a esmo, passando às vezes a
blocos unificados, sem aparente finalidade ou direção. Sonhos com cores e padrões
geométricos foram os primeiros de que Nicole se lembrou, mas sem saber quando tinham
começado. A certa altura pensou pela primeira vez — Sou Nicole, e ainda devo estar viva —,
mas isso tinha sido há muito tempo. Desde então ela havia visto em imaginação cenas inteiras,
inclusive rostos, dentre os quais conheceu alguns. Esse é Omeh, disse a si mesma. Aquele é
meu pai. E sentia grande tristeza à medida que ficava cada vez mais desperta. Richard fazia
parte dos seus últimos sonhos, e Katie também. Os dois estão mortos. Eles morreram antes
de eu dormir, lembrou-se.
Quando Nicole abriu os olhos, não conseguiu ver nada. A escuridão era completa. Mas aos
poucos foi tomando conhecimento do que a cercava. Deixou as mãos caírem para o lado e
sentiu com os dedos a textura macia da espuma. Virou-se de lado com grande esforço. Devo
estar sem peso, pensou, pondo a cabeça para funcionar depois de anos de adormecimento.
Mas onde estou?, perguntou a si mesma antes de cair no sono de novo.
Na próxima vez em que acordou, Nicole viu uma luz vindo do outro lado do container onde
dormia. Soltou os pés da espuma branca que os prendia, levantou-os em frente à luz e viu que
estavam calçados com uns chinelos transparentes. Esticou-se para ver se conseguia tocar na
luz com os dedos dos pés, mas a luz estava muito longe.
Nicole colocou as mãos em frente aos olhos. A luz era tão fraca que ela não conseguiu ver
detalhes, apenas a silhueta escura dos dedos. O container era bastante espaçoso; ela se sentou,
mas só conseguiu encostar a mão no teto apoiando-se na outra mão e erguendo o corpo. Feito
isso, apertou a espuma macia com os dedos, e por trás da espuma sentiu uma superfície dura,
possivelmente de madeira ou até mesmo de metal.
Aquela ligeira movimentação deixou-a exausta. Sua respiração acelerouse, as batidas
cardíacas aumentaram e a mente ficou mais alerta. Nicole lembrava-se perfeitamente de seus
últimos momentos antes de cair naquele sono profundo em Rama. A Águia veio logo depois
que eu encontrei aquela menininha no Domínio Alternativo... E onde estou agora? Quanto
tempo fiquei dormindo?, pensava Nicole.
Ela ouviu uma batida suave na porta do container e deitou-se de costas na espuma. Alguém
vem aí. Minhas perguntas serão em breve respondidas. A tampa do container abriu-se
lentamente, e Nicole protegeu os olhos da luz. Então viu o rosto da Águia e ouviu sua voz.

Ela e a Águia estavam sentadas em uma grande sala onde tudo era branco. As paredes, o teto,
a mesinha redonda, e até mesmo as cadeiras, xícaras, tigelas e colheres. Nicole tomou mais
uma colherada da sopa quente, que parecia um caldo de galinha. À sua esquerda, encostado na
parede, ela viu o container branco no qual ela estivera deitada. Não havia outros objetos na
sala.

— ... Ao todo, uns dezesseis anos, no tempo dos viajantes — dizia a Águia. Tempo dos
viajantes, pensou Nicole. Esse era o termo que Richard usava... — Nós não retardamos tanto
seu envelhecimento como da outra vez. Nossos preparativos foram um tanto apressados.
Apesar de não sentir seu peso, para Nicole cada ato físico era um esforço monumental, pois
seus músculos tinham ficado inativos durante muito tempo. A Águia ajudou-a a arrastar os pés
entre o container da parede e a mesa. Suas mãos tremiam um pouco quando ela tomou a água e
a sopa.
— Então estou com uns oitenta anos agora? — perguntou para a Águia com uma voz fraca, que
mal reconheceu.
— Mais ou menos — respondeu o alienígena. — Seria impossível dar uma idade significativa
para você.
Nicole olhou para seu Companheiro Águia do outro lado da mesa. Ele não tinha mudado nada.
Seus olhos azuis e o bico cinza não tinham perdido nada de sua intensidade mística. As penas
do alto da cabeça continuavam brancas como a neve, contrastando com as penas cinza-escuras
da cara, do pescoço e das costas. Os quatro dedos de cada mão, esbranquiçados e sem penas,
eram macios como os de uma criança.
Nicole examinou suas próprias mãos pela primeira vez: estavam enrugadas e cheias de
manchas senis. Virou-as e lembrou-se das palavras de Richard. Encarquilhado. Não é uma
palavra e tanto? Significa mais do que enrugado... Não sei se vou ter a chance de ficar
assim... A lembrança de Richard apagou-se. Minhas mãos estão encarquilhadas, pensou
Nicole.
— Você nunca envelhece? — perguntou à Águia.
— Não, pelo menos não no sentido que vocês dão a essa palavra... Sou submetido a uma
manutenção regular, e os subsistemas que mostram desempenho e degradação são substituídos.
— Então você nunca morre? A Águia hesitou um instante.
— Não exatamente assim. Como todos os membros do meu grupo, fui criado para um
determinado fim. Quando minha existência não for mais necessária e eu não puder ser
programado rapidamente para desempenhar uma função nova e necessária, serei desligado.
Nicole começou a rir, mas conteve-se.
— Desculpe, sei que não é engraçado... mas a forma de você usar as palavras foi um tanto
peculiar... Desligado é tão...
— Mas é a palavra correta — disse a Águia. — Dentro de mim há várias fontes mínimas de
energia, e também um sofisticado sistema de distribuição de energia. Todos esses elementos
são essencialmente modulares e portanto transferíveis. Quando eu não for mais necessário, os
elementos podem ser retirados e usados em outro ser.
— Como se fosse um transplante de órgãos — falou Nicole, terminando de beber sua água.
— Mais ou menos. O que me faz lembrar de outra coisa... Durante seu sono profundo, seu
coração parou de bater duas vezes, sendo que da segunda vez logo depois que chegamos aqui
no sistema Tau Ceti... Nós conseguimos mantê-la viva com drogas e estímulo mecânico, mas
seu coração está extremamente fraco... Se você quiser ter uma vida ativa durante algum tempo,
terá de pensar em trocar de coração...
— Foi por isso que me deixou aqui durante tanto tempo? — disse Nicole apontando para o
container.
— Em parte foi — disse a Águia. Ele já explicara a Nicole que quase todos os outros de
Rama tinham acordado muito antes, alguns até um ano antes, e que estavam vivendo
amontoados em outro lugar perto dali. — Mas nós também ficamos preocupados com o seu
conforto naquela nave adaptada... Ela foi remodelada muito depressa, por isso não tem muita
sofisticação... E também nos preocupamos por você ser a sobrevivente humana mais velha de
todas...
É isso mesmo, disse Nicole para si mesma. O ataque das octoaranhas ceifou todas as
pessoas acima de quarenta anos... Eu fui a única poupada...
A Águia parou de falar por algum tempo. Quando Nicole olhou para o alienígena de novo,
seus olhos hipnotizantes pareciam expressar emoção.
— Além do mais, você é muito especial para nós... você teve um papel básico nesse nosso
empreendimento...
Será possível, pensou Nicole de repente, ainda olhando para os olhos fascinantes da Águia,
que esta criatura eletrônica realmente tenha sentimentos? Será que Richard tinha razão
quando dizia que não há nenhum aspecto dos humanos que não acabe sendo duplicado pela
engenharia?
— ...Nós esperamos o máximo possível para acordar você — disse a Águia —, para diminuir
o tempo que você teria de passar em condições não ideais... Mas agora estamos nos
preparando para entrar em outra fase das nossas operações... Como você vê, esta sala foi
esvaziada há muito tempo. Só restou você. Dentro de mais uns dez dias, começaremos a
desmontar as paredes, e até lá você já terá se recuperado...
Nicole perguntou de novo sobre sua família e amigos.
— Como eu já disse, todos sobreviveram ao longo sono. Mas a adaptação à vida no que seu
amigo Max chama de Grande Hotel não tem sido fácil para eles. Todos os que estiveram com
você na Cidade de Esmeralda, além de Maria e do marido de Ellie, foram mandados para dois
quartos grandes contíguos, em uma seção da Estrela do Mar. Todos foram avisados de que
aquele arranjo de vida seria temporário, e que mais tarde seriam transferidos para um lugar
melhor. Porém Robert e Galileu não conseguiram adaptar-se bem às condições inusitadas do
Grande Hotel.
— O que aconteceu com eles? — perguntou Nicole alarmada.
— Foram transferidos, por razões sociológicas, para outro local mais bem supervisionado da
espaçonave. Robert foi o primeiro. Ele acordou do sono profundo com uma depressão grave e
não conseguiu se recuperar. Infelizmente Robert morreu há quatro meses... Galileu está bem
fisicamente, mas seu comportamento anti-social continua...

Nicole teve muita pena quando soube da morte de Robert. Pobre Nikki, pensou imediatamente,
ela nunca teve chance de conhecer seu pai... e Ellie, seu casamento não foi como ela
esperava...
Nicole sentou-se em silêncio, lembrando-se de tudo o que dizia respeito a Robert Turner. Você
era um homem complicado, talentoso e dedicado ao seu trabalho. Mas em termos pessoais
não funcionava bem. Talvez uma parte essencial sua tenha morrido há muito tempo...
naquele tribunal no Texas, no planeta chamado Terra...
Nicole sacudiu a cabeça.
— Acho que a energia que usei para salvar Katie e Robert dos agentes das octoaranhas foi um
desperdício — comentou ela.
— Não exatamente — disse a Águia com simplicidade. — Foi importante para você naquela
época.
Nicole sorriu e olhou para seu colega alienígena. Bem, meu amigo onisciente, pensou, dando
um bocejo, devo admitir que estou contente por estar de novo na sua companhia... Talvez
você não seja um ser vivo, mas é certamente um ótimo conhecedor dos seres vivos.
— Vou ajudá-la a voltar para a cama — disse a Águia. — Você já ficou de pé tempo demais
para a primeira vez.

Nicole estava muito contente consigo mesma. Tinha finalmente conseguido dar uma volta
completa pelo quarto sem parar.
— Bravo! — disse a Águia, chegando perto dela. — Você está fazendo um progresso
fabuloso. Pensamos que você não andaria tão bem em tão pouco tempo.
— Mas agora preciso de um pouco de água — disse ela sorrindo. — Este corpo velho está
suando muito.
A Águia pegou um copo de água na mesa. Quando Nicole terminou de beber virou-se para seu
amigo alienígena.
— Agora você vai manter sua palavra? Você tem um espelho e uma muda nova de roupas
naquela mala ali?
— Tenho sim. E trouxe até os cosméticos que você pediu... Mas primeiro quero examinar você
para ver como seu coração respondeu ao exercício. — Ele segurou um aparelhinho preto na
frente de Nicole e esperou aparecerem umas marcações na tela. — Ótimo. Aliás, excelente...
Não houve qualquer irregularidade. Só uma indicação de que seu coração está trabalhando
muito, o que deve se esperar numa mulher da sua idade...
— Posso ver isso? — perguntou, apontando para o monitor que a Águia passou para ela. —
Imagino que esta coisa esteja recebendo sinais de dentro do meu corpo... mas o que são
exatamente esses estranhos símbolos na tela?
— Você tem mais de mil sondas minúsculas dentro do seu corpo, sendo mais da metade na
região cardíaca. Elas não só medem o desempenho crítico do seu coração e de outros órgãos
como também regulam importantes parâmetros, como fluxo sangüíneo e distribuição de
oxigênio. Algumas sondas até complementam as funções biológicas normais... O que você está
vendo na tela é o resumo de dados do tempo em que você esteve se exercitando. Eles foram
compactados e telemedidos pelo processador dentro do seu corpo.
Nicole franziu a sobrancelha.
— Talvez eu não deva perguntar, mas a idéia de ter todas essas coisas eletrônicas dentro de
mim me deixa aflita.
— As sondas não são realmente eletrônicas — explicou a Águia —, pelo menos não no
sentido que os humanos dão a essa palavra. E elas são absolutamente necessárias nesse ponto
da sua vida. Se não ficassem aí dentro, você não sobreviveria nem um dia...
Nicole olhou para a Águia.
— Por que vocês não me deixaram morrer? — perguntou. — Vocês ainda têm alguma
finalidade para mim que justifique todo esse esforço? Alguma função que eu deva
desempenhar?
— Talvez — respondeu a Águia. — Mas talvez nós tenhamos considerado que você gostaria
de ver sua família e seus amigos mais uma vez.
— É difícil acreditar que meus desejos tenham um papel significativo na sua hierarquia de
valores — falou Nicole.
A Águia não respondeu. Foi até a mala que estava ao lado da mesa e voltou com um espelho,
um pano úmido, um vestido azul simples e uma bolsa com cosméticos. Nicole tirou a camisola
branca que estava usando, limpou-se com o pano, colocou o vestido e respirou fundo quando a
Águia lhe passou o espelho.
— Tenho certeza de que não estou preparada para isso — disse ela com um sorriso triste.
Ela não teria reconhecido o rosto do espelho se não tivesse se preparado emocionalmente.
Parecia uma colcha de retalhos, cheia de sulcos e rugas. Seu cabelo, inclusive as sobrancelhas
e pestanas, estavam grisalhos ou brancos. Seu primeiro impulso foi chorar, mas ela conseguiu
driblar as lágrimas bravamente. Meu Deus, estou tão velha!... Será que sou eu mesma?,
pensou.
Guiada pela memória, Nicole pesquisou suas feições no espelho, os vestígios da mulher
encantadora que fora em tempos idos. Viu aqui e ali uns traços do que havia sido considerado
um rosto bonito, mas foi preciso procurar muito. Sentiu uma dor no coração ao lembrar-se de
repente de um pequeno incidente quando era adolescente e andava pela estrada com seu pai,
perto de sua casa em Beauvois. Uma velha apoiada em uma bengala vinha na direção deles, e
Nicole perguntou ao pai se podiam atravessar a estrada para não passarem perto dela.
— Por quê? — perguntou o pai.
— Porque não quero ver aquela mulher de perto. Ela é muito velha e feia... e me dá arrepios.
— Você também vai ficar velha um dia — disse o pai, recusando-se a atravessar a estrada.
Eu estou velha e feia, e provoco arrepios em mim mesma, pensou, passando o espelho para a
Águia.
— Você me avisou. Eu devia ter seguido seu conselho.

— É claro que você ficou chocada — disse a Águia. — Faz dezesseis anos

que não se vê no espelho. A maioria dos humanos tem dificuldades com o processo de
envelhecimento, mesmo que ele seja seguido dia a dia — falou a Águia, entregando a bolsa de
cosméticos para Nicole.
— Não, obrigada — disse ela, desanimada. — Não vai adiantar nada. Nem mesmo
Michelangelo poderia fazer alguma coisa com um rosto assim.
— Você é quem sabe — falou a Águia. — Mas eu achei que talvez quisesse usar os
cosméticos antes de sua visita chegar.
— Visita! — disse Nicole, entre alarmada e excitada. — Eu vou ter uma visita... Quem é? —
falou, pegando a bolsa de cosméticos.
— Acho que é melhor ser uma surpresa. Sua visita chegará daqui a um instante.
Nicole pôs batom e pó, escovou os cabelos grisalhos e ajeitou as sobrancelhas. Quando
terminou, deu uma olhada no espelho.
— Isso é o melhor que posso fazer — disse para si própria e para a Águia. Um instante
depois, a Águia abriu a porta do outro lado do quarto, saiu e voltou seguido de uma
octoaranha.
Nicole viu a faixa azul-rei varrendo o quarto.
— Alô, Nicole. Como está se sentindo? — disse a octoaranha.
— Dr. Azul! — gritou ela, animada.
O dr. Azul segurou o aparelho na frente de Nicole.
— Vou ficar aqui até você poder ser transferida — disse o médico octoaranha. — A Águia tem
outras obrigações a cumprir.
Faixas coloridas apareceram na telinha.
— Não compreendo — disse Nicole, olhando para o aparelho de cabeça para baixo. —
Quando a Águia usou essa coisa, a legenda vinha em símbolos engraçados.
— Essa é a linguagem tecnológica deles para fins especiais — disse o dr. Azul. — É
incrivelmente eficiente, muito melhor que as nossas cores... Mas é claro que não sei ler nada
disso... Este aparelho, na verdade, vem em todas as línguas. Há até um módulo em inglês.
— Então que língua o senhor fala para se comunicar com a Águia quando não estou por perto?
— perguntou Nicole.
— Nós usamos cores — respondeu ele. — Elas passam na testa dela da esquerda para a
direita.
— O senhor está brincando — falou Nicole, tentando imaginar a Águia com cores na testa.
— Nada disso. A Águia é fantástica. Matraqueia e guincha com as aves, grita e assobia com os
myrmigatos...

Nicole nunca ouvira a palavra myrmigato na linguagem de cores. Quando perguntou o que
significava, o dr. Azul disse que seis dessas estranhas criaturas estavam vivendo no Grande
Hotel, e que mais quatro iam nascer de melões-maná germinados.

— Embora todas as octoaranhas e humanos tenham dormido durante a longa viagem, os


melões-maná transformaram-se em myrmigatos e depois em material séssil. Agora vão entrar
na geração seguinte.
O dr. Azul colocou o aparelho na mesa.
— Então, qual é o veredicto para hoje, doutor? — perguntou Nicole.
— Você está ganhando forças — respondeu o dr. Azul. — Mas só está viva devido às sondas
complementares que colocaram dentro de você. Em alguma hora terá de considerar...
— ...Substituir meu coração... já sei — completou Nicole. — Pode parecer estranho, mas a
idéia não me agrada muito... Não sei exatamente por que sou contra isso... Talvez eu não saiba
ainda o que me resta para viver... Sei que se Richard estivesse vivo...
Nicole parou e por um instante imaginou que estava na sala de vídeo olhando as imagens em
câmera lenta dos últimos segundos de vida de Richard. Ela não tinha pensado naquilo desde
que acordara.
— Importa-se que eu lhe faça uma pergunta muito pessoal? — disse Nicole.
— De jeito nenhum — respondeu a octoaranha.
— Nós assistimos à morte de Richard e Archie juntos, e eu fiquei tão desesperada que saí do
ar... Archie foi assassinado na mesma hora, e ele era seu companheiro de vida. Mas você ficou
ao meu lado, me consolando.. Não teve nenhuma sensação de perda ou de tristeza com a morte
de Archie?
O dr. Azul não respondeu imediatamente.
— Nós, octoaranhas, somos treinadas desde que nascemos para controlar o que os humanos
chamam de emoção. Os alternativos, é claro, são muito suscetíveis aos sentimentos. Mas nós
que...
— Com o devido respeito — interrompeu Nicole gentilmente, encostando a mão no colega
octoaranha —, não fiz uma pergunta clínica, de médico para médico. Fiz uma pergunta de
amigo para amigo.
Uma curta explosão de raios roxos e depois azuis, desconexos, passou em volta da cabeça do
dr. Azul, que respondeu:
— Sim, eu tive uma sensação de perda. Mas sabia que isso iria acontecer, mais cedo ou mais
tarde. Quando Archie foi trabalhar nos preparativos de guerra, seu fim ficou evidente... Além
disso, minha obrigação naquele momento era ajudar você.
A porta do quarto abriu-se e a Águia entrou. O alienígena carregava uma grande caixa cheia de
comida, roupas e artigos diversos, e informou a Nicole que tinha trazido sua roupa espacial, e
que muito em breve ela iria aventurar-se fora do seu ambiente controlado.
— O dr. Azul disse que você sabe falar em cores — disse Nicole brincando. — Será que
pode me mostrar?
— O que quer que eu diga? — respondeu a Águia com faixas coloridas ordenadas saindo do
lado esquerdo de sua testa e passando para o direito.

— Isso basta — falou Nicole, dando uma gargalhada. — Você é realmente incrível.

Nicole ficou de pé na fábrica gigantesca, olhando a pirâmide à sua frente. À direita, a menos
de um quilômetro de distância, um grupo de biotas para finalidades especiais e dois tratores
enormes construíam uma montanha alta.
— Por que vocês estão fazendo isso? — perguntou Nicole pelo minimicrofone no interior de
seu capacete.
— É parte do próximo ciclo — respondeu a Águia. — Nós determinamos que essas
construções específicas aumentam a possibilidade de tirarmos o que queremos da experiência.
— Então vocês já sabem alguma coisa sobre os novos viajantes espaciais?
— Não sei responder a isso — disse a Águia. — Não tenho nenhuma associação com o futuro
de Rama.
— Mas você nos disse antes — falou Nicole, não satisfeita com a resposta — que nenhuma
mudança foi feita, a não ser as necessárias...
— Eu não posso ajudá-la — repetiu a Águia. — Vamos, entre no veículo, o dr. Azul quer olhar
a montanha mais de perto.
A octoaranha estava engraçada com sua roupa espacial. Na verdade, Nicole riu alto quando
viu pela primeira vez o dr. Azul com a roupa branca justa cobrindo seu corpo escuro e seus
oito tentáculos. O dr. Azul também tinha um capacete transparente na cabeça, através do qual
era fácil ler as cores.
— Eu fiquei atônita — disse Nicole ao dr. Azul, que estava sentado ao seu lado, quando o
veículo atravessou o terreno plano em direção à montanha — assim que nós saímos aqui
fora... Não, essa palavra não é suficientemente forte... Você e a Águia haviam me dito que
estávamos na fábrica, e que Rama estava sendo preparada para outra viagem, mas eu não
esperava tudo isso...
— A pirâmide foi construída à sua volta enquanto você dormia — disse a Águia do banco do
motorista em frente a eles. — Sem perturbar o seu ambiente. Se não tivéssemos conseguido
fazer isso, você teria sido acordada muito mais cedo.
— E toda essa coisa não o deixa fascinado? — perguntou Nicole ao dr. Azul. — Você não fica
imaginando que tipo de seres teria concebido esse grande projeto? E também criado uma
inteligência artificial como a Águia? É quase impossível imaginar...
— Não é tão difícil assim para nós — falou a octoaranha. — Lembre-se de que ouvimos falar
de seres superiores desde o início. Nós só existimos como criaturas inteligentes porque os
precursores alteraram nossos genes. Nunca tivemos um período na nossa história em que
pensássemos que estávamos no ápice da vida.
— Nós também não pensaremos nunca mais — brincou Nicole. — A história humana,
independentemente de como irá terminar, foi alterada de forma profunda e irrevogável.
— Talvez não — disse a Águia do banco da frente. — Nosso banco de dados indica que
algumas espécies não sofrem muito impacto quando entram em contato conosco. Nossas
experiências são programadas para que haja essa possibilidade. Nosso contato ocorre durante
um período finito, só com uma pequena percentagem da população. Não há um intercâmbio
contínuo, a não ser que a espécie em estudo tome a iniciativa de criar esse intercâmbio... Eu
duvido que a vida na Terra neste momento seja muito diferente do que teria sido se nenhuma
espaçonave Rama tivesse entrado no sistema solar de vocês. Nicole debruçou-se para a frente
no banco.
— Você tem certeza disso, ou está apenas supondo? A resposta da Águia foi vaga.
— Certamente a história da Terra foi mudada com o aparecimento de Rama. Acontecimentos
importantes não teriam ocorrido se não tivesse havido nenhum contato. Porém, daqui a uns
cem anos, ou quinhentos anos... A Terra será tão diferente do que teria sido?
— Mas o ponto de vista humano deve ter mudado — argumentou Nicole. — Certamente o
conhecimento de que existe no universo, ou pelo menos existiu em alguma época anterior, uma
inteligência avançada o suficiente para construir uma nave espacial robotizada interestelar do
tamanho de uma cidade muito grande não pode ser desconsiderado como se fosse uma
informação insignificante... Isso cria uma perspectiva diferente para toda a gama de
experiências humanas. A religião, a filosofia e até mesmo os fundamentos da biologia devem
ser revistos diante da...
— Estou contente de ver — interrompeu a Águia — que pelo menos um pouco do seu
otimismo e idealismo se manteve ao longo de todos esses anos... Lembre-se, porém, que no
Novo Éden os humanos sabiam que estavam vivendo em um domínio construído especialmente
para eles por extraterrestres. E foram informados, por você e por outros, que estavam sendo
continuamente observados. Mesmo assim, quando se tornou aparente que os alienígenas, quem
quer que fossem, não pretendiam interferir nas atividades diárias dos humanos, a existência
desses seres avançados tornou-se irrelevante.
O veículo chegou na base da montanha.
— Eu tinha muita curiosidade de vir aqui — disse o dr. Azul. — Como vocês sabem, não
tínhamos nenhuma montanha no nosso reino em Rama. E não tínhamos muitas na região do
nosso planeta de origem quando eu era criança... Achei que devia ser bom ficar no alto...
— Solicitei um desses tratores grandes — disse a Águia. — Nossa viagem até o cume levará
só dez minutos... Talvez vocês fiquem assustados em alguns pontos por causa do declive da
subida, mas é perfeitamente seguro, desde que vocês usem o cinto de segurança.
Nicole não estava velha demais para apreciar a subida espetacular. O trator, do tamanho de
um prédio de escritórios, não tinha bancos muito confortáveis para os passageiros, e alguns
solavancos eram bem violentos, mas o panorama descortinado à medida que subiam valia todo
aquele desconforto.

A montanha tinha mais de um quilômetro de altura e cerca de dez de circunferência. Nicole


pôde ver claramente a pirâmide onde estivera antes quando o trator estava a apenas um quarto
do caminho da montanha. Mais adiante, o horizonte estava salpicado em todas as direções de
isolados projetos de construções de finalidade desconhecida.

Então agora tudo começa de novo, pensou Nicole. Essa Rama reconstruída entrará em
breve em outro conjunto de sistemas estelares. E o que irá encontrar? Quais serão os
próximos viajantes espaciais a pisar neste solo? Ou a subir a montanha?
O trator parou num platô bem perto do cume e os três passageiros desembarcaram. A vista era
deslumbrante. Enquanto Nicole olhava o cenário, lembrou-se de como havia ficado
maravilhada na sua primeira viagem em Rama, quando desceu no teleférico e o vasto mundo
alienígena estendeu-se à sua frente. Obrigada, pensou, dirigindo-se à Águia, por me manter
viva. Você tinha razão. Basta esta única experiência e as memórias que ela suscita para me
dar uma razão mais do que suficiente para continuar.
Nicole virou-se para olhar o resto da montanha, e viu uma coisa pequena voando para dentro e
para fora de uma espécie de arbustos vermelhos, a apenas uns vinte metros de distância. Foi
andando até lá e pegou um dos objetos voadores, do tamanho e da forma de uma borboleta. As
asas eram decoradas com uma variedade de motivos assimétricos, absolutamente diferentes de
quaisquer outros que Nicole já vira. Ela soltou o objeto e pegou outro. O padrão dessa
segunda borboleta ramaiana era completamente diferente, mas também tinha cores e desenhos.
A Águia e o dr. Azul foram encontrar-se com ela. Nicole mostrou o que tinha na mão.
— São biotas voadores — disse a Águia sem qualquer outro comentário.
Nicole maravilhou-se com as minúsculas criaturas. Alguma coisa espantosa acontece todo
dia, Richard lhe dissera uma vez. E nós somos sempre lembrados da alegria de estarmos
vivos.

Nicole tinha terminado seu banho quando os dois biotas entraram no quarto. Um era um
caranguejo e o outro uma espécie de caminhão de brinquedo gigante. O caranguejo usou suas
poderosas pinças e seus vários dispositivos auxiliares para cortar o container de Nicole em
pedaços, que foram empilhados no caminhão. Quando ia saindo do quarto, menos de um
minuto depois, o caranguejo pegou a banheira branca e as cadeiras restantes e colocou tudo no
alto das pilhas do caminhão. Depois pôs a mesa nas costas e desapareceu do quarto vazio por
trás do caminhão biota. Nicole ajeitou o vestido.
— Nunca vou me esquecer da primeira vez em que vi um biota — comentou com seus dois
companheiros. — Foi na imensa tela do centro de controle de Newton, muitos e muitos anos
atrás. Nós todos ficamos apavorados.
— Então chegou o dia. Você está preparada para ir ao Grande Hotel? — perguntou o dr. Azul
em várias cores.
— Provavelmente não — disse ela com um sorriso. — Pelo que você e a Águia disseram,
acho que desfrutei do meu último minuto de solidão.
— Sua família e seus amigos estão loucos para vê-la — disse a Águia. — Estive com eles
ontem e disse que você iria... Você vai ficar com Max, Eponine, Ellie, Marius e Nikki. Patrick,
Nai, Benjy, Kepler e Maria moram no quarto ao lado. Como lhe expliquei na semana passada,
Patrick e Nai têm cuidado de Maria como se ela fosse uma filha desde que todos acordaram...
Eles souberam que você a salvou do bombardeio...
— Não sei se salvar é o verbo apropriado — disse Nicole, lembrando-se claramente das suas
últimas horas na antiga nave espacial Rama. — Eu peguei Maria porque não havia ninguém
para cuidar dela. Qualquer um teria feito o mesmo.
— Você salvou a vida dela — disse a Águia. — Uma hora depois de você sair do zôo com a
menina, três grandes bombas devastaram toda aquela área e as duas seções adjacentes. Maria
teria morrido se você não a tivesse encontrado.
— Ela é agora uma moça bonita e inteligente — disse o dr. Azul. — Eu a vi uma vez há
algumas semanas. Ellie disse que Maria tem uma energia incrível. Segundo ela, é a primeira a
acordar de manhã e a última a dormir à noite.
Como Katie, pensou Nicole. Quem é você, Maria? E por que entrou na minha vida naquela
hora?
— ...Ellie também disse que Maria e Nikki são inseparáveis — continuou o dr. Azul. —
Estudam juntas, comem juntas e conversam sem parar sobre tudo... Nikki contou a Maria tudo
sobre você.
— Como é possível isso? — disse Nicole com um sorriso. —- Nikki só tinha quatro anos na
última vez em que estive com ela. As crianças humanas não se lembram de coisas que se
passaram assim tão cedo...
— Mas se dormirem durante os quinze anos seguintes lembram-se de tudo — explicou a
Águia. — Kepler e Galileu também têm muitas lembranças daqueles dias... Mas é melhor
conversarmos durante a viagem. Está na hora de irmos embora.
A Águia ajudou Nicole e o dr. Azul a colocarem suas roupas espaciais, e depois pegou a mala
e os pertences de Nicole.
— Você guardou sua maleta de remédios junto com as roupas e os cosméticos que vem usando
nesses últimos dias — disse a Águia.
— Minha maleta? — perguntou ela rindo. — Meu Deus, eu tinha quase me esquecido... Ela
estava comigo quando encontrei Maria, não foi?... Obrigada.
Os três saíram do quarto, localizado no fundo da grande pirâmide. Minutos depois passaram
pela grande entrada em arco do prédio. O veículo espacial os esperava do lado de fora, na
brilhante luz da fábrica.
— Vamos levar só uma meia hora até os elevadores de alta velocidade — disse a Águia. —
Nosso foguete está estacionado na Doca, no nível superior.
Quando o veículo espacial deu a partida, Nicole virou-se para olhar para trás. Para além da
pirâmide ficava a alta montanha que haviam subido três dias antes.
— Então você não sabe mesmo por que as borboletas biotas estão aqui? — perguntou Nicole
pelo microfone da sua roupa espacial.
— Não — respondeu a Águia. — Minha tarefa cobre apenas o ciclo de vocês.

Nicole continuou a olhar para trás. O veículo passou por um conjunto de postes altos, uns dez
ou doze ao todo, ligados por arames no alto, no meio e embaixo. Tudo isso fará parte da nova
Rama, pensou Nicole. E, ao perceber de repente que estava vendo o mundo de Rama pela
última vez, sentiu uma imensa tristeza. Aqui foi a minha casa, e estou indo embora para
sempre, disse para si mesma.

— Seria possível — perguntou Nicole para a Águia sem se virar — ver outras partes de Rama
antes de partir para sempre?
— Para quê? — perguntou a Águia.
— Não estou bem certa... Talvez só para poder ficar por aqui mais uma hora.
— Os dois bojos e o Hemicilindro Sul já foram completamente remodelados. Você não os
reconheceria. O mar Cilíndrico foi drenado e retirado, e até Nova York está sendo
desmontada...
— Mas não está completamente destruída, está? — perguntou ela.
— Não, ainda não — replicou a Águia.
— Então dá para irmos até lá um pouquinho? Por favor...
Por favor, faça a vontade de uma velha senhora, pensou Nicole. Mesmo que ela própria não
compreenda por que quer ir lá.
— Tudo bem — disse a Águia —, mas nós vamos nos atrasar. Nova York fica em outra parte
da fábrica.

Eles estavam em um parapeito perto do topo de um dos arranha-céus. A maior parte de Nova
York não existia mais; os prédios haviam sido empilhados pela força fantástica dos grandes
biotas. Restavam apenas uns vinte ou trinta edifícios em volta da praça.
— Havia três tocas debaixo da cidade — explicou Nicole ao dr. Azul. — Uma nossa, outra
das aves e a terceira das suas primas octoaranhas... Eu estava na toca das aves quando
Richard veio me buscar... — Nicole parou quando percebeu que já havia contado essa história
ao dr. Azul e que as octoaranhas não se esquecem de nada. — Você se importa de ouvir? —
perguntou Nicole.
— Por favor, continue — disse ele.
— Durante o tempo em que vivemos aqui, ninguém na ilha sabia que havia entradas para
alguns desses edifícios. Não é incrível? Oh, como eu gostaria que Richard estivesse vivo e eu
pudesse ver o rosto dele quando a Águia abriu a porta do octaedro... Teria ficado chocado...
De qualquer forma — continuou Nicole —, Richard voltou para Rama a fim de me procurar...
E quando nós nos apaixonamos e descobrimos que podíamos fugir da ilha usando as aves...
Foi um dia glorioso, há muitos e muitos anos...
Nicole deu um passo à frente, segurou-se na balaustrada com as duas mãos, olhou em volta e
viu em imaginação a antiga Nova York. Ali ficavam as muradas. Mais adiante, o mar
Cilíndrico... e mais ou menos no meio daquelas horríveis pilhas de metal ficavam o celeiro
e o poço onde eu quase morri.

De repente, seus olhos ficaram cheios de lágrimas inesperadas, que lhe desceram pelo rosto.
Nicole não se virou. Cinco dos meus filhos nasceram ali, debaixo do solo. Dois anos depois
de Richard ter ido embora, nós o encontramos do lado de fora da nossa toca, em coma,
pensou Nicole.

As lembranças vieram uma a uma à sua cabeça, provocando uma dor vaga no coração e novas
lágrimas, que ela não conseguiu deter. Em certo momento, ela descia na toca das octoaranhas
para salvar Katie, em outro sentia-se excitada e alegre voando por cima do mar Cilíndrico,
montada em três aves com arreios. Nós temos de morrer um dia, pensou Nicole, limpando as
lágrimas com as costas da mão, pois não sobra lugar no nosso cérebro para mais
lembranças.
Enquanto olhava a paisagem destruída de Nova York, transformando-a pela imaginação no que
havia sido anos antes, teve uma forte recordação de um tempo ainda mais anterior na sua vida.
Lembrou-se de uma noite fria de fim de outono em Beauvois, nos seus últimos dias na Terra,
logo antes de Geneviève e ela irem esquiar em Davos. Estava sentada com seu pai e sua filha
em frente à lareira na villa. Pierre estava muito pensativo naquela noite, e contou histórias
para a filha e para a neta de muitos momentos especiais do seu namoro com a mãe de Nicole.
Mais tarde, na hora de ir para a cama, Geneviève fez uma pergunta à mãe.
— Por que o vovô fala tanto sobre o que aconteceu há tanto tempo?
— Porque isso é o que importa para ele — respondera Nicole. Desculpemme, pensou Nicole,
olhando ainda os arranha-céus em frente a ela. Peço desculpas a todas as pessoas idosas
cujas histórias não me interessaram. Eu não tinha intenção de ser rude nem complacente.
Mas é que não compreendia o significado da velhice. Nicole suspirou, respirou fundo e
virou-se.
— Você está bem? — perguntou-lhe o dr. Azul
Com um gesto, disse que sim. Depois falou para a Águia, com voz entrecortada:
— Obrigada por termos vindo. Agora estou pronta.

Ela viu as luzes assim que o pequeno foguete saiu do hangar. Embora as luzes ainda
estivessem a mais de cem quilômetros dali, já podiam ser vistas contra o fundo escuro e as
estrelas distantes.
— Este Nodo tem um vértice extra — disse a Águia —, formando um tetraedro perfeito. O
Nodo em que você esteve, perto de Sírius, não tinha o Módulo do Conhecimento.
Nicole olhou para fora da janela do foguete, prendendo a respiração. Aquela construção
iluminada girando lentamente a distância parecia irreal, como se criada por sua imaginação.
Havia quatro grandes esferas nos vértices, ligadas entre si por seis corredores de transporte
lineares. As esferas tinham exatamente o mesmo tamanho, e as seis longas linhas com que se
comunicavam umas às outras eram do mesmo comprimento. Naquela distância, todas as luzes
dentro do Nodo transparente combinavam-se em um contínuo, fazendo com que tudo aquilo
parecesse uma grande tocha tetraédrica na escuridão espacial.
— Que beleza! — disse Nicole, incapaz de encontrar outra palavra para expressar seu
assombro.
— Você devia ver isso do terraço de observação do Grande Hotel — disse o

dr. Azul. — É deslumbrante. Dá para ver as várias luzes dentro das esferas, e até mesmo
seguir os veículos que passam zunindo para a frente e para trás ao longo dos corredores de
transporte... Muitos residentes do Grande Hotel ficam no terraço durante horas, tentando
adivinhar quais são as atividades representadas pelo movimento das luzes internas.
Nicole sentiu o braço arrepiar-se quando olhou para Nodo em silêncio. Ouviu a voz distante
de Francesca Sabatini, e o primeiro poema que aprendera no colégio.

"Tigre! Tigre! que brilhas


Nas florestas da noite,
Que mão ou olho imortal
Terá criado tua temível simetria?"

Aquele que fez o Cordeiro te fez?, refletiu Nicole ao ver o tetraedro de luz girando. E
lembrou-se de uma conversa no fim da noite com Michael O'Toole, quando estavam em Nodo,
perto de Sírius.
— Devemos liberar Deus depois dessa experiência — dissera ele. — E acabar com nossas
limitações homocêntricas sobre Ele... O Deus que criou os arquitetos de Nodo deve divertir-
se com nossas patéticas tentativas de defini-Lo em termos que nós humanos possamos
compreender imediatamente.
Nicole ficou fascinada com Nodo. Mesmo a distância, girando lentamente, os diferentes
aspectos apresentados pelo tetraedro hipnotizavam. Enquanto observava, o veículo tomou uma
posição em que um dos quatro triângulos eqüiláteros que formavam as faces vazias de Nodo
ficou perpendicular à sua rota de vôo. Nodo pareceu inteiramente diferente, como se não
tivesse profundidade. O quarto vértice, que estava na realidade a uns trinta quilômetros para
além do foguete, do lado oposto a Nicole, parecia ser um elo de luz no centro do triângulo à
sua frente.
Quando o foguete mudou abruptamente de direção, não se pôde mais ver Nodo. Mas, a
distância, Nicole identificou uma estrela solitária de luz amarela.
— É Tau Ceti — disse a Águia —, uma estrela muito parecida com o seu Sol.
— E por que Nodo está aqui, nas proximidades da Tau Ceti? — perguntou Nicole.
— É o melhor posicionamento temporário para dar apoio às nossas atividades de coleta de
dados nesta parte da galáxia — respondeu a Águia.
Nicole deu uma cutucada no dr. Azul.
— Os seus engenheiros às vezes falam em cores coisas sem sentido? — perguntou com um
sorriso. — Nosso anfitrião acaba de dar uma resposta sem sentido.
— Somos mais humildes, como espécie, do que vocês — respondeu a octoaranha. —
Provavelmente devido ao nosso relacionamento com os precursores. Nós não fingimos que
podemos compreender tudo.

— Falamos muito pouco sobre a sua espécie desde que acordei — falou Nicole, como que se
desculpando por sentir-se de repente autocentrada. — Mas lembro do senhor me dizendo que
seu antigo Chefe Otimizador, sua equipe e todos os que levaram adiante a guerra tinham sido
exterminados de uma forma ordenada. A nova liderança está se saindo bem?

— Mais ou menos — respondeu o dr. Azul —, considerando a dificuldade da nossa situação


de vida. Jamie está trabalhando nos escalões mais baixos da nova equipe, e está sempre muito
ocupado. Ainda não conseguimos chegar a um equilíbrio na nossa colônia, porque há um
constante atrito do lado de fora.
— Em grande parte por causa dos humanos a bordo — falou a Águia.
— Nós não discutimos esse assunto ainda, Nicole, mas agora seria uma boa hora... Estamos
surpresos com a dificuldade que os humanos têm de se adaptarem a viver com outras espécies.
Só muito poucos aceitam a idéia de que outras espécies podem ser tão importantes e capazes
como eles.
— Eu lhe disse isso logo depois de nos conhecermos, muitos anos atrás — comentou Nicole.
— Expliquei que, por inúmeras razões históricas e sociais, os humanos respondem a novas
idéias e conceitos de várias formas diferentes.
— Sei disso, mas a experiência que tivemos com você e sua família nos indicava o contrário.
Até todos os sobreviventes serem despertados, achávamos que o que tinha acontecido no
Novo Éden — os humanos agressivos tomando conta do poder — era uma anomalia explicada
pela composição específica dos colonos. Mas agora, depois de observar durante um ano as
interações no Grande Hotel, concluímos que tínhamos uma típica amostragem de humanos
dentro de Rama.
— Está me parecendo que vou enfrentar uma situação desagradável — disse Nicole. — Há
mais coisas que devo saber antes de chegar?
— Creio que não — falou a Águia. — Agora está tudo sob controle. Estou certo de que seus
colegas lhe contarão os detalhes mais importantes de suas experiências... Além do mais, a
situação atual é apenas temporária, e essa fase está quase terminando.
— De início — contou o dr. Azul —, todos os sobreviventes de Rama espalharam-se pela
Estrela do Mar. Em cada raio havia humanos, octoaranhas e alguns dos nossos animais de
apoio que tiveram permissão de sobreviver graças ao importante papel que desempenham na
estrutura social de vocês. Tudo isso foi mudado há alguns meses, basicamente por causa da
contínua hostilidade e agressividade dos humanos... Agora, as moradias de cada espécie
concentram-se numa única região...
— Segregação — disse Nicole com tristeza. — É uma das características que definem a minha
espécie.
— A interação entre espécies diferentes agora se dá apenas na lanchonete e em outros lugares
públicos no centro da Estrela do Mar — disse a Águia. — Porém, mais da metade dos
humanos só sai do seu raio para comer, e mesmo nessas ocasiões evita a interação... Do nosso
ponto de vista, os seres humanos são incrivelmente xenófobos. Não há, em nosso banco de
dados, muitos exemplos de viajantes espaciais tão retrógrados socialmente quanto os da sua
espécie.

O foguete mudou novamente de direção, e mais uma vez apareceu o magnífico tetraedro. Eles
estavam muito perto agora. Muitas luzes individuais podiam ser vistas, tanto dentro das
esferas quanto nas longas linhas de transporte que as ligavam. Nicole olhou toda aquela beleza
à sua frente e deu um suspiro. A conversa com o dr. Azul e a Águia a tinha deprimido. Talvez
Richard tivesse razão, disse para si mesma, talvez a humanidade não possa ser mudada, a
não ser que toda a sua memória seja apagada, e comecemos de novo, em um outro
ambiente, com um sistema operacional mais avançado.

Nicole foi ficando nervosa quando o foguete se aproximou da Estrela do Mar. Disse a si
própria que não devia se preocupar com bobagens, mas mesmo assim ficou aflita com a sua
aparência. Olhou-se no espelho quando retocou a maquiagem e não conseguiu diminuir sua
ansiedade. Estou velha. As crianças vão me achar horrível, pensou.
A Estrela do Mar não era tão grande quanto Rama, e Nicole logo compreendeu por que lá
dentro estava tão lotado. A Águia explicara que a viagem para Nodo tinha sido um plano de
contingência, e que Rama chegara lá, conseqüentemente, vários anos antes do programado.
Aquela nave espacial específica, obsoleta, que não passara pelo processo de reciclagem, fora
transformada num hotel temporário para abrigar os ocupantes de Rama até poderem ser
transferidos para outro lugar.
— Demos ordens estritas — disse a Águia — para que sua chegada seja a mais calma
possível. Não queremos que você se esforce mais que o necessário. O Grande Bloco e seu
exército limparam os corredores e as áreas comuns que vão da estação do foguete até seu
quarto.
— Então vocês não vão entrar comigo? — perguntou Nicole para a Águia.
— Não, tenho muito que fazer em Nodo — respondeu a Águia.
— Vou acompanhá-la pelo terraço de observação, até entrar no raio dos humanos — disse o
dr. Azul. — Depois você fica por conta própria. Por sorte, sua casa não é longe da entrada do
raio.
A Águia permaneceu no foguete, enquanto Nicole e o dr. Azul desembarcavam. O homem-
pássaro alienígena deu adeus para os dois quando eles entraram na câmara intermediária. Um
instante depois, quando passaram por uma grande sala do outro lado da câmara, Nicole e o dr.
Azul foram saudados pelo robô conhecido como Grande Bloco.
— Seja bem-vinda, Nicole des Jardins Wakefield — disse o robô gigante. — Estamos
contentes por você ter finalmente chegado... Por favor, coloque sua roupa espacial que está no
banco à sua direita.
O Grande Bloco, com pouco menos de três metros de altura, quase dois metros de largura,
construído com blocos retangulares semelhantes àqueles com os quais as crianças humanas
brincam, era exatamente igual ao robô que supervisionara os testes de engenharia aos quais
Nicole e sua família tinham sido submetidos em Nodo, perto de Sírius, há muitos anos, antes
de voltarem para o sistema solar. O robô foi flutuando até Nicole e a octoaranha, menor que
ela.
— Embora eu esteja certo de que vocês não vão causar nenhum problema — disse o Grande
Bloco com sua voz mecânica —, quero lembrar-lhes que todas as ordens dadas por mim ou
por um dos robôs menores devem ser seguidas sem hesitação. É nosso propósito manter a
ordem nesta espaçonave... Agora, por favor, sigam-me.
O Grande Bloco virou-se, girando nas juntas do meio do seu corpo, e rodou para a frente no
seu único pé cilíndrico.
— Esta sala grande é chamada de terraço de observação — disse o robô.
— Em geral é a mais popular de nossas salas comunitárias. Nós a esvaziamos esta noite para
que ficasse mais fácil você chegar à sua moradia.
O dr. Azul e Nicole pararam um instante diante de uma imensa janela em frente a Nodo. A
vista era realmente espetacular, mas Nicole não conseguia se concentrar na beleza e na ordem
da soberba arquitetura extraterrestre. Ela estava ansiosa para ver sua família e seus amigos.
O Grande Bloco permaneceu no terraço de observação, enquanto Nicole e sua companheira
octoaranha andavam ao longo do amplo corredor que rodeava a nave. O dr. Azul explicou a
Nicole como localizar e identificar os lugares onde os bondinhos paravam. A octoaranha
também lhe informou que os humanos estavam no terceiro raio, que se estendia dos dois lados
da estação do foguete, e as octoaranhas nos dois raios seguintes, encaminhando-se para a
direita da estação.
— O quarto e o quinto raios — explicou ele em cores — são projetados de forma diferente.
Todas as outras criaturas vivem lá, e também os humanos e octoaranhas que estão sob
vigilância.
— Então Galileu está numa espécie de prisão? — perguntou Nicole.
— Não é bem isso — respondeu o dr. Azul. — Só que há um número muito maior de pequenos
robôs de bloco naquela parte da Estrela do Mar.
Eles desceram juntos do bonde, depois de percorrerem uma parte da Estrela do Mar. Quando
chegaram à entrada do raio dos humanos, o dr. Azul segurou o monitor na frente de Nicole e
leu as cores da tela. Baseado nos dados iniciais, a octoaranha usou os cílios debaixo dos seus
tentáculos para solicitar mais informações.
— Alguma coisa errada? — perguntou Nicole.
— Você teve umas palpitações nesta última hora — foi a resposta. — Só queria checar a
amplitude e a freqüência dessas irregularidades.
— Estou muito excitada — comentou Nicole. — É normal nos humanos ter palpitações
quando...
— Eu sei — falou o dr. Azul —, mas a Águia me recomendou muita cautela. — Não saíram
cores de sua cabeça enquanto ele examinava os dados da tela. — Acho que está tudo bem —
disse finalmente —, mas se você sentir uma mínima dor no peito, ou alguma falta de ar, aperte
logo o botão de emergência do seu quarto.
Nicole deu um grande abraço no dr. Azul.
— Muito obrigada. Você foi maravilhoso — disse ela.
— Foi um prazer — falou o dr. Azul. — Espero que tudo corra bem... Seu quarto é o de
número quarenta e um; descendo o corredor, é mais ou menos a vigésima porta à esquerda. O
bonde pára a cada cinco quartos.
Nicole respirou fundo, virou-se e viu que o bonde menor esperava por ela. Foi até lá,
deslizando os pés no chão, entrou e deu adeus ao dr. Azul. Em um ou dois minutos, estava
diante de uma porta comum, com o número quarenta e um pintado.
Bateu na porta, que se abriu imediatamente. Cinco rostos sorridentes a saudaram.
— Bem-vinda ao Grande Hotel — disse Max com um grande sorriso e os braços abertos. —
Entre para dar um abração neste fazendeiro de Arkansas.
Nicole sentiu uma mão na sua assim que entrou no quarto.
— Alô, mãe — disse Ellie.
Nicole virou-se e olhou para sua filha caçula. Suas têmporas estavam grisalhas, mas seus
olhos estavam mais claros e brilhantes do que nunca.
— Alô, Ellie — disse Nicole, as lágrimas caindo. Aquelas lágrimas não seriam as últimas que
derramaria durante as várias horas de reunião.

O quarto deles era quadrado, com aproximadamente sete metros de lado. Na parede dos
fundos ficava a porta do banheiro, com pia, chuveiro e vaso sanitário. Ao lado do banheiro
havia um grande closet aberto, para todas as roupas e pertences. Na hora de dormir, eles
espalhavam colchonetes no chão, que eram dobrados no dia seguinte.
Na primeira noite, Nicole dormiu entre Ellie e Nikki; Max, Eponine e Marius dormiram do
outro lado do quarto, onde ficavam a mesa e as seis cadeiras, únicos móveis existentes.
Nicole estava tão exausta que adormeceu imediatamente, antes que as luzes se apagassem e
todos tivessem terminado de ajeitar os colchões. Depois de um sono pesado de cinco horas,
Nicole acordou de repente, sem saber onde estava.
Deitada no escuro, Nicole ficou pensando nos acontecimentos da noite anterior. Durante a
reunião, ela ficara tão tomada pela emoção que não teve tempo de estudar suas reações ao que
estava vendo e ouvindo. Logo depois de sua chegada, Nikki foi buscar os outros no quarto ao
lado. Nas duas horas seguintes havia onze pessoas reunidas ali, pelo menos três a quatro
falando ao mesmo tempo. Nicole conversou ligeiramente com cada uma delas, mas não
conseguiu discutir nada de mais profundo com ninguém.
Os quatro jovens — Kepler, Marius, Nikki e Maria — foram muito arredios. Maria, com seus
lindos olhos azuis contrastando com a pele cor de cobre e os cabelos pretos, tinha agradecido
gentilmente a Nicole por ter salvo sua vida, e disse a ela que não se lembrava de nada do que
acontecera antes de dormir. Nikki ficou nervosa no tête-à-tête com sua avó. Nicole percebeu
sinais de medo no olhar dela, mas Ellie disse mais tarde que provavelmente o que ela sentia
era respeito por aquela avó sobre quem contavam tantas histórias e que certamente a
considerava uma verdadeira lenda viva.
Os dois rapazes foram gentis, mas bastante reservados. A certa altura, Nicole notou que
Kepler olhava para ela com grande intensidade, e lembrou-se de que era a primeira velha que
eles viam. Os rapazes, em especial, têm dificuldade com velhas encarquilhadas. Isso corta a
fantasia deles sobre os membros do sexo oposto, pensou ela.
Benjy deu as boas-vindas a Nicole com um grande abraço. Levantou-a do chão com seus
braços fortes, girou-a no ar em círculos e gritou de alegria: "Mamãe! Ma-mãe!" Ele parecia
muito bem, mas para sua surpresa estava ficando um pouco careca e parecia definitivamente
mais velho. Mais tarde, ela disse para si mesma que não devia ter se surpreendido, pois Benjy
já estava perto dos quarenta anos.
Patrick e Ellie a receberam calorosamente. Ellie parecia cansada, mas explicou que seu dia
tinha sido muito trabalhoso. Estava fazendo um trabalho no Grande Hotel para estimular a
atividade social entre as espécies.
— É o mínimo que posso fazer — disse ela —, pois sei falar a língua das octoaranhas...
Espero que você me dê uma mão assim que estiver mais forte.
Patrick contou a Nicole que estava preocupado com Nai.
— Essa situação do Galileu está acabando com ela. Nai está furiosa porque os cabeças de
bloco, como são chamados, retiraram Galileu das suas acomodações normais sem muita
explicação e sem fazer nenhum processo ou coisa semelhante. E também está irritada por não
poder passar mais que duas horas por dia com ele... Tenho certeza de que vai pedir ajuda a
você.
Nai estava mudada. Seus olhos não denotavam mais aquele brilho e suavidade, e suas
observações eram negativas.
— Estamos vivendo aqui o pior tipo de estado policial. Bem pior do que no tempo de
Nakamura. Depois que você se organizar, tenho muitas coisas para lhe contar — disse ela.
Max Puckett e sua adorável francesinha Eponine tinham envelhecido como todos os demais,
mas o amor que sentiam um pelo outro e pelo filho Marius os sustentava dia a dia. Eponine
deu de ombros quando Nicole perguntou se aquela vida amontoada não a incomodava.
— Não muito — respondeu ela. — Eu vivi num orfanato em Limoges quando era criança...
Além do mais, estou contente por estar viva e ter Max e Marius. Durante anos, achei que não
viveria o suficiente para ver meus cabelos embranquecerem.
Max continuava aquele mesmo ser irrefreável. Seu cabelo também estava grisalho e ele
andava com menos segurança, mas dava para perceber que apreciava a vida.
— Tem um sujeito que eu vejo regularmente na sala de fumo que é um grande admirador seu...
Ele escapou da peste, mas a mulher dele não... — disse Max com seu riso irônico. — Eu
queria que vocês dois se encontrassem assim que você tiver algum tempo livre... Ele é um
pouco mais moço, mas acho que isso não faz nenhuma diferença...
Nicole perguntou a Max se havia problemas entre os humanos e as octoaranhas.
— Embora a guerra tenha ocorrido há uns quinze ou dezesseis anos, como você sabe —
respondeu ele —, os humanos ainda guardam lembranças muito vividas daquele tempo. Todos
aqui perderam alguém, um amigo, um parente ou um vizinho, naquela peste. E eles não
conseguem se esquecer de que a peste foi causada pelas octoaranhas.
— Em reação à agressão dos exércitos dos humanos — disse Nicole.
— Mas a maioria não vê as coisas assim. Talvez eles acreditem na propaganda de Nakamura e
não na história oficial da guerra apresentada pela Águia logo depois que fomos trazidos para
cá... A verdade é que muitos humanos detestam e temem as octoaranhas. Apenas cerca de vinte
por cento das pessoas tentam aproximar-se socialmente, apesar dos esforços de Ellie, ou
aprender alguma coisa sobre elas. A maioria fica no seu raio... Infelizmente, as acomodações
superlotadas não ajudam a aliviar esse problema.
Nicole rolou na cama. Sua filha Ellie dormia virada para o seu lado, com os olhos contraídos.
Ela está sonhando, pensou Nicole. Espero que não seja com Robert... E pensou de novo no
encontro com sua família e seus amigos... Acho que a Águia sabia o que estava fazendo
quando me manteve viva. Mesmo que não haja nada específico para eu fazer... Enquanto
não me tomar uma inválida ou uma carga, posso ser útil aqui...
— Essa vai ser sua primeira grande experiência no Grande Hotel — disse Max para Nicole.
— Toda vez que vou à lanchonete me lembro daquele Dia da Fartura na Cidade de
Esmeralda... Aquelas criaturas estranhas que vieram com as octoaranhas podem ser
fascinantes, mas é muito melhor quando elas não estão por perto.
— Você não pode esperar até chegar o nosso horário? — perguntou Marius. — Os iguanas
assustam Nikki. Eles nos olham com aqueles olhos amarelos e fazem um ruído repulsivo
quando estão comendo.
— Filho — disse Max —, se você e Nikki quiserem, podem esperar com os outros até a hora
do almoço em separado. Nicole quer comer com todos os residentes. É uma questão de
princípio para ela... Sua mãe e eu vamos acompanhá-la para ela aprender a rotina da
lanchonete.
— Não se preocupe comigo — falou Nicole. — Estou certa de que Patrick ou Ellie...
— Bobagem — interrompeu Max. — Eponine e eu teremos o maior prazer em acompanhar
você... Além do mais, Patrick saiu com Nai para ver Galileu, Ellie está na sala de recreação e
Benjy está lendo com Kepler e Maria.
— Obrigada pela sua compreensão, Max — falou Nicole. — É importante para mim fazer a
coisa certa, especialmente no começo... A Águia e o dr. Azul não me deram detalhes dos
problemas...
— Não precisa explicar. Na verdade, depois que você foi dormir ontem à noite, eu disse para
a francesinha que tinha certeza de que você ia querer se misturar com todos — disse ele,
dando uma risada. — Não se esqueça de que nós a conhecemos muito bem.
Eponine chegou e eles foram até o átrio, que estava quase vazio. Algumas pessoas andavam no
corredor à esquerda, longe do centro da Estrela do Mar, e um homem e uma mulher estavam
juntos na entrada do raio.
Os três esperaram uns três minutos pelo transporte. Quando estavam perto da última parada,
Max chegou perto de Nicole e disse:
— Aquelas duas pessoas na entrada do raio não estavam só passando o tempo... São grandes
ativistas do Conselho... Muito opinativos e insistentes. Nicole pegou no braço de Max ao
desembarcarem.
— O que eles querem? — perguntou baixinho, quando viu o casal aproximar-se.
— Não sei — respondeu Max —, mas logo vamos saber.
— Boa tarde, Max... Alô, Eponine — disse o homem, de seus quarenta anos. Olhou para
Nicole e deu um sorriso de político. — A senhora deve ser Nicole Wakefield — disse,
aprontando-se para um aperto de mão. — Nós ouvimos falar tanto da senhora... Bem-vinda...
Bem-vinda... Eu sou Stephen Kowalski.
— E eu, Renée du Pont — disse a mulher, estendendo a mão para Nicole.
Depois de trocar algumas amabilidades, o sr. Kowalski perguntou a Max o que eles estavam
fazendo ali.
— Vamos levar a sra. Wakefield para almoçar — respondeu Max simplesmente.
— É o horário comunitário — comentou o homem com um sorriso. — Se esperarem uns
quarenta e cinco minutos, Renée e eu iremos com vocês... Nós fazemos parte do Conselho,
como você sabe, e gostaríamos muito de conversar com a sra. Wakefield sobre nossas
atividades...
— Obrigado pela sugestão, mas estamos com fome. Queremos comer logo — respondeu Max.
O sr. Kowalski franziu as sobrancelhas.
— Eu não faria isso se fosse você, Max. Há muita tensão por aí agora... Depois daquele
incidente de ontem na piscina, o Conselho votou por unanimidade o boicote a todas as
atividades coletivas nos próximos dois dias... Emily ficou especialmente enraivecida porque o
Grande Bloco mandou prender Garland e não tomou qualquer iniciativa contra a octoaranha.
Esta é a quarta vez consecutiva que os cabeças de bloco vão contra nós.
— Essa não, Stephen — disse Max. — Ouvi essa história ontem na hora do jantar... Garland
ficou na piscina quinze minutos depois do nosso horário especial... Foi ele quem investiu
contra a octoaranha.
— Foi uma provocação deliberada — disse Renée du Pont. — Havia só três octoaranhas na
piscina... Não era preciso que uma delas entrasse na faixa em que Garland estava nadando.
— Além do mais — acrescentou Stephen —, como foi discutido no Conselho na noite
passada, o que nos preocupa não são os detalhes desse incidente específico. É preciso que os
cabeças de bloco e as octoaranhas saibam que estamos unidos como espécie... O Conselho vai
convocar uma sessão especial para hoje à noite, a fim de fazer uma lista de agravos...
Max estava ficando irritado.
— Obrigado pela informação, Stephen — disse ele bruscamente. — Agora nos deixe passar,
porque queremos almoçar.
— Você está cometendo um erro — disse o sr. Kowalski. — Será o único humano na
lanchonete... E vamos relatar essa conversa na reunião do Conselho hoje à noite.

— Vá em frente — falou Max.

Max, Eponine e Nicole entraram no corredor principal que formava um anel em volta do
centro da Estrela do Mar.
— O que é o Conselho? — perguntou Nicole.
— Um grupo que se auto-elegeu para representar todos os humanos — respondeu Max. — No
início eles eram apenas inconvenientes, mas nos últimos meses têm começado a exercer algum
poder... Chegaram a recrutar a pobre Nai para sua organização em troca de solucionarem o
problema de Galileu.
O grande bonde parou uns vinte metros à direita e dois iguanas desembarcaram. Dois robôs-
blocos que estavam parados discretamente de um lado atravessaram o corredor entre os
humanos e os estranhos animais de dentes ameaçadores. Quando os iguanas passaram, Nicole
lembrou-se da cerimônia do Dia da Fartura, quando Nikki foi atacada.
— Por que os iguanas andam por ali? — perguntou Nicole. — Eu pensava que eles fossem
muito agressivos...
— O Grande Bloco e a Águia explicaram em assembléias para os humanos, em duas ocasiões
distintas, que os iguanas são essenciais para a produção da planta barrican, sem a qual as
octoaranhas entram em parafuso... Eu não segui todos os detalhes da explicação biológica,
mas lembro que os ovos frescos do iguana são um elo vital no processo... A Águia enfatizou
várias vezes que só pouquíssimos iguanas haviam sido admitidos aqui no Grande Hotel.
Os três estavam perto da entrada da lanchonete.
— Os iguanas causaram muitos problemas? — perguntou Nicole.
— Não muitos — respondeu Max. — Eles podem ser perigosos, como você sabe, mas, se
deixarmos de lado as besteiras que o Conselho conta, chegamos à conclusão de que muito
poucas vezes os iguanas atacaram sem serem provocados... Em geral, as brigas são começadas
pelos humanos... Nosso amigo Galileu matou dois iguanas uma noite na lanchonete durante
uma de suas crises de violência.
Max notou a reação de Nicole ao seu comentário.
— Não quero que isso pareça fofoca de colégio —- continuou Max —, mas esse caso do
Galileu realmente destruiu a família... Eu prometi a Eponine que deixaria você falar com Nai
sobre isso primeiro.
Os robôs-blocos menores eram construídos no mesmo modelo do Grande Bloco. Uns doze
serviam na lanchonete, e mais uns seis a oito ficavam de prontidão na área de refeições.
Quando Nicole e seus amigos entraram, umas cinco octoaranhas, inclusive duas repletas
gigantes, e umas oitenta midgets, que comiam em um canto do chão, já estavam na lanchonete.
Algumas viraram-se para ver Nicole, Max e Eponine passando pela fila. Uns doze iguanas
sentados perto da fila de servir pararam de comer e ficaram espreitando os humanos.
Nicole ficou surpresa com a grande variedade de alimentos. Escolheu um pouco de peixe e
batatas, umas frutas das octoaranhas e o mel com sabor de laranja para passar no pão.
— De onde vêm todos esses alimentos frescos? — perguntou, quando se sentaram à mesa
desocupada.

Max apontou.

— Há um segundo andar na Estrela do Mar. Toda essa comida é plantada lá... Nós comemos
muito bem, embora o Conselho tenha reclamado da falta de carne.
Nicole deu umas colheradas na comida.
— Acho que deveria lhe dizer — falou Max debruçando-se sobre a mesa — que duas
octoaranhas estão vindo na nossa direção.
Nicole virou-se e viu as octoaranhas aproximando-se. Com o canto dos olhos viu também o
Grande Bloco correndo para a mesa.
— Alô, Nicole — disse uma da octoaranhas em cores. — Eu era assistente do dr. Azul no
hospital da Cidade de Esmeralda... Quero lhe dar as boas-vindas e agradecer a ajuda que você
nos deu...
Nicole tentou reconhecer a octoaranha.
— Desculpe — disse, num tom amigável —, mas não estou conseguindo localizar você...
— Você me chamava de Leitosa — disse a octoaranha —, porque naquela época eu estava me
recuperando de uma operação na lente e tinha muito líquido branco...
— Ah, agora me lembrei, Leitosa — disse Nicole com um sorriso. — Nós não tivemos uma
longa discussão, um dia no almoço, sobre a velhice? Se não me engano, você teve dificuldade
em acreditar que nós humanos continuamos a viver mesmo que não sejamos mais úteis, até
morrermos por algum motivo natural...
— Isso mesmo — respondeu Leitosa. — Bem, não quero perturbar seu jantar, mas esta minha
amiga queria muito conhecer você.
— E também lhe agradecer — disse a companheira de Leitosa — por ter sido tão justa em
tudo... O dr. Azul disse que você foi um exemplo para todas nós...
Outras octoaranhas começaram a levantar-se de onde estavam e a fazer fila por trás daquelas
duas. As cores para "obrigado" eram visíveis em todas as cabeças. Nicole ficou
profundamente comovida. Por sugestão de Max, levantou-se e falou para todas as octoaranhas.
— Obrigada — disse ela — por essa calorosa acolhida. Fiquei muito contente... Espero ter
oportunidade de falar com cada uma de vocês enquanto estivermos morando aqui.
Nicole olhou à direita da fila das octoaranhas e viu Ellie e Nikki.
— Vim assim que pude — disse Ellie, aproximando-se para beijar sua mãe. — Eu devia
saber... — acrescentou com um sorriso, dando um grande abraço em Nicole. — Eu te amo,
mamãe. E senti muito a sua falta.
— Eu expliquei para o Conselho — falou Nai — que você tinha acabado de chegar e não
sabia bem o significado do boicote. Acho que eles ficaram satisfeitos.

Nai abriu a porta e Nicole seguiu-a até a lavanderia. Usando as lavadoras e secadoras do
Novo Éden como base, os alienígenas, que tinham adaptado o Grande Hotel às pressas,
haviam construído a lavanderia perto da lanchonete. Nai resolveu usar as máquinas do lado
oposto para poder ter uma conversa em particular com Nicole.

— Pedi para você vir comigo hoje — disse Nai, enquanto começava a separar as roupas —
porque quero lhe falar sobre Galileu... — disse, hesitante. — Desculpe, Nicole, mas meus
sentimentos sobre este assunto são muito fortes... Não estou certa se...
— Tudo bem, Nai — disse Nicole suavemente. — Eu compreendo... Lembre-se de que
também sou mãe...
— Estou desesperada, Nicole — continuou Nai. — Preciso da sua ajuda... Nada na minha
vida, nem mesmo a morte de Kenji, me afetou tanto quanto esta situação... Estou morrendo de
aflição por meu filho... Nem mesmo a meditação tem me dado paz.
Nai tinha dividido as roupas em três pilhas. Colocou uma delas na máquina e voltou para onde
estava Nicole.
— Olhe, eu sou a primeira a admitir que Galileu não teve um comportamento perfeito...
Depois do longo sono, quando fomos trazidos para cá, ele ficou muito lento... Não participava
das aulas que Patrick, Ellie, Eponine e eu dávamos para as crianças, e quando participava não
fazia os deveres de casa... Galileu tornou-se difícil e desagradável com todos, menos com
Maria. Ele nunca expôs seus sentimentos para mim... A única coisa de que gostava era ir para
a sala de recreação fazer exercícios de musculação... Aliás, ele tornou-se muito orgulhoso da
sua força física.
Nai fez uma pausa.
— Galileu não é uma má pessoa, Nicole — disse ela, como que se desculpando. — Ele está
apenas confuso... Ficou dormindo durante dezesseis anos e acordou aos vinte e um anos de
idade, com o corpo e os desejos de um rapaz...
Seus olhos encheram-se de lágrimas, e depois de um instante continuou, com dificuldade.
— Como podiam esperar que ele agisse de outra forma... — Nicole estendeu os braços para
consolar Nai, mas ela se esquivou. — Eu tentei, mas não consegui ajudar meu filho. Não sei o
que fazer... e estou com medo de que seja tarde demais.
Nicole lembrou-se das suas noites de insônia no Novo Éden, quando vivia chorando por causa
de Katie.
— Eu compreendo, Nai. Compreendo mesmo.
— Uma vez, só uma vez — continuou Nai —, percebi uma fresta naquele exterior tão frio do
qual Galileu tanto se orgulha... Foi no meio da noite, depois do problema com Maria, quando
ele voltou da sua sessão com o Grande Bloco. Estávamos juntos no corredor, só nós dois, e
ele começou a chorar e a bater na parede... "Eu não queria machucar Maria, mãe; acredite em
mim", ele gritava, "eu amo a Maria... Só que não consegui me controlar..."
— O que aconteceu com Galileu e Maria? — perguntou Nicole quando Nai parou de falar por
um instante. — Não ouvi nada sobre isso.
— Oh — disse Nai surpresa —, eu estava certa de que alguém já tinha contado esse episódio
para você. Max disse um dia que Galileu tentou estuprar Maria, e que só não conseguiu porque
Benjy voltou para o quarto e arrastou-o para fora... Mais tarde, Max admitiu que exagerou
quando usou a palavra estuprar, mas que Galileu tinha definitivamente saído da linha... Meu
filho disse que Maria o tinha encorajado, pelo menos no início, e que eles estavam no chão se
beijando... Segundo Galileu, Maria estava no maior entusiasmo até a hora em que ele começou
a tirar suas calcinhas... Foi aí que começou a briga...
Nai tentou acalmar-se.
Nai sacudiu a cabeça.
— Agora me diga, Nicole, como é possível uma menina de dezesseis anos que só passou dois
anos da sua vida acordada ser assim tão sofisticada? Acho que Max e Eponine andaram lhe
dizendo como ela deveria agir. Maria quis me humilhar e fazer Galileu sofrer o máximo
possível. E conseguiu.
— Sei que não parece provável — falou Nicole pela primeira vez depois de longo tempo —,
mas conheci gente que sabe desde cedo, intuitivamente, lidar com qualquer tipo de situação.
Talvez Maria seja assim.
Nai ignorou seu comentário.
— O encontro correu bem, Galileu foi cooperativo, e Maria aceitou as desculpas que ele tinha
mandado por escrito. Nas semanas seguintes, ela passou a incluir Galileu nas atividades dos
jovens... Mas ele continuou como um estranho no grupo, dava para notar. E acho que ele
também notou isso. Então um dia, quando os cinco estavam sentados na lanchonete, dois
iguanas sentaram-se do outro lado da mesa. Nós tínhamos comido mais cedo e já estávamos
em casa. Segundo Kepler, os iguanas agiram de propósito de forma repulsiva. Baixaram a
cabeça na tigela, chuparam ruidosamente aqueles vermes nojentos e depois ficaram olhando
para as meninas, especialmente para Maria, com os olhos amarelos em forma de contas. Nikki
comentou que tinha perdido a fome, e Maria concordou com ela. De repente, Galileu levantou-
se, deu uns passos na direção dos iguanas e tentou enxotá-los de lá, mas elas não se mexeram.
Ele deu mais um passo e um deles pulou-lhe em cima. Galileu sacudiu-a com toda a sua força
e torceu-lhe o pescoço. Então a outra atacou, enfiando seus dentes afiados no braço dele.
Quando os cabeças de bloco chegaram para apartar a briga, Galileu tinha matado o iguana, de
tanto bater com ele no tampo da mesa.
Nai parecia surpreendentemente calma quando terminou a história.
— Eles levaram Galileu, e três horas depois o Grande Bloco veio ao nosso quarto informar
que meu filho ficaria detido em outra parte da nave espacial. Quando perguntei por quê, o
Grande bloco me deu a mesma resposta que me dá até hoje: "Nós concluímos que o
comportamento do seu filho não é aceitável."
Novamente os sininhos tocaram, mostrando que o ciclo de secagem estava completo. Nicole
ajudou Nai a dobrar as roupas na mesa comprida.
— Só posso ver Galileu duas horas por dia — disse Nai. — Embora ele seja orgulhoso
demais para se queixar, sei que está sofrendo... O Conselho incluiu o nome do meu filho na
lista dos cinco humanos retidos sem justificativa, mas não sei se os cabeças de bloco têm
levado a sério essas queixas.
Nai parou de dobrar as roupas e pôs a mão no braço de Nicole.
— É por isso que estou pedindo sua ajuda — disse ela. — Na hierarquia alienígena, a Águia
está acima do Grande Bloco, e é óbvio que ela presta atenção ao que você diz... Será que você
conversaria com ela sobre Galileu?
— Assim é que está certo — disse Nicole para Ellie, tirando sua roupa do armário. — Eu
devia ter ido para o outro quarto desde o começo.
— Nós falamos sobre isso antes de você chegar, mas tanto Nai quanto Maria disseram que
Maria voltaria para o quarto ao lado para que você pudesse ficar aqui comigo e com Nikki.
— Mesmo assim... — disse Nicole, pondo as roupas na mesa e olhando para a filha. — Ellie,
estou aqui há poucos dias, mas me espanta ver como todos se absorvem nas coisas triviais do
dia-a-dia... E não estou me referindo só a Nai e seus problemas. As pessoas com quem
conversei na lanchonete, ou em outros lugares comunitários, passam grande parte do seu tempo
discutindo sobre o que realmente está acontecendo. Só duas pessoas me fizeram perguntas
sobre a Águia. E na noite passada, no terraço de observação, umas dez pessoas olhavam
abismadas para o tetraedro, mas nenhuma delas tinha interesse em saber quem o tinha
construído e com qual finalidade.
Ellie riu.
— Essas pessoas já estão aqui há um ano, mãe. E já fizeram todas essas perguntas há muito
tempo, durante muitas semanas, mas nunca tiveram uma resposta satisfatória. É próprio da
natureza humana, quando não se pode responder a uma pergunta infinita, deixá-la de lado até
dispor de novas informações.
Ellie pegou as coisas da mãe e disse:
— Agora está na hora de você fazer sua sesta. Todos estão avisados para não entrarem no
quarto nas próximas duas horas. Por favor, mãe, aproveite para descansar um pouco... Quando
o dr. Azul saiu na noite passada, me disse que seu coração está mostrando sinal de fadiga,
apesar de todas as suas sondas complementares.
— O sr. Kowalski certamente não ficou muito contente com a presença de uma octoaranha no
nosso raio — comentou Nicole.
— Eu já expliquei a ele, e o Grande Bloco também explicou. Não se preocupe com isso.
— Obrigada, Ellie — disse Nicole, beijando o rosto da filha.

— Você está pronta, mãe? — perguntou Ellie, entrando no quarto.


— Creio que sim — respondeu Nicole. — Mas estou meio sem jeito. Fora aquele jogo de
ontem com você, Max e Eponine, eu não jogo bridge há anos.
Ellie sorriu.
— Não importa se você joga bem ou não, mãe. Já falamos sobre isso na noite passada.

Max e Eponine estavam esperando na parada do transporte.

— Hoje vai ser muito interessante — disse Max depois de cumprimentar Nicole. — Vamos
ver quanta gente vai aparecer.
O Conselho votara na noite anterior por mais três dias de boicote. Embora o Grande Bloco
tivesse respondido à lista de agravos e persuadido as octoaranhas, mais numerosas do que os
humanos, a cederem mais tempo nas áreas comuns para uso exclusivo dos humanos, o
Conselho ainda não estava satisfeito com muitas respostas.
Houve também uma discussão na reunião do Conselho sobre a forma de fazer vigorar o
boicote. Alguns dos participantes mais ativos queriam estabelecer punições para aqueles que
ignorassem a resolução. No final da reunião, ficou decidido que os membros do Conselho
engajariam ativamente os humanos que continuassem a desconsiderar as recomendações do
Conselho de evitar intercâmbio com todas as outras espécies.
O transporte do corredor principal estava quase vazio. No primeiro carro havia uma meia
dúzia de octoaranhas, e no segundo, umas quatro e um par de iguanas. Nicole e seus amigos
eram os únicos humanos a bordo.
— Há três semanas, antes de começar essa nova onda de tensões — disse Ellie —, tínhamos
vinte e três mesas para o nosso torneio semanal de bridge. Achei que estávamos fazendo
progresso, pois entravam uns cinco a seis humanos novos toda semana.
— Ellie — perguntou Nicole quando o transporte parou e outro par de octoaranhas entrou —,
de onde você tirou essa idéia de torneio de bridge? Quando me falou pela primeira vez em
jogar cartas com as octoaranhas, achei que você estava ficando maluca.
Ellie riu.
— No começo, logo depois que todos nós fomos trazidos para cá, eu sabia que seria preciso
algum tipo de atividade organizada para facilitar a interação entre as espécies. Ninguém iria
puxar conversa com uma octoaranha, mesmo que eu ou um cabeça de bloco servíssemos de
intérpretes... E então achei que o jogo poderia ser uma boa forma de estimular essa mistura...
Isso funcionou durante algum tempo, mas logo se tornou óbvio que os humanos não chegavam
aos pés das octoaranhas em jogo algum... Mesmo que ganhassem vantagens...
— No final do primeiro mês — interrompeu Max —, joguei xadrez com o seu amigo, dr.
Azul... Ele me deu uma vantagem de uma torre e dois peões para começar o jogo, mas mesmo
assim me deu uma surra... Foi deprimente...
— O último fiasco foi o nosso torneio de palavras cruzadas — continuou Ellie. — Todos os
prêmios foram das octoaranhas, embora as palavras usadas fossem na nossa língua! Então
percebi que tinha de inventar um jogo no qual os humanos não jogassem contra as
octoaranhas...
— O bridge foi uma solução perfeita. Cada par consiste de um humano e uma octoaranha, e
não é necessário que os parceiros conversem entre si. Preparei umas convenções nas duas
línguas, e até mesmo o humano menos brilhante pode aprender em uma sessão os números das
octoaranhas de um a sete e seus símbolos para os quatro naipes... Funcionou às mil
maravilhas...
Nicole sacudiu a cabeça.

— Ainda assim acho isso uma maluquice — disse sorrindo. — Embora eu reconheça que a
idéia é brilhante.

Havia só quatorze outras pessoas na sala de jogo do complexo de recreação na hora marcada
para o bridge começar. Ellie ajeitou as coisas fazendo dois jogos separados, um para os pares
mistos, como os chamou, e outro só para as octoaranhas.
O dr. Azul era parceiro de Nicole. Eles concordaram em fazer um leilão de cinco cartas, uma
das seis jogadas codificadas por Ellie, e sentaram-se a uma mesa perto da porta. Como as
cadeiras das octoaranhas eram mais altas que as dos humanos, Nicole e seu parceiro ficavam
sentados olho a olho. Ou melhor, olho a lente.
Nicole nunca tivera um parceiro de bridge tão excepcional. Ela aprendera a jogar quando
estudava na Universidade de Tours, encorajada pelo pai, que achava que através de atividades
extracurriculares ela faria mais amigos. Nicole também jogara bridge no Novo Éden, onde o
jogo foi alta moda no primeiro ano que se seguiu ao Assentamento. Porém, apesar de gostar
bastante de bridge, achava que era um jogo que consumia muito tempo, e que havia muitas
outras coisas mais importantes a serem feitas.
Nicole percebeu logo que o dr. Azul e as outras octoaranhas que tinham vindo com seus
parceiros humanos para o torneio duplo eram exímios jogadores de cartas. Na segunda
cartada, ele fez um contrato de "três sem trunfo" terrivelmente difícil, usando as sutilezas de
um jogador profissional.
— Muito bem — disse Nicole para seu companheiro octoaranha, depois que o dr. Azul fez o
contrato e uma vaza extra.
— É muito simples, desde que você saiba onde estão todas as cartas — disse o dr. Azul em
cores.
Era fascinante observar as octoaranhas usando o baralho. Elas retiravam as cartas com as duas
últimas juntas de um só tentáculo, com o ajuda dos cílios das extremidades, e seguravam-nas
na frente da lente com três tentáculos, um de cada lado e um terceiro no meio. Para colocar
uma carta na mesa, a octoaranha usava o tentáculo mais próximo à carta em questão,
equilibrando-a entre os cílios durante a descida.
Nicole e o dr. Azul conversavam animadamente entre as cartadas. O dr. Azul estava lhe
dizendo que o novo Chefe Otimizador ficara intrigado com a última ação do Conselho, quando
a porta da sala de jogo abriu-se e entraram três humanos, seguidos do Grande Bloco e um dos
cabeças de bloco menores.
A mulher que vinha na frente, que Nicole reconheceu ser Emily Bronson, a presidente do
Conselho, deu uma olhada pela sala e encaminhou-se para a mesa de Nicole. Estava
começando uma rodada, e a octoaranha Leitosa e sua parceira, uma bonita mulher de meia-
idade chamada Margaret, tinham ido jogar com Ellie e o dr. Azul.
— Ora, Margaret Young, estou espantada por vê-la aqui — disse Emily Bronson. — Você não
deve ter ouvido dizer que o Conselho estendeu o prazo do boicote na noite passada.
Os dois homens que tinham entrado na sala com a sra. Bronson, um dos quais era o Garland do
incidente da piscina, seguiram-na até a mesa de Nicole. Os três estavam em pé ao lado de
Margaret.
— Emily... me desculpe — disse Margaret olhando para baixo —, mas você sabe como eu
adoro bridge...
— O que está em questão agora é muito mais do que o bridge — disse a sra. Bronson.
Ellie tinha se levantado de uma mesa próxima e fez um apelo para o Grande Bloco impedir a
interrupção, mas Emily Bronson foi rápida.
— Todos vocês — disse num tom bem alto — estão sendo desleais com sua presença aqui. Se
saírem agora o Conselho não apresentará queixa contra vocês... Mas se ficarem depois de
terem sido avisados...
O Grande Bloco interveio e disse à sra. Bronson que ela e seus amigos estavam
interrompendo o jogo. Quando os três estavam saindo, mais de metade dos humanos levantou-
se para segui-la.
— Isso é um absurdo — disse Nicole de pé, com a mão apoiada na mesa e uma voz
incrivelmente clara e forte. — Sentem-se. Não se deixem levar por essa fomentadora de
ódios.
Os jogadores voltaram aos seus lugares.
— Cale a boca, sua velha — disse Emily Bronson com raiva. — Isso não lhe diz respeito.
O Grande Bloco levou-a com seus companheiros para fora da sala.
— A senhora tem alguma idéia, sra. Wakefield, do que são esses objetos?
— Sei tanto quanto você, Maria — disse Nicole. — Certamente são coisas que tinham algum
significado especial para sua mãe. Na época eu pensei que o cilindro de prata implantado na
pele de sua mãe fosse uma espécie de placa de identificação do zôo, mas como nenhum
empregado do zôo sobreviveu ao bombardeio, e como restaram muito poucos registros, não é
provável que possamos um dia confirmar a minha hipótese.
— O que é uma hipótese? — perguntou a garota.
— É uma suposição experimental, ou uma explicação do que aconteceu quando não há prova
suficiente para se chegar a respostas definitivas — respondeu Nicole. — Aliás, eu gostaria de
dizer que você se expressa muito bem.
— Obrigada, sra. Wakefield.
As duas estavam sentadas em um salão comunitário fora do terraço de observação, tomando
suco de frutas. Embora Nicole já estivesse no Grande Hotel há uma semana, era a primeira
vez que tinha oportunidade de estar a sós com a menina que ela encontrara nas ruínas do zôo
das octoaranhas, dezesseis anos antes.
— Minha mãe era mesmo bonita? — perguntou Maria.
— Era dessas pessoas que chamam a atenção — respondeu Nicole —, embora eu não pudesse
vê-la muito bem naquela luz mortiça. A pele era da mesma cor que a sua, talvez um pouco
mais clara, e sua estatura era mediana. Devia ter uns trinta e cinco anos ou pouco menos.

— E não havia sinal do meu pai? — perguntou Maria.

— Não que eu visse. É claro que naquelas circunstâncias eu não pude procurar muito... É
possível que ele estivesse em algum lugar do Domínio Alternativo, procurando ajuda. A cerca
que separava o seu abrigo tinha sido destruída no bombardeio. Quando acordamos na manhã
seguinte, receei que seu pai tivesse procurado por você, mas acabei me convencendo, pelo
que tinha visto no abrigo, que você e sua mãe estavam sozinhas.
— Então, segundo sua hipótese, meu pai já tinha morrido? — perguntou Maria num tom
tímido.
— Não necessariamente — replicou Nicole. — Eu não seria tão taxativa... Mas não parecia
que alguém pudesse manter-se vivo naquele lugar por muito tempo.
Maria deu um gole no seu suco e fez-se um silêncio temporário.
— A senhora contou na outra noite, sra. Wakefield, quando estávamos conversando com Max e
Eponine, que supunha que minha mãe, ou talvez meus pais, tivessem sido raptados muito antes
pelas octoaranhas de um lugar chamado Avalon... Não entendi muito bem o que a senhora
disse...
Nicole sorriu para Maria.
— Você é muito gentil, Maria. Mas agora faz parte da família... pode me chamar de Nicole.
Seu pensamento desviou-se para o Novo Éden, muitos e muitos anos atrás. E de repente notou
que Maria estava esperando uma resposta ao seu comentário.
— Avalon era um assentamento fora do Novo Éden — disse Nicole -—, na escura e fria
planície Central, criada originalmente pelo governo da colônia a fim de abrigar as pessoas
que tinham um vírus mortal chamado RV-41. Depois que Avalon foi construído, o ditador do
Novo Éden, chamado Nakamura, convenceu o Senado de que aquele era um lugar perfeito para
outros humanos anormais, inclusive os que protestavam contra o governo, os que eram
mentalmente retardados...
— O lugar não devia ser nada bom — comentou Maria.
Benjy viveu lá mais de um ano. Ele nunca fala sobre isso, pensou Nicole, sentindo-se
culpada por não ter passado mais tempo a sós com Benjy desde que acordara. Mas ele nunca
se queixou.
Mais uma vez, Nicole teve de esforçar-se para prestar atenção a Maria. Nós, velhos, estamos
sempre com a cabeça no ar, pois vemos e ouvimos muitas coisas que nos fazem lembrar o
passado, disse a si mesma.
— Eu já andei checando — respondeu ela. — Mas, infelizmente, todo o pessoal
administrativo de Avalon morreu na guerra... Descrevi sua mãe para várias pessoas que
passaram algum tempo em Avalon, mas ninguém se lembrou dela.
— Será que ela era uma doente mental? — perguntou Maria.
— Talvez — respondeu Nicole. — Nunca saberemos ao certo... Aliás, o seu colar é nossa
melhor pista para a identidade de sua mãe. Ela era devota da ordem da Igreja Católica criada
por São Miguel de Siena... Ellie me disse que há outros devotos dessa ordem a bordo...
Pretendo conversar com eles quando tiver tempo...
Nicole parou e virou-se para o terraço de observação, onde estava começando uma
movimentação. Alguns humanos e um grande grupo de octoaranhas apontavam para a janela e
gesticulavam. Um casal saiu em direção do corredor principal, aparentemente para buscar
outras pessoas para assistirem ao que estavam vendo.
Nicole e Maria saíram da mesa, subiram para o terraço e olharam pela grande janela. A
distância, para além do tetraedro de luzes, uma imensa espaçonave de teto chato, parecendo
um transportador, aproximava-se de Nodo. Nicole e Maria ficaram olhando, quietas, durante
vários minutos, e a nave espacial foi se tornando cada vez maior.
— O que é isso? — perguntou Maria.
— Não tenho a menor idéia — respondeu Nicole.
O terraço de observação lotou rapidamente. Não paravam de chegar mais humanos,
octoaranhas, iguanas, e até mesmo um par de aves. A multidão começava a comprimir-se
contra Nicole e Maria.
O veículo de teto chato era extremamente longo, ainda mais longo do que os corredores de
transporte que ligavam as esferas de Nodo. Dezenas de grandes bolhas transparentes
espalhavam-se por sua superfície. O transportador parou perto de um dos vértices esféricos de
Nodo e estendeu um longo tubo transparente que se encaixou perfeitamente do lado da esfera.
O terraço estava tumultuado. Todos os tipos de criaturas empurravam-se para chegar mais
perto da janela. Um par de iguanas pulou para cima contra a janela no vácuo, e logo depois
uns dez a vinte humanos fizeram o mesmo. Nicole começou a sentir claustrofobia e tentou sair
do caminho. Não havia espaço suficiente para toda aquela multidão. Nicole foi empurrada em
todas as direções e perdeu-se de Maria. Um grupo compacto empurrou-a de lado e jogou-a
contra a parede. Com o impacto, Nicole sentiu uma forte dor no quadril esquerdo. Com toda a
confusão que se seguiu, ela teria ficado muito mais machucada, não fosse a interferência do
Grande Bloco e dos cabeças de bloco que entraram no meio da multidão e restauraram a
ordem.
Nicole estava muito abalada quando o Grande Bloco chegou perto dela. A dor no quadril era
insuportável, e ela não conseguia andar.

— São coisas que vêm com a idade — disse a Águia. — Você precisa ter mais cuidado. —
Ela e Nicole estavam sozinhas no apartamento. Os outros tinham saído para tomar o café da
manhã.
— Não gosto de ser frágil — comentou Nicole. — Nem de não fazer as coisas por medo de
me machucar.
— Seu quadril vai ficar curado — falou a Águia. — Mas vai levar algum tempo. Você teve
sorte de não sofrer uma fratura, foi só uma luxação. Na sua idade, uma fratura de quadril pode
deixar a pessoa inválida para sempre.
— Obrigada pelas palavras confortadoras — disse Nicole, dando um gole no seu café. Ela
estava deitada na esteira com a cabeça ligeiramente elevada por vários travesseiros. — Mas
já basta de falar em mim... Vamos passar a outras coisas mais interessantes... Que nave chata é
aquela?

— Os outros humanos já começaram a chamá-la de transportador, um nome muito apropriado


— disse a Águia.
Houve um breve silêncio.
— Vamos — disse Nicole em tom irritado —, não brinque comigo... Estou deitada aqui,
dopada, mas ainda com dor... Será que vou ter de arrancar essa informação de você?
— Essa fase da operação acabará logo — disse o alienígena. — Alguns de vocês serão
transferidos para o transportador e os outros irão para Nodo.
— E depois, o que vai acontecer? — perguntou Nicole. — Como será decidido quem irá para
onde?
— Ainda não posso lhe dizer isso — respondeu a Águia. — Só lhe direi que você irá para
Nodo... Mas, se contar a qualquer pessoa o que acabei de lhe dizer, no futuro você nunca mais
será informada de nada antecipadamente... Queremos que a transição seja feita em ordem...
— Você sempre quer tudo em ordem... Ai! — disse ela ao trocar de posição. — E acho que
você não me deu informações muito significativas.
— Você sabe mais do que qualquer um.
— Grande coisa — disse ela zangada, tomando mais um gole de café. — A propósito, você
tem algum médico esperto em Nodo que saiba fazer uma mágica para curar esse meu
ferimento?
— Não — respondeu a Águia —, mas podemos lhe dar um quadril novo, se você quiser. Ou
um pseudoquadril, como você provavelmente diria.
Nicole sacudiu a cabeça e estremeceu quando foi colocar a xícara de café no chão e deu uma
batida no quadril.
— Ficar velha é uma merda — disse.
— Sinto muito — falou a Águia, fazendo menção de sair. — Virei visitá-la sempre que puder.
— Antes que vá embora — disse Nicole —, tenho outros assuntos... Prometi a Nai que lhe
pediria para interceder por Galileu... Ela gostaria que ele voltasse a viver com a família.
— Isso é irrelevante agora — disse a Águia ao sair. — Vocês todos sairão daqui dentro de
quatro a cinco dias... Adeus, Nicole. Não tente andar; use a cadeira de rodas que eu lhe trouxe.
Seu quadril só pode melhorar se você não jogar seu peso sobre ele.

Era bem cedo, e a maioria dos humanos ainda dormia. Nicole tinha ficado no longo corredor
durante meia hora, experimentando os controles da cadeira de rodas. Ficou surpresa ao ver
que a cadeira se movia com rapidez e era silenciosa. Ao passar pela série de salas de
conferência, descendo o corredor de um quilômetro de extensão, ficou imaginando que tipo de
tecnologia avançada estaria contida na caixa de metal lacrada debaixo da cadeira. Richard
teria adorado esta cadeira de rodas. Provavelmente tentaria desmontá-la, pensou.

Nicole passou por alguns humanos no corredor, quase todos tentando fazer sua caminhada
matutina. Ela riu para si própria quando dois deles se afastaram depressa do seu caminho.
Devo parecer muito estranha; uma velha grisalha zunindo pelo corredor numa cadeira de
rodas.
Ela deu meia-volta logo e emparelhou com um trenzinho que levava um bando de passageiros
para as áreas comuns, onde tomariam o café da manhã. Continuou a apertar o botão do
acelerador até a cadeira correr mais do que o trem. Os passageiros olharam-na atônitos
quando ela os ultrapassou, e Nicole sorriu e acenou para eles. Mas quando uma porta cem
metros à frente dela abriuse abruptamente, despejando duas mulheres no corredor, Nicole
percebeu que não era seguro andar tão depressa assim. Diminuiu a marcha, ainda rindo
consigo mesma pela emoção que sentira com a velocidade.
Quando se aproximou do apartamento, Nicole viu a Águia no final do raio, no ponto onde ele
desembocava no anel que rodeava a Estrela do Mar, e foi até lá.
— Parece que você está se divertindo — disse a Águia.
— Estou mesmo. Esta cadeira é um brinquedo fantástico. Quase me fez esquecer a dor no
quadril — disse Nicole.
— Você dormiu bem na noite passada? — perguntou a Águia.
— Muito melhor, obrigada. Dormi de lado, com o quadril elevado, como nós achamos que
seria melhor. Aliás, o remédio que você me deu realmente diminuiu a dor.
A Águia acenou na direção de um saguão do outro lado do anel.
— Vamos para lá, por favor — disse a Águia. — Eu gostaria de conversar em particular com
você.
Nicole guiou a cadeira pelo anel principal até chegar à rampa que dava no saguão. A Águia,
que andava ao seu lado, fez sinal para ela continuar. Umas doze octoaranhas estavam sentadas
no salão. A Águia e Nicole escolheram um lugar à direita, onde pudessem ficar sozinhas.
— A tarefa do transportador em Nodo está quase terminada — disse a Águia. — Dentro de
doze horas, ele vai fazer uma rápida parada perto deste veículo para pegar uns passageiros...
Eu vou anunciar depois do almoço quem será transferido para o transportador.
O alienígena virou-se e olhou diretamente para Nicole com seus intensos olhos azuis.
— Alguns humanos talvez não gostem do que eu vou anunciar... Depois que foi tomada a
decisão de dividir a sua espécie em dois grupos separados, ficou óbvio para mim que seria
impossível essa divisão agradar a todos... Gostaria que você me ajudasse a tornar esse
processo o mais suave possível.
Nicole examinou o rosto e os olhos fascinantes do seu companheiro alienígena, e achou que já
tinha visto antes aquela expressão nele. Foi lá em Nodo, quando me pediram para fazer o
vídeo, lembrou-se.
— O que você quer que eu faça? — perguntou.
— Decidimos permitir um grau de flexibilidade nesse processo. Embora todos os indivíduos
da lista de transferência para o transportador tenham de acatar nossa seleção, alguns dos que
forem selecionados para Nodo poderão solicitar que seus casos sejam reconsiderados. Como
não haverá intercâmbio entre os dois veículos, no caso de fortes ligações emocionais, por
exemplo, nós não gostaríamos de forçar...
— Você está me dizendo que essa divisão poderá separar as famílias para sempre? —
perguntou Nicole.
— Talvez — respondeu a Águia. — Em alguns casos, um marido poderá ser selecionado para
o transportador e a mulher para Nodo. Da mesma forma, haverá casos em que pais e filhos
serão separados.
— Puxa! — exclamou Nicole. — Como vocês podem separar arbitrariamente duas pessoas
que vivem juntas e esperar que elas fiquem felizes?... Você terá sorte se não houver uma
revolta depois que for anunciada essa divisão.
A Águia hesitou um instante.
— Não há nada de arbitrário no nosso processo — disse o alienígena finalmente. — Há meses
estudamos com cuidado os inúmeros dados de cada criatura que vive atualmente na Estrela do
Mar. Os registros incluem informações completas de todos os anos em Rama também... Os que
foram selecionados para o transportador não preencheram, por uma razão ou por outra, os
requisitos necessários para serem transferidos para Nodo.
— E quais são exatamente esses requisitos? — perguntou Nicole.
— Tudo o que posso dizer agora é que em Nodo haverá um ambiente de intercâmbio de
espécies... Os indivíduos que têm adaptação limitada foram selecionados para o transportador
— disse a Águia.
— Está me parecendo que um subgrupo de humanos do Grande Hotel não foi considerado
aceitável, por alguma razão...
— Se entendi bem o que você disse — interrompeu a Águia —, você está insinuando que essa
divisão separa os grupos na base do mérito. Não é bem assim. A nosso ver, quase todas as
pessoas dos dois grupos serão mais felizes a longo prazo no ambiente para o qual foram
selecionadas.
— Mesmo sem seus cônjuges ou filhos? — perguntou Nicole, franzindo as sobrancelhas. —
Às vezes fico pensando se você realmente sabe o que motiva a espécie humana. As ligações
emocionais, para usar suas palavras, em geral são essenciais para a felicidade dos humanos...
— Nós sabemos disso — falou a Águia. — Depois de revermos cada caso em que as famílias
serão separadas por essa divisão, fizemos algumas adaptações. Na nossa opinião, as
separações familiares, que não são tão numerosas quanto você está pensando, são todas em
função dos nossos dados de observação.
Nicole ficou olhando para a Águia e sacudiu a cabeça.
— Por que essa divisão nunca foi mencionada antes?... Nunca, em todas as discussões sobre a
transferência iminente, vocês fizeram qualquer alusão a essa divisão dos humanos em dois
grupos...
— Só nos decidimos por isso há pouco tempo. Lembre-se de que nossa intercessão nos
negócios de Rama levou-nos a um regime de contingência na nossa matriz de planejamento...
Depois que ficou claro que algum tipo de divisão se fazia necessário, não quisemos perturbar
o status quo...
— Que bobagem! — disse Nicole de repente. — Não acredito em nada disso. Vocês sabiam
há muito tempo o que iriam fazer... Mas não quiseram ouvir qualquer objeção...
Nicole virou a cadeira e deu as costas para seu companheiro alienígena.
— Não — continuou ela com firmeza —, não vou ser sua cúmplice numa coisa dessas... E não
gostei de você ter comprometido minha integridade não me contando a verdade antes...
Apertou o botão de aceleração e dirigiu-se para o corredor principal.
— Há alguma coisa que eu possa fazer para você mudar de idéia? — perguntou a Águia,
andando ao seu lado.
Nicole parou.
— Nesse quadro, eu não posso imaginar uma forma de ajudar vocês... Por que vocês não
explicam as diferenças entre os dois ambientes de vida e deixam que cada indivíduo de cada
espécie decida por si próprio?
— Acho que isso será impossível — disse a Águia.
— Então não conte comigo — falou Nicole, acelerando a cadeira de novo.

Nicole estava de péssimo humor quando chegou à porta do seu apartamento. Inclinou-se para a
frente e apertou os números do seu código de entrada.
— Patrick e mamãe estão procurando pela senhora — disse Kepler um instante depois. —
Eles ficaram preocupados porque não a encontraram no corredor.
Nicole passou pelo rapaz e foi para o seu quarto. Benjy saiu do banheiro com uma toalha
enrolada na cintura.
— Alô, ma-mãe — disse ele com um amplo sorriso. Porém, ao notar seu ar preocupado,
correu para perto dela. — O que houve? Você não se ma-chu-cou de novo, não é?
— Não, Benjy — respondeu Nicole. — Eu estou bem. Só estou preocupada com uma
discussão que tive com a Águia.
— Sobre o quê? — perguntou ele, segurando a mão da mãe.
— Mais tarde eu conto — falou Nicole hesitante. — Depois que você se secar e puser sua
roupa.
Benjy sorriu e beijou a mãe antes de voltar para o banheiro. A dor de estômago que Nicole
sentira enquanto conversava com a Águia tinha voltado. Oh, meu Deus. Benjy não. Espero que
a Águia não tenha tentado me dizer que vamos nos separar de Benjy. Lembrou-se do
comentário do alienígena sobre capacidades limitadas e entrou em pânico. Não agora. Por
favor, não agora. Não depois de todo esse tempo.

Nicole lembrou-se de um momento especial, muitos anos antes, quando toda a família fora
levada a Nodo pela primeira vez. Ela estava sozinha no banheiro quando Benjy entrou para
tentar saber se queriam que ele voltasse com sua família para o sistema solar, e ficou muito
aliviado ao verificar que não seria separado de sua mãe. Ele já sofreu o bastante, disse Nicole
para si mesma, lembrando-se da indicação de Benjy para Avalon quando ela estava presa no
Novo Éden. A Águia deve saber disso, se é que todos os dados foram bem estudados.

Apesar de seu esforço consciente para manter-se calma, Nicole não conseguia libertar-se do
medo e da raiva que cresciam dentro dela. Preferia ter morrido enquanto dormia, pensou
com amargura, esperando pelo pior. Não vou conseguir dizer adeus a Benjy. Ele morreria de
tristeza. E eu também.
Uma lágrima solitária desceu do olho esquerdo de Nicole e rolou pelo seu rosto.
— A senhora está bem? — perguntou Kepler, preocupado.
— Estou sim, obrigada, Kepler — respondeu ela, limpando o rosto com as costas da mão e
sorrindo. — Gente velha fica muito emotiva. Não é nada demais.
Bateram na porta e Kepler foi atender. Eram Patrick e Nai, seguidos pela Águia.
— Nós encontramos o seu amigo no corredor, mamãe — disse Patrick, dando-lhe um beijo. —
Ele disse que vocês dois tiveram uma conversa séria... Nai e eu estávamos preocupados...
A Águia foi para o lado de Nicole e disse:
— Há um outro assunto sobre o qual eu gostaria de falar. Será que dá para conversarmos mais
um pouco lá fora?
— Acho que não tenho escolha — respondeu Nicole. — Mas não vou mudar de idéia...
Um trem lotado passou por Nicole e a Águia quando saíam do apartamento.
— O que é? — perguntou ela, impaciente.
— Quero que você saiba que todas as diferentes manifestações da espécie séssil e as aves
restantes serão incluídas no grupo que será transferido para o transportador hoje à noite. Se
você tiver algum desejo, como indicou uma vez, durante uma conversa que tivemos logo
depois que você acordou, de interagir com os sésseis e de experimentar o que Richard
descreveu...
— Diga uma outra coisa antes — interrompeu Nicole, agarrando a Águia pelo braço com uma
força surpreendente. — Benjy e eu vamos nos separar com essa divisão que será anunciada
hoje à tarde?
A Águia hesitou um instante.
— Não, vocês não vão se separar — disse afinal. — Mas eu não posso dar mais detalhes
sobre isso...
Nicole deu um suspiro de alívio.
— Obrigada — falou, tentando sorrir. Fez-se um silêncio prolongado.
— Os sésseis — continuou a Águia depois de algum tempo — não poderão mais ser vistos
depois...
— Tudo bem — falou Nicole. — Muito obrigada, é uma grande idéia. Eu gostaria de prestar
meu respeito a um séssil... Depois do café da manhã, é claro...
Os robôs-blocos menores ficavam em evidência no raio que abrigava as aves e os sésseis. O
raio era dividido em várias áreas, separadas por paredes que iam do chão ao teto. Os robôs-
blocos policiavam as entradas e saídas dessas áreas, e também ficavam postados em cada uma
das paradas do trem.
As aves e os sésseis viviam por trás do raio, no último prédio separado. Um robô-bloco e
uma ave guardavam a entrada quando a Águia e Nicole chegaram. A Águia matraqueou e
guinchou em resposta a uma série de perguntas da ave. Depois que eles entraram no prédio,
foram abordados por um myrmigato, que começou a se comunicar com a Águia em explosões
sonoras de alta freqüência, saídas do pequeno orifício circular abaixo dos seus olhos ovais,
escuros e leitosos. Nicole maravilhou-se com a fidelidade da resposta da Águia. E ficou
também fascinada quando os dois outros olhos do myrmigato, presos a hastes que se elevavam
uns doze centímetros de sua testa, continuaram a girar e a inspecionar o ambiente. Quando a
Águia terminou de conversar com o myrmigato, a criatura de seis patas, que parecia uma
formiga gigante quando ficava de pé, correu pelo corredor com a velocidade e a graça de um
gato.
— Eles sabem quem você é — disse a Águia. — Estão encantados por estarem sendo
visitados.
Nicole olhou para seu companheiro.
— Como eles me conhecem? — perguntou. — Vi alguns deles nas áreas comuns, mas na
verdade nunca me aproximei...
— Seu marido é um deus para essa espécie... Nenhum deles estaria aqui hoje se não fosse ele.
Eles conhecem você de imagens gravadas em sua memória...
— Como é possível isso? Richard morreu há dezesseis anos...
— Mas o registro da estada de Richard com eles foi cuidadosamente preservado na sua
memória coletiva — respondeu a Águia. — Todo myrmigato sai do seu melão-maná com um
conhecimento significativo dos componentes-chaves da sua própria cultura e história... O
processo embrionário que ocorre dentro do melão não só fornece aumento físico para o
crescimento e desenvolvimento do ser como também passa informações básicas diretamente
para o cérebro, ou equivalente, do filhote de myrmigato.
— Você está me dizendo que essas criaturas começam sua educação antes de nascerem? E que
dentro dos melões-manás que eu costumava comer há conhecimentos armazenados e eles são
de algum modo implantados nos cérebros dos myrmigatos ainda não-nascidos?
— Exatamente, e não entendo por que você está tão surpresa. Fisicamente, essas criaturas são
muito menos complexas dos que as da sua espécie. O processo de desenvolvimento
embrionário do humano é muito mais sutil e complexo do que o deles. Os recém-nascidos
humanos chegam no mundo com uma série de atributos e capacidades físicas. Mas os bebês
dependem dos outros membros da espécie para sua sobrevivência e educação. Os myrmigatos
nascem mais sabidos, portanto mais independentes, porém têm muito menos potencial de
desenvolvimento intelectual.
Os dois ouviram um som estridente vindo de um myrmigato de mais ou menos cinqüenta
metros.

— Ele está nos chamando — disse a Águia.

Nicole acelerou sua cadeira de rodas a uma velocidade compatível com o passo da Águia.
— Richard nunca me disse que essas criaturas preservavam informações de uma geração para
outra.
— Ele não sabia. Mas conseguiu descobrir o ciclo metamórfico deles, e sabia que os
myrmigatos passavam informações para a rede ou teia neural, ou qualquer nome que se dê à
manifestação final... Mas ele nem suspeitava que os elementos mais importantes das
informações coletivas eram também armazenados nos melões-manás e passados para a
geração seguinte... Não é preciso dizer que é um mecanismo de sobrevivência muito forte.
Nicole ficou fascinada com o que a Águia estava lhe dizendo. Imagine se as crianças
humanas pudessem nascer sabendo as coisas essenciais da nossa cultura e história. Se, por
exemplo, a placenta contivesse, de forma compactada, bastante informação... Parece
impossível, mas talvez não seja. Se ao menos uma criatura puder fazer isso, então no final...
— Quantos dados são passados pelos melões-manás para os recém-nascidos da espécie
deles? — perguntou Nicole quando se aproximavam do myrmigato.
— Cerca de um milésimo de um por cento das informações presentes em um espécime maduro
como aquele em que Richard residiu. A função básica da manifestação final da espécie é
manipular, processar e compactar os dados em um pacote a ser incluído nos melões-manás... A
forma como esse processo de gerenciamento de dados funciona está sendo estudada por nós...
Aliás, a rede neural que você vai ver nos próximos minutos, continuou a Águia — era
originariamente apenas uma pequena lasca de material contendo dados críticos comprimidos
através de um brilhante algoritmo... Calculamos que naquele cilindro pequeno que Richard
levou para Nova York, há muitos anos, havia informações equivalentes à capacidade de
memória de cem cérebros de adultos humanos.
— Espantoso! — disse Nicole sacudindo a cabeça.
— E isso é só o começo — continuou a Águia. — Cada um dos quatro melões-manás que
Richard levou tinha seu próprio conjunto de dados compactados, com ligeiras diferenças,
diria eu. E todos eles se transformaram em myrmigatos... Espero que você esteja preparada
para uma aventura e tanto.
Nicole parou a cadeira de rodas.
— Por que você não me contou tudo isso antes? Talvez eu tivesse passado mais tempo...
— Duvido — interrompeu a Águia. — Sua prioridade era restabelecer suas conexões com sua
própria espécie... Acho que só agora você está preparada para isso.
— Você tem me manipulado, controlando o que eu vejo e sinto — disse Nicole sem rancor.
— Talvez — replicou a Águia.

Nicole sentiu muito medo quando finalmente chegou perto da rede neural.

A Águia e ela estavam juntas em um quarto semelhante ao do apartamento de Nicole no raio


dos humanos. Dois myrmigatos estavam sentados por trás deles, encostados na parede. A rede,
ou teia séssil, ocupava cerca de quinze por cento do quarto, no canto direito. Havia um espaço
no centro do denso e macio material branco que dava para Nicole entrar com sua cadeira de
rodas. Ela atendeu ao pedido da Águia de dobrar as mangas da blusa e levantar o vestido
acima dos joelhos.
— Imagino que ele espere que eu entre naquele espaço para enrolar seus filamentos em volta
do meu corpo — disse ela com a voz um tanto trêmula.
— Isso mesmo — falou a Águia. — E está avisado por um dos myrmigatos para soltá-la
quando você pedir... Estarei aqui o tempo todo, se é que isso lhe serve de conforto.
— Richard me disse que levou muito tempo para que houvesse uma verdadeira comunicação...
— disse ela, ainda hesitando em entrar.
— Isso agora não será problema — respondeu a Águia. — Certamente, parte das informações
armazenadas na lasca original era de dados sobre métodos que poderiam ser usados para uma
comunicação eficiente com os seres humanos.
— Tudo bem — disse Nicole nervosa, passando a mão nos cabelos. — Lá vou eu; me deseje
boa sorte.
Nicole entrou com a cadeira no espaço vazio da rede que parecia algodão e desligou o motor.
Em menos de um minuto a criatura a tinha rodeado, e ela nem conseguia ver o contorno da
Águia do outro lado do quarto. Tentou sentir-se segura. Isso não vai me machucar, disse para
si própria, quando sentiu centenas e depois milhares de fios minúsculos prendendo-se em seus
braços, pernas, pescoço e cabeça. Como esperava, os fios eram mais numerosos na cabeça.
Ela se recordou da descrição de Richard. Os filamentos individuais eram incrivelmente
finos, mas deviam ter partes muito afiadas por baixo. Só percebi que eles eram inseridos
bem dentro das camadas externas da minha pele quando tentei puxar um deles.
Nicole olhou para o monte de fios mais ou menos a um metro do seu rosto. Quando aquele
monte se aproximou dela, os outros elementos da delicada rede mudaram de posição. Nicole
sentiu um arrepio na espinha. E finalmente compreendeu que a rede que a envolvia era uma
criatura viva. Só um pouco depois é que as imagens começaram.
Nicole percebeu imediatamente que o séssil estava lendo sua memória. Imagens do início de
sua vida passaram-lhe pela cabeça em uma velocidade fantástica, nenhuma demorando o
tempo necessário para provocar emoção. Não havia ordem nas imagens: a lembrança da
infância na floresta atrás de sua casa no subúrbio parisiense de Chilly-Mazarin era seguida da
imagem de Maria rindo das histórias de Max.
Esse é o estágio de transferência de dados, pensou Nicole, lembrando-se da análise de
Richard sobre o tempo que ele passara dentro da rede neural. A criatura está copiando a
minha memória para a sua, a uma velocidade incrível. Nicole ficou imaginando o que o
séssil iria fazer com todas aquelas imagens da sua memória. De súbito, Nicole viu em sua
mente nitidamente o próprio Richard numa grande câmara que tinha um mural enorme e
incompleto na parede. Essa imagem tornou-se um filme de cinema apresentado na câmara, com
uma claridade assustadora. Parecia que ela estava diante de uma televisão colorida localizada
dentro do seu cérebro. Dava até para ver os detalhes do mural. Enquanto assistia ao filme, um
myrmigato dirigia a atenção de Richard para detalhes específicos das pinturas. Em volta do
quarto, outros doze myrmigatos pintavam as seções incompletas do mural.
Era uma soberba obra de arte. Tinha sido criada para informar a Richard o que ele podia fazer
para ajudar a espécie alienígena a sobreviver. Parte do mural era um texto de biologia,
explicando em figuras as três manifestações da espécie (melão-maná, myrmigato e séssil ou
rede neural) e as relações entre elas. As imagens que Nicole viu eram tão precisas que ela se
sentiu transportada para o quarto que Richard ocupara. Portanto, levou um susto quando o
filme interno de repente perdeu a continuidade e apresentou a imagem de Richard
despedindose do seu guia myrmigato.
Richard e o myrmigato estavam num túnel no fundo do cilindro marrom. O filme detinha-se em
cada detalhe dessa despedida final. Richard, barbudo, parecia desconfortável carregando os
quatro pesados melões-manás, dois ovos de aves e o cilindro de material séssil no pacote
pendurado às costas. E Nicole, vendo o olhar determinado de Richard ao partir do habitat
condenado dos myrmigatos, pôde entender por que ele era um herói para aquela espécie. Ele
arriscou sua vida para salvá-los da extinção, lembrou-se.
Sua cabeça encheu-se de imagens do zôo das octoaranhas, registrando os eventos posteriores à
germinação dos melões-manás que Richard levara para Nova York. Apesar da clareza dos
filmes, Nicole não seguiu as imagens muito de perto, pois ficou pensando em Richard. Desde
que acordei ainda não me senti no direito de sentir a sua falta, disse para si mesma, porque
achei que isso demonstraria fraqueza da minha parte. Mas agora, vendo seu rosto de novo
com tanta nitidez e lembrando como éramos companheiros, vejo como é ridículo forçarme a
não pensar em você. Quando a gente sobrevive ao homem que ama, por que não seria uma
aceitável fonte de prazer reviver aquele amor?
Uma imagem rápida de três seres humanos, um homem, uma mulher e um bebê, passou pelos
olhos de Nicole e chamou sua atenção. Esperem, pensou Nicole quase gritando. Voltem. Quero
ver uma coisa. Mas a rede neural não leu a sua mensagem, e continuou a passar os filmes.
Nicole parou de pensar em Richard e focalizou sua atenção nas imagens que apareciam na
televisão de dentro do seu cérebro.
Menos de um minuto depois, viu o trio de novo, andando no zoológico com o zelador
octoaranha, na frente da área onde ficavam os myrmigatos. Maria estava no colo da mãe. Seu
pai, um homem moreno e bonitão, com as têmporas grisalhas, puxava de uma das pernas como
se ela estivesse quebrada. Nunca vi esse homem antes, senão me lembraria dele.

Não houve mais imagens dos pais de Maria. A torrente de figuras passando pela cabeça de
Nicole mostrava a transferência dos myrmigatos para outro local, longe do zôo e da Cidade de
Esmeralda, pouco antes de começar o bombardeio. Nicole supôs que a última seqüência de
imagens fosse do período em que todos os humanos e octoaranhas de Rama estavam dormindo.
Não muito tempo depois disso, se é que entendi bem o ciclo de vida deles, os quatro
myrmigatos que resultaram dos melões de Richard tomaram-se material de rede. Com todas
essas memórias intactas.

Os filmes na cabeça de Nicole logo tornaram-se completamente diferentes. Agora ela via
cenas que acreditava serem do planeta natal dos sésseis. Lembrouse de que Richard lhe
descrevera essas imagens quando eles se encontraram, depois que ela fugira do Novo Éden.
Nicole tinha colocado sua mão direita perto do painel de controle da cadeira de rodas ao
entrar na teia. Quando ela apertou o botão de ligar, o ligeiro movimento da cadeira foi
registrado pelo séssil. As imagens pararam no mesmo instante, e os fios da criatura foram
retirados em seguida.

No dia seguinte, uma hora antes de iniciar-se o período de almoço, parte de uma parede em
cada apartamento da Estrela do Mar transformou-se numa grande tela de televisão, e os
residentes foram informados de que uma importante declaração seria feita nos próximos trinta
minutos.
— Essa é a terceira vez que eles fazem uma transmissão geral — disse Max para Nicole. — A
primeira vez foi logo que chegamos aqui; a segunda, quando decidiram segregar nossas áreas
de moradia.
— O que vai acontecer agora? — perguntou Marius.
— Suponho que vamos saber dos detalhes da nossa mudança — respondeu Max. — Pelo
menos este é o boato que corre por aí.
Na hora marcada, o rosto da Águia apareceu no monitor.
— No ano passado, quando todos vocês acordaram e foram transferidos de Rama — falou a
Águia, transmitindo ao mesmo tempo a mensagem em faixas coloridas que se moviam sobre
sua testa —, nós lhes dissemos que este veículo não seria uma moradia definitiva. Agora,
estamos prontos para transferi-los para outros locais, onde a qualidade de vida será muito
melhor.
A Águia fez uma pausa e continuou:
— Nem todos serão transferidos para o mesmo local. Cerca de um terço dos residentes da
Estrela do Mar passará para o transportador, aquela nave espacial imensa e chata que está
estacionada em Nodo desde a semana passada. Nas próximas horas, o transportador terminará
o que tem a fazer em Nodo e virá para cá. Os que foram selecionados para o transportador
serão transferidos hoje à noite.
— Os outros se mudarão para Nodo dentro de três a quatro dias. Ninguém ficará aqui na
Estrela do Mar... Eu gostaria de repetir que as acomodações desses dois locais são excelentes,
muito superiores às que temos aqui neste veículo.
A Águia parou de falar durante quinze segundos, como se estivesse dando tempo para a platéia
reagir ao que fora dito.
— Quando esta comunicação terminar, todas as telas de televisão dos apartamentos
transmitirão repetidamente a lista de todas as criaturas a bordo, pela ordem do número dos
apartamentos, com as devidas indicações para as transferências. As indicações são muito
simples. Se seu nome ou código de identificação aparecer no monitor em letra preta contra um
fundo branco, você será transferido para o transportador. Se seu nome vier escrito em letra
branca contra um fundo preto, você ficará aqui nos próximos dias até ser transferido para
Nodo. Para sua informação, no transportador cada espécie terá sua própria área residencial
separada. Não haverá intercâmbio de espécies, a não ser nos arranjos simbióticos
necessários, é claro. Ao contrário...
— Isso vai agradar aos líderes do Conselho — comentou Max. — Eles vêm tentando há meses
uma segregação total...
—... em Nodo haverá regularmente comunicação e atividades entre as espécies... Ao
selecionarmos os indivíduos para esses dois locais, procuramos colocar cada um no ambiente
mais adequado à sua personalidade. Nossas seleções foram feitas com muito critério,
baseadas nas nossas observações aqui, na Estrela do Mar e em Rama... É importante que
vocês saibam que não haverá intercâmbio entre os dois grupos depois que as transferências
tiverem lugar. Em outras palavras, para que não haja mal-entendidos, aqueles que se mudarem
para o transportador hoje à noite nunca mais verão nenhum dos residentes que serão
transferidos para Nodo. Quem foi selecionado para o transportador — continuou a Águia —
deve começar a arrumar suas coisas imediatamente, de modo a estar com tudo pronto para se
mudar antes da hora do jantar. Quem foi indicado para Nodo e acha que sua indicação não foi
adequada, pode solicitar uma reconsideração do seu caso. Hoje à noite, depois que todos os
residentes designados para o transportador tiverem sido transferidos, vou me encontrar na
lanchonete com aqueles que desejarem trocar de Nodo para o transportador... Se algum de
vocês tiver alguma dúvida, estarei durante uma hora na mesa grande do saguão...

— O que a Águia falou para você? — perguntou Max a Nicole.


— A mesma coisa que falou para as outras vinte pessoas do saguão que fizeram a mesma
pergunta — respondeu Nicole. — Quem foi designado para o transportador não terá
possibilidade de mudar... Só serão reconsiderados os casos de quem foi indicado para Nodo.
— Foi ao saber disso que Nai... desabou? — perguntou Eponine.
— Foi — respondeu Nicole. — Até aquela hora ela estava se contendo. Quando veio ao nosso
apartamento, depois que a lista foi transmitida pela primeira vez, achei que ela estava calma
demais... Certamente convencera-se de início que havia algum erro na indicação de Galileu.
— Posso compreender como ela está se sentindo — disse Eponine. — Eu estava aflitíssima
antes de ver que todos nós ficamos juntos na lista de transferência para Nodo.
— Aposto que Nai não é a única que está sofrendo com essas seleções — disse Max,
levantando-se e andando pelo quarto. — Isso é realmente uma arbitrariedade. O que teríamos
feito se Marius tivesse sido indicado para o transportador?
— Muito fácil — respondeu Eponine imediatamente. — Nós dois teríamos nos candidatado a
ir com o nosso filho.
— É — ele falou, depois de uma pausa. — Acho que você tem razão.
— É isso o que Patrick e Nai estão discutindo no apartamento ao lado — falou Nicole. —
Eles pediram que a rapaziada saísse para poderem conversar a sós.
— Você acha que Nai vai agüentar mais esse problema, logo depois do... incidente? —
perguntou Eponine.
— Ela não tem escolha — disse Max. — Eles só têm mais pouco mais de duas horas para
tomar uma decisão.
— Nai parecia muito melhor há uns vinte minutos — falou Nicole. — O sedativo que tomou
era leve mas logo fez efeito... Patrick e Kepler foram muito carinhosos com ela... Acho que
Nai assustou-se mais com a sua própria reação.
— Ela atacou mesmo a Águia? — perguntou Eponine.
— Não. Um dos cabeças de bloco segurou-a logo que ela gritou — respondeu Nicole. — Mas
ela estava descontrolada... poderia ter feito alguma coisa.
— Merda — disse Max. — Se você tivesse dito, quando morávamos na Cidade de Esmeralda,
que Nai poderia ficar violenta, eu lhe responderia...
— Quem nunca teve um filho — interrompeu Nicole — não pode compreender os fortes
sentimentos de uma mãe quando seus filhos estão em jogo. Nai está zangada há meses... Eu não
posso apoiar a reação dela, mas posso compreender...
Nicole parou quando bateram na porta, e Patrick entrou. Seu rosto denotava ansiedade.
— Mãe — disse ele —, preciso falar com você.
— Eponine e eu vamos para o corredor — falou Max. — Se vocês acharem melhor...
— Obrigado, Max... Eu prefiro mesmo que vocês saiam — falou Patrick com dificuldade.
Nicole nunca o vira tão preocupado.
— Não sei o que fazer — disse ele, assim que os dois ficaram a sós. — Tudo está
acontecendo muito depressa... Acho que Nai não está sendo racional, mas não consigo... —
Sua voz tremeu. — Mãe, ela quer que todos nós solicitemos uma reconsideração. Todos. Você,
eu, Kepler, Maria, Max... Todos nós... Senão ela acha que Galileu vai se sentir abandonado.
Nicole olhou para o filho e viu que ele estava prestes a chorar. Ele ainda não viveu o
suficiente para lidar com uma crise dessas, pensou ela rapidamente. Só viveu acordado
pouco mais de dez anos.
— O que Nai está fazendo agora? — perguntou Nicole de forma carinhosa.
— Está meditando... — respondeu Patrick. — Ela disse que isso lhe dá calma e cura a sua
alma... E lhe dá força...
— E ela quer que você convença a nós todos?
— Acho que sim... Mas, mãe, Nai nem considerou que talvez alguém não concorde com essa
proposta. Ela acredita que o que todos nós devemos fazer é absolutamente claro.
O sofrimento de Patrick era evidente. Nicole teve vontade de chegar perto dele, de tocá-lo e
expulsar sua agonia.

— O que você acha que devemos fazer? — perguntou Nicole depois de algum tempo.

— Não sei — respondeu Patrick, andando pelo quarto. — Como todos os outros, assim que a
lista saiu eu notei que todos os membros ativos do Conselho foram transferidos para o
transportador, e também a maioria dos humanos que tinham sido transferidos dos apartamentos
comuns. As pessoas de que gostamos e que respeitamos, assim como todas as octoaranhas,
estão indo para Nodo... Mas eu compreendo Nai. Ela não consegue imaginar Galileu isolado,
desligado para sempre do único sistema de apoio que ele conheceu na vida...
O que você faria, falou uma voz dentro de Nicole, se fosse Nai? Você não entrou em pânico
hoje de manhã, quando achou que talvez pudesse ser separada de Benjy?
— ... Você pode ir lá, mãe, assim que ela acabar de meditar? — pediu Patrick. — Ela ouvirá
você. Nai sempre disse que respeita sua sabedoria.
— E você quer que eu lhe diga alguma coisa em especial? — perguntou Nicole.
— Diga que... — falou Patrick, torcendo as mãos — diga que não cabe a ela decidir o que é
melhor para todos do nosso grupo. Ela devia concentrar-se na sua própria decisão.
— Este é um bom conselho — falou Nicole. — Agora me diga, Patrick — perguntou ela um
instante depois —, você já decidiu o que vai fazer se Nai resolver optar pelo transportador e
nenhum de nós a seguir?
— Já, mãe — falou Patrick, tranqüilo. — Eu irei com Nai e Galileu.
Nicole estacionou sua cadeira de rodas em um canto em frente à janela de observação. Ela
estava sozinha, a seu próprio pedido. A tarde tinha sido tão carregada de emoções que estava
absolutamente exausta. No início, pensara que seu encontro com Nai tinha sido bom. Nai
ouvira com atenção o seu conselho, sem muitos comentários. Por essa razão, Nicole ficou
abismada quando, uma hora depois, fervendo de raiva, Nai foi tomar satisfação com Max,
Eponine, Ellie e com ela.
— Patrick me disse que nenhum de vocês irá comigo — falou Nai. — Foi essa a recompensa
que tive pela minha permanente dedicação todos esses anos... Tirei meus filhos da casa deles
por lealdade a vocês, meus amigos... Privei Galileu e Kepler de uma infância normal por
causa do meu respeito e da minha admiração por você, Nicole, meu modelo de mulher... E
agora, quando peço pela primeira vez um favor...
— Você está sendo injusta, Nai — disse Ellie com carinho. — Nós todos te amamos e estamos
muito aflitos com tudo isso... Nós gostaríamos de ir com você e Galileu se achássemos...
— Ellie, Ellie — disse Nai, caindo de joelhos ao lado da amiga e desatando a chorar. — Você
se esqueceu de todas as horas que passei com Benjy em Avalon?... Tenho de admitir que foi
por minha livre e espontânea vontade, mas será que eu teria me dedicado tanto a Benjy se ele
não fosse seu irmão e você não fosse minha melhor amiga?... Eu te amo, Ellie... Preciso do seu
apoio... Por favor, por favor, venham conosco. Você e Nikki, pelo menos...

Ellie também chorava. Até esse encontro terminar, ninguém ficou com os olhos secos no
quarto. No final, Nai desculpou-se com todos.

Nicole respirou fundo e olhou pela janela. Sabia que precisava de uma pausa naquele tumulto
emocional. Duas vezes durante a tarde sentira dor no peito. Nem mesmo todas aquelas sondas
mágicas, pensou, poderão me proteger se eu não me cuidar.
O imenso transportador estava estacionado a apenas umas centenas de metros dali. Era uma
espantosa construção de engenharia, muito maior do que parecia quando estava perto de Nodo.
Como a nave espacial estava estacionada de lado, só uma parte dela podia ser vista da janela.
Seu topo era constituído de uma superfície plana longa e chata, interrompida apenas por
pequenos equipamentos espalhados e cúpulas transparentes, ou bolhas, como eram chamadas
originariamente, localizadas de forma ordenada por todo o comprimento e a largura da
superfície. Algumas cúpulas eram bastante altas. Uma, diretamente em frente à janela,
elevava-se a uns duzentos metros. Outras eram muito pequenas. Partes de onze bolhas
transparentes eram visíveis da janela. Quando o transportador se aproximou, no início da
tarde, e a nave inteira pôde ser vista, foram contadas ao todo setenta e oito cúpulas.
A parte inferior do transportador era de um cinza-metálico. Estendia-se por cerca de um
quilômetro abaixo da superfície plana, com ligeiras elevações laterais e o fundo arredondado.
A distância, a parte de baixo parecia insignificante comparada à vasta superfície plana, que
tinha pelo menos quarenta quilômetros de comprimento e quinze de largura. Porém, de perto,
ficava claro que um enorme volume estava contido dentro daquela estrutura opaca.
Enquanto Nicole olhava fascinada, uma pequena reentrância do lado do exterior cinza, logo
abaixo da superfície, expandiu-se e transformou-se num tubo redondo movendo-se para fora
do transportador. O tubo chegou bem perto da Estrela do Mar e então, depois de umas
pequenas correções do vernier, fixou-se na câmara de compressão principal.
Nicole sorriu. Mais um dia inacreditável, pensou, da minha espantosa existência. Mudou de
posição na cadeira e sentiu um pouco de dor no quadril. Eu gostaria de poder fazer alguma
coisa por Nai, disse para si mesma. Mas fazer com que todos se sacrifiquem por Galileu não
é a solução certa.
Nicole sentiu alguém tocando no seu braço. Era o dr. Azul.
— Como está se sentindo? — perguntou em cores a octoaranha.
— Agora estou melhor — respondeu ela. — Mas tive momentos difíceis hoje à tarde.
Dr. Azul examinou Nicole com o aparelho de monitoração.
— Tive pelo menos duas grandes irregularidades — disse Nicole ao médico. — E lembro-me
bem delas.
O médico octoaranha estudou as cores que apareceram no pequeno monitor.
— Por que não me chamou? — perguntou.
— Pensei nisso, mas estava acontecendo tanta coisa... E achei que você devia estar ocupado
com seus próprios...

Dr. Azul passou para Nicole um pequeno frasco com um líquido azul

claro.
— Beba isto. Vai limitar sua resposta cardíaca ao estresse emocional nas próximas doze
horas.
— E nós vamos continuar juntos, o senhor e eu, depois que o transportador partir?... Não olhei
a sua parte da lista com muito cuidado.
— Vamos sim — respondeu a octoaranha. — Oitenta e cinco por cento dos da nossa espécie
serão transferidos para Nodo. Mais de metade das octoaranhas que vão para o transportador é
alternativa.
— Então, meu amigo — disse Nicole depois de beber o líquido —, o que vocês acham que
significa essa transferência?
— Nós achamos que toda essa experiência chegou a uma encruzilhada significativa, e que os
dois grupos se envolverão em atividades radicalmente diferentes.
Nicole riu.
— Isso não é muito específico — disse.
— Não, não é — respondeu a octoaranha.

Havia oitenta e dois humanos e nove octoaranhas na lanchonete quando a Águia começou a
reunião de reconsideração, cinco minutos depois de o último residente da Estrela do Mar
designado para o transportador ter partido através da câmara de compressão. Só aqueles que
tinham solicitado oficialmente uma reconsideração tiveram permissão de participar da
reunião. Muitos outros membros de todas as espécies ainda estavam no terraço de observação
e nas áreas comuns, conversando sobre a partida e esperando para saber o resultado da
reunião com a Águia.
Nicole tinha voltado para seu posto na janela de observação. Estava na cadeira de rodas,
olhando para o transportador e refletindo sobre as cenas que presenciara na última hora.
Quase todos os humanos tinham partido contentes, felizes por não terem mais de conviver com
os alienígenas. Houve algumas despedidas tristes na porta da câmara de compressão, mas,
surpreendentemente, foram poucas.
Galileu teve permissão de passar dez minutos com a família e os amigos na área comum.
Patrick e Nai garantiram ao rapaz, que demonstrava muito pouca emoção, que eles e seu irmão
Kepler, que ainda estava arrumando suas coisas, iriam encontrar-se com ele no transportador
antes do final da noite.
Galileu foi o último humano a sair da Estrela do Mar, seguido de um pequeno contingente de
aves e myrmigatos. O material rede-neural e os restantes melões-manás tinham sido
acondicionados em grandes engradados e carregados por um grupo de robôs-blocos.
Provavelmente nunca os verei de novo, pensou Nicole quando a última ave virou-se e deu um
guincho de adeus aos espectadores.
— Todos vocês — começou a Águia na reunião da lanchonete — solicitaram que sua
designação seja reconsiderada, para que possam trocar seu futuro lar de Nodo pelo
transportador... Agora explicarei mais duas diferenças entre os tipos de vida no transportador
e em Nodo. Depois de pesarem essas informações, se vocês ainda desejarem mudar sua
designação, serão atendidos... Como eu já disse hoje à tarde, não haverá intercâmbio entre
espécies diferentes no transportador. Não só cada espécie ficará isolada no seu próprio
habitat como não haverá nenhum tipo de interferência por parte de outra inteligência, nem
mesmo a que eu represento, nos problemas de cada espécie. Nem agora, nem nunca. Cada
espécie do transportador ficará por conta própria. Em Nodo, ao contrário, onde haverá
intercâmbio das espécies, a vida será supervisionada. Não tanto quanto aqui na Estrela do
Mar, mas será. Acreditamos que supervisão e monitoração são essenciais quando espécies
diferentes vivem juntas... A segunda diferença talvez seja a mais importante. Não haverá
reprodução no transportador. Todos os indivíduos que habitarem o transportador, de qualquer
espécie, ficarão estéreis para sempre. Todos os elementos necessários a uma vida longa e feliz
serão fornecidos aos que forem viver no transportador, mas ninguém poderá reproduzir. Em
contraste, não haverá restrições à reprodução em Nodo... Por favor, deixem-me terminar —
disse a Águia, quando vários membros da platéia tentaram fazer perguntas. — Vocês têm mais
duas horas para decidir... Se ainda quiserem transferir-se para o transportador, simplesmente
tragam suas bagagens e peçam que o Grande Bloco abra a câmara de compressão...

Nicole não se surpreendeu quando Kepler não quis mais embarcar no transportador. O rapaz
tivera muita dificuldade em tomar sua primeira decisão, e só pedira reconsideração do seu
caso em lealdade à sua mãe. Desde aquela hora, ele tinha passado a tarde com Maria, a quem
obviamente adorava.
Kepler pediu a todos da grande família que o ajudassem, caso houvesse uma discussão com
sua mãe, mas não houve. Nai concordou que Kepler não deveria ser privado do prazer de ser
pai, e chegou a sugerir, magnanimamente, que Patrick deveria reavaliar sua própria decisão.
Mas Patrick disse que ela não poderia mais ter filhos e que ele já era pai, de certa forma, de
Galileu e Kepler.
Nicole, Patrick, Nai e Kepler ficaram sozinhos em um dos apartamentos para a despedida
final. O dia tinha sido de lágrimas e grandes emoções. Os quatro estavam exaustos. Duas mães
disseram adeus aos seus filhos para sempre. Houve uma comovente simetria nos comentários
finais. Nai pediu que Nicole guiasse Kepler com sua sabedoria, e Nicole pediu que Nai
continuasse a dar seu amor desprendido e incondicional a Patrick.
Patrick levantou as duas pesadas malas e jogou-as por cima dos ombros. Quando Nai e ele
foram para a porta, Kepler ficou ao lado da cadeira de rodas de Nicole, segurando sua mão
encarquilhada. Só depois que a porta se fechou é que os olhos de Nicole encheram-se de
lágrimas. Adeus, Patrick, pensou com tristeza. Adeus Geneviève, Simone e Katie. Adeus,
Richard.

7
Os sonhos vieram em torrentes, muitas vezes sem interrupção. Henry ria por ela ser preta,
depois um arrogante colega da faculdade de medicina impedia que ela cometesse um erro
numa rotineira operação de amígdalas. Mais tarde, Nicole andava em uma praia com nuvens
escuras por cima da cabeça. Uma figura silenciosa, coberta com uma capa, fazia-lhe um sinal
a distância. É a Morte, disse Nicole para si própria no sonho. Mas era uma brincadeira cruel.
Quando chegou perto da figura e tocou sua mão estendida, Max Puckett tirou a capa e riu.

Nicole arrastava-se de joelhos num escuro tubo subterrâneo de cimento. Seus joelhos
começaram a sangrar. Estou aqui, dizia Katie. Onde você está?, perguntava Nicole frustrada.
Estou a-trás de vo-cê, dizia Benjy. O tubo começou a encher-se de água. Não posso ajudar
meus filhos.
Nicole estava nadando com dificuldade. Havia uma forte corrente no tubo, que a carregou para
fora, tornou-se um riacho e depois uma floresta. As roupas de Nicole prenderam-se em um
arbusto debruçado sobre o riacho. Ela ficou de pé, desvencilhou-se e começou a andar por um
caminho.
Era noite. Nicole podia ouvir uns passarinhos e ver a lua pelas frestas ocasionais das árvores
altas. O caminho era sinuoso. Ela chegou numa encruzilhada. Que direção devo tomar?,
perguntou a si mesma no sonho. Venha comigo, dizia Geneviève, saindo da floresta e pegando-
a pela mão.
O que você está fazendo aqui?, perguntava Nicole. Geneviève ria. Eu devia fazer a mesma
pergunta a você.
A jovem Katie vinha pelo caminho na direção delas. Alô, mamãe, disse ela, pegando a mão de
Nicole. Você se importa se eu andar do seu lado?, perguntou Katie. É claro que não, disse
Nicole.
A floresta ficava mais espessa. Nicole ouvia passos por trás dela e viravase de costas,
enquanto continuava a andar. Patrick e Simone sorriam. Nós estamos quase lá, dizia Simone.
Aonde vocês vão?, perguntava Nicole. A senhora deve saber, sra. Wakefield, respondia
Maria. Foi a senhora quem nos disse para vir. A menina agora caminhava ao lado de Patrick
e de Simone.
Nicole e os cinco jovens entraram numa clareira, onde viram uma fogueira ardendo. Omeh se
aproximava pelo lado oposto da fogueira e os saudava. Então, eles formaram um novo círculo
em volta da fogueira, e o xamã jogou a cabeça para trás e começou a cantar em senoufo.
Enquanto Nicole observava a cena, viu o rosto de Omeh despelar-se, deixando à mostra seu
crânio. Mas o canto continuava. Não, não, disse Nicole. Não, não.
— Ma-mãe — falou Benjy. — Acorde, ma-mãe... Você está tendo um pesadelo.
Nicole esfregou os olhos e viu luz do outro lado do quarto.
— Que horas são, Benjy?
— É tarde, ma-mãe — respondeu ele com um sorriso. — Kepler já foi tomar café com os
outros... Nós achamos melhor deixar você dormir.
— Obrigada, Benjy — disse Nicole. Mexeu-se um pouco na esteira e sentiu seu quadril doer.
Olhou em volta do quarto e lembrou-se de que Patrick e Nai tinham ido embora. Para sempre,
pensou Nicole, tentando não sofrer mais.
— Você vai querer tomar uma du-cha agora? — perguntou Benjy. — Eu posso lhe ajudar a
tirar a roupa e levar você até o chuveiro.
Nicole olhou para seu filho careca. Eu estava errada sobre você. Você se ajeitaria muito bem
sem mim.

— Obrigada, Benjy. É uma boa idéia — respondeu Nicole.

— Vou tentar fazer tudo com cuidado — disse ele, desabotoando a camisola da mãe. — Mas,
se eu machucá-la, me avise.
Quando Nicole estava completamente nua, Benjy pegou-a nos braços, deu dois passos com ela
na direção do chuveiro e parou.
— O que houve, Benjy? — perguntou Nicole. Benjy deu um riso encabulado.
— Eu não planejei as coisas muito bem, ma-mãe — respondeu Benjy. — Devia ter temperado
a água antes.
Benjy virou-se, colocou Nicole na esteira e foi até o chuveiro abrir a torneira.
— Você não gosta de banho quente demais, não é? — perguntou.
— Isso mesmo — respondeu Nicole. Benjy voltou e pegou de novo a mãe.
— Eu co-lo-quei duas toa-lhas no chão para que ele não fique muito duro nem muito frio.
— Obrigada, filho — disse Nicole.
Benjy foi buscar o sabonete e o xampu, e ficou conversando enquanto Nicole jogava água no
corpo, sentada nas toalhas no chão do boxe. Quando ela terminou o banho, Benjy ajudou-a a
secar-se e a vestir-se, e depois carregou-a para a cadeira de rodas.
— Abaixe-se, por favor — falou Nicole, já sentada na cadeira. Deu um beijo no filho e
apertou-lhe a mão. — Obrigada por tudo, Benjy — disse, incapaz de conter as lágrimas que
enchiam seus olhos. — Você tem me dado uma ajuda maravilhosa.
Benjy ficou ao lado dela, radiante. — Eu a amo, ma-mãe. Fico feliz de poder ajudá-la.
— Eu também o amo, filho — replicou Nicole, apertando a mão dele de novo. — Agora você
vai tomar café comigo?
— Eu estava pensando em ir — disse ele, ainda sorrindo.

Antes de Nicole terminar o café, a Águia apareceu na lanchonete.


— O dr. Azul e eu iremos até o seu quarto, para fazer-lhe um exame minucioso — disse o
alienígena.
O sofisticado equipamento médico já estava no apartamento quando Nicole e Benjy voltaram.
O dr. Azul injetou mais umas microssondas no peito de Nicole e depois outras na região dos
rins. A Águia e o dr. Azul ficaram conversando na língua nativa da octoaranha durante a meia
hora do exame. Benjy ajudava a mãe quando ela precisava se mexer ou ficar de pé. Estava
completamente fascinado com a capacidade da Águia de falar em cores.
— Como você aprendeu isso? — perguntou Benjy a certa altura do exame.
— Tecnicamente falando — respondeu a Águia —, não aprendi nada... Quem me projetou
acrescentou à minha estrutura um par de subsistemas especializados; um para eu poder
interpretar as cores das octoaranhas e outro para eu criar as cores em volta da minha cabeça.
— Você não te-ve de ir para a es-co-la? — insistiu Benjy.
— Não — respondeu a Águia, sem dar detalhes.
— Os seus pro-je-tis-tas poderiam fazer isso em mim? — perguntou Benjy um pouco depois,
quando a Águia e o dr. Azul conversavam de novo sobre o problema de Nicole.
A Águia virou-se e olhou para Benjy.
— Eu sou mui-to lento para a-pren-der — disse Benjy. — Seria ma-ra-vilho-so se alguém
pusesse tu-do dentro do meu cé-re-bro.
— Nós ainda não sabemos como fazer isso — disse a Águia. Quando o exame terminou, a
Águia pediu para Benjy juntar todos os pertences de Nicole.
— Para onde nós vamos? — perguntou ela.
— Vamos dar uma volta no foguete — falou a Águia. — Quero lhe expor alguns detalhes do
seu problema físico e levá-la para onde haja uma emergência em caso de necessidade.
— Achei que o líquido azul e todas essas sondas dentro de mim bastariam...
— A gente conversa sobre isso mais tarde — interrompeu a Águia, pegando a mala de Nicole.
— Obrigado pela ajuda, Benjy — disse o alienígena.
— Quero ter certeza de que entendi bem essa conversa — disse Nicole pelo microfone do seu
capacete quando o foguete se aproximou da área entre a Estrela do Mar e Nodo. — Meu
coração vai durar no máximo dez dias, apesar de toda a sua medicina mágica; meus rins estão
em estágio terminal, e meu fígado dá sinal de estar bastante deteriorado. O resumo está certo?
— Está, sim — respondeu a Águia. Nicole forçou um sorriso.
— Você tem alguma notícia boa para me dar?
— Sua cabeça está funcionando às mil maravilhas, e você ficará curada da luxação no quadril,
se não morrer de outros problemas.
— E você está sugerindo que eu me interne hoje num hospital em Nodo, para substituir meu
coração, rins e fígado por máquinas avançadas que poderão desempenhar essas mesmas
funções?
— Talvez outros órgãos devam ser substituídos também — disse a Águia —, já que iremos
fazer uma operação grande. Seu pâncreas causa problemas de vez em quando, e todo o seu
sistema sexual está acabado... Talvez seja aconselhável uma histerectomia total.
Nicole sacudiu a cabeça.
— E quando tudo isso se tornar inútil? Por mais que vocês façam agora, dentro de algum
tempo outros órgãos vão ter problemas. Qual será o primeiro? Meus pulmões? Ou meus
olhos?... Vocês poderiam transplantar meu cérebro se eu não pudesse mais pensar?
— Poderíamos — respondeu a Águia. Nicole ficou quieta por um instante.
— Talvez o que eu vou dizer não faça sentido para você, pois não é exatamente lógico... Mas
não estou gostando da idéia de me tornar um ser híbrido. — O que você quer dizer com isso?
— perguntou a Águia.
— Em que ponto deixo de ser Nicole des Jardins Wakefield? Se meu coração, meu cérebro,
meus olhos e ouvidos forem substituídos por máquinas, continuarei a ser Nicole? Ou serei
outra pessoa ou outra coisa?
— Essa questão é irrelevante — respondeu a Águia. — Você é uma médica, Nicole.
Considere o caso de um esquizofrênico que toma drogas regularmente para alterar as funções
do seu cérebro. Essa pessoa continua a ser ela própria? É a mesma questão filosófica, só que
em grau diferente.
— Entendi seu ponto de vista — disse Nicole depois de outro breve silêncio. — Mas isso não
muda meus sentimentos... Sinto muito negar essa chance que você me fez crer que tenho... Pelo
menos hoje eu não aceito isso.
A Águia ficou olhando para Nicole, depois criou um outro conjunto de parâmetros no sistema
de controle do foguete, que mudou de direção.
— Então vamos voltar para a Estrela do Mar? — perguntou Nicole.
— Não imediatamente. Quero lhe mostrar outra coisa primeiro — disse o alienígena, tirando
da bolsa amarrada na cintura um pequeno tubo com um líquido azul e um aparelhinho
desconhecido. — Por favor, me dê seu braço. Não quero que você morra antes do fim da
tarde.
Quando eles se aproximaram do Módulo de Habitação de Nodo, Nicole reclamou com a
Águia da forma quase imediata com que os residentes da Estrela do Mar foram divididos em
dois grupos.
— Como sempre — disse Nicole —, você não pode ser acusado de mentir, só de ocultar
informações.
— Às vezes — falou a Águia —, não temos uma maneira satisfatória de completar uma tarefa.
Nesse caso, preferimos agir da forma menos insatisfatória. O que você esperava que
fizéssemos? Que contássemos aos residentes desde o começo que não poderíamos cuidar de
todos para sempre, de geração em geração? Isso seria o caos... Além do mais, acho que vocês
não nos dão muito crédito. Nós salvamos milhares de seres de Rama, a maioria dos quais
provavelmente morreria em um conflito entre espécies se não fosse a nossa intervenção...
Lembre-se de que todos, inclusive os que foram designados para o transportador, poderão
completar sua existência.
Nicole ficou em silêncio, tentando imaginar como seria a vida no transportador sem
possibilidade de reprodução. Criou na cabeça a imagem de um futuro distante, onde só
restavam alguns indivíduos.
— Eu não gostaria de ser o último humano vivo no transportador — disse.
— Houve uma espécie nesta parte da galáxia, há cerca de três milhões de anos — disse a
Águia —, que ficou viajando no espaço durante quase um milhão de anos. Eram engenheiros
brilhantes, e construíram um dos prédios mais incríveis jamais vistos. Sua influência
espalhou-se rapidamente, e essa espécie passou a dominar uma área maior do que vinte
sistemas solares. Eram cultos, compassivos e sábios. Mas eles cometeram um erro fatal...
— Qual foi? — perguntou Nicole imediatamente.

— O equivalente deles para o que vocês chamam de genoma continha muito mais informações
do que o seu, graças a quatro bilhões de anos de evolução natural, e era extremamente
complicado. Suas experiências iniciais com engenharia genética, em outras espécies e na sua
própria, tiveram um sucesso sem igual. Eles achavam que compreendiam o que estavam
fazendo. Porém, sem que soubessem, os robustos genes que eram transferidos de geração a
geração foram se deteriorando de forma lenta mas progressiva... Quando eles finalmente
compreenderam o que haviam feito consigo próprios, era tarde demais. Eles não tinham
preservado os espécimes primitivos antes de começarem a modificar seus próprios genes.
Não puderam reverter a situação. Não havia nada que pudessem fazer.

— Imagine — disse Nicole —, não só ser o último membro do seu grupo em uma nave
espacial isolada como o transportador como ser também um dos últimos sobreviventes de uma
espécie rica em história, arte e conhecimentos... Nossa enciclopédia apresenta muitas histórias
assim, cada uma delas com pelo menos uma lição.
O foguete passou por uma abertura na lateral do módulo esférico e estacionou suavemente ao
lado de uma parede. Pórticos automáticos dos dois lados foram acionados para que o veículo
não deslizasse. Uma rampa fazia a ligação entre a porta de saída dos passageiros até uma
calçada, que por sua vez conduzia ao centro do complexo do transporte.
Nicole riu.
— Eu estava tão concentrada na nossa conversa que nem olhei para este módulo do lado de
fora.
— Você não teria visto muita novidade — falou a Águia.
Depois, o alienígena voltou-se para Nicole e fez uma coisa pouco corriqueira. Pegou as mãos
enluvadas dela e disse:
— Em menos de uma hora você vai sentir uma coisa que vai espantá-la e também suscitar suas
emoções. De início, havíamos pensado em fazer esta excursão de surpresa. Mas como você
está muito enfraquecida, seu organismo poderia reagir de forma negativa às fortes emoções...
Então, decidimos contar antes o que iremos fazer.
Nicole sentiu sua batida cardíaca se acelerar. De que ele está falando? O que poderia ser tão
diferente?
— ...Nós vamos entrar num carro menor, que irá viajar vários quilômetros neste módulo. No
final dessa curta viagem, você se encontrará com sua filha Simone e com Michael O'Toole.
— O quê? — Nicole gritou, soltando as mãos da Águia e colocando-as do lado do seu
capacete. — Será que ouvi direito? Você disse que eu vou ver Simone e Michael O'Toole?
— Disse — respondeu a Águia. — Nicole, tente relaxar...
— Meu Deus! — exclamou ela, ignorando o comentário da Águia. — Não posso acreditar.
Não posso acreditar... Espero que não seja algum tipo de brincadeira de mau-gosto...
— Eu garanto que não é...

— Mas como Michael ainda pode estar vivo? — perguntou Nicole. — Ele deve ter pelo
menos cento e vinte anos de idade...

— Nós o ajudamos com a nossa medicina mágica, como você diz.


— Oh, Simone, Simone! — gritou Nicole. — Será possível? Será possível mesmo?
Lágrimas escorreram-lhe pelo rosto. Apesar da dor no quadril e do capacete espacial
desajeitado, Nicole quase pulou do banco para dar um beijo na Águia.
— Obrigada, obrigada. Você não imagina o quanto isso representa para mim.
A Águia firmou a cadeira de rodas de Nicole na escada rolante quando eles desceram para o
centro do complexo principal de transporte. Ela deu uma rápida olhada em volta. A estação
era idêntica à de Nodo perto de Sírius. Tinha uns vinte metros de altura e era disposta em
círculo. Uma meia dúzia de calçadas rolantes rodeava a parte central, cada uma delas dando
num diferente túnel em arco que levava para fora do complexo. Acima dos túneis, à direita,
viam-se duas estruturas de vários níveis.
— Os trens intermodulares partem dali? — perguntou Nicole, lembrandose de uma viagem
com Katie e Simone quando elas eram crianças.
A Águia confirmou. Depois, empurrou a cadeira de rodas para uma das calçadas rolantes e
eles saíram do centro da estação. Viajaram centenas de metros por um túnel até que a calçada
rolante parou.
— Nosso carro deve estar logo ali à direita, no primeiro corredor — disse a Águia.
O carro pequeno, que se abria no topo, tinha dois bancos. A Águia levou Nicole para o banco
de passageiro, dobrou a cadeira de rodas até ela ficar do tamanho de uma pasta e guardou-a
num escaninho do veículo. Logo depois, o carro começou a andar por um labirinto de
passagens sem janelas. Nicole estava quieta, tentando convencer-se de que ia ver a filha que
havia deixado em outro sistema estelar muitos e muitos anos atrás.
A viagem pelo Módulo de Habitação parecia interminável. Em certo ponto eles pararam, e a
Águia disse que Nicole podia tirar seu capacete.
— Estamos chegando? — perguntou ela.
— Ainda não, mas já entramos na zona atmosférica deles.
Por duas vezes encontraram alienígenas fascinantes em veículos que passavam na direção
oposta, mas Nicole estava agitada demais e só conseguia prestar atenção ao que ia dentro de
sua cabeça. Ela mal ouvia o que a Águia lhe dizia. Calma, disse uma de suas vozes interiores.
Não seja absurda, disse outra voz. Eu vou ver uma filha que não vejo há quarenta anos. Não
há como ficar calma.
— ... A seu próprio modo — dizia a Águia —, a vida deles tem sido tão extraordinária quanto
a sua. Mas diferente, é claro, completamente diferente. Quando levamos Patrick para vê-los
hoje de manhã...
— O que você disse? — perguntou Nicole abruptamente. — Você disse que Patrick os viu
hoje de manhã? Você levou Patrick para ver o pai dele?
— Levei — disse a Águia. — Nós sempre tivemos a intenção de proporcionar esse encontro,
desde que tudo saísse conforme os planos... Na verdade, nem você nem Patrick teriam visto
Simone, Michael e os filhos deles...
— Filhos! — exclamou Nicole. — Então eu tenho mais netos!
— ...antes de chegarem em Nodo, mas quando Patrick solicitou reconsideração do seu caso...
Bem, seria uma maldade deixar que ele partisse para sempre sem conhecer seu pai natural...
Nicole não pôde mais se controlar e deu um beijo no rosto emplumado da Águia.
— E Max disse que você nada mais era do que uma máquina insensível. Como ele estava
errado!... Obrigada... Eu agradeço em nome de Patrick...
Nicole tremia de excitação. Um instante depois, ela não conseguiu mais respirar, e a Águia
parou o carro rapidamente.
— Onde estou? — perguntou Nicole, saindo de uma bruma profunda.
— Estamos estacionados dentro da área fechada onde Michael, Simone e a família deles
moram — respondeu a Águia. — Você está dormindo aqui há quatro horas.
— Eu tive um ataque cardíaco? — perguntou Nicole.
— Não exatamente... Só um forte mal-estar. Pensei em levá-la imediatamente para o hospital,
mas achei melhor esperar que você acordasse. Além do mais, eu tenho quase todos os
medicamentos aqui...
A Águia olhou-a com seus olhos azuis intensos.
— O que você quer fazer, Nicole? Visitar Simone e Michael, como planejamos, ou ir para o
hospital? A escolha é sua, mas compreenda que...
— Eu sei — interrompeu Nicole com um suspiro, olhando para a Águia. — Preciso ter
cuidado para não me excitar demais... Eu quero ver Simone, mesmo que seja a última coisa
que faça na vida... Você pode me dar alguma coisa para eu me acalmar, mas que não me faça
dormir?
— Um tranqüilizante fraco só vai ajudar se você tentar conscientemente refrear sua excitação.
— Tudo bem. Vou fazer o possível — disse ela.
A Águia virou o carro em uma rua pavimentada, com árvores altas, enfileiradas. Quando
estavam passando, Nicole lembrou-se de um outono na Nova Inglaterra, que ela passara com
seu pai, quando era adolescente. As folhas das árvores estavam vermelhas, douradas e
marrons.
— É tão bonito! — disse Nicole.
O carro fez uma curva e passou por uma cerca branca que rodeava uma área gramada. Dentro
da cerca havia quatro cavalos, e dois adolescentes humanos andavam entre eles.
— As crianças são verdadeiras — disse a Águia. — Os cavalos são simulações.

No topo de uma colina suave, Nicole viu uma grande casa branca de dois andares, com um
telhado preto inclinado. A Águia parou o carro na entrada circular. A porta da frente foi aberta
e apareceu uma mulher escura, alta e bonita, de cabelos grisalhos.

— Mamãe! — gritou Simone correndo para o carro.


Assim que Nicole abriu a porta, ela atirou-se nos braços da mãe. As duas abraçaram-se e
beijaram-se, chorando copiosamente, sem conseguirem dar uma palavra.

— A visita de Patrick foi boa e ruim ao mesmo tempo — disse Simone, pondo a xícara de café
na mesa. — Ele ficou aqui mais de duas horas, que pareceram poucos minutos.
Os três estavam sentados em volta de uma mesa que dava para o jardim giratório que cercava
a casa. Nicole olhava a cena bucólica vista da janela.
— A maior parte é ilusória — disse Michael. — Mas muito bem feita... Se você não soubesse,
pensaria que estava em Massachusetts ou no sul de Vermont.
— Este jantar está parecendo um sonho — comentou Nicole. — Ainda não acreditei que tudo
isso está acontecendo na realidade.
— Sentimos a mesma coisa na noite passada — falou Simone — quando nos disseram que
iríamos ver Patrick de manhã... Nem Michael nem eu conseguimos dormir. — Simone riu. —
A certa altura da noite, nós nos convencemos de que íamos encontrar um falso Patrick, e
ficamos pensando nas perguntas que faríamos e que só o verdadeiro Patrick saberia responder.
— A capacidade tecnológica deles é assombrosa — disse Michael. — Se quisessem criar um
robô Patrick, seria difícil dizermos se era verdadeiro ou não.
— Mas não fizeram isso. Logo depois que Patrick entrou, vi que era ele mesmo.
— O que você achou dele? — perguntou Nicole. — Com a confusão do último dia, mal tive
tempo de conversar com ele.
— Resignado — respondeu Simone —, mas certo de que tomou a decisão correta. Ele disse
que provavelmente levará semanas para digerir todas as emoções que sentiu nessas últimas
vinte e quatro horas.
— Acho que todos nós pensamos assim — observou Nicole. Fez-se um breve silêncio.
— Você está cansada, mamãe? — perguntou Simone. — Patrick falou dos seus problemas de
saúde, e quando nos avisaram hoje de manhã que você estava atrasada...
— É, estou um pouco cansada — interrompeu Nicole. — Mas não conseguiria dormir... Pelo
menos não nesse instante... — Afastou sua cadeira de rodas da mesa e baixou o assento. —
Mas gostaria de ir ao toalete.
— É claro — disse Simone, dando um pulo da cadeira. — Eu vou com você.
Simone acompanhou a mãe por um longo corredor com chão simulando madeira.
— Então você tem seis filhos vivendo aqui, três dos quais de gravidez natural?
— Isso mesmo — respondeu Simone. — Michael e eu tivemos dois meninos e duas meninas
pelo método natural, como você diz... O primeiro menino, Darren, morreu aos sete anos... É
uma longa história. Se houver tempo, conto para você amanhã... As outras crianças foram
desenvolvidas em embriões nos laboratórios deles...
As duas chegaram na porta do toalete.
— Você sabe quantas crianças a Águia e seus colegas desenvolveram? — perguntou Nicole.
— Não — respondeu Simone. — Mas eles disseram que tiraram mais de mil óvulos saudáveis
dos meus ovários.
Na volta para a sala de jantar, Simone explicou que todas as crianças que haviam nascido pelo
método natural tinham vivido sempre com Michael e ela. Seus cônjuges, que eram também
produto do esperma de Michael e dos óvulos dela, haviam sido selecionados depois de uma
técnica de combinação genética desenvolvida pelos alienígenas.
— Então foram casamentos arranjados? — perguntou Nicole.
— Não exatamente — respondeu Simone rindo. — Meus filhos naturais foram apresentados a
vários candidatos possíveis, depois que todos eles passaram pelos testes genéticos.
— E você não teve problemas com seus netos?
— Nada que fosse estatisticamente significativo, para usar a expressão de Michael —
respondeu Simone.
Quando elas chegaram à sala de jantar, a mesa estava vazia e Michael disse que o bule de café
e as xícaras estavam no escritório. Nicole acionou a cadeira de rodas e seguiu-os até um
escritório amplo, com estantes de madeira escura e uma lareira acesa.
— Esse fogo é autêntico? — perguntou Nicole.
— É — disse Michael, inclinando o corpo para a frente. — Você perguntou sobre nossos
filhos. Queremos que você os conheça, mas achamos que seria cansativo ver tanta gente ao
mesmo tempo...
— Eu compreendo — disse Nicole, dando um gole no café fresco —, e concordo com você...
Não teríamos esse jantar sossegado se houvesse mais seis pessoas aqui conosco.
— E não se esqueça dos quatorze netos — disse Simone.
Nicole olhou para Michael e sorriu.
— Desculpe, Michael, mas você é a parte mais irreal desta noite. Toda vez que olho para o
seu rosto fico confusa. Você deve ser uns quarenta anos mais velho do que eu, mas não parece
ter mais de sessenta, e está definitivamente mais moço do que quando saí de Nodo. Como é
possível?

— A tecnologia deles é absolutamente mágica — disse Michael. — Eles refizeram


praticamente todo o meu corpo. Meu coração, pulmões, fígado, aparelho digestivo e sistemas
excretores e a maior parte das glândulas endócrinas foram substituídos, alguns várias vezes,
por equivalentes menores e mais eficientes. Meus ossos, músculos, nervos e vasos sangüíneos
são reforçados com milhões de implantes microscópicos, que, além de garantirem as funções
críticas, em muitos casos rejuvenescem bioquimicamente as células velhas. Minha pele é feita
de um material especial que foi aperfeiçoado recentemente; ela tem todas as boas
propriedades da pele humana, mas não envelhece nem cria manchas ou verrugas... Uma vez
por ano vou ao hospital, fico inconsciente durante dois dias e saio de lá literalmente novo.

— Você se importa de chegar aqui para eu examiná-lo de perto? — perguntou Nicole rindo. —
Não preciso encostar nas suas chagas feito São Tome, mas você há de convir que é difícil
acreditar no que está me contando.
Michael O'Toole atravessou a sala e ajoelhou-se ao lado da cadeira de rodas. Nicole estendeu
a mão e tocou no rosto dele. Era suave e macio como o de um rapaz. Seus olhos eram frescos
e claros.
— E quanto a seu cérebro, Michael — perguntou Nicole —, o que fizeram com ele?
Michael sorriu, e Nicole notou que não havia rugas na sua testa.
— Muita coisa. Quando a minha memória começou a falhar, eles recondicionaram meu
hipocampo. E até o complementaram com uma pequena estrutura especial que me torna mais
capaz, segundo informaram... Há mais ou menos vinte anos foi instalado no meu cérebro um
sistema operacional melhor, como eles descrevem, para aprimorar meu raciocínio...
Michael estava a menos de um metro dela, e a luz da lareira refletia-se em seu rosto. De
repente, Nicole foi tomada por uma torrente de lembranças. Recordou-se de como tinham sido
amigos em Rama, e dos seus momentos de intimidade, quando Richard foi embora e pensaram
que tinha morrido. Nicole tocou mais uma vez no rosto dele.
— E você continua a ser Michael O'Toole — perguntou ela — ou tornou-se outra pessoa,
parte humano e parte alienígena?
Michael levantou-se sem dar uma palavra e voltou para sua cadeira. Seus movimentos eram de
um atleta, não os de um homem de mais de cento e vinte anos.
— Não sei como responder à sua pergunta — disse ele. — Eu me lembro com todos os
detalhes da minha infância em Boston e de todas as fases importantes da minha vida. Ao que
eu saiba, ainda sou mais ou menos o mesmo...
— Michael anda extremamente interessado em religião e na criação — falou Simone pela
primeira vez depois de algum tempo. — Mas ele mudou um pouco; todos nós ficamos
alterados com a nossa experiência de vida...
— Continuo a ser um devoto católico apostólico romano — disse Michael — e faço minhas
orações diariamente... Mas é claro que minha visão de Deus e da humanidade mudou de forma
drástica, em razão de tudo o que Simone e eu vimos... Mas minha fé se fortaleceu...
basicamente por causa das minhas conversas iluminadas com...
Michael parou e olhou para Simone.
— Nos primeiros anos, mãe — falou ela —, quando Michael e eu estávamos sozinhos em
Nodo perto de Sírius, enfrentamos muitas dificuldades... Tínhamos só um ao outro para
conversar... Eu era uma garota e Michael, um homem maduro... Eu não conhecia nada de
física, de religião ou de vários outros assuntos favoritos dele...
— Nós não tínhamos um problema grave — falou Michael. — Mas éramos muito solitários,
de uma forma muito especial... Nossa vida em comum era ótima e enriquecedora... Mas
precisávamos de outra coisa, de uma coisa a mais...
— A Inteligência Nodal, ou qualquer outro nome que se dê ao poder que cuidava de nós,
percebeu nossa dificuldade. E também reconheceu que a Águia poderia preencher nossas
necessidades individuais. Então, criaram um companheiro para cada um de nós, em certo
sentido como a Águia.
— Foi um golpe de mestre — disse Simone — que acabou com a tensão emocional que
ameaçava nosso casamento perfeito. Quando São Michael...
— Deixe que eu conto, querida — interrompeu Michael. — Uma noite, quase dois anos depois
que você e os outros partiram, Simone estava no quarto do apartamento, amamentando Katya,
quando ouvimos uma batida na porta... Imaginei que fosse a Águia... Ao abrir a porta, vi um
rapaz de cabelos pretos e crespos, olhos azuis, uma perfeita reconstrução de São Miguel de
Siena. O rapaz me disse que a Águia não teria mais contato conosco e que ele seria meu novo
intermediário com a inteligência que governava Nodo...
— São Michael — falou Simone — tinha um vasto conhecimento da história da Terra, do
catolicismo, de física e de todos os outros assuntos que eu desconhecia por completo...
— Além disso — falou Michael, levantando-se da cadeira —, ele nos explicava o que
acontecia à nossa volta em Nodo... Não que a Águia não explicasse, mas São Michael era
muito mais caloroso, mais pessoal. Era como se tivesse sido enviado por eles, ou por Deus,
para ser um companheiro do meu pensamento.
Nicole ficou olhando para Simone e para Michael, cuja expressão era absolutamente radiante.
O fervor religioso dele não declinou, foi redirecionado, pensou ela.
— E esse São Michael ainda anda por aqui? — perguntou Nicole, engolindo o último gole de
café.
— É claro — falou Michael. — Nós não o apresentamos a Patrick porque ele não tinha muito
tempo, mas queremos que você o conheça. — Michael atravessou a sala, cheio de energia. —
Lembra-se que Richard perguntava infinitas vezes quem havia construído Nodo e Rama, e com
que propósito? São Michael pode dar essas respostas e explica tudo com grande eloqüência.
— Meu Deus! — exclamou Nicole com um ligeiro traço de ironia na voz. — Parece uma coisa
fantástica... Boa demais para ser verdade... Quando vou ter o privilégio de conhecê-lo?
— Agora mesmo, se quiser — respondeu Michael O'Toole esperançoso.
— Muito bem — falou Nicole, dando um bocejo. — Mas lembre-se de que estou cansada,
doente, e que sou uma mulher idosa... Não posso ficar acordada até tarde...
Michael foi até a porta do escritório.
— São Michael —- chamou —, pode vir até aqui conhecer a mãe de Simone?
Um instante depois, um jovem padre de pouco mais de vinte anos, vestido com uma túnica
azul-escura, entrou na sala e foi até a cadeira de rodas de Nicole.
— Estou encantado em conhecê-la — disse ele, com um sorriso beatificado. — Ouço falar na
senhora há muitos anos.
Nicole estendeu a mão e examinou o alienígena atentamente. Não havia nada naquele
indivíduo que demonstrasse que ele não era um ser humano normal. Meu Deus, não só a
tecnologia deles é fantástica como seu aprendizado é incrível, pensou Nicole.
— Agora vamos deixar uma coisa bem clara desde o início — disse ela para São Michael,
com um sorriso de esguelha. — Há muitos Michaels aqui. Não pretendo chamar você de São
Michael; não é meu feitio. Posso chamar de São, de Mike ou de Mikey? O que você prefere?
— Quando os dois estão juntos, eu chamo meu marido de Grande Michael — falou Simone. —
E tem dado certo.
— Muito bem — falou Nicole. — Como dizia Richard, "Em Roma, como os romanos..."
Sente-se aqui, Michael, perto da minha cadeira... O Grande Michael fez tantos elogios a você
que não quero perder uma filigrana da sua sabedoria por causa da minha má audição.
— Obrigado, Nicole — disse São Michael com um sorriso. — Michael e Simone também têm
me falado das suas virtudes, mas eles subestimaram sua inteligência aguçada.
E ele tem personalidade. Será que as maravilhas não vão cessar nunca?, pensou Nicole.
Uma hora depois, Simone levou-a para o quarto de hóspedes no final do corredor. Nicole
deitou-se de lado e ficou olhando para a janela. Embora estivesse muito cansada, não
conseguia dormir. Sua cabeça funcionava a todo vapor, repassando todos os acontecimentos
do dia.
Talvez eu deva pedir um remédio para dormir, pensou, passando a mão pelo botão da mesa-
de-cabeceira. Simone disse que São Michael viria se eu o chamasse. E que ele pode fazer
tudo o que a Águia faz. Tendo certeza de que podia pedir ajuda caso sua insônia persistisse,
Nicole ajeitou-se numa posição confortável e soltou seus pensamentos.
Pensou no que tinha visto e ouvido desde que chegara naquele isolado enclave em que
Michael, Simone e sua família viviam. São Michael explicara que aquela pseudo-Nova
Inglaterra era uma pequena seção do Módulo de Habitação de Nodo, e que havia centenas de
outras espécies vivendo de forma semipermanente na vizinhança. Nicole tinha perguntado por
que Michael e Simone preferiram viver separados de todos os outros.
— Durante anos — Michael O'Toole respondeu —, vivemos em ambientes com várias
espécies. Na verdade, até depois de nossos quatro filhos naturais nascerem fomos passados de
um lugar para outro, a fim de que testassem nosso senso de adaptação e compatibilidade com
uma gama de outras plantas e espécies animais... Naquela época, São Michael confirmou o
que suspeitávamos, isto é, que nossos hospedeiros queriam expor-nos a uma variedade de
ambientes para colher mais informações sobre nós... Cada novo local era um novo desafio...
Michael fez uma pausa, como se estivesse controlando sua emoção.
— As provações psicológicas foram terríveis nos primeiros dias. Assim que nos adaptávamos
a uma condição de vida, elas mudavam abruptamente... Eu ainda acho que Darren não teria
morrido se tudo não fosse tão estranho naquele mundo subterrâneo... E quase perdemos Katya
também quando ela estava com uns dois anos e sua curiosidade foi tomada como um ato de
agressividade por uma criatura marinha semelhante a uma lula.
— Depois que nos puseram para dormir pela segunda vez — disse Simone — e nos trouxeram
para este Nodo, Michael e eu estávamos exaustos de tantos testes durante anos e as crianças
estavam crescidas e começavam a casar-se. Pedimos para ter um pouco de privacidade, e
nosso pedido foi acatado...
— Nós ainda vamos ao outro mundo — acrescentou Michael —, mas agora interagimos com
os seres exóticos de distantes sistemas estelares porque queremos, e não por obrigação... São
Michael nos informa regularmente sobre os jogos de basquete e as tartarugas voadoras. Ele é
nossa janela informativa para o resto do Nodo.
São Michael é extraordinário, pensou Nicole, e muito mais avançado até mesmo do que a
Águia. Responde a qualquer pergunta com segurança. Mas há alguma coisa nele que me
deixa intrigada... Será que todas aquelas respostas sobre Deus, a origem e o destino do
universo eram realmente corretas? Ou São Michael foi programado para ser o perfeito
companheiro alienígena de Michael, com base no seu fervor religioso?
Nicole rolou na cama e considerou seu próprio relacionamento com a Águia. Talvez eu esteja
com ciúmes, porque parece que Michael aprendeu muito... e a Águia não tem boa-vontade
de responder, ou não sabe responder às minhas perguntas... Mas quem sai ganhando mais, a
criança cujo mentor sabe e conta tudo, ou a criança cujo professor ajuda a encontrar suas
próprias respostas?... Eu não sei... Eu não sei... Mas foi uma apresentação e tanto de São
Michael no altar...

— Está vendo, Nicole? — disse Michael, pulando da cadeira pela enésima vez. — Todos nós
estamos participando da grande experiência de Deus. Todo o universo, não só a nossa própria
galáxia, mas todas as galáxias que se estendem até o final dos céus fornecerão pontos de
referência para Deus... Ele busca a perfeição, aquela pequena série de parâmetros iniciais que
— como o universo é movimentado pela transformação de energia em matéria — evoluirão ao
longo de bilhões de anos em uma harmonia perfeita, um testemunho da capacidade consumada
do Criador...
Nicole teve dificuldade em seguir a alta matemática, mas compreendeu a essência dos
diagramas que São Michael desenhou no quadro-negro do escritório.
— Então, neste momento — disse ela para o alienígena de cabelos pretos e olhos azuis —, há
inúmeros outros universos em evolução, cada um iniciado por Deus em condições diferentes,
e de certa forma Deus introduziu você, a Águia, Nodo e Rama dentro desse específico
processo de evolução para adquirir informações? E tudo isso para que Ele possa definir
alguma construção matemática associada com a criação que sempre produzirá um resultado
harmonioso?
— Exatamente — respondeu São Michael, apontando mais uma vez para o diagrama do
quadro-negro. — Imagine que esse sistema coordenado que desenhei seja uma representação
simbólica em duas dimensões das hipersuperfícies disponíveis de parâmetros que definem o
instante da criação, o momento em que a energia é transformada pela primeira vez em matéria.
Qualquer disposição ou vetor que represente um conjunto específico de condições iniciais
para o universo pode ser descrita com um único ponto no meu diagrama. O que Deus está e
esteve buscando é um conjunto muito especial, fechado e denso, localizado nesta
hipersuperfície matemática. A propriedade desse conjunto especial que Ele busca é que
qualquer de seus elementos, isto é, qualquer disposição de condições no instante da criação,
escolhida dentro deste conjunto, produza um universo que finalmente terminará em harmonia.
— É um problema quase insolúvel — disse Michael — criar um universo onde todos os seres
vivos acabarão proclamando a glória de Deus. Se não houver matéria suficiente, a explosão e
a expansão do instante da criação resultarão num universo expandindo-se para sempre, sem
interação dos componentes individuais durante a evolução para produzir e sustentar a vida. Se
houver matéria em excesso, o tempo será insuficiente para que a vida e a inteligência se
desenvolvam plenamente, antes que a gravidade determine a grande compressão que acabará
com o universo.
— O caos também atrapalha Deus — explicou São Michael — O caos é um fruto de todas as
leis físicas que regem a evolução de qualquer universo criado. Ele impede a predição exata
dos resultados dos processos em grande escala, e assim Deus não pode, a priori, calcular o
que irá acontecer no futuro e, através de técnicas analíticas, isolar as zonas de harmonia... A
experiência é a única forma possível para Deus descobrir o que está buscando...
— A estrutura que se opõe ao projeto de Deus é avassaladora — acrescentou Michael. —
Para que Deus tenha êxito, não só a vida e a inteligência devem evoluir de partículas
subatômicas brutas a átomos, através dos cataclismos estelares, como a vida deve alcançar um
nível de conscientização espiritual e capacidade tecnológica tal, que transforme ativamente
tudo em volta dela...
Então, Deus é o supremo projetista, o supremo engenheiro, pensou Nicole no seu quarto, ao
lembrar-se da discussão. Ele modela o momento da criação de tal forma, que bilhões de
anos .mais tarde os seres vivos atestam a maravilha da criação...
— Há uma parte aí que ainda não entendo — falou Nicole para os dois Michaels e Simone no
final da noite. — Por que Deus cria tantos universos para realizar sua experiência? Uma vez
comprovado um resultado harmonioso, a tarefa não se torna mais fácil? As condições iniciais
daquele universo não podem simplesmente ser repetidas?
— Esse não é um problema difícil para Deus — respondeu São Michael. — Deus deseja
saber a extensão da zona de harmonia na hipersuperfície dos parâmetros de criação e também
todas as características matemáticas da zona... Além do mais, acho que você ainda não avaliou
o alcance do problema de Deus. Apenas uma fração minúscula de todos os universos
possíveis poderá vir a ser harmoniosa. O resultado natural da transformação de energia em
matéria é um universo absolutamente desprovido de vida, ou, na melhor das hipóteses, com
criaturas agressivas, de vida temporária, mais destrutivas que construtivas. Mesmo uma
pequena área de harmonia dentro de um universo em evolução é um milagre... Por isso o
empreendimento todo é tão desafiador para Deus.
Michael deu outro pulo e voltou a discursar.
— Deus está buscando um universo que alcance uma total harmonia antes de morrer na grande
compressão. Ele não deseja apenas que as espécies vivas de todo o mundo trabalhem juntas
para o bem comum, mas que todas as partículas subatômicas da Sua criação participem
ativamente dessa harmonia... Durante algum tempo, eu mesmo não compreendia toda a
grandeza desse conceito. Então, São Michael me falou sobre uma espécie que cria seres vivos
com pedra e terra, como nosso Deus bíblico fez, transmutando e reorganizando os elementos.
A harmonia total requer que espécies avançadas, como nós, usem seus instrumentos
tecnológicos para transformar coisas inanimadas em criaturas que contribuam para essa
harmonia...
Nicole lembrou-se de que naquele ponto da conversa havia dito que sua cabeça estava
estourando e que queria ir para a cama. São Michael lhe pedira para esperar só mais uns
minutos para ele resumir a discussão, que a seu ver fora desorganizada. Nicole tinha
concordado.
— Voltando à nossa pergunta original — disse São Michael —, cada um dos Nodos faz parte
de uma inteligência hierárquica que colhe informações através da sua galáxia específica. A
maioria das galáxias, inclusive a Via-Láctea, tem uma única superestação chamada Monitor
Motriz, localizada perto dos centros. O conjunto de Monitores Motrizes foi criado por Deus
no mesmo instante em que o universo começou, e depois foi desdobrado, a fim de conhecer ao
máximo os processos evolutivos. Os Nodos, os transportadores e todas as outras construções
de engenharia que você viu foram, por sua vez, projetados pelo Monitor Motriz. Toda a
atividade, inclusive a ocorrida desde que a primeira nave Rama entrou no seu sistema solar
muitos anos atrás, tem por objetivo o desenvolvimento de critérios quantitativos, a serem
usados pelo Criador, que permitirão que os universos subseqüentes terminem em harmonia
gloriosa, apesar das tendências caóticas das leis naturais.
Nicole deu um assobio.
— Esta conversa está complicada demais e agora estou exausta — falou, movimentando sua
cadeira de rodas.
Mas não tão exausta a ponto de dormir, pensou. Como é possível dormir depois de ouvir a
explicação do objetivo do universo? Nicole riu para si própria na cama. Não posso imaginar
o que Richard diria depois dessa discussão... Uma boa teoria talvez, mas como explicaria a
liderança da África na Copa do Mundo de 2140 a 2160?... Nicole riu novamente. Richard
teria gostado de São Michael, sem dúvida alguma, mas teria feito centenas de perguntas...
Nós teríamos feito amor assim que voltássemos para o quarto e conversaríamos a noite
toda...

Ela bocejou e virou-se para o outro lado. À medida que afundava no sono, visões do universo
dançavam na sua cabeça.

Nicole acordou descansada e com uma energia surpreendente. Ia apertar o botão da mesa-de-
cabeceira, mas resolveu passar para a sua cadeira de rodas. Foi até a janela e puxou as
cortinas.
A manhã estava bonita. Nicole viu um riacho à sua esquerda, e três crianças entre oito e dez
anos de idade jogando pedras num laguinho formado pelo curso natural do riacho. Ao olhar
para os campos perfeitamente simulados, com árvores e morros arredondados, sentiu-se
temporariamente jovem e cheia de vida.
Talvez fosse uma boa idéia eles me restaurarem toda, pensou. Substituir todos os órgãos
gastos e doentes... Eu poderia viver aqui, com Simone e Michael. Talvez até pudesse ensinar
umas coisinhas para meus netos...
As três crianças saíram do riacho e atravessaram correndo o gramado até a cocheira dos
cavalos. O garoto corria mais depressa, mas era quase do tamanho da menina menor. Os três
chegaram lá rindo e chamando os cavalos pela cerca.
— O menino é Zacarias — disse Michael por trás dela. — As duas meninas são Colleen e
Simone... Zacarias e Colleen são filhos de Katya, e Simone é a mais velha de Timothy.
Nicole, que não ouvira Michael entrar no quarto, deu meia-volta com a cadeira de rodas.
— Bom dia, Michael — disse, olhando para trás. — As crianças são maravilhosas.
— Obrigado — falou Michael, andando para a janela. — Sou um homem de muita sorte. Deus
me deu uma vida fascinante, com riquezas inacreditáveis.
Os dois ficaram em silêncio olhando as crianças brincarem. Zacarias montou um cavalo
branco e começou a se exibir.
— Fiquei triste quando soube da morte de Richard — disse Michael. — Patrick nos contou a
história ontem... Deve ter sido horrível para você.
— Foi — respondeu Nicole. — Richard e eu tínhamos uma amizade maravilhosa... — Os dois
olharam-se. — Você teria ficado orgulhoso dele, Michael. Ele se tornou um homem diferente
nos últimos anos.
— Imagino que sim... O Richard que conheci não teria se apresentado como voluntário
sabendo que correria perigo, especialmente com a intenção de salvar a vida dos outros...
— Você devia ter visto Richard com a neta, Nikki, filha de Ellie. Eram inseparáveis. Ele
encontrou a ternura muito tarde na vida.
Nicole não pôde continuar, pois sentiu uma súbita dor no peito, fortíssima. Foi até a mesa-de-
cabeceira e deu um gole na garrafa com o líquido azul.
Voltou para a janela, e os dois ficaram olhando um pouco mais as crianças brincando. As
meninas estavam a cavalo também e faziam algum tipo de brincadeira.

— Patrick nos disse que Benjy tornou-se um ótimo rapaz, limitado sob certos aspectos mas
bastante especial, levando-se em conta sua capacidade básica e os longos períodos de sono...
Ele disse que Benjy é um tributo vivo aos seus talentos, todos eles, e que você se dedicou
incansavelmente a ele, nunca deixando-o usar sua deficiência como desculpa...

Dessa vez foi Michael que não conseguiu continuar. Virou-se para Nicole com lágrimas nos
olhos e colocou suas mãos nas mãos dela.
— Não sei como lhe agradecer por educar esses dois meninos com tanto carinho.
Especialmente Benjy.
Nicole olhou para ele da sua cadeira de rodas.
— Eles são nossos filhos, Michael. Eu amo muito aqueles dois. Michael esfregou o nariz e os
olhos com um lenço.
— É claro que Simone e eu queremos que você conheça nossos filhos e netos, mas achamos
melhor lhe contar uma coisa primeiro... Não sabíamos exatamente como você reagiria... Porém
não seria justo não lhe contar, senão você poderia não compreender por que as crianças estão
reagindo...
— O que é, Michael ? — interrompeu Nicole sorrindo. — Você está com dificuldade em me
contar a história.
— Estou sim — disse ele, atravessando o quarto e apertando o botão ao lado da cama de
Nicole duas vezes em seguida. — Nicole, o que vou dizer é um tanto delicado... Lembra-se da
noite passada, quando nós dissemos que Simone e eu tínhamos amigos alienígenas?...
— Lembro, Michael — respondeu Nicole.
Ela ainda estava olhando pela janela. Michael foi para o seu lado e pegoulhe a mão. Do lado
de fora, uma mulher de seus quarenta anos, com a pele cobreada, tinha saído da casa e
caminhava devagar para a estrebaria. A figura da mulher e seu jeito de andar pareceram
familiares a Nicole. Quando as crianças viram a mulher, acenaram para ela e vieram a cavalo
na sua direção.
Quando Zacarias gritou o nome da mulher, Nicole de repente compreendeu e ficou estupefata.
A mulher virou-se e Nicole se viu, exatamente como era quando saiu do Nodo, quarenta anos
antes. Foi difícil controlar suas emoções.
— Como Simone sentia muito a sua falta — disse Michael, ao ver o olhar de assombro no
rosto de Nicole —, o alienígena criou para ela uma companheira à sua imagem... É uma
simulação notável. Não só pela aparência física, como você pode ver, mas também pela sua
personalidade. Simone e eu ficamos espantados, especialmente no começo, com a réplica
perfeita que eles conseguiram. A alienígena falava como você, andava como você e até
pensava como você... Dentro de uma semana, Simone a chamava de mamãe, e eu, de Nicole.
Ela está conosco desde aquela época.
Nicole olhou para a réplica de si própria sem dar uma palavra. As expressões faciais e até
mesmo os gestos são corretos, pensou, continuando a olhar fixo quando a mulher se aproximou
da casa com as três crianças.
— Simone achou que talvez você ficasse um pouco perturbada, ou talvez se sentisse deslocada
quando descobrisse que sua réplica vive com a nossa família há todos esses anos. Mas eu
garanti a ela que você reagiria bem, só que levaria algum tempo para acostumar-se à idéia...
Afinal de contas, ao que eu saiba, é a primeira vez que um ser humano é substituído por um
robô de si próprio.
A alienígena Nicole pegou uma das crianças e girou-a no ar; depois, os quatro subiram os
degraus da entrada da casa.
Eles a chamam de vovó, pensou Nicole. Ela pode correr, andar a cavalo e girar as crianças
no ar... Não está encarquilhada e confinada a uma cadeira de rodas. Uma emoção que não
agradava a Nicole, a autopiedade, começou a crescer dentro dela. Talvez Simone não tenha
sentido tanta saudade de mim. A "mãe" dela vive aqui há muito tempo, está à sua
disposição, não envelhece e não pede nada...
Nicole sentiu que ia chorar, mas controlou-se.
— Michael — disse, forçando um sorriso —, me dê um minuto para eu me preparar para o
café da manhã.
— Tem certeza de que não precisa de ajuda? — perguntou ele.
— Tenho sim... Eu me ajeito bem... Só quero lavar meu rosto e pôr um pouco de maquiagem.
Assim que a porta se fechou, as lágrimas desceram pelo seu rosto. Não há lugar para mim
aqui também. Eles já têm uma vovó, melhor do que eu teria sido, mesmo sendo apenas uma
máquina...

Nicole não falou quase nada quando voltou para o centro de transporte. Ficou quieta quando o
foguete deixou o Módulo de Habitação e saiu pelo espaço.
— Você não quer contar nada, não é? — disse a Águia.
— Na verdade, não — falou Nicole pelo microfone do seu capacete.
— Gostou de ter vindo? — perguntou a Águia um pouco depois.
— É claro... gostei muito. Foi uma das experiências mais importantes da minha vida... Muito
obrigada.
A Águia controlou o vôo do foguete para que eles voltassem devagar. O imenso tetraedro
iluminado dominava a vista da janela.
— O processo de substituição pode ser feito hoje à tarde — disse a Águia. — No início da
semana que vem você vai parecer mais moça do que Michael.
— Não, obrigada — falou Nicole. Houve outro período de silêncio.
— Você não parece muito feliz — observou a Águia. Nicole virou-se para olhar seu
companheiro alienígena.
— Eu estou. E estou especialmente feliz por Michael e Simone... É maravilhoso tudo o que
eles realizaram na vida... — Nicole respirou fundo. — Talvez eu esteja um pouco cansada.
Muita coisa aconteceu num tempo muito curto.
— Provavelmente é isso — falou a Águia.
Nicole afundou em seus pensamentos, revendo metodicamente tudo o que tinha acontecido
desde que acordara. Os rostos dos seis filhos de Michael e Simone e dos seus quatorze netos
passaram-lhe pela cabeça. Um belo grupo, mas sem grandes variações, pensou ela.

Mas era outro rosto, do qual se lembrava claramente no seu próprio espelho, que lhe voltava a
toda hora. Nicole concordara com Simone e Michael que sua réplica tinha uma semelhança
inacreditável com ela, era um absoluto sucesso da tecnologia avançada. O que não conseguira
discutir com eles foi a sensação estranha que teve ao encontrar e conversar consigo própria
quando mais jovem. E ao ver que fora substituída por uma máquina nos corações e mentes da
sua própria família.

Nicole tinha observado em silêncio a sua réplica numa conversa bemhumorada com Simone
sobre uma discussão entre ela e sua irmã menor, Katie, quando estavam em Nodo, há muitos
anos. Quando a alienígena lembrou-se dos detalhes da história, Nicole lembrou-se também.
Até a memória dela é melhor que a minha... Que solução perfeita para o problema de
envelhecimento e da morte... captar uma pessoa no auge da sua vida, com todos os seus
poderes intactos, e preservá-la para sempre como uma lenda, pelo menos aos olhos de seus
entes queridos.
— Como posso ter certeza de que a Simone e o Michael com quem conversei ontem e hoje de
manhã são seres humanos reais, e não uma mera simulação de alta fidelidade como a outra
Nicole? — perguntou à Águia.
— São Michael disse que você fez várias perguntas sobre o início da vida do Michael —
disse a Águia. — Não ficou satisfeita com as respostas?
— Mas percebi, quando estávamos no carro, uma hora atrás, que algumas informações podiam
estar no arquivo biográfico de Michael na nave Newton, e sei que vocês tiveram acesso
àqueles dados...
— E iríamos tão longe só para enganar você? — perguntou a Águia. — Por acaso já agimos
assim alguma vez?
— Quantos outros filhos de Simone e Michael ainda estão vivos? — perguntou Nicole um
pouco depois, mudando de assunto.
— Trinta e dois estão aqui em Nodo — respondeu a Águia. — E mais de cem em outros
lugares.
Nicole sacudiu a cabeça, lembrando-se das crônicas de Senoufo. "E sua prole será espalhada
entre as estrelas..." Omeh teria gostado disso, pensou.
— Vocês aperfeiçoaram seu desenvolvimento de humanos fora do útero a partir de óvulos
fertilizados? — perguntou Nicole.
— Mais ou menos — respondeu a Águia.
Mais uma vez, eles ficaram voando em silêncio por longo tempo.
— Por que você nunca me contou sobre os Monitores Motrizes? — perguntou Nicole em
seguida.
— Eu não tinha permissão para contar, pelo menos até você acordar... E desde então o assunto
não veio à baila.
— E tudo o que São Michael disse é verdade? Sobre Deus, o caos e muitos universos?
— Ao que eu saiba sim — disse a Águia. — Pelo menos é isso que está programado nos
nossos sistemas... Nenhum de nós daqui jamais viu um Monitor Motriz.

— E é possível — continuou Nicole — que toda essa história seja um tipo de mito criado por
uma inteligência hierarquicamente superior a você, como uma explicação oficial a ser dada
para os seres humanos?

A Águia hesitou.
— Essa possibilidade existe... Mas não tenho como saber.
— Você saberia se alguma coisa diferente, alguma outra explicação tivesse sido programada
nos seus sistemas antes?
— Não necessariamente. Eu não sou o único responsável pelo que é retido na minha memória.
O comportamento de Nicole permaneceu estranho. Ela interrompeu os prolongados períodos
de silêncio com perguntas aparentemente desconexas, e a certa altura perguntou por que alguns
Nodos tinham quatro módulos e outros três. A Águia explicou que o Módulo do Conhecimento
criava um tetraedro do triângulo nodal em cerca de cada décimo ou décimo segundo Nodo.
Nicole quis saber o que havia de tão especial no Módulo do Conhecimento. A Águia explicou
que era o repositório de todas as informações adquiridas sobre aquela parte da galáxia.
— O Módulo do Conhecimento é parte biblioteca, parte museu, e contém uma quantidade
colossal de informações de várias formas — disse a Águia.
— Você já esteve dentro desse Módulo? — perguntou Nicole.
— Não, mas meu atual sistema contém uma descrição completa dele...
— Posso ir lá?
— Um ser humano precisa ter permissão especial para entrar no Módulo do Conhecimento —
respondeu a Águia.
Depois, Nicole perguntou o que iria acontecer com os humanos que se transferissem para
Nodo dentro de um a dois dias. A Águia explicou pacientemente que eles viveriam no Módulo
Habitacional em um ambiente de teste com várias outras espécies, que seriam monitorados de
perto, e que Simone, Michael e sua família talvez se integrassem aos humanos que iriam
passar para Nodo.
Nicole tomou sua decisão alguns minutos antes de chegar na Estrela do Mar.
— Quero ficar só mais esta noite aqui — disse lentamente — para me despedir de todos.
A Águia olhou para ela com uma expressão curiosa.
— Amanhã, se você conseguir permissão — continuou Nicole —, quero que me leve ao
Módulo do Conhecimento... Depois que eu sair da Estrela do Mar, quero que todos os meus
medicamentos sejam suspensos... E não quero que façam esforços heróicos se meu coração
der problemas.
Nicole olhou em frente, através do visor do seu capacete espacial, pela janela do foguete.
Chegou a minha hora, disse para si mesma. Preciso ter a coragem de não hesitar.
— Sim, mãe — disse Ellie. — Compreendo, compreendo mesmo... Mas sou sua filha. Eu te
amo. Por mais que seja lógico para você, não consigo ficar feliz sabendo que não vou mais te
ver.
— Então o que devo fazer? — perguntou Nicole. — Deixar que eles me transformem num tipo
de mulher biônica para eu ficar por aí para sempre? E ser a grande dama da comunidade,
pomposa e toda importante? Isso realmente não faz muito sentido para mim.
— Mas todos admiram você, mamãe. Sua família a ama, e você pode levar anos conhecendo a
família de Simone e Michael... Você nunca seria um problema para nenhum de nós...
— Não é esse o caso — falou Nicole, virando a cadeira de rodas para a parede nua. — O
universo está em constante renovação — disse, tanto para si como para Ellie. — Tudo,
indivíduos, planetas, estrelas, e até mesmo galáxias, tem um ciclo de vida, uma morte assim
como um nascimento. Nada dura para sempre, nem mesmo o próprio universo... Mudança e
renovação são parte essencial do processo como um todo. As octoaranhas sabem muito bem
disso. Por isso os extermínios planejados são parte integrante do seu conceito de
reabastecimento.
— Mas, mamãe — disse Ellie por trás dela —, a menos que haja uma guerra, as octoaranhas
só mandam para a lista de extermínio os indivíduos que não contribuem mais para a sua
sociedade, e que portanto não justificam os recursos gastos com eles... Não nos custará nada
manter você viva... E sua sabedoria e experiência ainda são valiosas.
Nicole virou-se e sorriu.
— Você é uma mulher brilhante, Ellie. E reconheço que há grande parte de verdade no que
está dizendo. Mas você está ignorando de propósito os dois elementos-chaves da minha
decisão, que já expliquei à exaustão... Por motivos que nem você nem ninguém mais poderá
compreender, é importante que eu possa escolher minha própria hora de morrer. E quero tomar
essa decisão antes de me tornar uma carga ou de ficar inativa, e enquanto ainda tiver o
respeito da minha família e de meus amigos. Em segundo lugar, sinto que não tenho nenhum
canto definido no mundo de pós-transferência para Nodo. Portanto, a meu ver, não posso
justificar a maciça intervenção fisiológica que será necessária para que eu funcione sem ser
um problema para os outros... De vários pontos de vista diferentes, agora parece uma hora
excelente para eu partir.
— Como eu disse desde o início — falou Ellie —, sua análise fria e racional, seja correta ou
não, não deve ser considerada isoladamente. E o que você me diz dos sentimentos de perda de
Nicole, Nikki, meu e dos outros? E ficaremos ainda mais tristes sabendo que sua morte podia
ter sido evitada...
— Ellie — falou Nicole —, uma das razões para eu vir me despedir de você e dos outros foi
tentar aliviar qualquer sentimento de perda que vocês pudessem ter depois da minha morte...
Lembre-se mais uma vez das octoaranhas... Elas não sofrem...
— Mãe — interrompeu Ellie, lutando para conter as lágrimas —, nós não somos octoaranhas,
somos seres humanos... Nós sofremos... Ficamos desolados quando alguém que amamos
morre. Sabemos, teoricamente, que a morte é inevitável e que faz parte do esquema universal,
mas mesmo assim choramos e temos um agudo senso de perda...
Ellie fez uma pausa.

— Você já se esqueceu de como se sentiu quando papai e Katie morreram?... Ficou arrasada...

Nicole engoliu em seco e olhou para a filha. Eu sabia que não seria fácil, pensou. Não devia
ter voltado... Teria sido realmente melhor pedir para a Águia dizer a todos que eu tinha
morrido de um ataque cardíaco.
— Eu sei que você ficou transtornada — disse Ellie com carinho — quando descobriu que um
robô alienígena a tinha substituído na família de Simone e Michael... Mas não é preciso
exagerar... Mais cedo ou mais tarde, todos os filhos e netos deles saberão que não pode haver
substituta para a verdadeira Nicole des Jardins Wakefield.
Nicole suspirou, sentindo que estava perdendo a batalha.
— Eu admiti para você, Ellie, que senti que não havia lugar para mim na família de Simone e
Michael. Mas não é justo insinuar que minha reação à outra Nicole foi a única ou a principal
razão da minha decisão.
Estava ficando exausta. Tinha planejado falar primeiro com Ellie, depois com Benjy e
finalmente com o resto do grupo antes de dormir. Mas Ellie foi muito mais difícil do que
imaginara. Você está sendo realista?, perguntou Nicole a si mesma. É claro que Ellie não
diria "que ótimo, mãe, isso faz sentido. Estou triste de ver você partir mas compreendo
perfeitamente".
Ouviu-se uma batida na porta do apartamento. A Águia entrou e olhou para as duas mulheres.
— Estou atrapalhando? — perguntou. Nicole sorriu.
— Acho que estamos prontas para uma curta pausa — disse.
Ellie saiu, dizendo que ia ao banheiro, e a Águia foi para perto de Nicole.
— Como vão as coisas? — perguntou, debruçando-se sobre a cadeira de rodas.
— Não tão bem — respondeu ela.
— Passei para dizer que seu pedido para visitar o Módulo do Conhecimento foi concedido.
Partindo do princípio de que a situação básica que você me descreveu no foguete ainda está
de pé...
Nicole ficou radiante.
— Meu Deus, agora é só ter coragem de terminar o que comecei. A Águia deu uma palmada
nas suas costas.
— Você vai conseguir. Você é o ser humano mais extraordinário que já conheci.

A cabeça de Benjy repousava no peito de Nicole, deitada de costas com o braço em volta do
filho. Talvez esta seja a última noite da minha vida, pensou ela, tentando dormir. Sentiu um
ligeiro tremor de medo e tentou controlar-se. Não estou com medo de morrer, disse consigo
mesma, não depois do que já passei.

A visita da Águia a fortalecera. Quando voltou a conversar com Ellie, admitiu que todos os
argumentos da filha eram válidos e que não pretendia causar tristeza a seus amigos e sua
família, mas que estava determinada a persistir em sua decisão. Nicole mostrara a Ellie que
Benjy e ela, e em certo sentido os outros, teriam oportunidade de crescer com a sua ausência,
pois não haveria mais uma autoridade a quem pudessem recorrer.

Ellie disse a Nicole que ela era uma velha teimosa, mas que, como a amava e respeitava
muito, tentaria apoiá-la nas poucas horas que lhe restavam. Depois perguntou se Nicole
pretendia fazer alguma coisa específica para apressar sua morte. Nicole riu e disse para a
filha que não seria necessário tomar medidas drásticas, pois a Águia lhe garantira que sem
uma medicação complementar seu coração não duraria muitas horas.
A conversa com Benjy não foi tão difícil. Ellie ofereceu-se para ajudar a explicar tudo, e
Nicole aceitou o oferecimento. Benjy sabia que a saúde de sua mãe estava precária, e não
tinha conhecimento de que os alienígenas podiam resolver seus problemas médicos. Ellie
garantiu a Benjy que Max, Eponine, Nikki, Kepler, Marius e Maria continuariam a fazer parte
do seu mundo diário.
Quando ao grande grupo, só Eponine ficou com lágrimas nos olhos quando Nicole os informou
da sua decisão. Max disse que não estava tão surpreso. Maria falou que tinha pena de não ter
passado mais tempo com a mulher que salvara sua vida. Kepler, Marius e até mesmo Nikki
ficaram sem saber o que dizer.
Quando Nicole se preparava para dormir, prometeu a si mesma que localizaria o dr. Azul de
manhã cedo para despedir-se da amiga octoaranha. Antes de Nicole apagar as luzes, Benjy
aproximou-se da mãe e perguntou se podia ficar abraçado com ela como quando era pequeno,
já que seria a última noite que passariam juntos. Nicole concordou, e, depois que Benjy
enroscou-se nela, lágrimas lhe rolaram pelo rosto, molhando suas orelhas e a esteira de
dormir.

10

Nicole acordou cedo. Benjy já estava vestido, mas Kepler ainda dormia do outro lado do
quarto. Benjy ajudou mais uma vez Nicole a tomar uma ducha e a vestir-se.
Max chegou no apartamento pouco depois. Depois de acordar Kepler, foi até a cadeira de
rodas de Nicole e pegou sua mão.
— Eu não falei muito na noite passada, minha amiga, porque não encontrei as palavras
certas... Mesmo agora não sei bem o que dizer...
Virou a cabeça para o outro lado e disse, com a voz entrecortada, sem olhar para ela.
— Que merda, Nicole. Sabe muito bem o que eu sinto por você... você é uma pessoa linda,
linda.
Max se calou. O único ruído que se ouvia no quarto era a água do banho de Kepler. Nicole
apertou a mão dele.
— Obrigada, Max, isso significa muito para mim — disse, com muito carinho.
— Quando eu tinha dezoito anos — disse Max virando-se para Nicole, hesitante —, meu pai
morreu de um câncer raro... Todos nós sabíamos que tinha chegado a sua hora. Clyde, mamãe e
eu vimos que ele estava definhando há meses... Mas eu não queria acreditar, mesmo quando o
vi deitado no caixão... Fizemos uma cerimônia no cemitério, só para os amigos das fazendas
vizinhas e um mecânico de De Queen chamado Willie Townsend, que tomava um porre com
meu pai todo sábado à noite...
Max sorriu e relaxou. Ele adorava contar histórias.
— Willie era um bom sujeito, um solteirão de aspecto durão, mas muito doce por dentro... Ele
levou um fora da rainha dos esportes do ginásio de De Queen quando era um garotão e nunca
mais teve uma namorada... Minha mãe me pediu para dizer umas palavras no túmulo do papai,
e eu concordei... Eu mesmo escrevi o discurso, decorei tudo e até mesmo pratiquei em voz alta
em frente de Clyde... Na hora da cerimônia eu estava pronto para fazer o discurso... "Meu pai,
Henry Allan Puckett, era um bom homem", comecei. Depois fiz uma pausa, como tinha
planejado, e olhei em volta. Willie já estava fungando e olhando para o chão... De repente, não
consegui me lembrar de mais nada do discurso que estava preparado. Ficamos parados
debaixo do sol quente do Arkansas durante uns trinta segundos, que me pareceram um
eternidade... Nunca mais me lembrei do resto do discurso... Finalmente, por desespero e
constrangimento, eu disse "Ah, merda", e Willie completou imediatamente com um alto
"Amém". Nicole estava rindo.
— Max Puckett, não pode haver ninguém como você em todo o universo. Max riu.
— Na noite passada, quando a francesinha e eu estávamos na cama, conversamos sobre a
outra Nicole criada pelos alienígenas para Simone e Michael, e Ep ficou imaginando se eles
poderiam fazer um robô Max Puckett para ela. Disse que gostaria de ter um marido perfeito
que fizesse sempre exatamente o que ela queria... Mesmo à noite... Nós rimos a mais não
poder tentando imaginar, bem, você sabe, o que o robô saberia fazer na cama...
— Que vergonha, Max — falou Nicole.
— Na verdade, a francesinha é que foi mais imaginativa... Bem, eu fui mandado aqui
especificamente para informar a você que está sendo preparado um lauto café da manhã no
apartamento ao lado, uma cortesia dos cabeças de blocos, para tentarmos nos despedir de
você, ou desejar bon voyage, ou o que for mais apropriado... E isso vai acontecer dentro de
exatamente oito minutos...

Nicole ficou encantada quando viu que o ambiente na mesa do café estava agradável e leve.
Ela tinha dito várias vezes na noite anterior que não queria que sua partida fosse motivo de
tristeza, que deveria ser celebrada como o final de uma vida feliz. Aparentemente, sua família
e amigos tinham aceitado seu pedido de coração, pois não havia um rosto sombrio ali.
Ellie e Benjy sentaram-se dos dois lados de Nicole na longa mesa preparada pelos robôs-
bloco. Ao lado de Ellie estava Nikki, depois Maria e o dr. Azul. Ao lado de Benjy, Max,
Eponine, depois Marius, Kepler e a Águia. Durante a refeição, Nicole notou com surpresa que
Maria estava conversando com o dr. Azul.
— Eu não sabia que você podia ler as cores — falou Nicole, em tom elogioso.
— Só um pouco — disse a menina, um tanto encabulada com a atenção. — Ellie tem me
ensinado. — Que ótimo — comentou Nicole.
— É claro que o verdadeira lingüista deste grupo — disse Max — é aquele estranho homem-
pássaro no final da mesa... Ontem ele estava conversando com os iguanas em bizarros
guinchos.
— Ui — disse Nikki —, eu não gostaria de conversar com aquelas criaturas nojentas.
— Elas têm uma visão do mundo totalmente diferente de nós — disse a Águia. — Uma forma
muito simples, muito primitiva.
— Eu gostaria de saber — disse Eponine, inclinando-se para a frente e dirigindo-se à Águia
— o que preciso fazer para ter um companheiro robô alienígena só para mim. Quero um que se
pareça com Max, só que sem a rebeldia dele, e que tenha alguns atributos aprimorados...
Todos riram. Nicole sorriu para si mesma quando olhou a mesa. Está tudo perfeito. Eu não
poderia ter uma despedida melhor, pensou.
O dr. Azul e a Águia deram a Nicole uma última dose do líquido azul enquanto ela arrumava a
mala, contente de poder despedir-se da octoaranha a sós.
— Muito obrigada por tudo — disse ela simplesmente, abraçando a colega octoaranha.
— Vamos sentir a sua falta — falou o dr. Azul em cores. — O novo Chefe Otimizador queria
organizar uma grande despedida para você, mas eu disse que não achava apropriado... Ele me
pediu para eu dizer adeus a você em nome de toda a nossa espécie.
Todos acompanharam Nicole até a câmara de compressão. Depois de uma outra sessão de
abraços, a Águia e Nicole atravessaram a câmara de compressão.
Nicole deu um suspiro quando a Águia a colocou no assento do veículo espacial e dobrou sua
cadeira de rodas.
— Eles foram ótimos, não é? — disse Nicole.
— Todos amam e respeitam muito você — comentou a Águia. Depois que saíram da Estrela
do Mar, o grande tetraedro de luz virou-se de novo lentamente à vista deles.
— Como está se sentindo? — perguntou a Águia.
— Aliviada e um pouco assustada — respondeu Nicole.
— Isso é de se esperar — disse a Águia.
— Quanto tempo tenho ainda? — perguntou Nicole um pouco depois. — Até meu coração
parar de funcionar?
— É difícil dizer exatamente.
— Eu sei, eu sei — falou Nicole impaciente. — Mas vocês são cientistas... Devem ter
computado esses dados...
— Entre seis e dez horas — respondeu a Águia.

Entre seis e dez horas estarei morta, pensou Nicole, agora com um medo palpável que não
conseguia controlar por completo.

— Como é estar morta? — perguntou ela.


— Nós achamos que você faria essa pergunta — respondeu a Águia. — Disseram-nos que é
como ter perdido toda a energia.
— Uma nulidade para sempre? — disse Nicole.
— Creio que sim.
— E o próprio ato de morrer? Há alguma coisa especial sobre isso?
— Nós não sabemos — disse a Águia. — Esperamos que você nos conte o mais que puder
sobre isso.
Os dois voaram em silêncio durante algum tempo. À frente deles, Nodo aumentava
rapidamente de tamanho. Em certo ponto, a nave espacial mudou ligeiramente de orientação e
o Módulo do Conhecimento apareceu no centro da janela. Durante a aproximação final, os
outros três vértices de Nodo ficaram abaixo deles.
— Você se importa se eu lhe fizer uma pergunta? — disse a Águia.
— É claro que não — respondeu Nicole, virando-se para o alienígena e sorrindo pelo
capacete espacial. — Espero que você não vá ficar tímido a essa altura.
— Eu não queria perturbar os seus pensamentos.
— Na realidade, neste momento não estou pensando em nada específico. Estou com a cabeça
no ar.
— Por que você quer passar seus últimos momentos no Módulo do Conhecimento? —
perguntou a Águia.
Nicole riu.
— É a primeira vez que ouço uma pergunta pré-programada. Já posso ver minha resposta
registrada num desses intermináveis arquivos, classificada como "Morte: Seres Humanos", e
em outras categorias correlatas.
A Águia não disse nada.
— Quando Richard e eu ficamos perdidos em Nova York, há muitos anos, e pensávamos que
não teríamos muita chance de escapar, conversávamos sobre o que gostaríamos de fazer nos
últimos momentos anteriores à nossa morte. Concordamos que nossa primeira escolha seria
fazer amor, e a segunda aprender alguma coisa nova, para sentir a emoção da descoberta pela
última vez...
— É um conceito muito avançado — comentou a Águia.
— E muito prático também — disse Nicole. — Pode ser que eu esteja errada, mas creio que
vou achar esse Módulo do Conhecimento tão intrigante que nem vou me dar conta de que os
últimos segundos da minha vida estão próximos... Estou tão comprometida com esta ação que
creio que seria tomada de medo se não estivesse ativamente engajada durante minhas últimas
horas.
O Módulo do Conhecimento enchia agora toda a janela.
— Antes de entrar — disse a Águia —, quero dar umas informações sobre este lugar... O
módulo esférico consiste na verdade de três domínios concêntricos separados, cada um com
um objetivo diferente. A região menor e mais externa concentra-se no conhecimento associado
ao presente, ou ao presente próximo. A região do meio é onde estão registradas todas as
informações históricas sobre esta parte da galáxia. E a esfera grande e interna contém todos os
modelos de previsão do futuro, e também seqüências aleatórias das próximas eras...
— Pensei que você nunca tivesse entrado aí — disse Nicole.
— E não entrei — replicou a Águia. — Mas meu banco de dados do Módulo do
Conhecimento foi atualizado e ampliado na noite passada...
Um porta na superfície mais externa da esfera abriu-se e o veículo espacial começou a entrar.
— Só um minuto — disse Nicole. — Certamente não sairei viva desse módulo, não é?
— É — respondeu a Águia.
— Então quer por favor virar o veículo bem devagar para eu poder dar uma última olhada no
mundo exterior?
O veículo deu uma guinada lenta, e Nicole, sentada na beira do banco, ficou olhando fixamente
pela janela. Viu os outros módulos esféricos do Nodo, os corredores de transporte e, a
distância, a Estrela do Mar, onde sua família e amigos arrumavam suas coisas para serem
transferidos. Em uma certa orientação, a estrela amarela Tau Ceti, muito semelhante ao Sol,
era o único objeto grande na janela e, apesar do seu brilho e da luz espalhada do Nodo,
Nicole pôde distinguir algumas outras estrelas contra a escuridão do espaço.
Nada neste cenário será mudado depois da minha morte, pensou Nicole. Só haverá um par
de olhos a menos para observar seu esplendor. E uma coleção a menos de químicas
englobadas em nível de consciência para imaginar o significado de tudo isso.
— Obrigada — disse Nicole, depois que o veículo deu a volta completa. — Agora podemos
continuar.
11

Os veículos espaciais que entravam no Módulo do Conhecimento e os tubos vindos dos outros
três módulos terminavam em uma longa e fina estação localizada de um lado do anel que
rodeava completamente a imensa esfera.
— Há apenas duas entradas, com uma separação de cento e oitenta graus, em cada um dos três
domínios concêntricos do Módulo do Conhecimento — disse a Águia, enquanto os dois eram
rapidamente carregados ao longo do anel por uma calçada rolante. À direita deles ficava a
superfície transparente externa do módulo. À esquerda havia uma parede de cor creme, sem
janelas.
— Será que vou poder tirar logo minha roupa espacial e meu capacete? — perguntou Nicole
da sua cadeira de rodas.
— Vai, assim que entrarmos nas exposições — disse a Águia. — Eu tive de especificar alguns
pontos para você visitar, pois eles não poderiam mudar a atmosfera de todo o módulo da noite
para o dia. Nesses lugares, você não vai precisar da sua roupa espacial.
— Então você já selecionou o que vamos ver?
— Foi inevitável. Este lugar é imenso, muito maior do que um dos hemicilindros de Rama, e
absolutamente apinhado de informações... Tentei programar nossa visita baseado no que sei
sobre os seus interesses, e no nosso limite de tempo... Se houver outras coisas que...
— Não, não — disse Nicole. — Eu não teria idéia do que pedir para ver. Tenho certeza de
que você escolheu o melhor...
Os dois aproximaram-se de um lugar onde a calçada rolante parou e um amplo corredor saía
para a esquerda.
— A propósito — falou a Águia —, não expliquei a você que a nossa visita é restrita às duas
regiões externas... O Domínio das Previsões está fora dos nossos limites.
— Por quê? — perguntou Nicole, movimentando sua cadeira de rodas pelo corredor, ao lado
da Águia.
— Não estou bem certo. Mas realmente não importa, se é que compreendi seu objetivo ao vir
aqui. Você vai ter muita coisa com que ocupar sua cabeça nos dois domínios disponíveis.
Em frente a eles havia uma alta parede branca. Quando a Águia e Nicole se aproximaram, uma
porta larga da parede abriu-se para dentro, deixando ver uma sala circular com uma esfera de
dez metros de diâmetro no centro. A parede e o teto da sala eram coalhados de pequenos
acessórios ou equipamentos e muitas marcações estranhas. A Águia disse a Nicole que não
tinha idéia do que aquilo significava.
— O que me disseram — falou o alienígena — é que a orientação para sua visita a este
domínio deve ocorrer dentro daquela esfera em frente a nós.
A esfera cintilante era dividida ao meio. A metade superior da bola oca levantou-se o
suficiente para a Águia e Nicole passarem por baixo até o interior da esfera. Depois que
estavam dentro, essa parte superior voltou à posição original e os dois se viram
completamente encerrados ali.
Durante uns dois segundos apenas ficou escuro. Em seguida, luzes espalhadas iluminaram a
parte lateral da esfera que ficava em frente a eles.
— A esfera é decorada com muitos detalhes — comentou Nicole.
— O que nós estamos vendo — falou a Águia — é um modelo do domínio inteiro. Estamos
olhando de dentro, como se estivéssemos bem no centro do Módulo do Conhecimento e
nenhum dos dois domínios internos existisse... Você vai notar que, graças à disposição dos
objetos ao longo e contra a superfície, não só à nossa frente e atrás, mas também acima e
abaixo de nós, nada interfere no espaço vazio central além de uma determinada distância. A
parede externa do próximo domínio concêntrico localiza-se naquele ponto do módulo real...
Agora, as luzes vão lhe mostrar, no modelo, aonde iremos nas próximas horas.
Um grande setor da superfície da esfera interna em frente a eles, cerca de trinta por cento de
toda a área, ficou subitamente visível sob uma luz suave.
— Tudo o que se encontra na região iluminada — disse a Águia fazendo um gesto circular
com a mão — se associa à viagem espacial. Limitaremos nossa visita a essa porção do
domínio... A luz vermelha que pisca naquela superfície em frente a nós mostra onde estamos
no momento...
Quando Nicole olhou, uma linha de luzes vermelhas moveu-se rapidamente na superfície,
parando num ponto acima da sua cabeça, onde havia uma imagem da galáxia Via Láctea.
— Iremos primeiro à seção de geografia — disse a Águia, apontando para o lugar onde a
fileira de luzes tinha parado —, depois para a engenharia e finalmente para a biologia...
Depois de uma pequena pausa, seguiremos para o segundo domínio... Alguma pergunta antes
de começarmos?
Eles subiram por uma espécie de rampa num pequeno carro semelhante ao que haviam usado
no Módulo de Habitação quando foram visitar Simone e Michael. Embora o caminho em frente
e atrás deles fosse iluminado, o que estivesse ao lado do carro ficava sempre no escuro.
— O que existe à nossa volta? — perguntou Nicole, uns dez minutos depois de entrarem no
carro.
— Em grande parte, armazenagem de dados, além de umas pequenas exposições — disse a
Águia. — Está escuro para você não se distrair sem necessidade.
Mais tarde, eles pararam ao lado de outra porta alta.
— A sala em que você vai entrar agora — disse a Águia, montando a cadeira de rodas de
Nicole — é a maior sala deste domínio. Mede meio quilômetro no seu ponto mais largo.
Dentro há atualmente um modelo da Via-Láctea. Quando entrarmos, vamos pisar numa
plataforma móvel que nos levará a qualquer ponto da sala sob o nosso comando... Vai estar
escuro dentro, salvo algumas demonstrações e estruturas acima e abaixo de nós. Talvez você
tenha a sensação de que vai cair, mas lembre-se de que está sem peso...
A vista da plataforma era espetacular. Mesmo antes de passarem para o centro da imensa sala,
Nicole ficou maravilhada. As luzes representando as estrelas espalhavam-se pela escuridão
que os rodeava. Estrelas simples, binárias, triplas. Pequenas estrelas amarelas fixas, estrelas
vermelhas gigantes, estrelas anãs brancas passavam diretamente sobre uma supernova em
explosão. Em todos os lugares e em todas as direções havia alguma coisa diferente e
fascinante a ser vista.
Depois de uns minutos, a Águia parou a plataforma.
— Achei que seria bom começarmos aqui, onde o território lhe é familiar — disse.
Com uma ponteira de raios de luz múltiplos, ele indicou uma estrela amarela próxima.
— Você reconhece este lugar?
Nicole ainda olhava as infinitas luzes em todas as direções.
— Todas as estrelas de cem bilhões de anos da galáxia estão realmente modeladas nesta sala?
— perguntou ela.
— Não — respondeu a Águia. — O que você está vendo agora é apenas uma grande seção da
galáxia... Explicarei mais daqui a pouco, quando chegarmos no topo da sala e virmos lá
embaixo a planície galática central... Eu trouxe você a esse lugar específico por outra razão.
Nicole reconheceu o Sol e a constelação do Centauro, sua vizinha mais próxima, e até as
estrelas Barnard e Sírius. Ela não se lembrava dos nomes de grande parte das estrelas que
ficavam perto do Sol, mas conseguiu localizar outra estrela amarela solitária não muito
distante.
— É Tau Ceti? — perguntou.
— É sim — respondeu a Águia.
Tau Ceti parece muito perto do Sol, pensou Nicole, mas na realidade fica muito distante. O
que significa que a galáxia é maior do que qualquer de nós poderia supor.
— A distância do Sol até Tau Ceti — disse a Águia, como se estivesse lendo o pensamento
dela — é de um décimo de milésimo da extensão total da galáxia.
Nicole sacudiu a cabeça quando a plataforma começou a afastar-se do Sol e de Tau Ceti.
Existe muito mais coisa do que eu imaginava, pensou. Até mesmo minhas viagens foram
feitas em uma ínfima área do espaço.
Fora da plataforma móvel, à direita, a Águia projetou um desenho em três dimensões de um
sólido retangular. Manipulando o aparelhinho preto que segurava, tornou o volume do sólido
maior e menor.
— Há várias formas diferentes de controlarmos o que está projetado nesta sala — disse a
Águia. — Com este aparelho, podemos mudar a escala e focalizar de perto qualquer região da
galáxia... Vou lhe mostrar. Vamos supor que eu ponha a luz vermelha aqui no meio da nebulosa
Órion, o que marcará a posição inicial desejada da plataforma. Agora vou expandir essa
forma geométrica para que caibam aí umas mil estrelas... Então, pronto...
A sala tornou-se um breu durante um segundo. De repente, Nicole ficou estupefata de novo,
mas dessa vez com um conjunto diferente de luzes. As estrelas aglomeradas ou individuais
eram definidas muito mais claramente. A Águia explicou que a sala toda estava agora contida
dentro da nebulosa Órion, e que a maior dimensão da sala equivalia agora a poucas centenas
de anos-luz, em vez de sessenta mil anos-luz, como antes.
— Esta área específica é um viveiro estelar, onde as estrelas e os planetas acabaram de
nascer — continuou a Águia, movendo a plataforma para a direita. — Aqui está, por exemplo,
um sistema estelar infantil, no seu primeiro estágio de formação, com muitas das
características apresentadas pelo seu sistema solar há quatro e meio bilhões de anos.
A Águia inseriu um pequeno sólido em volta de uma das estrelas, e um instante depois a sala
foi tomada da luz de um sol jovem. Nicole ficou observando uma gigantesca tempestade solar
atravessar a superfície. Uma explosão na coroa solar, acima da sua cabeça, projetou raios
alaranjados e vermelhos na escuridão do espaço.

A Águia virou a plataforma para um corpo muito menor e mais distante, um entre uma dúzia de
agregações de massa que podiam ser identificadas na região em volta da jovem estrela.
Aquele planeta específico mostrava uma superfície derretida e ligeiramente avermelhada.
Enquanto observavam, um grande projétil estilhaçou-se no líquido quente, espalhando material
da superfície e criando um movimento ondulado em todas as direções.

— Segundo nossos dados estatísticos — disse a Águia —, esse planeta tem uma boa
probabilidade de criar vida depois de uns bilhões de anos de evolução, quando o período de
bombardeamento e formação for concluído. Ele terá uma estrela hospedeira solitária e
permanente, uma atmosfera com suficiente variação climática, e todos os ingredientes
químicos... Aqui, veja você mesma. Mantenha os olhos fixos naquele planeta. Vou ativar uma
rotina especial que explorará rapidamente metade do fundo da carta periódica e mostrará
dados quantitativos a respeito do número comparativo dos diferentes tipos de átomos
existentes naquela massa em ebulição...
Uma magnífica demonstração visual apareceu no escuridão acima do jovem planeta. Cada
átomo contido na sua massa era indicado por uma cor específica e por seu número de nêutrons
e prótons. O tamanho do átomo mostrava sua freqüência comparativa na mistura.
— Note que há significativas densidades de carbono, nitrogênio, halógenos e ferro — dizia a
Águia. — Esses são os átomos críticos. Foram criados por uma supernova próxima, num
passado não muito distante, e enriqueceram as possibilidades organizacionais desse corpo em
formação... Sem uma química complexa não pode haver vida eficiente... Por exemplo, se o
ferro não fosse o átomo central da hemoglobina no seu planeta, o sistema de distribuição de
oxigênio em muitas formas de vida avançadas seria muito menos eficiente...
Então o processo continua, pensou Nicole, era após era. As estrelas e planetas formam-se
da poeira cósmica. Poucos planetas contêm a matéria química certa que poderia acabar
produzindo vida e inteligência. Mas o que organiza esse processo? Que mão invisível faz
com que essas químicas se tornem cada vez mais complexas e estruturadas no tempo, até
atingirem o estado de autoconsciência? Haverá alguma lei natural ainda não formulada
sobre a matéria organizando-se segundo leis específicas?
A Águia agora explicava como era improvável que a vida evoluísse em sistemas estelares que
contivessem apenas átomos simples como o hidrogênio e o hélio, sem nenhum dos átomos
mais complexos, de ordem mais alta, forjados pela morte das estrelas nas explosões das
supernovas. Nicole começou a sentir-se insignificante. E a ansiar por alguma coisa na escala
humana.
— Até que ponto você pode diminuir esta sala? — perguntou de repente, rindo da sua própria
frase canhestra. — Para ser mais precisa, qual é a resolução final desse sistema?
— O maior nível possível de detalhe — disse a Águia — é numa escala de 4096 para 1. Em
outro extremo, podemos dispor um cenário intergalático com a dimensão máxima de cinqüenta
milhões de anos-luz... Lembre-se de que nosso interesse por atividades fora da galáxia é
limitado...
Nicole fazia seus próprios cálculos mentais.
— Já que a maior dimensão desta sala é meio quilômetro, no seu nível de resolução mais alto
seria possível caber nela um pedaço de terra de aproximadamente dois mil quilômetros de
comprimento?
— Seria — respondeu a Águia. — Mas por que está perguntando isso? Nicole estava cada vez
mais excitada.
— Nós podemos focalizar a Terra de perto? Podemos sobrevoar a França?

— Creio que sim — respondeu a Águia, um pouco hesitante. — Mas não foi isso que
planejei...

— Isso seria muito importante para mim.


— Tudo bem — falou a Águia. — Vai levar uns dois segundos, mas dá para fazer...

O vôo começou sobre o Canal da Mancha. A Águia e Nicole já estavam sentadas na


plataforma no alto da sala escura por uns três segundos quando viram uma explosão de luz
logo abaixo. Depois que os olhos de Nicole se adaptaram, ela reconheceu a água azul e a
forma da costa da Normandia. A distância, o Sena desaguava no Canal.
Nicole pediu que a Águia imobilizasse a plataforma sobre a foz do Sena e depois a movesse
lentamente na direção de Paris. À vista daquela geografia familiar, Nicole ficou muito
emocionada. Lembrou-se claramente dos dias da sua juventude, quando andava livremente por
aquela região com seu querido pai.
O modelo abaixo deles era soberbo. Chegava a ter três dimensões quando o tamanho dos
acidentes geográficos e das construções abaixo ultrapassava os limites de resolução do
sistema alienígena. Em Rouen, a famosa igreja onde Joana d'Arc fora temporariamente
repudiada, tinha meio centímetro de altura e dois centímetros de comprimento. Ao aproximar-
se de Paris, Nicole viu a forma familiar do Arco do Triunfo elevando-se da superfície do
modelo.
Quando chegaram a Paris, a plataforma pairou alguns segundos sobre o 16º arrondissement, e
os olhos de Nicole focalizaram rapidamente um edifício. Ao ver aquele edifício, um moderno
centro de convenções, lembrou-se de um momento pungente da sua adolescência. Para minha
preciosa filha, Nicole, e todos os jovens do mundo, ofereço uma simples percepção, dizia o
pai, quase no final do seu discurso ao receber o prêmio Mary Renault. Eu descobri ao longo
da vida duas coisas de valor inestimável: aprender e amar. Nada mais, seja fama, poder, ou
realização por si só, têm esse mesmo valor duradouro.
Uma imagem do pai surgiu na lembrança de Nicole. Obrigada, papai, pensou ela. Obrigada
por ter cuidado tão bem de mim depois que a mamãe morreu. Obrigada por tudo o que você
me ensinou...
Uma saudade forte e doída fez com que seus olhos se enchessem de lágrimas. Por um instante,
ela voltou a ser criança, querendo desesperadamente falar com seu pai sobre a iminência da
morte. De forma lenta e deliberada, Nicole lutou contra as emoções que ameaçavam dominá-
la. Não era isso que eu queria sentir agora, disse a si mesma com dificuldade. Eu queria
deixar tudo isso para trás...
Nicole afastou os olhos do modelo da França abaixo dela.
— O que foi? — perguntou a Águia. Ela forçou um sorriso.
— Eu queria ver mais uma coisa. Uma coisa espetacular... e nova. Que tal uma cidade das
octoaranhas?
— Tem certeza?
Nicole fez um gesto afirmativo.

A sala escureceu imediatamente. Dois segundos depois, quando Nicole se virou para o lado da
luz, a plataforma sobrevoava um vasto oceano verde-escuro. — Onde estamos? E para onde
estamos indo?
— Estamos agora a uma distância de cerca de trinta anos-luz do Sol, no primeiro planeta
oceânico colonizado pelas octoaranhas depois do desaparecimento dos precursores... Estamos
sobre o mar, é claro, a uns duzentos quilômetros da mais famosa cidade das octoaranhas.
Nicole sentiu uma onda de excitação quando a plataforma focalizou de perto o mar. A
distância, ela podia ver o vago contorno de alguns prédios. Por um instante, imaginou que era
uma viajante espacial aventureira, chegando naquele planeta pela primeira vez, ansiosa para
ver as maravilhas das fabulosas cidades que outros viajantes interestelares haviam descrito.
Que maravilha!, pensou Nicole, prestando atenção por um instante ao oceano abaixo dela.
— Por que a água é tão verde? — perguntou à Águia.
— O ponto mais alto desta parte do oceano é um rico ecossistema próprio, dominado por um
gene especial de planta fotossintetizadora cujas várias espécies, todas verdes, fornecem
abrigo e alimento para dez milhões de criaturas... Algumas plantas individuais cobrem mais de
um quilômetro quadrado de território... Os precursores criaram esse domínio... As
octoaranhas o descobriram e aprimoraram...
Quando Nicole olhou, a plataforma estava quase sobre a cidade, com suas centenas de prédios
de vários formatos e tamanhos. Grande parte dos prédios da cidade das octoaranhas era
construída na terra, mas alguns pareciam flutuar na água. O conjunto mais denso dessas
estruturas situava-se ao longo de uma península estreita, que se prolongava até o mar. No final
da península viam-se imensas cúpulas verdes, muito próximas umas das outras, dominando o
horizonte da cidade.
Na periferia via-se um amplo círculo separado com oito cúpulas menores, todas ligadas por
modelos lineares de transporte às cúpulas centrais. Essas cúpulas eram de cores diferentes, e
quase todos os prédios da seção da cidade que rodeava cada uma delas eram pintados da
mesma cor. No oceano, por exemplo, a brilhante cúpula vermelha tinha oito longas barras
vermelhas, finas e longas, que representavam outros prédios e se estendiam para fora do mar
num padrão geométrico e equilibrado.
Todos os prédios da cidade ficavam dentro do círculo definido pelas oito cúpulas coloridas.
Nicole imediatamente encantou-se por uma estranha estrutura marrom que flutuava na água,
parecendo quase tão grande quanto as imensas cúpulas centrais. Do alto, o prédio retangular
dava a idéia de vinte camadas de teias trançadas e densamente comprimidas; materiais de
ninhos de pássaros enchiam os vãos existentes em cada uma das centenas de células.
— O que é aquilo? — perguntou Nicole, apontando da plataforma.
— Essas octoaranhas são muito avançadas em termos de microbiologia — respondeu a Águia.
— Aquela estrutura, que se estende mais dez metros para dentro do mar, tem mais de mil
habitats diferentes de espécies microscópicas... O que você está vendo é basicamente uma
estação de suprimento, contendo a população excedente desses seres minúsculos. Caso as
octoaranhas precisem de algumas dessas criaturas, vêm solicitá-las nesse prédio.

Nicole adorou aquela arquitetura inusitada. Podia imaginar-se andando nas ruas e olhando
espantada para uma variedade muito maior de criaturas do que na Cidade de Esmeralda. Eu
quero ir lá, disse para si mesma. Quero ver...

Pediu para a Águia movimentar a plataforma diretamente sobre uma das grandes cúpulas
verdes.
— O interior desta cúpula é semelhante ao da Cidade de Esmeralda? — perguntou Nicole.
— Não. A escala é completamente diferente... O reino das octoaranhas em Rama era um
microcosmo comprimido. As funções, normalmente separadas nos seus planetas por centenas
de quilômetros de distância, devido às limitações de espaço, tiveram de ser localizadas mais
ou menos na mesma área... Nas colônias avançadas dos genes das octoaranhas, por exemplo,
as formas alternativas não vivem em uma comunidade fora da cidade, e sim em um planeta
completamente diferente.
Nicole sorriu. Um planeta cheio de octoaranhas alternativas. Devia ser uma visão e tanto,
pensou.
— ...Esta cidade específica abriga mais de dezoito milhões de octoaranhas, considerando
todas as diferentes variações morfológicas — continuou a Águia. — É também a capital
administrativa deste planeta. Dentro de seus portões vivem dez bilhões de criaturas, que
representam cinqüenta mil espécies... Em extensão, a cidade equivale mais ou menos a Los
Angeles ou a qualquer grande área urbana da sua Terra...
A Águia continuou a dissertar sobre fatos e estatísticas da cidade das octoaranhas vista da
plataforma. Mas Nicole pensava em outra coisa.
— Archie viveu aqui? — perguntou, interrompendo o monólogo enciclopédico do seu
companheiro alienígena. — Ou o dr. Azul ou qualquer das octoaranhas que nós conhecemos?
— Não — respondeu a Águia. — Na verdade, elas nem vieram deste planeta ou desse sistema
estelar... As octoaranhas de Rama vieram da chamada "colônia de fronteira", especialmente
projetada em termos genéticos para intercambiar com outras formas de vida inteligentes...
Nicole sacudiu a cabeça e sorriu. É claro, eu devia ter suposto que elas eram especiais,
disse para si mesma.
Estava ficando cansada. Depois de alguns minutos, agradeceu à Águia e disse que já vira o
suficiente da cidade das octoaranhas. Em um instante, as cúpulas, a estrutura marrom de teias
trançadas e o mar verde-escuro desapareceram, e a Águia reconduziu a plataforma para o alto
da imensa sala.
Abaixo de Nicole, a Via-Láctea limitava-se a um pequeno espaço no centro da sala.
— O universo é uma seqüência de vizinhanças e vácuos em permanente expansão — dizia a
Águia. — Veja o vazio em volta da Via-Láctea. Com exceção das duas Nuvens de Magalhães,
que não são realmente classificadas como galáxias, Andrômeda é nossa vizinha galática mais
próxima, embora esteja muito distante. A maior distância da Via-Láctea em toda a sua
extensão é apenas um vigésimo da distância até Andrômeda.

Nicole não estava pensando em Andrômeda. Estava tomada de pensamentos filosóficos sobre
a vida e os diferentes mundos, sobre as cidades e sobre o provável alcance das criaturas feitas
de simples átomos que haviam evoluído, com ou sem a ajuda de seres superiores, até se
tornarem seres conscientes. Ela saboreava aquele momento, sabendo que muito em breve não
estaria mais imaginando coisas que tanto haviam enriquecido sua vida.

12
— Nós passamos tanto tempo naquela exposição — disse a Águia quando terminou o exame
— que acho melhor reorganizarmos nossa visita. Os dois estavam sentados lado a lado no
carro.
— Esta é a sua forma diplomática de dizer que meu coração está enfraquecendo mais depressa
do que você esperava? — perguntou Nicole, forçando um sorriso.
— Não exatamente — disse a Águia. — De fato, passamos lá o dobro do tempo que eu
planejava... Não pensei que íamos sobrevoar a França, por exemplo, nem visitar a cidade das
octoaranhas...
— Aquela parte foi maravilhosa — disse Nicole. — Eu gostaria de ir lá de novo, tendo o dr.
Azul como guia, e conhecer mais sobre a forma de vida delas...
— Então você gostou mais da cidade das octoaranhas do que da visão espetacular das
estrelas?
— Eu não diria isso — replicou Nicole. — Foi tudo fantástico... O que eu vi já comprovou
que escolhi o lugar certo para... — Nicole não terminou a frase. — Enquanto estava na
plataforma, percebi que a morte não só é o fim do pensamento e da consciência como também
do sentimento... Não sei por que isso não era óbvio para mim antes.
Houve um breve silêncio.
— Então, meu amigo — disse Nicole animada —, para onde iremos agora?
— Achei que devíamos ir para a engenharia, onde você poderá ver modelos dos Nodos, dos
transportadores e de outras naves espaciais. Depois disso, se ainda tivermos tempo, podemos
ir à seção de biologia. Alguns dos seus netos gerados fora do útero vivem naquela região, em
um dos nossos melhores habitats, semelhantes à Terra. Perto de lá há uma comunidade onde
vivem aquelas enguias ou cobras esquisitas que encontramos uma vez em Nodo. E há também
uma exposição taxonômica, comparando e contrastando fisicamente todos os viajantes do
espaço que foram estudados nessa região...
— Parece tudo incrível — disse Nicole, dando uma risada súbita. — O cérebro humano é
espantoso... Imagine o que me veio à cabeça... A primeira linha do poema de Andrew
Marvell: "Para sua tímida amada". "Tivéssemos nós muitos mundos de tempo, não seria um
crime essa timidez..." De qualquer forma, eu queria dizer que já que não temos tempo para
sempre, vamos primeiro à exposição do transportador. Eu gostaria de ver a nave onde Patrick,
Nai, Galileu e os outros irão viver... Depois disso, veremos quanto tempo nos resta.

O carro começou a mover-se. Ao notar que a Águia não havia dito uma palavra sobre os
resultados do seu exame, o medo de Nicole voltou, dessa vez mais forte. O túmulo é um lugar
bom e íntimo, lembrou-se ela. Mas acho que ninguém vai lá por escolha.

Eles estavam juntos na superfície plana do modelo do transportador.


— Este é um modelo em escala de um para sessenta e quatro — disse a Águia. — Dá para
sentir como o transportador é grande.
Nicole olhou da sua cadeira de rodas.
— Meu Deus, essa nave deve ter quase um quilômetro de comprimento.
— Você calculou mal — disse a Águia. — O topo do atual transportador tem cerca de
quarenta quilômetros de comprimento e quinze de largura.
— E cada uma dessas bolhas tem um ambiente diferente?
— Tem. A atmosfera e outras condições são controladas pelos equipamentos que ficam na
superfície, e também pelos outros sistemas de engenharia lá embaixo, no corpo principal da
nave espacial... Cada um dos habitats tem sua própria velocidade de rotação para criar a
gravidade adequada... Existem divisórias para separar as espécies, se necessário, dentro de
uma das bolhas. Os residentes da Estrela do Mar foram colocados no mesmo domínio, pois
eles se sentem bem em condições ambientais mais ou menos iguais. Mas não têm acesso uns
aos outros.
Eles estavam descendo por um caminho entre os equipamentos e as bolhas.
— Alguns desses habitats — disse Nicole, examinando uma pequena saliência oval que se
elevava a apenas uns cinco metros da nave — parecem muito pequenos e apertados para
abrigar muitos indivíduos...
— Há alguns viajantes espaciais muito pequenos — disse a Águia. — Uma espécie, de um
sistema estelar não muito distante do seu, tem só um milímetro de comprimento. A maior nave
espacial deles não é nem do tamanho deste nosso carro.
Nicole tentou imaginar um grupo inteligente de formigas ou pulgões trabalhando em conjunto
para construir uma nave espacial, e sorriu.
— E todos esses transportadores viajam só de um Nodo para outro? — perguntou Nicole,
mudando de assunto.
— Basicamente — respondeu a Águia. — Quando não há mais criaturas vivas em uma bolha
específica, aquele habitat é recondicionado em um dos Nodos.
— Como no caso de Rama — disse Nicole.
— De certa forma — disse a Águia —, mas com algumas diferenças significativas. Nós
estamos sempre estudando qualquer espécie existente em uma nave espacial da classe de
Rama. Tentamos colocá-las no ambiente mais realista possível, para podermos observá-las em
condições naturais. Ao contrário, não precisamos de mais nenhum dado sobre as criaturas
designadas para o transportador. Por isso não interferimos nos problemas deles.
— A não ser para impedir a reprodução... A propósito, na sua ética, impedir a reprodução é
mais humano, ou qualquer outra palavra equivalente, do que exterminar criaturas diretamente?
— Nós acreditamos que sim — respondeu a Águia.
Eles chegaram a um local no alto do modelo do transportador, onde o caminho saía para a
esquerda, voltando para a rampa e os corredores do Módulo do Conhecimento.
— Acho que consegui o que queria aqui — disse Nicole, hesitando por um instante. — Mas
ainda tenho umas duas perguntas a fazer.
— Pode perguntar — disse a Águia.
— Partindo do princípio de que a descrição de São Michael sobre a finalidade de Rama,
Nodo e tudo o mais está correta, vocês não estão transtornando e alterando o próprio processo
que observam? Parece que só o fato de estarem aqui, interagindo...
— Você tem razão — disse a Águia. — Nossa presença aqui causa um ligeiro impacto no
curso da evolução. É uma situação análoga ao Princípio de Incerteza de Heisenberg, da
física... Não se pode observar sem influenciar... Entretanto, nossas interações podem ser
consideradas pelo Monitor Motriz e levadas em conta na organização do processo como um
todo. E temos regras que minimizam nossos transtornos à evolução natural...
— Gostaria que Richard tivesse ouvido comigo a explicação de São Michael sobre tudo —
disse Nicole. — Ele teria ficado fascinado e, estou certa, teria feito perguntas excelentes.
A Águia não respondeu. Nicole suspirou.
— O que vamos fazer agora, Senhor Diretor da Visita? — disse ela.
— Almoçar — respondeu a Águia. — Nós temos no carro uns dois sanduíches, um pouco de
água e aquela fruta das octoaranhas de que você tanto gosta.
Nicole riu e virou sua cadeira de rodas para o corredor.
— Você pensa em tudo — disse.
— Richard não acreditava no Céu — disse Nicole quando a Águia completou outro exame. —
Mas se ele pudesse ter construído sua vida perfeita no além teria incluído um lugar como este.
A Águia estava estudando as estranhas curvas que apareciam no monitor que segurava na mão.
— Acho que seria uma boa idéia — disse, olhando para Nicole — deixar de lado uma parte
da visita... e passar diretamente para as exposições mais importantes do próximo domínio.
— Meu exame está ruim, não é? — disse Nicole.
A dor ocasional que sentiu no peito antes de visitar a França e a cidade das octoaranhas
tornou-se constante.
E o medo também tornou-se constante. Entre cada palavra, cada pensamento, ela tinha a exata
consciência de que sua morte estava próxima. De que você tem medo?, perguntou a si mesma.
Como o nada pode ser tão ruim assim? Mas seu medo persistia.

A Águia explicou que não havia tempo para uma orientação no segundo domínio. Eles
atravessaram os portões para a segunda esfera concêntrica e viajaram durante uns dez minutos.

— O que sobressai neste domínio — dizia a Águia enquanto guiava — é como tudo muda no
tempo. Há uma seção separada para cada elemento concebível na galáxia que seja afetado por,
ou que afete, sua evolução total... Achei que você ficaria especialmente interessada por esta
primeira exposição.
A sala era semelhante àquela onde a Águia e Nicole tinham visto a Via Láctea, só que muito
menor. Mais uma vez, eles subiram numa plataforma móvel para se moverem em volta da sala
escura.
— O que você vai ver requer uma explicação — disse a Águia. — É essencial um resumo do
tempo da evolução das civilizações que viajaram no espaço em uma região galática contendo
o seu Sol e cerca de dez milhões de outros sistemas estelares. Isto significa que é
aproximadamente um décimo de milésimo da galáxia inteira, mas o que você vai ver é uma
representação da galáxia como um todo... Você não verá nenhuma estrela, nem planeta, nem
qualquer outra estrutura física nessa exposição, embora a localização deles seja considerada
na concepção do modelo. Depois que começarmos, você vai ver luzes representando um
sistema estelar no qual uma espécie biológica tornou-se viajante espacial, pelo menos por ter
colocado uma nave em órbita em volta do seu próprio planeta... Enquanto o sistema estelar
continuar a ser um centro vivo para viajantes espaciais ativos, a luz daquele local específico
se manterá brilhando... Vou começar a exposição há cerca de dez bilhões de anos, logo depois
que a atual galáxia da Via-Láctea foi inicialmente formada. Como havia muita instabilidade e
rápidas mudanças no início, não surgiu nenhum viajante espacial por longo tempo. Portanto,
nos primeiros cinco milhões de anos até a formação do seu sistema solar, vou expor as
imagens rapidamente, numa velocidade de vinte milhões de anos por segundo... Para fins de
referência, a Terra começará a incorporar-se a esse processo cerca de quatro minutos depois.
Vou interromper a exposição nessa época.
Eles estavam sobre a plataforma na sala grande, a Águia de pé e Nicole na cadeira de rodas.
Havia apenas uma pequena luz na plataforma, que dava para os dois se verem. Depois de
olhar à sua volta na total escuridão durante mais de trinta segundos, Nicole quebrou o silêncio.
— Você começou o processo? Não aconteceu nada.
— Exatamente — respondeu a Águia. — O que nós observamos, olhando as outras galáxias
muito mais velhas do que a Via-Láctea, foi que não surgiu nenhuma vida até a galáxia
estabelecer-se e desenvolver zonas estáveis. A vida requer algumas estrelas constantes em um
ambiente relativamente benigno e uma evolução estelar, que resultam na criação dos elementos
críticos no quadro periódico, tão importantes em todos os processos químicos. Se a matéria
toda for composta de partículas subatômicas e de átomos mais simples, a probabilidade de
vida de qualquer tipo de vida é muito, muito pequena. Só depois que as estrelas grandes
completam seus ciclos de vida e produzem elementos mais complexos, como nitrogênio,
carbono, ferro e magnésio, é que haverá maior probabilidade de surgimento de vida.

Abaixo deles brilhou uma luz temporária, mas durante os quatro primeiros minutos só
apareceram umas centenas de luzes esparsas, e apenas uma durou mais de três segundos.

— Agora chegamos à época da formação da Terra e do sistema solar — disse a Águia,


preparando-se para ativar de novo a exposição.
— Espere um instante, por favor — falou Nicole. — Quero ter certeza de que compreendi...
Você acabou de me mostrar que na primeira metade da história galática, quando não havia a
Terra nem o Sol, relativamente poucos viajantes espaciais passaram pela região em volta da
qual o Sol iria mais tarde se formar?... E que quase todos esses viajantes eram espécies cuja
duração de vida foi de menos de vinte milhões de anos, e que só uma conseguiu sobreviver
por sessenta milhões de anos?
— Muito bem — disse a Águia. — Agora vou acrescentar outro parâmetro à exposição... Se o
viajante espacial conseguiu viajar fora do seu próprio sistema estelar e estabeleceu uma
presença permanente em outro sistema, o que vocês humanos ainda não conseguiram, a
exposição reconhece essa expansão iluminando o outro sistema também, com uma luz da
mesma cor. Assim, poderemos seguir a expansão de uma espécie determinada de viajante
espacial... Agora também vou mudar a velocidade da exposição, de dois para dez milhões de
anos por segundo...
No período seguinte, em meio minuto, uma luz vermelha apareceu num canto da sala e foi
rodeada por centenas de outras luzes da mesma cor seis a oito segundos depois. Elas
brilhavam com tal intensidade que o resto da sala, com sua ocasional luz solitária, parecia
escuro e desinteressante. De repente, o campo de luzes vermelhas desapareceu em uma fração
de segundo. Primeiro, o núcleo interno do modelo vermelho escureceu, deixando pequenos
grupos de luzes nas extremidades do que tinha sido uma região gigantesca. Depois, num piscar
de olhos, todas as luzes vermelhas desapareceram também.
A cabeça de Nicole estava funcionando a todo vapor enquanto ela observava as luzes à sua
volta. Deve ser uma história interessante, pensou, ao refletir sobre as luzes vermelhas.
Imagine uma civilização espalhada por uma região com centenas de estrelas, e de repente
aquela espécie desaparece... A lição é inevitável... A imortalidade só existe como conceito,
não como realidade.
Nicole deu uma olhada em volta. Um modelo geral recorrente se desenvolvia à medida que
mais e mais regiões apresentavam luzes ocasionais, indicando o surgimento de novas
civilizações de viajantes espaciais. Porém, a maioria desses viajantes durava em média um
breve momento, muito menos do que um segundo completo, e mesmo aqueles que se
espalhavam e colonizavam sistemas estelares contíguos só raramente chegavam na
proximidade de uma luz que indicava a presença de outra espécie de viajante espacial.
Existe inteligência e viagem espacial na nossa parte da galáxia desde antes de existir a
Terra, pensou Nicole... Mas muito poucas dessas criaturas avançadas tiveram a emoção do
contato mantido com seus pares... Portanto, a solidão também é um dos princípios básicos
do universo... Pelo menos deste universo...
Oito minutos depois, a Águia congelou de novo a exposição.
— Chegamos agora em um ponto no tempo dez milhões de anos antes do presente. Na Terra,
os dinossauros desapareceram há muito tempo, destruídos por sua incapacidade de adaptação
às mudanças climáticas causadas pelo impacto de um grande asteróide... Seu desaparecimento,
contudo, permitiu que os mamíferos prosperassem, e uma dessas linhas evolutivas dos
mamíferos começou a mostrar rudimentos de inteligência...
A Águia parou. Nicole estava olhando para ela com uma expressão intensa, quase de dor.
— O que aconteceu? — perguntou o alienígena.
— Será que o nosso universo específico acabará em harmonia? — perguntou ela. — Ou nós
nos tornaremos, por exclusão, um daqueles dados que ajudam Deus a definir a região que Ele
procura?
— O que fez você perguntar isso agora? — disse a Águia.
— Toda essa exposição — respondeu Nicole abanando as mãos — é um espantoso
catalisador. Estou com dezenas de perguntas na cabeça, mas, como não tenho tempo para
todas, achei melhor fazer a pergunta mais importante primeiro... Olhe o que aconteceu aqui —
continuou Nicole. — Até mesmo agora, depois de dez bilhões de anos de evolução, as luzes
continuam muito dispersas. E nenhum dos agrupamentos existentes tornou-se permanente ou
amplamente espalhado, nem mesmo nessa porção relativamente pequena da galáxia. Se o
nosso universo for terminar em harmonia, certamente mais cedo ou mais tarde as luzes que
indicam viajantes espaciais e inteligência deverão brilhar em quase todos os sistemas
estelares de cada galáxia... Ou será que interpretei mal o que São Michael quis dizer com
harmonia?
— Eu creio que não — disse a Águia.
— Onde está nosso sistema solar nessa exposição? — perguntou Nicole.
— Bem aqui — disse a Águia, usando sua ponteira iluminada. Nicole deu uma olhada
primeiro na área em volta da Terra, e depois inspecionou o resto da sala.
— Então, há dez milhões de anos, havia cerca de sessenta espécies de viajantes espaciais nas
nossas dez mil vizinhanças mais próximas... E uma dessas espécies, creio que aquele
agrupamento de luzes verde-escuro, originou-se não muito longe de nós e chegou a
desenvolver-se em vinte a trinta sistemas estelares ao todo...
— Correto — falou a Águia. — Quer que eu passe as imagens mais uma vez em menos
velocidade?
— Daqui a pouco — respondeu Nicole. — Primeiro quero apreciar essa configuração
particular... Até agora tudo aconteceu rápido demais nessa exposição e não pude assimilar
muito bem.
Ficou olhando o grupo de luzes verdes e notou que sua borda externa não ficava a mais de
quinze anos-luz de onde a Águia indicara o sistema solar. Depois, pediu que a Águia passasse
as imagens de novo, e o alienígena disse que a velocidade daquela vez seria de apenas
duzentos mil anos por segundo.
As luzes verdes aproximaram-se cada vez mais da Terra e subitamente desapareceram.
— Pare — gritou Nicole.
A Águia parou a exposição e olhou para Nicole com ar intrigado.
— O que aconteceu com aqueles sujeitos? — perguntou Nicole.
— Falei sobre eles com você há uns dois dias — disse a Águia. — Eles foram manipulados
geneticamente para deixarem de existir.
Eles quase chegaram na Terra, pensou Nicole. E como toda a história teria sido diferente se
tivessem chegado... Eles teriam reconhecido imediatamente o potencial intelectual dos
proto-humanos da África, e teriam sem dúvida feito com eles o que os precursores fizeram
com as octoaranhas. Então nós...
De repente, Nicole lembrou-se de São Michael explicando calmamente a finalidade do
universo em frente à lareira do escritório de Michael e Simone.
— Posso ver o começo? — perguntou Nicole.
— O começo de quê? — respondeu a Águia.
— O começo de tudo. O instante em que o universo começou e todo o processo da evolução
foi posto em movimento — disse ela, mostrando o modelo abaixo deles.
— Podemos fazer isso — disse a Águia depois de uma breve pausa. Nós não temos
conhecimento de nada antes do universo ser criado — continuou a Águia, quando os dois
estavam juntos na plataforma em completa escuridão. — Mas supomos que tenha existido
algum tipo de energia antes do instante da criação, pois nos disseram que a matéria desse
universo resultou de uma transformação de energia.
Nicole olhou à sua volta.
— Escuridão por todo lado — disse, quase para si mesma. — E em algum lugar dessa
escuridão havia energia, se é que a expressão algum lugar faz sentido... E um Criador... Ou
será que a energia fazia parte do Criador?
— Isso nós não sabemos — disse a Águia com certa hesitação. — O que sabemos é que o
destino de cada elemento do universo foi determinado naquele instante inicial. A forma como
aquela energia foi transformada em matéria definiu bilhões de anos da história...
Enquanto a Águia falava, uma luz fortíssima tomou conta da sala. Nicole virou-se de costas e
tapou os olhos.
— Pegue isso — disse a Águia, tirando uns óculos da sua pochete.
— Por que você fez essa simulação tão brilhante? — perguntou ela ajustando os óculos.
— Para indicar, pelo menos em alguma medida, como foram aqueles momentos iniciais... Olhe
— falou, apontando para baixo —, eu parei o modelo em 10-40 segundos depois do instante da
criação. O universo existia há apenas um tempo infinitesimal, mas já era rico em estrutura
física. Essa incrível quantidade de luz vem toda daquela ínfima parte de mistura cósmica
abaixo de nós... Toda aquela coisa que forma o universo primitivo é completamente alheia a
qualquer coisa que possamos reconhecer ou entender. Não há átomos nem moléculas. A
densidade dos quarks, dos léptons e de seus companheiros é tão grande que uma pitada menor
que um átomo de hidrogênio daquela coisa pesaria mais do que um grande aglomerado de
galáxias na nossa era...
— Só por curiosidade, onde você e eu estamos neste momento? — perguntou Nicole.
A Águia hesitou.
— Em lugar algum, seria a melhor resposta — disse depois de um instante. — Para fins
ilustrativos, estamos fora do modelo do universo. Mas podíamos estar em outra dimensão. A
matemática do universo primitivo só funcionaria se houvesse inicialmente mais de quatro
dimensões. É claro que tudo no espaço-tempo que mais tarde se transformou no nosso
universo é contido naquele pequeno volume que produz essa luz ofuscante. A propósito, se o
modelo fosse uma representação verdadeira, a temperatura aqui seria dez trilhões de trilhões
de vezes mais alta do que a estrela mais quente que surgisse.
— Este nosso modelo também distorceu os conceitos de tamanho e distância — continuou a
Águia depois de uma breve pausa. — Dentro de um instante, vou começar a simulação do
início do universo de novo, e nós ficaremos completamente subjugados quando a gotícula
compacta de radiação explodir a uma velocidade assombrosa... Enquanto a simulação daquilo
que os cosmólogos chamam de Era de Inflação estiver ocorrendo, o suposto tamanho desta
sala também aumentará rapidamente. Se não mudássemos a escala, você não poderia ver agora
a estrutura do universo 10-40 segundos após sua criação sem um fantástico microscópio.
Nicole olhou para a fonte de luz lá embaixo.
— Então aquele minúsculo glóbulo informe de matéria quente e pesada foi a semente de tudo?
Daquela ínfima mistura de partículas subatômicas vieram as grandes galáxias que você me
mostrou no outro domínio? Não parece possível...
— Não só aquelas galáxias — disse a Águia. — O potencial de tudo do cosmo está
armazenado naquela mistura peculiar superaquecida...
Subitamente, o pequeno glóbulo começou a expandir-se em uma velocidade imensa, e Nicole
teve a impressão de que o exterior do glóbulo ia encostar no seu rosto a qualquer instante.
Milhões de estruturas bizarras formaram-se e desapareceram em frente aos seus olhos. Nicole
observou fascinada o material mudar de natureza várias vezes, passando por estados de
transição tão peculiares e estranhos quanto o primitivo glóbulo superaquecido.
— Eu andei com o tempo para a frente neste modelo — disse a Águia um pouco depois. — O
que você está vendo lá agora, aproximadamente um milhão de anos depois da criação, poderia
ser reconhecido por qualquer bom aluno de física. Alguns átomos simples se combinaram: três
tipos de hidrogênio e dois de hélio, por exemplo. O lítio é reconhecidamente o átomo mais
pesado que existe em abundância... A densidade do universo agora é mais ou menos
equivalente à do ar da Terra, e a temperatura caiu para cem milhões de graus, ou seja, vinte
ordens de magnitude menos do que na época do glóbulo quente.
A Águia ativou e guiou a plataforma entre as luzes, as massas e os filamentos.
— Se fôssemos realmente inteligentes — disse a Águia —, poderíamos olhar para toda essa
matéria primitiva e prever quais as massas que acabariam se tornando aglomerados de
galáxias... Foi mais ou menos nessa época que o primeiro Monitor Motriz apareceu, o único
intruso nesse processo de evolução natural... Nenhuma monitoração podia ter ocorrido antes,
pois o processo é muito sensível... Qualquer tipo de observação durante o primeiro segundo
da criação, por exemplo, teria distorcido por completo a resultante evolução.
A Águia apontou para uma esfera metálica mínima no centro de várias imensas aglomerações
de matéria.
— Aquele primeiro Monitor Motriz foi enviado pelo Criador de outra dimensão do universo
primitivo para o nosso sistema evolutivo de espaço-tempo. Sua finalidade era observar o que
estava ocorrendo e criar, se necessário, com sua própria inteligência, os outros sistemas de
observação que iriam colher todas as informações pertinentes ao processo inteiro.

— Então, o Sol, a Terra e todos os seres humanos — disse Nicole lentamente — resultaram da
imprevisível evolução natural desse cosmo. Nodo, Rama e até mesmo você e São Michael
foram criados a partir de um desenvolvimento projetado originalmente por aquele primeiro
Monitor Motriz...
Nicole fez uma pausa, olhou em volta e virou-se para a Águia.
— Você podia ter sido previsto logo depois do momento da criação... Eu e até mesmo a
existência da humanidade viemos de um processo tão matematicamente perverso, que não
podíamos ter sido previstos nem mesmo cem milhões de anos atrás, o que é apenas um por
cento do tempo desde o início do universo...
Nicole sacudiu a cabeça e as mãos.
— Muito bem, isso basta... Eu estou farta de tanto infinito.
A grande sala ficou escura de novo, a não ser pelas luzes do chão da plataforma.
— O que foi? — perguntou a Águia, vendo a expressão de sofrimento no rosto de Nicole.
— Não tenho certeza — respondeu ela. — Estou me sentindo triste, como se tivesse sofrido
uma grande perda pessoal... Se compreendi direito tudo isso, todos os humanos são muito mais
especiais do que vocês, ou até mesmo que Rama. Há muito pouca probabilidade de que
quaisquer criaturas, até mesmo semelhantes a nós, voltem a surgir neste universo ou em
qualquer outro... Somos um dos produtos do caos. Você, ou pelo menos algo como você,
provavelmente existe em todos os outros universos que o Criador esteja observando...
Houve um minuto de silêncio.
— Acho que, depois de ouvir o que São Michael me disse — continuou Nicole —, imaginei
que haveria vozes humanas naquela harmonia que Deus buscava... Agora vejo que é só no
planeta Terra, neste universo específico, que nossas canções...
Sentiu uma dor aguda no peito, que se tornou tão forte que não a deixava respirar. Ela pensou
por um instante que seu fim viria imediatamente.
A Águia, em silêncio, observou-a com cuidado. Quando finalmente conseguiu respirar, Nicole
disse, com voz entrecortada:
— Você me falou... na hora do almoço... de um lugar pessoal... onde eu podia ver minha
família e meus amigos...

Eles conversaram um pouco no carro quando a dor de Nicole deu um instante de trégua.
Sabiam, sem precisar dizer nada, que seu próximo ataque seria o último.

Os dois entraram em outra área de exposição do Módulo do Conhecimento. A sala era um


círculo perfeito, com um espaço numa pequena parte do centro onde dava para a Águia ficar
de pé ao lado da cadeira de rodas de Nicole. Eles foram até o centro e viram réplicas de
humanos representando cenas da vida adulta de Nicole em cada um dos seis cenários de teatro
que os rodeavam.

Nicole ficou estupefata com a verossimilhança das representações. Não só toda sua família e
amigos eram mostrados como na época em que aquelas cenas haviam acontecido como os
cenários haviam sido reconstruídos na perfeição. Em uma das cenas, Katie esquiava perto da
costa do lago Shakespeare, rindo e acenando com aquela sua espontaneidade característica.
Em outra, Nicole assistia ao pequeno corpo de teatro de Rama II durante uma festa em
homenagem ao milésimo aniversário de morte de Eleonor de Aquitânia. Ao ver Simone aos
quatro anos, Katie aos dois, Richard e ela própria, Nicole ficou com os olhos cheios de
lágrimas.
Foi uma vida fantástica, pensou. Movimentou sua cadeira de rodas até a cena de Rama II e a
ação parou. Inclinou-se para a frente e pegou o robô TB que Richard criara para divertir as
crianças. Até o peso do robô era o mesmo.
— Como conseguiram fazer isso? — perguntou.
— Tecnologia avançada — respondeu a Águia. — Eu não saberia explicar para você.
— E se eu fosse lá onde Katie está esquiando, se tocasse na água, ficaria com a mão molhada?
— É claro.
Nicole deixou o cenário segurando o pseudo-robô. Depois que ela saiu, apareceu outro TB e a
cena continuou igual. Eu tinha me esquecido, Richard, de todas as suas brilhantes criações,
disse para si mesma.
Seu coração lhe concedeu mais uns minutos para aproveitar aquelas representações da sua
vida. Ficou emocionada no momento do nascimento de Simone, reviveu sua primeira noite de
amor com Richard logo depois de chegar a Nova York, e sentiu pela segunda vez a incrível
sensação de ser cumprimentada, junto com Richard, por todas aquelas criaturas da Cidade de
Esmeralda, quando atravessaram seus portões pela primeira vez.
— Você pode fazer uma retrospectiva de qualquer acontecimento da minha vida? —
perguntou, sentindo um aperto no peito.
— Desde que tenha acontecido depois da sua chegada a Rama e que eu possa encontrar nos
arquivos — respondeu a Águia.
Nicole estava arfando. Seu último ataque cardíaco estava a caminho.
— Por favor — disse com dificuldade —, eu gostaria de ver minha última conversa com
Richard, quando ele foi embora...
Não vai demorar, dizia uma voz dentro de Nicole. Ela cerrou os dentes e tentou concentrar-se
na cena em que Richard explicava à pseudo-Nicole por que era ele quem devia ir com Archie
ao Novo Éden.
— Eu compreendo — disse a pseudo-Nicole na cena.

Eu compreendo, disse a verdadeira Nicole para si mesma. Essa é a declaração mais


importante que se pode fazer... compreender é a chave da vida... E agora eu compreendo
que sou uma criatura mortal e que a morte está chegando.

A próxima dor intensa veio acompanhada da lembrança de um verso em latim de um antigo


poema. "Timor mortis conturbat me"... mas eu não terei medo porque compreendo.
A Águia a observava de perto.
— Eu gostaria de ver Richard e Archie nos seus últimos momentos... na cela... logo antes da
chegada dos biotas — disse ela, em grande sofrimento.
Eu não terei medo porque compreendo.
— E meus filhos, se eles puderem aparecer aqui... E o dr. Azul.
A sala ficou escura e os segundos se passaram. A dor era horrível. Eu não terei medo...
As luzes acenderam-se de novo. Richard e Archie estavam na sua cela bem em frente à
cadeira de rodas de Nicole. E ela ouviu os biotas abrirem a porta no corredor...
— Congele essa cena, por favor — falou Nicole gaguejando. À esquerda da cena com Richard
e Archie apareceram seus filhos e o dr. Azul. Nicole saiu com esforço da cadeira e andou uns
metros para ficar ao lado deles. Lágrimas escorriam-lhe dos olhos quando tocou pela última
vez aqueles rostos queridos.
As paredes do seu coração começaram a entrar em colapso. Nicole caiu no cenário da cela de
Richard e abraçou seu pseudomarido.
— Eu compreendo, Richard — disse.
Nicole foi caindo lentamente. Virou o rosto para a Águia e ainda conseguiu dizer, com um
sorriso:
— Eu compreendo.
E a compreensão é felicidade, pensou.

FIM

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