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etc, espaço, tempo e crítica

Revista Eletrônica de Ciências Sociais Aplicadas


e outras coisas
ISSN 1981-3732
http: //www.uff.br/etc
15 de Agosto de 2007, n° 2 (4), vol. 1

O território em tempos de globalização *


Rogério Haesbaert
Professor Associado do Departamento de Geografia e do Programa de
Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense e Pesquisador do CNPq

Ester Limonad
Professora Associada do Departamento de Geografia e do Programa de
Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense e Pesquisador a do CNPq
Email: ester_limonad@yahoo.com

Resumo
Este trabalho é uma introdução ao estudo das novas territorialidades emergentes no final do século XX, época
usualmente definida como aquela marcada por um processo que, genericamente, convencionou-se denominar de
globalização. Esboça-se uma síntese das principais linhas de interpretação ainda hoje vigentes sobre este
conceito (ou noção), incluindo a proposta para uma caracterização das múltiplas faces do território, verificando
como se manifestam novas territorialidades como o território-mundo no âmbito dos processos de
globalização/fragmentação.
Palavras-Chave – Globalização/fragmentação, território, territorialidade, rede.

Abstract
This work is an introduction to the study of new emerging territorialities at the end of last century that has
been usually defined as a time marked by a process generically called globalization. A synthesis of this concept
(or notion) nowadays prevailing main lines of interpretation is sketched, including a proposal to characterize
the multiple faces of the territory, verifying how new territorialities disclose as territory-world within
globalization and fragmentation processes.
Key- Words – Globalization/fragmentation, territory, territoriality, network.

Este ensaio é uma abordagem antigos processos sociais, verificando


introdutória ao estudo das novas portanto como se manifestam novas
territorialidades emergentes ao final do territorialidades como o território-
século XX, época tantas vezes definida mundo, propalado hoje por
como aquela marcada por um processo pesquisadores das mais diversas áreas.
que, genericamente, convencionou-se Após alguns comentários iniciais sobre
denominar de globalização. Constitui, algumas controvérsias em torno dos
assim, uma tentativa em distinguir o que processos concomitantes de globalização
há de novo e o que ainda reproduz e fragmentação, a concepção de território

*
Esta é uma versão revisada e atualizada do artigo "O território em tempos de globalização" publicado na Revista Geo UERJ.
Vol. 3 (5), 7-20. 1° semestre de 1999. Rio de Janeiro: Depto de Geografia –UERJ. (ISSN 1415-7543).

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Recebido para Publicação em 17.07.2007.
Rogério Haesbaert e Ester Limonad

é abordada através de um breve resgate "estamos todos no mesmo barco"), mas


histórico, relacionando as mudanças que no entanto não atinge igualmente
conceituais com as principais todos os segmentos sócio-espaciais, pois
transformações sociais em curso. Este não somente ela se processa em pontos
ensaio se encerra com uma proposta de seletivamente escolhidos do globo
caracterização das múltiplas faces do terrestre como, em muitos casos, é
território em um período marcado pelos obrigada a adaptar-se e/ou a reelaborar
processos da globalização, depois de processos político-econômicos e culturais
proceder a um esboço sintético das ao nível local. Há que se considerar,
principais linhas de interpretação ainda ainda, que se há uma homogeneização
hoje vigentes sobre o conceito (ou noção) pelo alto, do capital e da elite planetária,
de globalização. há também uma homogeneização da
pobreza e da miséria, considerando-se
que, à medida que a globalização avança,
Controvérsias em torno da tende a acirrar-se a exclusão sócio-
globalização espacial.
O termo globalização, nascido no Se muitos autores afirmam que o
âmbito do discurso jornalístico de teor mundo contemporâneo vive uma era de
econômico, tornou-se palavra da moda, e globalização, outros, por sua vez,
passou a ser utilizado de modo enfatizam como característica principal
generalizado no discurso teórico de do nosso tempo a fragmentação.
diversos campos do conhecimento. Pode- Globalização e fragmentação constituem
se dizer , com alguma ironia, que o que de fato os dois pólos de uma mesma
mais se globalizou foi a adoção deste questão que vem sendo aprofundada, seja
termo para indicar a disseminação em através de uma linha de argumentação
escala planetária de processos gerais que tende a privilegiar os aspectos
concernentes às relações de trabalho, econômicos - e que enfatiza os processos
difusão de informações e uniformização de globalização inerentes ao capitalismo,
cultural. seja através do realce de processos
A idéia de globalização, no fim do fragmentadores de ordem cultural, que
século XX, remete de imediato a uma podem ser tanto um produto (veja-se o
imagem de homogeneização sócio- multiculturalismo das metrópoles com o
cultural, econômica e espacial. aumento do fluxo de migrantes de
Homogeneização esta que tenderia a uma diversas origens) quanto uma resistência
dissolução das identidades locais, tanto à globalização (veja-se o islamismo mais
econômicas quanto culturais, em uma radical).
única lógica, e que culminaria em um Rogério Haesbaert (1998a) distingue
espaço global despersonalizado. uma fragmentação inclusiva ou
Há que se considerar, porém, que tal integradora, pautada numa lógica de
idéia de homogeneização é falsa. Para "fragmentar para melhor globalizar"
ilustrar, tomamos como exemplo a (como na formação de blocos
anedota onde o remador das galés de econômicos), e uma fragmentação
uma nau trirreme romana sobe ao convés excludente ou desintegradora, que pode
e diz ao capitão, "Assim não dá para ser ao mesmo tempo um produto da
continuar"; ao que o capitão, em meio a globalização (a exclusão fruto da
uma grande orgia, retruca "Como não? concentração de capital no oligopólio
Estamos todos no mesmo barco!". Em central capitalista) ou uma resistência a
síntese pode-se dizer que está em curso ela (no caso de grupos religiosos
uma homogeneização (mesmo que ela se fundamentalistas, por exemplo).
refira apenas à consciência de que

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O território em tempos de globalização

A maior parte dos estudiosos vê a diferente: trata-se de uma forma mais


globalização - ou a mundialização, termo avançada e complexa da
utilizado geralmente como homônimo - internacionalização, implicando em um
antes de tudo como um produto da certo grau de integração funcional entre
expansão cada vez mais ampliada do as atividades econômicas dispersas em
capitalismo e da sociedade de consumo. escala planetária e em um crescimento
Para alguns a distinção entre globalização cada vez mais pronunciado dos fluxos do
e mundialização seria meramente capital financeiro de caráter volátil ou
idiomática, os ingleses preferindo a fictício.
primeira, os franceses a segunda. No
A globalização - compreendida neste
Brasil acabou se firmando a vertente
último sentido, portanto, é mais recente;
anglo-saxônica, mas alguns autores
acelera-se a partir dos anos 1960 e
diferenciam globalização - referida mais
consolida-se no decorrer da década de
aos processos econômico-tecnológicos, e
1970. Todo esse processo é facilitado e
mundialização - referida mais aos
torna-se possível conforme se acelera a
processos de ordem cultural (ver por
velocidade da circulação, mediada pela
exemplo Renato Ortiz, 1994).
técnica, em particular pelas novas formas
Karl Marx e Friedrich Engels no de tele-comunicação e comunicação
Manifesto Comunista já destacavam o mediada por computadores (redes) que
caráter globalizador do capitalismo. O constituem a "base material" do "espaço
capital, em seu processo de reprodução, de fluxos" do capital financeiro. Isto leva
se expande tanto em profundidade - autores como Manuel Castells (1996) a
reordenando modos de vida e espaços já denominar a sociedade atual como uma
organizados e consolidados - como em sociedade-rede, pautada naquilo que
extensão - através da incessante Milton Santos (1985, 1994) denominou
incorporação de novos territórios. Estes meio técnico-científico informacional.
movimentos dialeticamente conjugados
A controvérsia entre globalização e
conduzem, tendencialmente, à produção
fragmentação estabelece-se ao se observar
de um espaço global.
que, ao lado destes processos dominantes
As limitações deste trabalho não de expansão e aprofundamento do
permitem aprofundar a questão das capitalismo, que na década de 1990
origens e bases históricas desse processo. incorporam ao seu domínio os antigos
Sem dúvida, a globalização não ocorreu países socialistas, começam a surgir
de forma linear e sem resistências; passou mobilizações em torno de propostas de
por fases de aceleração e crises, impulsos contra-globalização.
tecnológicos e refreamentos sócio-
Estas formas de resistência, bem como
políticos e encontra-se, em períodos mais
as próprias conseqüências mais diretas da
recentes, cada vez mais subordinada aos
globalização, conduzem a um processo de
imperativos do capital financeiro e dos
fragmentação que se manifesta na forma
fluxos mercantis e financeiros das
de exclusão, reforço de desigualdades etc
grandes corporações transnacionais.
e constituem, assim, o pólo oposto aos
Cabe, entretanto, distinguir e processos hegemônicos pretensamente
diferenciar internacionalização e homogeneizadores. A simples
globalização. Internacionalização refere- emergência de muitas novas-velhas
se simplesmente ao aumento da extensão territorialidades antepõe-se à idéia de
geográfica das atividades econômicas globalização na medida em que,
através das fronteiras nacionais, não dialeticamente, enquanto a globalização
constituindo, portanto, um fenômeno remete à idéia de unidade do diverso,
novo. A globalização da atividade muitas territorialidades que hoje
econômica (capitalista) é qualitativamente

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emergem são de per se a própria Para Marcelo Lopes de Souza


diversidade. (1995 :97), Claude Raffestin "praticamente
reduz espaço ao espaço natural, enquanto
Procura-se, aqui, trabalhar esta
que território de fato torna-se,
controvérsia ao nível das territorialidades
automaticamente, quase que sinônimo de
que, supostamente, são expressões destes
espaço social". empobrecendo assim "o
processos recentes, sejam eles de
arsenal conceitual à nossa disposição" e
globalização e/ou de fragmentação. Uma
não desenvolvendo a perspectiva
análise das territorialidades que surgiram
relacional 2 a que o autor se propõe. De
no mundo contemporâneo - quer sejam
fato o território não deve ser confundido
de fato novas ou não - pode contribuir
com a simples materialidade do espaço
para uma melhor compreensão do
socialmente construído, nem com um
próprio processo de globalização e, quem
conjunto de forças mediadas por esta
sabe, ajudar a superar as visões
materialidade. O território é sempre, e
dicotômicas (globalização versus
concomitantemente, apropriação (num
fragmentação) através de uma
sentido mais simbólico) e domínio (num
perspectiva dialética, tanto no sentido de
enfoque mais concreto, político-
uma globalização que fragmenta como no
econômico) de um espaço socialmente
de uma fragmentação que ao mesmo
partilhado (e não simplesmente
tempo se antepõe aos processos globais.
construído, como o caso de uma cidade-
Para compreender até que ponto estas fantasma no deserto norte-americano,
territorialidades em formação exemplificado por Souza (1995)).
apresentam-se efetivamente como novas,
Desta forma, o importante a enfatizar
impõe-se aprofundar, inicialmente,
aqui é que a noção de território deve
algumas questões relacionadas às
partir do pressuposto de que:
concepções de território e territorialidade.
• primeiro, é necessário distinguir
território e espaço (geográfico); eles
Território: algumas não são sinônimos, apesar de
considerações teóricas muitos autores utilizarem
indiscriminadamente os dois
É possível partir de uma
termos – o segundo é muito mais
constatação aparentemente banal: sem
amplo que o primeiro.
dúvida o homem nasce com o território, e
vice-versa, o território nasce com a • o território é uma construção
civilização. Os homens, ao tomarem histórica e, portanto, social, a partir
consciência do espaço em que se inserem das relações de poder (concreto e
(visão mais subjetiva) e ao se apropriarem simbólico) que envolvem,
ou, em outras palavras, cercarem este concomitantemente, sociedade e
espaço (visão mais objetiva), constroem e, espaço geográfico (que também é
de alguma forma, passam a ser sempre, de alguma forma,
construídos pelo território. Autores como natureza);
Claude Raffestin (1992) propõem uma
• o território possui tanto uma
distinção, da qual nem todos partilham,
dimensão mais subjetiva, que se
entre espaço, prisão original, primeira, e
propõe denominar, aqui, de
território, "a prisão que os homens
consciência, apropriação ou mesmo,
constroem para si" 1 .
em alguns casos, identidade
territorial, e uma dimensão mais

1
Muitos autores preferem privilegiar a dimensão política
ao definirem território. Marcelo Lopes de Souza (1995:
espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre
97, grifos do autor), por exemplo, enfatiza o caráter
um substrato referencial".
especificamente político (p.84) do território, definindo-o 2
como um "campo de forças, as relações de poder Grifo do autor.

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O território em tempos de globalização

objetiva, que pode-se denominar de ciência, de alguma forma, também tenha


dominação do espaço, num sentido construído suas próprias "divindades").
mais concreto, realizada por
Pode-se dizer, assim, que enquanto o
instrumentos de ação político-
território mais estável nas sociedades
econômica 3 .
tradicionais era em geral fragmentador e
Esse espaço tornado território pela excludente em relação a outros grupos
apropriação e dominação social é culturais mas profundamente integrador
constituído ao mesmo tempo por pontos e e holístico no que se referia ao interior do
linhas redes e superfícies ou áreas zonas. É grupo social, no mundo moderno
possível acrescentar então que são capitalista a fragmentação territorial
elementos ou unidades elementares do interna ao sistema é uma necessidade
território aquilo que Raffestin denomina vital para a sua reprodução (a começar
de malhas - que preferimos denominar pela instituição da propriedade privada e
de áreas ou zonas; e as linhas e os nós ou pela dessacralização da natureza,
pontos - que, reunidos, preferimos separada do social), sendo que esta forma
denominar de redes. de organização territorial, cada vez mais
moldada pela mobilidade, pelos fluxos e
Nas sociedades tradicionais
pelas redes, tende a fragmentar e,
prevaleceria uma construção de
destarte, assimilar todo tipo de cultura
territórios baseada em áreas ou zonas e nas
estrangeira.
sociedades modernas predominaria a
construção de territórios onde o elemento A vinculação entre território e rede é
dominante seriam as redes ou a geometria extremamente polêmica. As abordagens
dos pontos e linhas. A preponderância da vão desde aquelas que os distinguem de
dimensão mais subjetiva e/ou simbólica forma nítida, contrapondo as duas
de apropriação do espaço nas sociedades concepções (como por exemplo Badie
tradicionais cede lugar, nas sociedades (1995) e, de forma mais nuançada,
modernas, à dimensão mais objetiva ou Jacques Lévy (1993)), até aquelas que
funcional de dominação do espaço. vêem uma simbiose praticamente total
Preponderância, note-se bem, pois nunca entre elas, fazendo desaparecer a
existiram espaços puramente simbólicos especificidade das redes no interior dos
ou puramente funcionais 4 . territórios. Uma tendência importante,
contudo, é aquela que propõe a rede
Se nas sociedades tradicionais o
como um elemento do território ou, no
homem preenchia todos os poros de seu
máximo, como uma das formas do
território através de uma apropriação
território se apresentar. Ainda em 1981
simbólica onde, por exemplo, uma
Joël Bonnemaison (:253-254) afirmava que
dimensão sagrada dotava de sentido o
espaço em sua totalidade, nas sociedades um território antes de ser uma fronteira é
modernas o território passa a ser visto primeiro um conjunto de lugares
antes de tudo, numa perspectiva hierarquizados, conectados a uma rede de
utilitarista, como um instrumento de itinerários. (...) A territorialização (...)
domínio, a fim de atender às necessidades engloba ao mesmo tempo aquilo que é
fixação [enraizamento] e aquilo que é
humanas (e não "dos deuses", embora a
mobilidade, em outras palavras, tanto os
itinerários quanto os lugares.

É polêmica também a relação


3
Pautamo-nos aqui na distinção feita por Henri Lefebvre território-lugar. Autores como Yi-Fu-
(1986) entre domínio e apropriação do espaço.
4
Vide por exemplo o caso de Brasília, típica cidade
Tuan (1983) chegam a preferir lugar ao
“funcional” moderna, construída visando ao mesmo invés de território, e vários outros autores
tempo a funcionalidade no zoneamento estrito do uso do
solo e na livre circulação de veículos e o simbolismo do trabalham com a concepção de lugar
poder, da “capital da nação”, através da imponência do como uma nova noção contraposta ao
seu urbanismo e da sua arquitetura.

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conceito de rede. Deste modo, o lugar No sentido de poder contribuir para a


pode ser visto como o espaço da unidade compreensão dessa mudança de
e da continuidade do acontecer histórico significado do território, devemos
(Santos, 1996:132) frente ao espaço dos analisar as formas com que hoje ele é
fluxos e da descontinuidade das redes apropriado, em um contraponto com as
(Castells, 1996:423). práticas sociais anteriores. Ora, o
conjunto de práticas sociais e os meios
Ao se partir, porém, da noção mais
utilizados por distintos grupos sociais
ampla de espaço geográfico como um
para se apropriar ou manter certo
espaço relacional, definido pelas relações
domínio (afetivo, cultural, político,
sociais, os espaço dos fluxos (ou das
econômico etc...) sobre/através de uma
redes) e o espaço dos lugares não podem
determinada parcela do espaço
ser dissociados, porque o espaço social
geográfico manifesta-se de diversas
não existe sem os fluxos e as redes. Neste
formas, desde a territorialidade mais
sentido a indagação de "como os
flexível até os territorialismos mais
significados espaciais podem estar
arraigados e fechados.
ligados ou se desenvolver no interior de
uma experiência na qual o 'o espaço dos Em uma visão geopolítica do território,
fluxos' (...) supera o espaço dos lugares?", enquanto espacialidade social contida por
feita por Jeffrey Henderson e Manuel limites e fronteiras sob o estatuto de um
Castells (1987), torna-se nada mais do que Estado-nação, por exemplo (mas nunca
uma figura de linguagem 5 . restrita apenas a ele), a territorialidade
pode ser entendida como a estratégia
Iremos optar, assim, por uma posição
geográfica para controlar/atingir a
em que:
dinâmica de pessoas, fenômenos e
• o território pode ser uma noção relações através do manutenção do
mais ampla que lugar e rede mas domínio de uma determinada área (Sack,
pode também, em muitos casos, 1986). O mundo contemporâneo, ao
confundir-se com eles; mesmo tempo em que se abre a fluxos
• a rede pode ser tanto uma forma de como os do capital financeiro globalizado,
expressão/organização do território exibe inúmeros exemplos de
(principalmente na atual fase fortalecimento dos controles territoriais,
globalizante) quanto um elemento como é evidente nas fronteiras
constituinte do território; internacionais que se fecham aos fluxos
migratórios.
• o lugar, enquanto espaço
Existe, assim, uma imensa gama de
caracterizado pela contigüidade e
territórios sobre a superfície do globo
por ações de co-presença
terrestre e a cada qual corresponde uma
(GIDDENS, 1991), é uma das
igualmente vasta diversidade de
formas de manifestação do
territorialidades, com dimensões e
território, e embora no lugar não se
conteúdos específicos. As conotações que
privilegiem os fluxos e as redes,
a territorialidade adquire são distintas
estes não podem ser vistos em
dependendo da escala, se enfocada ao
contraposição a ele.
nível local, cotidiano, ao nível regional ou
ao nível nacional e supranacional.
Igualmente, existem diversas concepções
5
Neste sentido Ruy Moreira (1997:4), interpretando as de território de acordo com sua maior ou
noções de verticalidades e horizontalidades de Milton
Santos, afirma que o lugar é ao mesmo tempo menor permeabilidade: temos, desta
horizontalidade e verticalidade; por parte da primeira, ele forma, desde territórios mais simples,
“tem a capacidade de aglutinar numa unidade regional os
elementos contíguos”, enquanto, por outra parte da exclusivos /excludentes, até territórios
segunda, temos a “capacidade desses elementos
aglutinados de se inserirem no fluxo vital das totalmente híbridos, que admitem a
informações, que são o alimento e a razão mesma da existência concomitante de várias
rede”.

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O território em tempos de globalização

territorialidades. Embora em vários Para fins didático-analíticos,


períodos da história apareçam distinguimos no Quadro I as diferentes
territorialidades múltiplas, sobrepostas concepções de território a partir de três
(vide os múltiplos domínios territoriais linhas de abordagem conforme a
medievais), elas são uma marca dimensão social priorizada, sabendo que
indiscutível do mundo globalizado / o que temos na realidade são distintas
fragmentado. formas de fusão de ao menos três
dimensões: jurídico-política, sempre mais
enfatizada, a cultural e a econômica.

Quadro I - As abordagens conceituais de território em três vertentes básicas


Dimensão concepções concepção de territorialização perspectiva exemplos de
Privilegiada correlatas território da trabalhos
principais principais Geografia próximos a
atores/ agentes vetores esta vertente

jurídico- • Estado-nação um espaço • Estado-nação relações de Geografia Alliès (1980)


política delimitado e dominação Política
• fronteiras controlado sobre / • diversas política e (Geopolítica) a visão
(majoritária, políticas e por meio do qual se organizações regulação clássica de
inclusive no limites político- exerce um políticas Ratzel
âmbito da administrativos determinado poder,
Geografia) especialmente o de
caráter estatal

cultural(ista) • lugar e produto • indivíduos relações de Geografia Deleuze e


cotidiano fundamentalmente identificação Humanística Guattari
da apropriação do • grupos étnico- cultural e/ou (1972)
• identidade e espaço feita através culturais Geografia
alteridade do imaginário e/ou Cultural Tuan (1980 e
social da identidade social 1983)

• cultura e
imaginário

(imaginário:
"conjunto de
representações,
crenças, desejos,
sentimentos, em
termos dos quais
um indivíduo ou
grupo de indivíduos
vê a realidade e a
si mesmo")

econômica • divisão (des)territorializa- • empresas relações Geografia Storper (1994)


(muitas vezes territorial do ção é vista como (capitalistas) sociais de Econômica
economicista) trabalho produto espacial do produção Benko (1996)
• trabalhadores
minoritária embate entre Veltz (1996)
• classes sociais classes sociais e da • Estados
e relações de relação capital- enquanto
produção trabalho unidades
econômicas
Elaborada pelos autores.

(ou pelo menos deveriam estar) em toda


definição de espaço geográfico e
O território entre a cultura e a território. Podemos mesmo partir da
natureza premissa de que as concepções de
Outra questão que merece um território bem como, aquela mais ampla,
tratamento mais detalhado é aquela que de espaço geográfico, transitaram ao
diz respeito à indissociabilidade entre longo do tempo entre uma visão mais
território e natureza, geralmente naturalista ou naturalizante e uma visão
menosprezada pelos geógrafos. Com mais culturalista ou sociologizante.
todas as controvérsias que esta Na abordagem naturalista temos uma
diferenciação implica, natureza e cultura naturalização do território que pode se
ou natureza e sociedade estão presentes dar de duas formas:

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• uma naturalização biologicista, que tornar completamente indissociáveis


entende o homem /a sociedade como sociedade e natureza.
simples continuidade, extensão ou até
De fato não podemos ignorar,
mesmo raiz do mundo da natureza,
principalmente no âmbito da Geografia,
que teria como destino natural (como os que a definição de território precisa levar
próprios animais) dominar certa
em conta a dimensão material e/ou
parcela do espaço (seu nicho ecológico) e
natural do espaço, mas sem
seus recursos para sobreviver
sobrevalorizá-la. É importante não
(evitando, assim, na argumentação de esquecer que há sempre uma base natural
seus defensores, dilemas como a
para a conformação de territórios e que,
superpopulação). A tese de Gaia, da
dependendo do grupo social que o
Terra como um grande ser vivo, pode produz (por exemplo, as comunidades
levar a conclusões vinculadas a esta
indígenas), a relação dos grupos sociais
perspectiva de território;
com a primeira natureza pode mesmo ser
• uma naturalização de fundo funcional- primordial na sua definição. As
economicista (e, em última instância, diferenças naturais atuam em si mesmas
imperialista), como na tese como uma espécie de território – neste
determinista de que um Estado ou caso preferimos utilizar o termo domínio
uma civilização só se desenvolvem, natural - que, com a modernidade e sua
progridem a partir de sua expansão dinâmica tecnológica, acabaram bastante
físico-territorial. Um exemplo disso são relativizadas. Hoje, entretanto, com a
as "pan-regiões" de Karl Haushofer, ao intensidade das transformações sócio-
longo de faixas longitudinais que iriam econômicas, de efeitos imprevisíveis, essa
de um pólo ao outro, a fim de garantir, relação volta a receber atenção.
em cada uma delas, a diversidade e a Ecossistemas, biomas, desenvolvimento
auto-suficiência em recursos naturais. sustentável e biodiversidade são
concepções que, sob prismas distintos,
Já no outro extremo, uma
evidenciam esse retorno a uma natureza
abordagem culturalista sobrevaloriza a
indissociavelmente ligada à dinâmica da
constituição social do território, ao ponto
sociedade.
de prescindir de qualquer base física ou
natural para sua existência: O homem geralmente tem tratado o
espaço natural exclusivamente como esses
• numa visão que prioriza e
territórios-domínio, fechados em si
sobrevaloriza o político (visão
mesmos, e não na sua imbricação com
politicista), o território não passa de
redes (tanto ligadas à própria dinâmica
uma construção sócio-política, de um
da natureza como socialmente
conjunto de normas ou forças que
construídas), vendo-o assim parcelizado,
atuam sem ligação indissociável com a
com fronteiras claras e não conectado
natureza ou com o ambiente físico
através de fluxos globais. Vide os
socialmente construído;
diferentes tipos de vegetação e solo e a
• numa outra visão culturalista, de dinâmica climática planetária - se os
caráter sacralizador ou mitificador, o primeiros são marcados mais pela
espaço que compõe um território não continuidade espacial, a segunda é
passa de uma dimensão simbólica, marcada sobretudo por movimentos e
mítica, enquanto produto de uma fluxos globalmente conectados, e hoje
sacralização totalizadora, morada dos nem um deles pode ser conhecido sem as
deuses (ou o espaço se confundindo múltiplas vinculações com as redes do
com os próprios deuses). Aqui, as capitalismo planetário.
leituras culturalista e naturalista do
Como já foi ressaltado, a diferenciação
território acabam se confundindo, na
natural foi uma das primeiras bases para
medida em que a sacralização pode

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O território em tempos de globalização

a formação de territórios (e ainda o é em Antigas e novas


certos espaços/grupos sociais, como os
indígenas da Amazônia, os tuaregues do
territorialidades
Sahara ou os nômades mongóis e Se o território é uma construção
tibetanos). Fornecendo recursos histórica, sem esquecer que dele fazem
diferentes e desigualmente distribuídos, parte diferentes formas de apropriação e
bases físicas distintas para a ocupação, ela domínio da natureza, as territorialidades
não só condicionou redes moldadas por também são forjadas socialmente ao
uma divisão territorial do trabalho longo do tempo, em um processo de
(especialmente nos setores extrativo e relativo enraizamento espacial. Porém, se
agrícola), mas também ajudou a moldar hoje o mapa da Europa, por exemplo, é
diferentes identidades territoriais, redesenhado, retomando algumas
associadas às paisagens e ao tipo de configurações de muitas décadas atrás,
recurso natural dominante. porque falar em novas territorialidades?
O que existiria de efetivamente novo?
Hoje, numa outra escala, aparece
também a formação de territórios-reserva Cabe aqui um breve parêntese, para
associados a uma rede de caráter considerar, ainda que de forma sumária, a
mundial. As reservas naturais e os identificação entre Estado e território e o
"patrimônios culturais da humanidade" seu caráter relativamente recente. No
podem ser considerados tipos específicos decorrer do século XX, até 1980, pode-se
de território, produtos característicos da dizer que se consolidou uma identidade
modernidade contemporânea 6 . Seu valor entre Estado e base espacial (ou, mais
ao mesmo tempo simbólico e concreto e simplesmente, o Estado territorial
seu papel conservacionista parecem a moderno), a qual foi construída de
princípio contradizer o espírito mutável distintas maneiras ao longo da história,
da sociedade moderna ou, pelo menos, construção em larga escala iniciada na
impor-lhe limitações de ordem ao mesmo alvorada da era moderna, no século XVI -
tempo cultural e natural para a salvo raras exceções, como a França
transformação do espaço geográfico. (século VIII), Inglaterra (século XII) e
Portugal (século XIII), entre outros.
A institucionalização de uma
natureza preservada como objeto de Esta identidade entre Estado
contemplação na forma de santuários (enquanto fonte de poder) e espaço
naturais (Berque, 1995) e, hoje, também (tornado território) propiciou de certa
como reserva biotecnológica, numa forma a construção de uma unidade de
espécie de territórios-clausura (de acesso base territorial com limites político-
pelo menos temporariamente vedado), administrativos definidos, unidade esta
está sendo colocada em cheque na alcançada muitas vezes mediante longos
medida em que muitas espécies não irão e extenuantes conflitos, em que
sobreviver isoladas umas das outras, identidades e culturas locais tiveram que
sendo imprescindível a criação de redes se subordinar ou foram subjugadas, por
(corredores) que interliguem as diversas um largo espaço de tempo, a uma
reservas, pelo menos aquelas identidade e cultura nacional alheia 7 .
pertencentes a um mesmo ecossistema.

7
Isto se deu tanto através de manobras políticas
relacionadas aos direitos de sucessão real (Escócia
anexada ao Reino Unido), como por acordos político-
econômicos (caso da unificação da Alemanha no século
6
XIX através da ação de Bismarck), através de lutas de
Embora o primeiro parque nacional tenha sido criado unificação do território (caso da Itália) ou ainda pela
ainda no século XIX (Yellowstone, nos Estados Unidos), coerção e força (países balcânicos que constituíam a
áreas de preservação natural só se difundiram antiga Iugoslávia) e pela definição arbitrária de espaços
efetivamente em nível global a partir das décadas de coloniais de dominação (vide a respeito a .partilha da
1950 e 1960. África no início do século XX) - estes, hoje, com fortes

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Rogério Haesbaert e Ester Limonad

Temos, assim, no processo de mercadorias, capital, informações, tudo


construção dos Estados contemporâneos parece mais móvel, relativizando as
uma mescla de distintas identidades fronteiras territoriais tradicionais como
culturais e territoriais, que antes forma de controle. Hoje o espaço nacional
conformavam distintas territorialidades cede rapidamente lugar aos espaços
(variadas formas de apropriação de uma locais, seletivamente escolhidos para se
parcela do espaço por distintos grupos inserirem nos circuitos da globalização.
sociais). Neste processo de construção dos
Entre as características que regem a
Estados nacionais temos a relação cada
emergência destas novas-antigas
vez mais forte entre o Estado territorial e
territorialidades temos, inseridas nos
o Estado-nação. O Estado e seu território
processos de globalização
tendendo a promover uma única
/mundialização:
identidade, construída, vale ressaltar
mais uma vez, através do processo de 1. a formação simultânea de uma elite
construção de uma identidade nacional, globalizada vis a vis a uma enorme
seja do ponto de vista cultural - em massa de excluídos que buscam
termos da partilha de uma cultura reconstruir seus territórios, muitas
(língua, religião...) - que leva à asfixia de vezes de forma extremamente
traços culturais e tradições minoritários, reacionária e ainda mais
seja do ponto de vista da organização discriminatória que a dos Estados-
social como um todo. nações.
Por um largo período de tempo, 2. o fortalecimento dos processos de
portanto, diversas territorialidades, que âmbito local frente ao regional e ao
hoje emergem com caráter de novas, nacional - seja como meio de fortalecer
foram subordinadas ou subjugadas condições para competir no mercado,
coercitivamente, e permaneceram, por seja como forma de resistência
assim dizer, submersas, como é o caso de cultural;
muitos processos em curso nos anos 1990 3. o aparecimento de vínculos complexos
no ex-bloco socialista. Cabe, portanto, de ordem concomitantemente local e
questionar onde está a novidade. global, sintetizados nos processos de
O fato é que, se as velhas glocalização analisados por Robertson
territorialidades pareciam mais nítidas ou (1995), e, mais radicalmente, na
mais fáceis de ser identificadas, hoje há formação de translocalidades, tal como
uma complexificação e uma sobreposição proposto por Appadurai (1997);
muito maior de territórios. Muitas vezes 4. o recrudescimento de regionalismos e
não se tratam de novas territorialidades nacionalismos de ordem político-
enquanto construção de novas cultural - enquanto movimentos pelo
identidades culturais; a novidade está menos parcialmente contra-
mais na forma com que muitas destas globalizadores;
territorialidades, imersas sob o jugo da
construção identitária padrão dos 5. a constituição de novas modalidades
Estados-nações, ressurgem e provocam político-institucionais reguladoras do
uma redefinição (ou mesmo indefinição) território através, por exemplo, de
de limites político-territoriais, alterando a entidades supra-nacionais e de
face geográfica do mundo neste fim de organizações não-governamentais.
milênio. Da intensificação do fluxo de Uma das causas fundamentais para
pessoas de diferentes classes, línguas e esta reestruturação estaria nas mudanças
religiões à intensificação do fluxo de do papel normativo e regulador do
Estado, enquanto aglutinador de
diferentes interesses, onde a fração no
tendências ao esfacelamento a partir de conflitos de
fundo étnico-territorial.
poder gozaria de uma autonomia relativa

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O território em tempos de globalização

(Poulantzas, 1978). Enquanto em alguns b. Num sentido mais simbólico, o


lugares há um enfraquecimento do território pode moldar identidades
Estado, que não tem mais meios de culturais e ser moldado por estas, que
manter uma pretensa coesão nacional fazem dele um referencial muito
frente às disputas regionais e dos lugares importante para a coesão dos grupos
para se globalizar (a "guerra dos lugares" sociais.
a que alude Santos, 1996). Em outros
c. O território, além de ter diferentes
lugares os nacionalismos são retomados,
composições na interação entre as
sob as mais diversas argumentações e
dimensões política, econômica e
colorações políticas, da esquerda ultra-
simbólico-cultural, pode ser visto a
radical à extrema direita: muitas vezes em
partir do grau de fechamento e/ou
nome da preservação e/ou defesa da
controle do acesso que suas fronteiras
identidade territorial. Estamos muito
impõem, ou seja, seus níveis de
longe, entretanto, do fim dos territórios,
acessibilidade. Assim, teríamos desde
como tentou defender Bertrand Badie
os territórios mais abertos, de
(1995), mesmo ao se proceder a uma
fronteiras permeáveis, intensamente
simplificação grosseira ao se restringir a
conectados ou redificados, até aqueles
noção de território às relações na escala
mais fechados, quase impermeáveis.
do Estado-nação.
Entre os dois extremos desdobram-se
os mais diversos níveis de
Por uma caracterização geral permeabilidade ou flexibilidade (ver,
por exemplo, a "territorialidade
dos territórios flexível" apontada por Souza (1995:87)
Como instrumento geral de análise e para as metrópoles modernas).
como síntese da multiplicidade de feições d. Uma propriedade geográfica
que o território e os processos de fundamental diz respeito à
territorialização assumem num mundo continuidade e descontinuidade do
dito globalizado, é possível afirmar que: território, ou seja, seu maior ou menor
a. A construção do território resulta da grau de fragmentação. Territórios
articulação de duas dimensões globais tendem a se fragmentar e ao
principais, uma mais material e ligada mesmo tempo se re-articular pela
à esfera político-econômica, outra mais presença de diversos tipos de rede que
imaterial ou simbólica, ligada vinculam seus diversos segmentos. A
sobretudo à esfera da cultura e do velha estratégia do "dividir para
conjunto de símbolos e valores melhor governar", embora mais
partilhados por um grupo social. complexa, também encontra-se
Assim, a princípio, há três presente no mundo contemporâneo,
possibilidades na fundamentação dos vide os exemplos da Bósnia e da
territórios, conforme estejam mais Palestina. Neste sentido, mais
ligados a uma ou outra destas três tradicional, de território político que
esferas da sociedade. Num sentido reivindica a condição de Estado-nação,
mais material-funcionalista, o território a fragmentação geográfica não é,
pode estar vinculado tanto ao exercício entretanto, como no passado, uma
do poder e ao controle da mobilidade condição para a fragilização do poder.,
via fortalecimento de fronteiras, tendo em vista que agora este se
quanto à funcionalidade econômica potencializa pela capacidade conectiva
que cria circuitos relativamente (de conexão) de cada fragmento do
restritos para a produção, circulação e espaço, mediada pelas relações sociais
consumo. necessárias à reprodução social.

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Rogério Haesbaert e Ester Limonad

e. O território deve ser trabalhado verificar até que ponto os territórios estão
sempre a partir de sua perspectiva des-conectados nesta complexa teia de
temporal, já que envolve profundas imbricação entre múltiplas escalas 8 .
transformações ao longo da história.
Desse modo, tomando como referência
as temporalidades de curta e longa Uma nova territorialidade
duração tal como definidas por possível: o território-mundo
Fernand Braudel, temos desde os
Entre as novas territorialidades em
territórios episódicos ou conjunturais,
gestação, talvez a mais surpreendente seja
que podem mudar ou mesmo
aquela que envolve a escala-mundo. É a
desaparecer em questão de horas
sua existência, afinal, que de diversas
(como os territórios da prostituição em
maneiras coroaria os processos de
certas áreas das grandes cidades
globalização, de certa forma legitimando-
(Ribeiro e Mattos, 1996), até os
os, na medida em que a dimensão política
territórios de mais longa duração
da globalização, o controle político dos
(como muitos Estados-nações),
fluxos (especialmente de capitais), é a
estruturais a uma sociedade. Com
menos evidente. Simbolicamente,
relação à temporalidade, devemos
territórios como aqueles das reservas
considerar também o caráter
naturais e patrimônios da humanidade
permanente, cíclico ou circunstancial
podem ajudar na consolidação de uma
do território.
identidade-mundo, capaz de unir numa
f. Outra característica a ser considerada é mesma "rede-território" toda a civilização
a maior ou menor instabilidade planetária, que pela primeira vez (desde a
territorial, seja pela facilidade em Segunda Grande Guerra) coloca em risco
recompor os desenhos fronteiriços, seja sua própria existência na superfície da
pela facilidade em diminuir e Terra.
aumentar o seu grau de acessibilidade.
Estaríamos vivenciando um processo
Logicamente esta instabilidade está
radicalmente novo de territorialização,
amplamente ligada à maior ou menor
pelo menos no que diz respeito à escala
fragmentação territorial e à duração de
planetária, com a formação de uma nova
uma territorialidade no tempo,
identidade territorial, um novo espaço a
conforme comentado nos dois itens
controlar (e preservar) de maneira
anteriores. A isso se soma ainda a
conjunta, a Terra em sua totalidade (ou a
maior ou menor superposição a que
"Terra pátria", no dizer de Edgar Morin e
um território está submetido (item a
Anne Brigitte Kern, 1993)?
seguir).
Essa possibilidade de uma sociedade
Juntamente com o grau de
global no sentido positivo, e não apenas
instabilidade territorial encontra-se a
negativo de opressão e controle (do
maior ou menor possibilidade de um
Grande Irmão planetário, como diria
território ser entrecruzado por ou se
George Orwell em seu romance 1984),
inserir no interior de outros, já que uma
coloca pela primeira vez na história a
das características do mundo dito global é
possibilidade de uma "sociedade-mundo"
promover uma complexa superposição de
(Lévy, 1992) onde valores como a
territórios. Vinculada a esta super ou
democracia, a autonomia e os direitos
interposição encontramos a questão da
humanos seriam de fato universalizados.
escala territorial: continua relevante para
o geógrafo saber se uma territorialidade
tem abrangência local, regional, 8
Uma tentativa de apreender empiricamente estas
corresponde aos limites do Estado-nação complexas des-conexões, da qual resultou um
mapeamento de diferentes redes/escalas que perpassam
ou cobre o mundo como um todo. Porém, as cidades, incluindo-as ou excluindo-as dos circuitos
mais do que isto, é imprescindível, hoje, externos à região (no caso o leste paraguaio), é o
trabalho de Haesbaert (1998b).

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O território em tempos de globalização

Para isso, uma nova identidade sócio- dar-lhes uma unidade e incorporá-las,
territorial, também planetária, torna-se integrando-as num grande lugar: o
imprescindível. Neste sentido, a território-mundo. Vide a polêmica teoria
consciência global dos problemas de Gaia, da Terra como um grande ser
(ecológicos, político-militares, vivo - que, apesar de todas as críticas e do
econômicos, médico-sanitários...) pode "naturalismo" (ou mesmo, por outro lado
constituir um primeiro passo. do "espiritualismo") a que está propensa,
que pode ter um importante papel ao
Lévy, numa visão a partir do contexto
demonstrar a necessidade dessa
europeu, identifica como problemas
identidade-mundo, reunindo de maneira
mundiais contemporâneos aqueles
indissociável a natureza e a sociedade. O
relacionados ao meio-ambiente, às
problema é distinguir que grupos a
questões demográficas, médicas (Aids,
utilizam/manipulam e que níveis de
cólera...), ao tráfico de drogas e ao
autonomia e em que escala estão
armamentismo. Ressalta que "a questão é
realmente dispostos a difundí-la.
saber se, para um problema mundial, há
também um tratamento mundial" oOo
(1992:22), ou, em nossa opinião, se se
tratam de questões que estimulam a Bibliografia
integração (para sua resolução) ou se, por
manifestarem uma situação de crise, ALLIÈS, P. (1980) L'invention du territoire. Grenoble:
evidenciam muito mais uma dinâmica de Presses Universitaire.
fragmentação do que de globalização. APPADURAI, A. (1997) Soberania sem
O surgimento de uma opinião pública territorialidade: notas para uma Geografia pós-
nacional. Novos Estudos Cebrap, n° 49, nov.1977. São
internacional (com uma mídia Paulo.
globalizada) e de uma política mundial
BADIE, B. (1995) La fin des territoires. Paris: Fayard.
(com entidades e instituições como a
ONU, o Grupo dos Sete, o FMI e as BERQUE, A. (1995) Les raisons du paysage. Paris:
Hazan.
ONGs) são respostas ainda tímidas, ou
exclusivamente a serviço das grandes BONNEMAISON, J. (1981) Voyage autour du
redes moldadas pela elite planetária. Em territoire. L’espace géographique – dossier « La
géographie culturelle ». Vol.10 (4), 249-262. Paris
síntese, Lévy afirma que "o homem em
geral não tem maior significação hoje do CASTELLS, M. (1996) The rise of the network
society. Malden & Oxford: Blackwell.
que no passado; mas a generalidade dos
homens ganha sentido" (1992:214). O DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1972) L'Anti-
novo padrão que tenta moldar a Edipe. Paris: Editions de Minuit.
sociedade vai gradativamente GIDDENS, A. (1991) As conseqüências da
diminuindo as distâncias no nível modernidade. São Paulo: EdUnesp.
planetário, ao ponto de, na "sociedade- HAESBAERT, R. (org.) (1998a) Globalização e
mundo" de Jacques Lévy, termos uma fragmentação no mundo contemporâneo. Niterói:
EdUff.
distância nula, pois "todos os pontos da
Terra pertencem a uma mesma HAESBAERT, R. (1998b) Desconexão urbana e
sociedade" (1992:23) através de redes regional na periferia da periferia de um mundo em
globalização. Livro de Resumos, Encontro
sincronizadas. Internacional Redes e Sistemas. São Paulo: EdUsp.
Essa afirmação a nosso ver é hipotética -
HENDERSON, J. & CASTELLS, M. (ed) (1987)
só é válida, se é que a sociedade-mundo Global restructuring and territorial development.
está de fato se estruturando, para um Beverly Hills: Sage.
grupo social muito seleto. Talvez esteja se LEFEBVRE, H. (1987) La production de l'espace.
moldando assim, hoje, uma nova Paris: Anthropos.
concepção de território: um território LÉVY, J. (1993) A-t-on encore (vraiment) besoin du
que, acoplando inúmeras redes, poderia territoire? Espaces Temps. n° 51-52, 102-142. Paris.

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