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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DAS ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO DO CAMPO

DO ESTADO DO CEARÁ: o Inventário da Realidade como Pesquisa Diagnóstica


Coletiva

Maria de Lourdes Vicente da Silva 1


Paulo Roberto de Sousa Silva2
Celecina Maria Vera Sales3
Resumo

As práticas pedagógicas da Educação do Campo vistas a partir do Projeto Político


Pedagógico das Escolas de Ensino Médio das Áreas de Reforma Agrária do Estado do
Ceará focam na proposta pedagógica do diálogo entre conhecimento e realidade a partir
de uma organização curricular que recorre a um conjunto de estratégias, dentre as quais,
a pesquisa diagnóstica coletiva envolvendo todos os sujeitos da escola e da comunidade.
Tendo como objetivo central a formação humana, a proposta pedagógica que orienta as
escolas do campo é fundada sob a égide da Pedagogia do Movimento e da concepção de
escola que tem como base a pedagogia do trabalho, pedagogia da história, pedagogia da
organização coletiva, pedagogia da luta social, pedagogia da práxis. A proposta
pedagógica é inspirada, também, nas aprendizagens da pedagogia socialista no que
tange a integração do conhecimento escolar com a realidade, buscando superar a
histórica ruptura entre escola e vida, tendo como uma de suas ferramentas pedagógicas
o chamado Inventário da Realidade que visa identificar as fontes educativas
subsidiando os planejamentos pedagógicos no vínculo dos objetivos formativos e de
ensino das áreas do conhecimento, com a vida e a realidade dos educandos/as. Na
experiência dessas escolas, as porções da realidade, são organizadas por categorias:
formas participativas de gestão e organização; fontes educativas do meio – naturais,
culturais e sociais; formas de trabalho; lutas sociais e contradições, constituindo um
subsídio ao planejamento pedagógico. As práxis pedagógicas construídas a partir dos
inventários têm uma relevância didática no que tange o fortalecimento da relação das
escolas com as comunidades; a reflexão coletiva sobre a realidade local, contribuindo,
assim, no planejamento coletivo interdisciplinar. Desse modo, vem contribuindo para o
diálogo entre os conteúdos previstos nos componentes curriculares e a realidade a ser
conhecida, interpretada e transformada.

Palavras-chaves: EDUCAÇÃO DO CAMPO, PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO,


INVENTÁRIO DA REALIDADE, PESQUISA.

1
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará e Bolsista
Capes.
2
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Professor Assistente da Universidade
Federal do Maranhão (UFMA).
3
Professora Doutora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Introdução

O presente artigo versa sobre as práticas pedagógicas da Educação do Campo


nas Escolas de Ensino Médio das Áreas de Reforma Agrária do Estado do Ceará com
foco na proposta pedagógica do diálogo entre conhecimento e realidade a partir da
pesquisa diagnóstica coletiva envolvendo todos os sujeitos da escola e da comunidade.
Para esse fim, as referidas escolas do campo utilizam como ferramenta pedagógica o
denominado Inventário da Realidade, pesquisa diagnóstica que, segundo Caldart
(2017), visa mapear e registrar de modo organizado os diversos fenômenos da realidade
atual (porções da realidade4) delimitado no entorno da escola, possibilitando uma
leitura coletiva sobre essa realidade e identificando as fontes educativas do meio que
possam subsidiar os planejamentos pedagógicos no vínculo dos objetivos formativos e
de ensino das áreas do conhecimento, com a vida e a realidade dos educandos/as. É
sobre essa ferramenta pedagógica que discorre nosso artigo a partir da experiência
pedagógica da Escola de Ensino Médio Florestan Fernandes, situada no Assentamento
Santana em Monsenhor Tabosa, Ceará. (ESCOLA DE ENSINO MÉDIO FLORESTAN
FERNANDES, 2012).
Essa é uma das escolas conquistadas em 2007 pela organização dos
trabalhadores que fazem parte do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra) na luta pela implantação da Política Nacional de Educação do Campo no Estado
do Ceará, de um conjunto atual de nove escolas de ensino médio em Assentamentos de
Reforma Agrária no Estado5, que compartilham de uma proposta pedagógica construída
a partir das referências dessa Organização Social.
Considerando a importância da política de Educação do Campo6 para a
garantia do acesso da população camponesa à educação escolar, o MST entende que a

4
Denominação utilizada no âmbito da teoria de organização do ensino por complexos de estudo para
referir-se às categorias da prática representativas dos fenômenos da realidade atual.
5
EEM Francisco de Araújo Barros, no Assentamento Lagoa do Mineiro, em Itarema; EEM João dos
Santos Oliveira (João Sem Terra), no Assentamento 25 de Maio, em Madalena; EEM Florestan
Fernandes, no Assentamento Santana, em Monsenhor Tabosa; EEM Maria Nazaré de Sousa (Nazaré
Flor), no Assentamento Maceió, em Itapipoca; EEM Padre José Augusto Régis Alves, no Assentamento
Pedra e Cal, em Jaguaretama; EEM Filha da Luta Patativa do Assaré, no Assentamento Santana da Cal,
em Canindé; EEM José Fideles, no Assentamento Bonfim Conceição, em Santana do Acaraú; e EEM
Paulo Freire, no Assentamento Salão, em Mombaça.

6
Para implantação dessa proposta, a base legal da Escola do Campo é a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996 e as resoluções Resolução CNE/CEB nº 1, de 3 de abril de 2002 e Resolução CNE/CEB nº 02, de
28 de abril de 2008 e o Decreto nº 7.352, de 04 de novembro de 2010. Na Lei nº 9.394, de 20 de
luta por essa política pública diz respeito à defesa do acesso universal à educação, mas
não somente. Para além do direito, trata-se da contextualização à realidade do campo,
sendo concebida pelos e não para os/as camponeses/as, na inter-relação com a ciência, o
trabalho, a cultura e as lutas sociais. Uma educação que só é possível numa perspectiva
de classe, onde a escola pública camponesa seja dirigida político e pedagogicamente
pelos seus sujeitos; formadora do homem e da mulher do campo e promotora do
desenvolvimento do território camponês, em construção e luta permanente (ESCOLA
DE ENSINO MÉDIO FLORESTAN FERNANDES, 2012).
Para o MST, a compreensão da realidade em sua complexidade constitui
uma dimensão importante da formação humana. Por isso, na sua pedagogia, faz uma
crítica à escola hegemônica na sociedade capitalista em que o conhecimento é
descontextualizado e assim, analisa que a ausência de vínculos com a realidade e a
fragmentação artificializam o conhecimento, reforçando a dicotomia entre teoria e
prática. Conhecer para transformar faz parte da pedagogia da luta social e parte-se disso
para a construção de uma escola como o lugar desse exercício da práxis social, tendo a
pesquisa como um princípio educativo. (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES
RURAIS SEM TERRA, 2004).
Essa preocupação com a relação entre conhecimento e realidade está
presente desde as primeiras elaborações do Movimento sobre educação, bem como nas
principais referências teóricas que orientam suas práticas educativas, na Pedagogia do
Oprimido, na Pedagogia do Movimento e na Pedagogia Socialista. Dessa última, tem se
inspirado na organização do ensino por complexos de estudos, donde se buscou o
recurso do Inventário da Realidade, presente nas experiências mais recentes do MST
com a educação escolar, do que se destacam as Escolas Itinerantes do Paraná e as
Escolas de Ensino Médio dos Assentamentos de Reforma Agrária do Ceará, no esforço
de reorganização do trabalho pedagógico nas escolas do campo, dentre as quais a Escola
de Ensino Médio Florestan Fernandes7.

dezembro de 1996, no art. 28. Diz que na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de
ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada
região, especialmente: I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e
interesses dos alunos da zona rural; II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário
escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III - adequação à natureza do trabalho na zona
rural.

7
Ver SAPELLI, FREITAS e CALDART, 2015; BAHNIUK, 2015; SILVA, 2016.
A identidade dessa escola com o conjunto de concepções, que constituem a
Pedagogia do Movimento, afirma-se em seu Projeto Político Pedagógico, segundo o
qual
A Escola de Ensino Médio Florestan Fernandes do Assentamento
Santana é um centro cultural, vinculada à luta popular que constrói e
reforça a identidade de trabalhador e de trabalhadora do campo,
incorporando o Projeto Político Pedagógico da Educação do Campo e
da Pedagogia do Movimento: Pedagogia da Luta Social, Pedagogia da
Organização Coletiva, Pedagogia da Terra, Pedagogia do Trabalho
Pedagogia da Cultura, Pedagogia da História e Pedagogia da
Alternância. (ESCOLA DE ENSINO MÉDIO FLORESTAN
FERNANDES, 2012)

Expressam-se, sobremaneira, em sua organização curricular que, além do


Inventário da Realidade como ferramenta pedagógica de vivência coletiva da pesquisa,
como uma estratégia fundamental no diálogo com a realidade do campo e com os
saberes socialmente úteis, inseriu três novos componentes curriculares integradores na
parte diversificada do currículo: Projeto de Estudo e Pesquisa (PEP), que organiza o
estudo da realidade e a pesquisa como princípio educativo; Organização do Trabalho e
Técnicas Produtivas (OTTP), responsável por desenvolver a organização do trabalho
como princípio educativo, a articulação entre a educação e o trabalho produtivo
socialmente necessário8; e Práticas Sociais e Comunitárias (PSC) que promove a
organização coletiva, a participação social e política, a mística e a animação da cultura
camponesa, organizando pedagogicamente a pesquisa, o trabalho e a intervenção social,
através desses componentes curriculares. O princípio educativo do trabalho e o vínculo
com as práticas produtivas camponesas agroecológicas e seus saberes conta, ainda, com
o campo experimental da agricultura camponesa, área anexada à escola para o
desenvolvimento de atividades produtivas, articulada ao componente OTTP. E, partindo
da experiência da pedagogia da luta social, mantém uma dinâmica de organização
coletiva dos diversos sujeitos e de gestão participativa, inclusive envolvendo, as
famílias, a comunidade, suas organizações e o MST nos processos políticos e
pedagógicos da escola, ampliando e organizando o tempo escolar numa diversidade
educativa, inspirada no processo histórico do MST, contemplando, além do estudo, o

8
Ver conceito de Trabalho Socialmente Necessário em: SHULGIN, Viktor. N. Rumo ao politecnismo
(artigos e conferências). São Paulo: Expressão Popular, 2013.
trabalho, a organização coletiva, a mística, a cultura e a participação nas lutas sociais.
(ESCOLA DE ENSINO MÉDIO FLORESTAN FERNANDES, 2012)
Em síntese, o Inventário da Realidade, ferramenta pedagógica sobre a qual
discorremos nesse texto, tem raízes profundas que remetem à Pedagogia Socialista,
particularmente, a experiência das Escolas Comunas das primeiras décadas da
Revolução Soviética, com a teoria do Ensino por Complexos de Estudo. Esse recurso
tem comparecido, principalmente na última década, em diversas experiências de
reorganização do trabalho pedagógico em escolas do campo organizadas pelo MST,
inspirados na elaboração russa. E, na experiência cearense, onde se insere a Escola
Florestan Fernandes, é apenas um dos diversos elementos que compõem a organização
curricular dessas escolas.
Apesar disso, considerando o potencial pedagógico dessa ferramenta, o
presente artigo propõe-se tão somente a sistematização do Inventário da Realidade
como instrumento de pesquisa diagnóstica coletiva, a partir da experiência da Escola de
Ensino Médio Florestan Fernandes.

A pesquisa como princípio educativo e o Inventário da Realidade

Na Escola do Campo compreende-se o conhecimento como mediador da


realidade. Conhecer para transformar a realidade (realidade – teoria – realidade).
Portanto, a realidade é o ponto de partida e o ponto de chegada no processo de
construção do conhecimento. A realidade imediata da escola do campo está no campo,
relacionado com a historicidade e atualidade do capitalismo em sua complexidade e
totalidade.
Compreendemos e assumimos a pesquisa enquanto produção e
socialização do conhecimento, como uma necessidade essencial, vital
e orgânica para a organização, pois sem pesquisa não há
conhecimento cientifico para fazer a transformação, ou seja, a
pesquisa é também ferramenta da luta política no sentido de embasar a
denúncia, como princípio educativo que deve perpassar o trabalho da
escola e cursos. É instrumento de compreensão da realidade e de
formulação de estratégia e de intervenção na mesma. A pesquisa no
contexto atual tem o papel de contribuir na formação permanente dos
educandos, tornando-os sujeitos de um processo de busca da
apropriação do conhecimento. (ESCOLA DE ENSINO MÉDIO
FLORESTAN FERNANDES, 2012).

A concepção de pesquisa como princípio educativo está intrínseca às


concepções de conhecimento e educação que orientam a Escola Florestan Fernandes e
denotam um posicionamento na luta de classes na perspectiva da emancipação humana
e da transformação social.
Nesse sentido, não existe conhecimento fora da realidade, o conhecer
vincula-se à transformação dessa realidade e a educação situa-se imbricada com a
produção de conhecimentos.
Corrobora com essa compreensão o posicionamento de Demo (2006) em
defesa da pesquisa como princípio científico e educativo, segundo o qual essa relação
está presente em toda formação humana e deve constituir o processo de escolarização
desde a educação básica.
Nas palavras do referido autor,
Pesquisa como princípio científico e educativo faz parte de todo
processo emancipatório, no qual se constrói o sujeito histórico
autossuficiente, crítico e autocrítico, participante e capaz de reagir
contra a situação de objeto e de não cultivar o outro como objeto.
Pesquisa como diálogo é processo cotidiano integrante do ritmo de
vida, produto e motivo de interesses sociais em confronto, base da
aprendizagem que não se restrinja a mera reprodução; Na acepção
mais simples, pode significar conhecer, saber, informar-se para
sobreviver, para enfrentar a vida de modo consciente. (DEMO, 2006,
pp.42- 43).

Desse modo, ensino e pesquisa seriam mesmo indissociáveis, pois “[...] Se a


pesquisa é a razão do ensino, vale o reverso, o ensino é a razão da pesquisa. O
importante é compreender que sem pesquisa não há ensino”. (DEMO, 2006, p.50).
O envolvimento dos/as educandos/as na apreensão da realidade através da
pesquisa tem um papel fundamental, uma vez que estão presentes em todas as fases da
pesquisa e participam do desenvolvimento da produção coletiva de conhecimentos,
rompendo com o monopólio do saber e da informação. Essa proposta pedagógica
possibilita aos/as educandos/as, que todos/as se apropriem dos dados, da sua
organização e análise crítica do material coletado.
Paulo Freire (2016), ao tratar dos saberes necessários à prática educativa,
soma-se na compreensão de que “ensinar exige pesquisa”, evidenciando a
imprescindibilidade desta para o ensino e o seu caráter educativo.
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses quefazeres
se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo
buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei,
porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando,
intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o
que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade.
(FREIRE, 2016, pp. 30-31).
Nesse intuito, a escola em todo o seu currículo busca vincular os processos
de apropriação e produção do conhecimento próprios da educação escolar às questões
da “vida real”. Ou seja, do mundo do trabalho, da cultura, da participação política, da
convivência interpessoal e, no caso particular dos/as jovens, também da luta social
específica de que são herdeiros e ou já fazem parte.
Para isso, alguns fundamentos que dão sustentação político-pedagógico à
compreensão de educação e de escola se constituem em: inserção social, participação
nos processos produtivos, formação para o trabalho, vínculo orgânico entre o currículo
escolar e o assentamento, ênfase especial a dimensão da cultura na formação da
juventude, processo de gestão participativa, práticas e convivências que cultive valores
e relações interpessoais e humanizadoras e uma organização de estudos que favoreça a
integração curricular, o respeito e a valorização dos diferentes saberes e a articulação
entre conhecimento, trabalho, cultura e luta social.
No trabalho de educação e particularmente na escola do campo, buscar
conhecer o lugar em que se insere, e suas relações sociais e ecológicas com as questões
da realidade mais ampla, integra uma determinada concepção de educação e de escola.
Na concepção que orienta as práticas pedagógicas das escolas do campo,
parte-se da ideia de que é preciso pensar a escola como parte de processos formativos
que constituem a vida social e as relações entre ser humano e natureza,
intencionalizados em uma direção emancipatória.
Mas esta ligação entre escola e vida (trabalho, luta, cultura, organização
social, história) precisa de uma formulação pedagógica séria, para que os momentos de
estudo não se reduzam a conversas sobre aspectos ou problemas da realidade, mas
possam garantir efetiva apropriação de conhecimentos necessários à construção de
novas relações sociais e de relações equilibradas entre o ser humano e a natureza. Exige
um modo de estudo que articule trabalho, conhecimento, ensino e participação dos/as
estudantes na condução da vida escolar. E uma escola como um lugar de formação
humana multidimensional, centro cultural de referência para a comunidade. Caminhar
nesta direção exige que o conjunto dos sujeitos da escola parta de uma base comum,
objetiva e detalhada, de informações sobre a realidade a ser trabalhada pelo plano de
estudos.
Assim, o currículo integrado das escolas do campo parte da pesquisa e
sistematização do Inventário da Realidade. Um diagnóstico coletivo, construído e
reconstruído periodicamente pelo conjunto de sujeitos envolvidos na escola, que leva
em conta o conhecimento escolar e a realidade vivida permitindo assim, um vínculo da
escola com essa realidade, a vida e o projeto camponês. Sendo, portanto, base para a
organização do ensino, ao mesmo tempo em que se constitui num rico processo
educativo.

A construção do Inventário da Realidade na escola Florestan Fernandes

A construção do Inventário da Realidade é uma atividade coletiva,


envolvendo educadores/as, estudantes e comunidades em torno de uma pesquisa
diagnóstica participativa. A finalidade imediata é fazer um levantamento e organizar os
dados da realidade local. Para tanto, é importante definir categorias organizativas que
contemplem os diversos aspectos da realidade, considerando a natureza; o ser humano
como ser social e suas relações (a sociedade); e o ser humano em sua relação com a
natureza (o trabalho). Assim era organizado em suas origens, nas escolas russas
(KRUPSKAYA, 2017).
Nas experiências históricas de uso dessa estratégia pedagógica no Brasil, o
MST tem reorganizado tais categorias a partir das matrizes pedagógicas do trabalho, da
cultura, da luta social, da organização coletiva e da história, elaboração sistematizada na
Pedagogia do Movimento, e proposto a organização dos fenômenos da realidade
inventariados com a seguinte classificação, utilizada na experiência das escolas
cearenses: 1. Formas participativas de gestão e organização; 2. Fontes educativas do
meio (naturais, culturais e sociais); 3. Formas de trabalho e 4. Lutas sociais e
contradições.
Como ferramenta pedagógica a construção do Inventário da Realidade é
uma atividade educativa em si (a pesquisa como princípio educativo) e, ao mesmo
tempo, a organização de um subsídio para o planejamento pedagógico, que possibilite
vincular o conhecimento escolar com a realidade. De acordo com o guia metodológico
do inventário da realidade para uso nas escolas do campo, os passos a serem dados
consistem na construção e permanente atualização do inventário da realidade feito pelo
conjunto dos sujeitos da escola; na sistematização dos elementos pesquisados e na
socialização dessa sistematização com a comunidade; seguindo com uma
problematização do inventário para posterior planejamento pedagógico (CALDART,
2017).
O percurso inicia num planejamento pedagógico, com a definição de uma
equipe de coordenação do inventário, que tem a incumbência de planejar o trabalho de
campo e a sistematização do processo de organizar os registros, ler documentos e extrair
os dados. O processo de realização do inventário deve ser tão educativo como o uso
posterior de seus resultados. Isso implica planejamento e organização coletiva,
participação efetiva dos/as estudantes e que todos entendam o processo em andamento e
seus objetivos, tendo apropriação sobre o conteúdo das perguntas e observações que
fazem. E certos estudos prévios em sala de aula serão necessários na preparação para
realização do inventário, já implicando conteúdos de ensino a incluir no plano de
estudos da escola. Nessa etapa de planejamento é momento, também, para organização
dos grupos de estudantes e educadores/as, por comunidades no território de abrangência
da escola e elaboração de roteiros e instrumentais, a partir das quatro categorias
organizadoras propostas.
As atividades de campo consistem em uma ou mais visitas dos grupos
pesquisadores formados por estudantes, educadores/as e outros sujeitos das
comunidades. De modo geral, utilizam-se documentos e registros já organizados e de
posse da comunidade, bem como entrevistas individuais e coletivas como rodas de
conversas, especialmente sobre memória histórica, organização coletiva, formas de
trabalho, as contradições e lutas sociais, como forma de valorização dos conhecimentos
e das experiências a partir da oralidade. Anotações de observação das idas a campo, aos
grupos coletivos e aos locais de produção e reuniões de organizações sociais, registros
fotográficos e filmagens vão registrando as informações inventariadas. Vale destacar
que as atividades são desenvolvidas em grupo envolvendo os sujeitos da escola e da
comunidade.
Esse processo de construção do inventário vem sendo desenvolvido desde
2014, com sucessivas atualizações e detalhamentos complementares de acordo com a
avaliação de necessidades identificadas no seu uso, bem como da intenção de envolver
os novos estudantes, a cada ano, num percurso investigativo sobre sua própria realidade,
partindo de uma leitura crítica do que se tem acumulado e do diálogo com as
comunidades.
Além dos diversos registros coletados ou produzidos nas visitas de campo
ou nas atividades que as sucedem nas salas de aulas, decorrentes da construção do
inventário, são elaborados relatórios de pesquisa por comunidade, a partir dos quais é
sistematizada uma síntese em forma de tabela, com as quatro categorias organizadoras,
como podemos observar no exemplo a seguir.

Tabela 1: Fragmento do quadro síntese do Inventário da Realidade da EEM Florestan Fernandes

FORMAS FONTES FORMAS DE LUTAS SOCIAIS E


PARTICIPATIVAS EDUCATIVAS DO TRABALHO CONTRADIÇÕES
DE GESTÃO E MEIO (NATURAIS,
ORGANIZAÇÃO CULTURAIS E
SOCIAIS)
Organizações Fontes Naturais Formas de Acesso e qualidade
Comunitárias ▪ Açudes, lagoas, rios, Organização da educação
▪ Cooperativa de riachos e barragens; ▪ Trabalho cooperado; ▪ Transporte escolar
Produção Serras, serrotes; Mutirões; precários;
Agropecuária Águia Cisternas; Assalariados; Remanejamento dos
do Assentamento Cacimbões; Adutora; Diaristas; funcionários
Santana Ltda; Poços profundos; Voluntários; Troca de concursados;
Associações; Grupo Fontes Culturais dias de trabalho entre Descumprimentos do
de jovem; ▪ Ponto de Cultura: famílias; PCC do Município;
Organizações Banda de lata, grupo Sistemas Produtivos [...]
Sociais de teatro, reisado, ▪ Agricultura de Problemas Culturais
▪ Movimentos Sociais; festa da colheita e sequeiro; Pecuária ▪ Dominação cultural
Brigada Dom festas juninas; Casas extensiva de animais (músicas,
Fragoso; Diversidade Digitais; Casas de de grande porte alimentação,
religiosa; sementes; Museu [...] (bovinocultura) e vestimentas e
Organizações ▪ Fontes Sociais médio porte [...] linguagem);
Escolares ▪ Escolas do Campo; Agroecologia e ▪ Perda de práticas
▪ Associação de Pais e Sede da cooperativa; Semiárido culturais tradicionais:
Mestres; Coletivo de Lanchonete (sem ▪ Experiências Rodas de conversas,
Educação; Núcleos funcionamento); agroecológica na fogueiras [...]
de Bases; Conselho ▪ Escola Indígena Alto comunidade de Problemas
escolar; Grêmio da Catingueira [...] Tourão e Viração; Ambientais
Estudantil; Colegiado ▪ Experiências de ▪ Queimadas; Lixo;
de gestão; Coletivo convivência com o ▪ Desmatamento; Secas
de educadores; Semiárido (Educação periódicas; Erosão do
Coletivo de do Campo); Quintais solo;
funcionários. produtivos; [...] ▪ Uso Inadequado da
▪ água; [...]

Fonte: Inventário da Realidade da Escola de Ensino Médio Florestan Fernandes, 2017.

Esse quadro consiste num subsídio à organização do trabalho docente


utilizado para apoiar a articulação dos conteúdos curriculares e seus objetivos de ensino
com as categorias práticas (porções) da realidade.
Desde 2016, a Escola vem qualificando a construção dos inventários,
avançando num detalhamento descritivo de cada porção, no formato de texto, de modo
que sua forma final, que até então era um quadro, vem adensando e assumindo a
estrutura de livro, o “livro da realidade”, a partir da reorganização das categorias por
áreas de conhecimento, orientado por um roteiro de base do texto contendo descrição,
contextualização histórica e problematização de cada porção da realidade.
As atividades realizadas para construção e atualização dos inventários têm
demonstrado sua importância didática, sobretudo, na relação das escolas com as
comunidades e na apropriação e reflexão coletiva sobre a realidade local.
Além disso, a utilização da sistematização produzida, como recurso
pedagógico, tem sido foco prioritário nas formações continuadas e nos planejamentos,
com avanços nas estratégias para definição das porções da realidade prioritárias para o
trabalho com cada turma, em cada período; na conexão entre os conteúdos curriculares e
as referidas porções da realidade e no planejamento coletivo interdisciplinar. (SILVA,
2016).

Conclusão

As práxis pedagógicas construídas a partir dos inventários têm uma


relevância didática no que tange o fortalecimento da relação das escolas com as
comunidades e a reflexão coletiva sobre a realidade local, contribuindo, assim, no
planejamento coletivo interdisciplinar. Desse modo, vem corroborar para o diálogo
entre os conteúdos previstos nos componentes curriculares e a realidade a ser conhecida,
interpretada e transformada.
O Inventário da Realidade tem se apresentado, ao longo dos anos, como
uma interessante ferramenta para articulação entre o conhecimento escolar e a
atualidade, a realidade, a vida. No entanto, algumas questões persistem no que diz
respeito à ideia de estabelecer relações entre os conhecimentos, o exercício
interdisciplinar; a utilização do campo experimental como espaço para produção de
novos conhecimentos para avançar em tecnologias de convivência com o semiárido e o
fortalecimento da cultua camponesa. Como avançar para além da contextualização de
determinadas questões da realidade na relação com os conteúdos de ensino e a produção
de novos conhecimentos, considerando o inventário como uma forma de diálogo de
saberes entre as famílias, entre a escola e a comunidade, entre educadores/as e
educandos/as, e com a natureza?
Por fim, compreendemos que o Inventário da realidade é uma importante
ferramenta pedagógica para integração dos diversos processos educativos
(conhecimento escolar, organicidade, trabalho e realidade) numa unidade curricular
contribuindo assim para uma escola que pensa a formação humana e seu vínculo com as
questões atuais que dizem respeito a realidade camponesa e seus desafios.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAHNIUK, Caroline. Experiências escolares e estratégia política: da pedagogia


socialista à atualidade do MST. Tese de doutorado. Florianópolis: UFSC, 2015.

CALDART, Roseli S. (Org.) Caminho para transformação da escola 4: trabalho,


agroecologia e estudo nas escolas do campo. São Paulo: Expressão Popular, 2017.

DEMO, Pedro. Pesquisa: princípio científico e educativo. 12. Ed. São Paulo: Cortez,
2006.

ESCOLA DE ENSINO MÉDIO FLORESTAN FERNANDES. Projeto Político


Pedagógico. Monsenhor Tabosa, CE: 2012.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 54ª


ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

KRUPSKAYA, Nadja K. A construção da pedagogia socialista: escritos selecionados.


São Paulo: Expressão Popular, 2017.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Setor de Educação.


Educação no MST: Balanço 20 anos. Boletim da Educação nº 09, dezembro de 2004.

SAPELLI, M; FREITAS, L; CALDART, R. Caminhos para a transformação da


escola 3: Organização do trabalho pedagógico das escolas do campo: ensaios sobre
complexos de estudo. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

SILVA, Paulo Roberto de Sousa. Trabalho e educação do campo: o MST e as escolas


de ensino médio dos assentamentos de reforma agrária do Ceará. Dissertação de
Mestrado. Fortaleza: UFC, 2016.

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