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REVISTA

ITAÚ CULTURAL 28

Esta edição da Continuum amplia o E mais:


debate sobre arte política.
O crack, um dos problemas sociais e políticos mais
contundentes da atualidade, visto pelas lentes da arte.
A blogueira cubana Yoani
Chargistas falam de seus traços nos tempos da censura.
Sánchez evidencia o
esgotamento de uma revolução A trajetória do crítico Mário Pedrosa, para quem a arte
que não se renova. espelhava a vida em sociedade.

itaucultural.org.br/continuum | participe com suas ideias


Abra os olhos e sinta!
A arte que cutuca a ferida, que é incisiva, que muitas vezes passa longe de julgamentos pautados pela beleza, que é
partidária, que não se submete ao poder. Talvez precisemos mais dessa arte, em meio a um universo artístico domi-
nado pelo conceito. Ela é necessária também perante a diluição provocada pelos aparatos da contemporaneidade,
como a internet e as máquinas cada vez mais multiúsos. Uma arte que incomode nosso olhar, pacificado pelo con-
sumo, é, sem dúvida nenhuma, um antídoto, uma tábua de salvação, um escape para outra realidade possível.

Nesta edição, a Continuum faz eco ao tema proposto pela


Bienal Internacional de Arte de São Paulo e dedica sua pau-
ta à arte política. A reportagem de abertura pinça obras
presentes na exposição para abordar as intenções de seus
artistas ao criá-las, seja nos chamados anos de chumbo, seja
na atualidade brasileira. Em outra matéria, artistas contem-
porâneos fazem uma leitura entre os tons bem-humorado
e crítico da campanha eleitoral.

A censura é o mote para os depoimentos dos cartunistas Ziraldo, Santiago, Luis Fernando Verissimo, João
Montanaro e Elias Monteiro sobre a charge, gênero que se nutre do noticiário político. Figura essencial para
a compreensão da produção artística brasileira dos períodos moderno e contemporâneo, o crítico Mário
Pedrosa é relembrado no Perfil, que conta a história do homem saído de engenho pernambucano para
engendrar uma experiência libertária de resistência artística.

Música, teatro e literatura são convocados, em matérias distintas, para criar um panorama das manifes-
tações da arte engajada. Na Entrevista, a criadora-intérprete de dança Vera Sala mostra como o corpo

Ilustração: Renan Magalhães


pode se manifestar politicamente. A situação sobre-humana dos dependentes de crack, num
comovente ensaio fotográfico de Daniel Marenco; o relato inédito da premiada blogueira
cubana Yoani Sánchez, sobre a derrocada da revolução castrista; e outro olhar sobre a
questão da pirataria de bens culturais fecham a edição em tom de denúncia,
elemento essencial a toda arte que se queira conscientizadora.

Continuum Itaú Cultural Projeto gráfico Jader Rosa Design gráfico Thiago Lacaz Edição Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda Redação André
Seiti, Roberta Dezan Produção editorial Caio Camargo Revisão Denise Costa, Polyana Lima Colaboraram nesta edição Augusto Paim, Carlos
Costa, Daniel Marenco, Derlon Almeida, Josely Vianna Baptista, Lia Letícia, Lourival Cuquinha, Marco Lourenço, Mariana Leme, Mariana Sgarioni,
Maurício Nunes, Micheliny Verunschk, Patricia Cornils, Renan Magalhães, Renan Marcondes, Renata Ursaia, Rochele Zandavalli, Tatiana Diniz,
Yoani Sánchez, Zé Otávio Agradecimento Carlos Zilio, Ivon Piccoli, Maitê Ciancaglini, Isabel Pedrosa, Vera Pedrosa

capa Identidade Ignorada, 1974, de Carlos Zilio – fotografia p&b, 18 x 24 cm [múltiplo], coleção do artista
reprodução fotográfica: Fabio Praça/Itaú Cultural

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007)


Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento
continuum@itaucultural.org.br. Jornalista responsável Ana de Fátima Oliveira de Sousa MTb 13.554
Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009.

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Reportagem

6. Uma arte política


Perfil Espaço do Leitor
As artes visuais e a política se fundem para retratar a sociedade e ampliar
16. A pisada é esta 40. Convocação
a compreensão do mundo. Mário Pedrosa e sua vida entre a arte e a política. Fique por dentro do tema da próxima edição e descu-
bra como ser repórter da revista.
Fotorreportagem
41. Área Livre
26. A quebra Confira os trabalhos dos leitores que unem a arte à
Sem esperança: imagens revelam o abandono e a de- política.
cadência de dependentes de crack.
Artigo
Reportagem Balaio
44. Como tijolos numa construção
12. Esquiva, ataque e contra-ataque 52. Nervos e coração 32. Sinais de alerta Obras literárias que ajudaram a construir o mundo e
Veja por que a tomada de posição em relação a pro- Ao levar suas questões ao palco, o movimento popu- Dicas de livro, música, filme e fotografia com temática outras que impulsionaram mudanças.
blemas políticos, sociais e éticos é tratada com mais lar modifica o debate do teatro brasileiro. política.
leveza pelos artistas de hoje. Mirada
56. Ganchos contemporâneos Entrevista
20. Vem aí a próxima piada! Veja por que a pirataria de bens culturais é diferente 64. O sonho de ninguém
Cinco chargistas brasileiros falam de suas trajetórias e da de outros objetos de consumo. 34. Um lugar de errância e impermanência Lenta derrocada do sistema: revolução cubana esgota
respondem à mesma pergunta. A criadora-intérprete de dança Vera Sala fala das rela- sua capacidade de renovação.
60. Rebelião à beira de um mouse ções de poder que atuam sobre o corpo.
48. Se você pudesse, fugia deste mundo A internet como espaço de militância política modifi-
“Lado B” de brega: descubra quem são os verdadeiros ca a era da democracia.
subversivos da MPB.

4 Continuum Itaú Cultural 2010


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reportagem

Uma arte política


Partindo das artes visuais para incorporar outras manifestações da cultura,
exposições reúnem produção de significado político e refletem sobre o tempo
em que vivemos.
Por Carlos Costa

“As artes só emprestam aos procedimentos de dominação ou de emancipação aquilo que podem
emprestar, isto é, muito simplesmente, aquilo que têm de comum com elas: posições e movimentos
dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível. E a autonomia de que podem
gozar ou a subversão de que podem atribuir-se assentam na mesma base.”
Jacques Rancière, A Partilha do Sensível – Estética e Política (Editora 34, 2005)

Arte e política fazem parte da vida e se enredam, constantemente, retratando a sociedade e ampliando a
compreensão do mundo. Em 2003, a exposição Arte e Sociedade – uma Relação Polêmica foi exibida no Itaú
Cultural, sob a curadoria da crítica e historiadora da arte Aracy Amaral, apresentando um retrospecto his-
tórico do Brasil, desde 1930 até aquele ano, com base na observação da produção artística de significados
políticos e sociais. O mesmo argumento, arte e política, volta à baila como tema da 29a Bienal de São Paulo –
em cartaz no Pavilhão da Bienal, Parque do Ibirapuera, até 12 de dezembro. Sem a preocupação do retrato
histórico, a mostra, defendem os curadores Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias, afirma que a dimensão utó-
pica da arte está contida nela mesma, tomando como metáfora o verso do escritor alagoano Jorge de Lima:
“Há sempre um copo de mar para um homem navegar”, do livro-poema Invenção de Orfeu (1952).

Como política é um terreno de delicadezas e liberdades, nada mais comum que as duas curadorias apontem
para recortes distintos. As coincidências se resumem a alguns artistas, e, para compor o panorama, as artes
visuais não são o único objeto de observação. Entram também o teatro e a música; e a cultura é visualizada
em um conjunto.

O passado como documento

A exposição curada por Aracy em 2003 foi o mote para os três volumes da publicação Arte e Sociedade no
Brasil (Callis, 2005), em parceria com André Toral. Nos livros e na mostra, o recorte artístico é permeado de vá-
Carlos Zilio, Lute, 1967-1998, serigrafia sobre filme plástico e resina rios momentos da história brasileira. Durante o período militar, por exemplo, emerge o trabalho dos Centros
plástica acondicionados em marmita de alumínio [apropriação], Populares de Cultura (CPCs) e da União Nacional dos Estudantes (UNE). Era também a época dos grandes
5,8 x 10,5 x 17,5 cm, coleção Museu de Arte Moderna de São Paulo festivais. Músicos como Chico Buarque, Geraldo Vandré e Edu Lobo driblaram a censura e conquistaram
(SP) | reprodução fotográfica: Romulo Fialdini multidões.

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No teatro, ganham espaço os movimentos de resis- Rosto no Espelho (2009), sobre esses espaços, são os
tência à ditadura – como os liderados por José Celso mais importantes representantes de grito por justiça
Martinez Corrêa, no Teatro Oficina, e pelos artistas Zé social no cenário contemporâneo, desde os CPCs,
Keti, Nara Leão e Maria Bethânia, reunidos em torno lembrados por Aracy em sua pesquisa.
do show Opinião.
Surgidos em 2004, esses pontos somavam, em abril
O Movimento Pró-Eleições Diretas, na década de 1980, de 2010, 3 mil instituições, espalhadas em 1.122 cida-
é outro fato marcante, sobretudo pela agitação social des brasileiras. Com apoio e financiamento do gover-
que produziu na classe artística. no federal, mantêm ações de impacto sociocultural
em suas comunidades, tendo a arte, seja qual for a
“Desejei mostrar como, com a queda das ideologias a linguagem, como base da ação. O uso de novas mí-
partir de fins da década de 1980 (fim da Guerra Fria e dias – audiovisual e internet – também é ferramenta
da União Soviética), surge uma mudança de mentali- essencial. Política, arte e tecnologia.
dade das novas gerações em todo o mundo”, lembrou
Aracy, destacando uma das diferenças conceituais de “É a primeira vez em nossa história que o governo federal
seu recorte com o da Bienal. apoia instituições culturais populares sem mandonismo
centralista em relação a seu conteúdo”, defende Tapajós.
O presente como referência
Onde estão os artistas?
Na 29ª Bienal, o passado não voltou como documen-
to. “Obras históricas foram incluídas apenas por im- Questionada sobre o que ocorreu na produção artística
portância para entender o mundo contemporâneo. brasileira após sua pesquisa, Aracy aponta: “A sequên-
Interessou-nos mais o reflexo do lugar e do tempo a cia de manifestações de arte política, por certo, veicu-
partir dos quais o evento foi pensado: desde o Brasil e laria a densa influência da internet no comportamento
desde o momento de rápida reorganização geopolíti- humano e artístico e aprofundaria a análise da presen-
ca que vivemos”, explicam os curadores. ça da preocupação ecológica ligada ao marketing por
meio de artistas visuais. Também a hipervalorização
Dessa forma, na Bienal, Zé Celso voltou à cena, com dos esportes competitivos, assim como a violência ur-
seu grupo, na remontagem da performance do carioca bana sob todas as suas facetas, em particular em um
Flávio de Carvalho O Bailado do Deus Morto [ocorrida em país emergente que se quer desenvolvido.”
26 de setembro, no prédio da Fundação Bienal, em São
Paulo. E chama atenção, como retrato do tempo em que A historiadora reforça a crítica ao suposto desenvol-
estamos, a participação de representantes dos Pontos vimento brasileiro, lembrando o abandono às vítimas
de Cultura do Programa Cultura Viva, do Ministério da dos desastres ocorridos no Nordeste devido a for-
Cultura, nos Terreiros – seis espaços alternativos à expo- tes chuvas [em junho de 2010] e a outras questões
sição, onde ocorrem eventos artísticos diversos. sociais, deixando no ar a conclusão no comentário:
“Tudo isso é política. E os artistas, onde estão?”.
“Para aproximar áreas vizinhas do campo das artes
visuais, como a música, o teatro e a dança, seleciona- Na 29ª Bienal, aparecem 161 desses artistas e seus
mos artistas ligados aos Pontos de Cultura. Interessa- questionamentos. “Nosso entendimento do que seja
nos bastante o trabalho do Programa Cultura Viva de o efeito político da arte ultrapassa a mera ‘conscienti-
mapear matizes da produção artística do país que zação’ sobre conflitos. Seja qual for a natureza desses
estão fora das zonas centrais de visibilidade e finan- conflitos, o fundamental é que a arte seja capaz
ciamento”, afirma o curador Anjos. de, por meio do impacto que possui sobre
nossos sentidos, alterar o modo como nos
E o que são os Pontos de Cultura? Para o cineasta pau- relacionamos com nosso entorno físico, Wesley Duke Lee, O Guardião; a Guardiã, as Circunstâncias (tríptico),
lista Renato Tapajós, realizador do documentário Um social e afetivo”, justifica Anjos. 1966, técnica mista, 197 x 107 cm; 150 x 56 cm; 136 x 60 cm

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Assim, a curadoria da Bienal
destaca o trabalho do Grupo Rex, que
atuou em São Paulo, de 1966 a 1967, tendo
como um dos mentores Wesley Duke Lee, fale-
cido em setembro. Duas pinturas de Duke Lee es-
tão, com trabalhos de outros integrantes do grupo
(Geraldo de Barros, José Resende e Nelson Leirner),
expostas na mostra. “O Grupo Rex, nos anos 1960 e
1970, era considerado alienado e elitista, em contra-
posição às correntes de arte da época. Eis que agora
comparece na lista de artistas da Bienal”, contesta Aracy.

“O século XX lançou o fundamento para a articulação entre


arte e política por meio da relação que estabeleceu entre
Matheus Rocha Pitta, Provisional Heritage [série], 2010, fotografia, 24 x 16 cm
arte e vida.” (Carlos Zilio)
Com nomes como Carlos Zilio, porém, ambas as cura- papel, tamanho próximo ao na- seção de São Paulo, e do Instituto dos Advogados de
dorias coincidem. Nascido em 1944, no Rio de Janeiro, tural, nos quais o próprio artista está São Paulo, que divulgaram notas públicas contra a ex-
Zilio produziu, nos anos 1960 e 1970, importantes prestes a assassinar líderes políticos. Com posição da série por fazer apologia ao crime.
obras de protesto contra a ditadura: uma máscara arma de fogo, ameaça George W. Bush; o
anônima amarela com o dizer vermelho Lute, dentro Papa Bento XVI; o governador de Pernambuco, Prática da arte política
de uma marmita (Lute, 1967-1998); uma maleta de Eduardo Campos; o senador Jarbas Vasconcelos, do
executivo cheia de pregos enfileirados (Para um Jovem mesmo estado; o ex-presidente Fernando Henrique O artista mais novo presente na seleção da 29ª Bienal
de Brilhante Futuro, 1973/1974); e uma fotografia preto Cardoso; a rainha do Reino Unido Elizabeth II; o é natural de Tiradentes (MG). Matheus Rocha Pitta
e branco dos pés de um suposto cadáver, com a iden- Nobel da Paz Kofi Annan; o ex-primeiro ministro de (1980) expõe a obra Provisional Heritage [Herança pro-
tificação pendendo do polegar esquerdo “Identidade Israel Ariel Sharon; e, feito especialmente para o even- visória], financiada pela Bienal.
Ignorada” (Identidade Ignorada, 1974). to, o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad. E,
com uma faca, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Realizei o trabalho em junho, numa fábrica desati-
O artista se dedicou à militância política, foi ferido vada que foi destruída em agosto, onde toneladas
em um confronto com a polícia e se exilou, passan- “Desde 2005 não voto – segue a mesma escrotice, a de sopa de tomate, café e chocolate, enlatadas, esta-
do a dedicar-se exclusivamente à pintura abstrata. “O mesma falta de escola. Foi a tomada de consciência vam armazenadas e abandonadas. Entrei no lugar e
século XX lançou o fundamento para a articulação que me fez produzir isso. Revanche, vingança e alerta. o usei como se fosse meu; no entanto, como o que
entre arte e política por meio da relação que estabe- Quando existia a ditadura, o desaparecimento de al- havia ali não tinha valor de troca e sim de uso, utilizei
leceu entre arte e vida”, comenta, defendendo que guém da classe média causava revolta. Hoje, desapa- os materiais no intuito de acelerar o consumo mais
a produção contemporânea retrata desdobramen- recem vários de fome e ninguém faz nada”, declara. do que de devolver valor a eles”, conta Pitta. O resul-
tos desse pensamento sob forma de micropolíticas. tado é um inventário visual dessas ações em duas
Na Bienal, o artista expõe também 20 desenhos em séries de fotografias e um vídeo. “É também um es-
Assassinatos e erotismo nanquim da série Suíte Safada 2, que retrata cenas eró- forço de trazer à visibilidade pública aquele espaço
ticas em páginas de livros, nas quais curtos trechos do que não existe mais, com todas as contradições que
O autor de um dos trabalhos da 29ª Bienal em que texto são preservados. “É um ato político transformar ele carrega”, explica.
é mais manifesta a relação política com a arte é Gil o conteúdo do livro numa putaria”, comenta.
Vicente. Nascido em 1958 no Recife, ele expõe dez Segundo o artista, com o financiamento de seu traba-
Gil Vicente, Inimigos [série], 2005-2010, quadros da série Inimigos – iniciada há cinco anos e Os desenhos dos assassinatos despertaram o repúdio lho, a Bienal conseguiu ir além da teoria, estimulando
desenho – carvão sobre papel, coleção do artista composta de desenhos realistas em carvão sobre dos dirigentes da Ordem dos Advogados do Brasil, uma prática da arte política.

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reportagem

Heróis do Brasil

Estamparia e cartazes lambe-lambes também fazem


parte do arsenal que o artista paulista Ricardo Tatoo
emprega na linha de camisetas TV Kills, marca sem
fins lucrativos. “A ideia é usar as mesmas plataformas
Lia Letícia, Vendo Meu Voto: Tratar Aqui, ação realizada em Porto Alegre, em setembro de 2010 | foto: Rochele Zandavalli da propaganda para gerar uma rota de fuga”, diz. Em
um dos modelos, o apresentador de TV Chacrinha é
visto ao lado da frase “I Want You”; outro velho guer-

Esquiva, ataque e contra-ataque reiro menos bem-humorado, o Tio Sam, usava esses
mesmos dizeres na convocação de recrutas para o
exército norte-americano. Em outra estampa, o slogan
“Vote Bob” acompanha o rosto do cantor jamaicano
Artistas contemporâneos mantêm impulsos políticos, mas se engajam com
Bob Marley. “Louco por louco, vote Bob! É um debo-
mais leveza que as gerações de 1960 e 1970. che com a propaganda política, que invade nossas
casas aos berros”, explica o artista.
Por Tatiana Diniz
No decorrer de 2008 e 2009, com o projeto Heróis do
Na campanha presidencial norte-americana de 2006, o artista visual Shepard Fairey imprimiu 350 pôsteres Brasil, Tatoo grafitou suas versões nacionais de co-
criados como estratégia de apoio à eleição de Barack Obama. Neles, via-se o rosto do, na época, candidato nhecidos heróis dos quadrinhos em cidades de cinco
acompanhado de palavras como “esperança”, “mudança” e “progresso”. Com preço original de 45 dólares a estados brasileiros. Nessas interpretações, a Mulher
unidade, foram revendidos por até 200 vezes esse valor em sites de comércio eletrônico como o eBay. Maravilha é Irmã Dulce; o Homem de Ferro é o so-
ciólogo Betinho; e o Justiceiro é o ativista ambiental
Inicialmente criticados por “imitarem” a estética da propaganda política soviética, os cartazes de Fairey desenca- Chico Mendes. Atualmente circulando com o proje-
dearam, por sua vez, uma avalanche de cópias e até mesmo o surgimento de plug-ins que permitiam ao usuário to Grafite Cidadão, ele leva oficinas de grafite a ONGs,
a criação do “seu próprio pôster Fairey-Obama”. Renderam ainda ao artista uma noite na prisão junto a um grupo centros socioeducativos e escolas. O tema atual é uma
de amigos videomakers por colar ilegalmente as imagens em muros e paredes de Denver, capital do Colorado. campanha pela cidade limpa.

Dois anos antes de o rosto de Obama virar arte contemporânea, a artista gaúcha Lia Letícia conseguiu, du- Limpando as cidades com outra forma de grafite, o ar-
rante uma campanha eleitoral para a prefeitura de Olinda (PE), cem camisetas nas quais estampou os dizeres tista mineiro Bim Fernandez marcou a última Semana
“Vendo Meu Voto: Tratar Aqui”. Um grupo de eleitores votou carregando a mensagem no peito. O acordo feito Experimental Urbana de Porto Alegre [em junho de
com a oposição, fornecedora das camisetas, determinava que a ação não se relacionasse à sigla do partido. 2010] com uma intervenção que debatia a epidemia
de crack. Feito em uma área frequentada por usuá-
A ideia de Lia nasceu em 2002, inspirada na situação de uma moradora de favela cujo voto era disputado rios, o trabalho é uma imagem de Perseu segurando
por dois candidatos em troca da quitação de contas atrasadas. “Naquela campanha, fiz um broche com essa a cabeça da Medusa, acompanhado de um balão
frase”, lembra a artista. Desde então, eleições são períodos em que Lia reforça seu “desativismo político”. “É um de texto em que se lê a frase “Pra que transformar
contra-ataque ao voto obrigatório. O circuito político se estrutura por meio dessa ferramenta legal, encon- tudo em pedra?”. Empregando a técnica de rever-
trando várias maneiras de se perpetuar e multiplicar. A forma expositiva e verbal que encontrei para discutir se graffiti, o artista retirou camadas já existentes
algumas dessas questões foi esse humor abestalhado, bobo, cretino. Lembro que a obra não se reserva de uma parede (como sujeira, musgo e fu-
direitos, portanto façam livre uso nessas eleições”, comenta. ligem de poluição) até formar a figura.
Ricardo Tatoo, TV Kills Arte Ataque [série], camisetas com estampas

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“Na minha cidade, usuários de crack são chamados Com o fim da ditadura, pode-se dizer que as ques- se recusa a portar um título de
de ‘medusas’, numa alusão ao fato de que tudo o que tões sociais se tornaram um dos grandes focos da eleitor desde 1994: “Acho o maior saco
veem, têm ou desejam é para transformar em pedra”, ação artística mais engajada. As épocas de campanha ir votar e acho todos os políticos idiotas”,
revela Fernandez, que diz pensar seus trabalhos como eleitoral com seus horários políticos televisionados e afirma. Fora o título, por quase uma década,
“levantes”: “São microrrevoluções que cumprem sua a repentina multiplicação de faces estampadas em optou por viver sem nenhum documento além
demanda ali e na hora. O importante é que consigam papéis de todos os formatos também provocam uma da certidão de nascimento. Resistência cotidiana.
provocar alguma coisa, qualquer sentimento. Não ebulição de reações.
gosto de pensar que gastei horas ou dias para criar Antigo parceiro de Peres no coletivo Molusco Lama,
algo meramente estético”, enfatiza. Um grupo de identidade desconhecida fez circular em o pernambucano Lourival Cuquinha prefere costurar
Pernambuco vídeos de uma ação intitulada Nonino formatos políticos. Recentemente, dedicou-se a anga-
Tomada de posição Nino Nino, na qual tinta preta era jogada sobre os sor- riar cabos eleitorais para se eleger vencedor da versão
risos agigantados dos políticos em outdoors na região on-line do Pipa, importante prêmio brasileiro que re-
A abordagem de Fernandez dialoga com a noção metropolitana do Recife. As cópias foram deixadas em serva uma vitória ao artista mais votado via rede social
definida por Hélio Oiticica em seu “Esquema Geral redações de jornais, galerias, museus e residências de Facebook. Cuquinha divulgou uma literal compra de
da Nova Objetividade” (1967). No texto, o item qua- políticos e atingiram diversos festivais de cinema no votos, oferecendo cinco centavos do dinheiro do prê-
tro enfatiza “a necessidade da tomada de posição em país. A autoria jamais foi reivindicada. mio a cada pessoa que o apoiasse, mais a possibilida-
relação a problemas políticos, sociais e éticos, neces- de de ter sua moeda soldada numa obra em forma de
sidade esta que se acentua a cada dia e pede uma Apocalípticos e integrados pipa a ser leiloada, com lucro dividido entre o “eleito-
formulação urgente, sendo o ponto crucial da pró- rado”. Chegou ao primeiro lugar em dias.
pria abordagem dos problemas no campo criativo”. Se alguns artistas se alinham a causas, outros acir-
Para Oiticica, na ausência dessa consciência, o artista ram o debate em torno das políticas institucionais a A abordagem reproduzia a do Jack Pound Financial Art
estaria “fadado a uma posição cada vez mais gratuita partir de radicalismos individuais. É o caso do carioca Project, no qual Cuquinha ativou, em 2008, uma rede
e alienatória ao persistir na velha posição esteticista, Fernando Peres, que, em uma de suas principais expo- de investidores que cederam notas de libras esterli-
para nós, hoje, oca, de considerar os produtos da arte sições, ateou fogo à própria obra e em seguida pulou nas para ser costuradas numa peça que reproduz o
como uma segunda natureza em que se processariam a fogueira. Além de um leve eco do impulso piroma- desenho da bandeira da Inglaterra. O trabalho foi a
as transformações formais decorrentes de conceitua- níaco de Cildo Meireles, Peres não apresenta mais tra- leilão durante a edição 2010 da Frieze Art Fair, que
Imagem que integrou intervenção urbana de Bim Fernandez na ções novas de ordem estética. Definitivamente é essa ços da inflamada herança da década de 1970. Conta aconteceu em outubro, em Londres, e acabou sendo
Semana Experimental Urbana de Porto Alegre, junho de 2010 posição esteticista insustentável”, escreve. que presta muita atenção no horário eleitoral, mas vendido por 17 mil libras.

Com o fim da ditadura, pode-se dizer que as


questões sociais se tornaram um dos gran-
des focos da ação artística mais engajada.

Compartilhando desse estímulo, em 1970 Cildo Meireles


chocou a plateia de Belo Horizonte durante a mostra
Do Corpo à Terra ao atear fogo em dez galinhas vivas na
obra Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político.
Amarradas no topo de uma estrutura composta
de um quadrilátero de tecido branco em torno
de uma estaca de madeira de 2,20 metros, as
aves foram sacrificadas como metáfora das
atrocidades cometidas contra os pre-
sos políticos na ditadura. Autoria desconhecida, Nonino Nino Nino, 2002, vídeos

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perfil

A pisada é esta
A trajetória do crítico Mário Pedrosa, para quem a arte nunca esteve distante
da política e da vida social.
Por Mariana Lacerda

Revolução, sensibilidade, intuição, transcendência. Liberdade. Essas são algumas palavras recorrentes em
textos deixados por Mário Pedrosa – e não raro por aqueles que tentam entender e explicar os escritos
deixados por ele sobre arte e política. Posto no lugar de um dos mais importantes críticos do Brasil e do
mundo – muito embora, é provável, classificações assim pouco interessassem a ele –, seu trabalho inclui um Mário Pedrosa em discurso na época em que dirigiu o MAM/SP, em 1960 | foto: acervo UH/Folhapress
sem-número de textos publicados em jornais, revistas e catálogos brasileiros e estrangeiros e a participação
(e promoção) em diversos júris e concursos internacionais. Além disso, integrou a direção da Associação
Internacional de Críticos de Artes (Aica), dirigiu o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) no início da Sobre seu pai, homem que teve carreira pública, Má- Fazer livre
década de 1960 e, no mesmo período, a VI Bienal de Artes Plásticas. rio contou em seu relato que ele “guardou [...], ao fim
e ao cabo, uma pureza nativa [...], uma capacidade de Com 12 anos, a mando do pai, Mário foi estudar na
O currículo de Pedrosa e sua trajetória de vida, entre idas e vindas ao exterior, inclusive enquanto exilado, são entusiasmos frequentemente ingênuos (que herda- Bélgica. Era 1913, véspera da Primeira Guerra Mundial –
extensos. De certa forma, espelham tudo aquilo que ele acreditou. A essência de sua lição: “O artista deve mos todos), uma tolerância instintiva, tribal, para os motivo pelo qual foi transferido para a Suíça. Em 1916,
buscar na força expressiva da forma a possibilidade de reeducação da sensibilidade do homem, de modo transviados, como eu”. de volta ao Brasil por causa desse conflito, foi morar
a fazê-lo ‘transcender a visão convencional’, obrigando-o a enxergar o mundo com outros olhos e, assim, a no Rio de Janeiro, pois seu pai tinha se candidatado
‘recondicionar-lhe o destino’ ”, escreveu a filósofa e professora aposentada da USP Otília Arantes, em seu livro “Ele sempre se entusiasmava, uma das características a senador por aquele estado. Formou-se em direito
Mário Pedrosa: Itinerário Crítico (CosacNaify, 2004), citando aquele a quem dedicou parte de seu trabalho de pes- generosas de sua personalidade”, diz Bel Pedrosa, uma em 1923 e, dois anos depois, vinculou-se ao Partido
quisadora nessa universidade. ”Ele acreditava que a independência da arte e a revolução andavam juntas, bata- entre os três netos do crítico. “Ingênuo, nunca”, reitera Comunista. Tinha 25 anos. Em decorrência de ter se
lhando para que o Brasil saísse do isolamento e se alinhasse à arte mais avançada do tempo”, escreveu Otília. ela. Era tido como o “diferente” da família. “Talvez por filiado ao partidão, viajou para Moscou a fim de estu-
causa de sua escolha profissional”, diz Vera Pedrosa, dar. Mas, ao passar pela Alemanha, em pleno inverno,
Natureza generosa filha única do casal Mário e Mary Pedrosa. “Mas eles adoeceu. E ficou em Berlim.
sempre foram muito unidos”, diz Bel. “Na volta do últi-
Mário Pedrosa nasceu em um engenho de cana. Era 1900, tempo suficiente para, anos depois, lembrar-se do mo exílio até o fim da vida, por exemplo, conversava “A tal doença permitiu que entrasse em contato
ritual de lava-pés que negros já alforriados cumpriam na casa em que cresceu. Seu avô materno era o senhor diariamente com seus irmãos por telefone. Por mais com a arte moderna que ele, ainda pouco inte-
dos engenhos Jussaral, Pindoba e Pindobinha. “Em Jussaral nasci eu”, escreveu Pedrosa em seu único texto diferentes que fossem, isso jamais interferiu no amor, ressado no assunto, pôde presenciar na Berlim
de memórias, intitulado “A Pisada É Esta”, escrito em 1974 durante seu exílio em Paris (texto nunca revisto na amizade, na camaradagem e na confiança que ha- do expressionismo e da Bauhaus. Suas estrei-
por ele). Jussaral pertencia ao distrito de Cruangi, no município de Timbaúba, região da Zona da Mata de via entre eles”, explica ela. Bel lembra que, indepen- tas relações com Leon Tróstki fizeram dele
Pernambuco. Foi o sexto filho do casal Pedro Cunha Pedrosa e Antônia Xavier de Andrade Pedrosa, que, além dentemente das diferenças, o avô sempre escutava secretário-geral da IV Internacional (or-
de Mário, colocou no mundo quatro moços e cinco moças. seu interlocutor com atenção. “Fazia parte da sua na- ganização fundada em 1938 e que
tureza generosa.” tinha o revolucionário

16 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 17


ucraniano como principal militante), o que o levaria Por isso, também, ele “achava que a crítica precisava lançado pela Edusp, em 1996):
a viver em Nova York nos anos 1940. Isso propiciaria se renovar, revendo suas ideias de método e rigor [...] “Tudo se passa como se o velho ho-
o encontro com a crítica moderna norte-americana e É verdade – reconhecia – que ao contrário das outras mem estivesse a preparar-se para deixar [...]
a decisiva aproximação com [Alexander] Calder”, diz formas de conhecimento, a experiência estética é da o casulo dentro do qual até aqui viveu, do seu
Francisco Alambert, professor de história da arte na ordem da intuição, mas hoje, como ontem, essa ‘apre- arcaico habitat [...] e sair por aí a debater-se, incer-
USP e crítico de arte. ensão imediata’ requer estudo, ao longo do qual se to e corajoso, num outro habitat cultural que ele
prepara e cultiva a sensibilidade”, escreveu Otília. mesmo veio criando, ou se vai formando, já agora
Sobre a trajetória política de Pedrosa, Alambert por si mesmo, e que também vai transformando, de
acrescenta uma nota curiosa: em 1980, aos 80 anos, Apesar de acreditar numa arte autônoma, que se en- contradição em contradição”.
ele foi convidado a assinar a ficha número 1 de fi- trelaça com a liberdade social, Pedrosa soube ver e
liação ao Partido dos Trabalhadores (então um novo reconhecer os desenlaces, no decorrer da história, de Mário Pedrosa trabalhou até o fim da vida. Aos 80
partido de esquerda). “Creio que esta é uma situação crises e impasses – políticos e econômicos (a socieda- anos, empenhou-se na edição do livro Museu de
única no mundo: um partido socialista fundado por de de consumo). Na década de 1960, começa a cha- Imagens do Inconsciente, publicado pela Funarte no
um crítico de arte!”, diz ele. mar de pós-moderna a arte contemporânea. “Queria ano seguinte, 1981, quando sua coletânea de textos
marcar com esta denominação uma dupla diferença Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasília tam-
em relação à arte moderna: no plano dos meios, a pre- bém é lançada pela Editora Perspectiva. No mesmo
“[Pedrosa] reconhecia que, ao contrário das outras formas de dominância do suporte eletrônico e tudo o que daí ano, morreu em seu apartamento, no bairro carioca
segue no domínio da informática”, escreveu Otília. de Ipanema. Tinha um câncer. Seu enterro foi mar-
conhecimento, a experiência estética é da ordem da intui- cado pela presença de inúmeras pessoas, inclusive
E começa a observar a mudança do mundo refletida pelo atual presidente do Brasil, então líder do ce-
ção, mas essa ‘apreensão imediata’ requer estudo, ao longo nas artes. Talvez por isso mesmo tenha dito (no tex- nário político de uma esquerda que Mário ajudou a

do qual se prepara e cultiva a sensibilidade.” (Otília Arantes) to “Lance Final”, publicado no livro Forma e Percepção, criar e a fortalecer.

Seu primeiro texto como crítico de arte foi escrito em “Exercício”, nas palavras de Pedrosa, porque ele
1933, para uma conferência sobre a gravurista alemã acreditava na arte com um fazer atento às coisas.
Käthe Kollwitz (1867-1945), cuja obra é marcada por “Experimental”, porque o exercício artístico permite Conheça trecho de crítica convida o sujeito-espectador a entrar numa re-
temas como fome, guerra e pobreza. Tratava-se do aos indivíduos uma relação mais aberta e livre com
escrita por Mário Pedrosa lação nova com a obra, quer dizer, com o obje-
”primeiro estudo propriamente marxista de arte, e a matéria, reinventando sempre o mundo para não to, de modo a que o sujeito participe da criação
creio que uma novidade em toda a América”, escre- perdê-lo. “E, por fim, ‘liberdade’, porque a função do Ensaio de 1960 reflete sobre a obra da do objeto e este, transcendendo-se, o reporte à
veu Alambert em seu texto intitulado “1001 Words for artista, como a do crítico, é extravasar no mundo vi- artista Lygia Clark. plenitude do ser. A arte moderna começa a rom-
Mário Pedrosa” [1001 palavras sobre Mário Pedrosa], vido aquele conteúdo que precisou de liberdade para per de novo com o obscurantismo romântico e,
espécie de apresentação do crítico brasileiro publica- A moda vai ao teatro
decantar-se segundo leis próprias”, diz Alambert. “O espectador não é mais um sujeito passivo e retomando uma atitude otimista, se propõe ven-
da na revista americana Art Journal em 1960. puramente contemplativo em face do objeto; cer com o homem e para o homem o enigma do
Figurinos
Colhendode peças são uma
sensibilidade... prova de que
e utopias nem tampouco um sujeito egocêntrico que para mundo, e lhe recondicionar o destino. As atuais
A partir daí, o militante da esquerda se tornou crí- a moda certamente é arte. se impor nega a obra, o objeto, como na pintura realizações de Lygia Clark têm esse papel.”
tico de arte. Em sua visão, a arte e a política ca- Fica claro então, explica Alambert, que, para Pedrosa, e na escultura romântica e baixamente naturalis-
minhavam juntas. “Para ele, a arte emancipadora o potencial emancipatório da obra de arte deriva da ta, ora em moda, que foge à realidade exterior, Trecho da crítica intitulada “Significação de
significava o ‘exercício experimental da liberda- possibilidade de um fazer diferente e, portanto, livre. acovardada diante das dificuldades e complexi- Lygia Clark” (catálogo do MAM/RJ, 1963), cita-
de’. Essa arte, em suas vertentes construtivas “Mas fazer ‘livremente’ nunca significou para ele fazer dades do mundo contemporâneo, numa posi- do em Mário Pedrosa: Itinerário Crítico, de Otília
e críticas, foi até certo momento o melhor qualquer coisa, uma vez que sem reflexão apenas se ção inteiramente solipsista. A nova arte de Clark Arantes (CosacNaify, 2004), p. 164 e 165.
laboratório da experiência possível de repete aquilo que o mundo dita ou ensina a fazer. Por
uma utópica situação social emanci- isso nem toda forma de arte, para ele, vale como exer-
pada”, explica Alambert. cício de liberdade”, diz o crítico.

18 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 19


Ziraldo
reportagem
Não é que os chargis-
tas da época da ditadura tenham
sido melhores que os de hoje. Quer di-
zer, acho que são – mas isso é uma opinião
pessoal. Acontece que a grande maioria de seus
leitores era como eles, contra a ditadura, contra a
falta de liberdade de expressão, contra a violência
da repressão e a favor da democracia. O alvo de suas
charges era um só: os ditadores. Por esse motivo as
charges eram entendidas mais rapidamente, circula-
vam com mais eficiência.

De todo modo, o chargista prefere ter menos sucesso


pessoal e mais liberdade. Hoje, na democracia plena,
em que todos têm o direito de expressar o que pen-
sam, é a opinião pessoal do chargista, isoladamente,
que transparece no seu trabalho. Não há um alvo fixo.
Cada cidadão tem sua opinião e o chargista, queren-
do ou não, revela suas tendências.

Vem aí a próxima piada!


“Enquanto existir a chamada fraqueza humana, o humorista
Cinco chargistas brasileiros falam de suas trajetórias e visões acerca de seus
trabalhos: o humor que não apenas persegue panoramas sociais e políticos, ainda vai ter motivos para o seu trabalho.” (Ziraldo)
mas também está às voltas com as paixões e as fraquezas humanas.
Por Augusto Paim

Vinte e cinco anos após o fim da ditadura no Brasil e tendo a política em voga com o período de eleições,
a Continuum propôs a cinco chargistas brasileiros a seguinte reflexão: “Sem ditadura e sem censura, para
onde se volta o chargista político hoje?” .

As respostas são tão variadas quanto os perfis dos chargistas: veteranos como Ziraldo, Santiago e Luis
Fernando Verissimo aparecem ao lado de João Montanaro, que aos 14 anos de idade assina a charge política
do jornal Folha de S.Paulo. Também há depoimento de Elias Monteiro, chargista do jornal Diário de Santa
Maria, interior do Rio Grande do Sul. Eles contam sobre o que você vai rir – ou chorar – amanhã. E sem
censura!

20 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 21


O que é sentença, o que
não pode existir no seu trabalho é a
“charge a favor”. Vai daí, muitas vezes, que
o leitor – ou decodificador – não consegue
entender contra quem o chargista está. Mesmo
assim, sobra muito assunto para uma boa charge.

A corrupção ainda permeia a vida pública, a violência


continua assolando o país em todos os níveis (de baixo
para cima ou de cima para baixo), a injustiça social con-
tinua gritante, a hipocrisia e a mentira ainda imperam
– e isso não vai mudar nunca. De forma que, enquanto
existir a chamada fraqueza humana, o humorista ainda
vai ter motivos para o seu trabalho.

Santiago
O problema para mim é sempre o mesmo: nunca sofri
censura externa nos jornais pelos quais passei (traba-
lho desde o período do governo Geisel), mas, sim, in-
terna, feita pela direção do veículo.

No período Collor, quase 30% do que fiz criticando


o “caçador de marajás” no Estadão foi recusado pe-
los editores. Em meu último emprego, no Jornal do
Comércio, de Porto Alegre, fui demitido por fazer uma
crítica que desagradaria aos anunciantes. O dono do
jornal se recusou a publicar.

Sei que a censura interna continua. A mídia, por exem-


plo, se recusa a discutir transporte porque as monta-
doras – poderosas anunciantes – não querem que se
diga que a única saída para o planeta é o transporte
coletivo e a restrição ao carro particular.

A falta de autocrítica nos grandes meios é tam-


bém uma forma de censura. A verdadeira “não
censura“ é quando tenho direito de publicar
e discordar do meu próprio jornal. Um dos
pouquíssimos que fazem isso é Luis
Fernando Verissimo.

22 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 23


Elias Monteiro
Chargista de jornal do interior, no mundo globalizado,
vive os mesmos desafios de seus colegas do mundo
inteiro. E jamais estivemos livres da censura. Engana-
se quem diz que ditadura é coisa do passado. Ela está
aí e atende por outro nome: mercado. Na ditadura
militar nosso inimigo nos achatava com repressão os-
tensiva, hoje ele domina a arte da dissimulação, mas
ainda nos reprime: não nos joga nos porões. Ele nos
joga para a margem.

Na ditadura de nossos dias, o censor é sempre um ser


intangível, mas é ele quem temos de atacar. Nosso
alvo segue sendo o sr. Poder: a ditadura da programa-
ção televisiva, que emburrece; a ditadura da beleza,
que escraviza; a ditadura do poder econômico, que
mata de fome... Basta que o chargista atinja o ponto
certo para ver a censura emergir. Porque toda censura
emana do poder.

“Conflitos sociais não são indispensáveis para a charge, bas-


Luis Fernando Verissimo João Montanaro tam as paixões e as fraquezas humanas. A prepotência, a
Não conheço muito o humor escandinavo, mas te-
nho certeza de que há chargistas até na Islândia, e
Nasci em 1996, mais de uma década depois do fim da dita-
dura. Acredito que na época do Pasquim era mais desafiador
hipocrisia, a ganância e outros alvos existem em qualquer
que não lhes falta assunto. Onde há gente e governo
há matéria para crítica ou pelo menos para piada.
fazer charges; o chargista realmente colocava o dedo na
ferida. Também havia mais espaço: em razão da censura,
latitude, sob qualquer regime.” (Luis Fernando Verissimo)
Claro que quanto mais racional e organizada – isto é, muitas matérias caíam e o diretor do jornal precisava usar
sem graça – for uma sociedade, sem falar em quan- desenhos para preencher os vazios da página.
to mais longo for o inverno, menos conflitos haverá
e, portanto, menos razão para o humor crítico. Mas Hoje é essencial que o chargista seja apartidário – eu
conflitos sociais não são indispensáveis para a char- procuro ser nas minhas charges para a Folha de S.Paulo,
ge, bastam as paixões e as fraquezas humanas. A principalmente em época de eleições. Tem de meter o
prepotência, a hipocrisia, a ganância e outros alvos pau em quem estiver fazendo mais besteiras.
existem em qualquer latitude, sob qualquer regime.
Em países menos escandinavos, em que os conflitos Nunca fui censurado. No entanto, há chargistas que
sociais são evidentes e os governos muitas vezes ten- são pautados pela redação. Eu não sou, mas preciso
dem a ser ditatoriais, ou com pendores totalitários, enviar três trabalhos não finalizados para o jornal. E
os alvos estão mais à vista e as charges são mais con- eles escolhem um.
sequentes – quando não são proibidas. Durante os
20 anos da nossa última ditadura, não havia dúvida Eu já fazia charges havia dois anos, para mim mesmo,
de quem era o inimigo. Depois que abriu, pul- sempre depois de ver o Jornal Nacional. Para fazer
verizaram-se os alvos, ou o consenso de quem charges é necessário estar bem informado, tem de ler
merecia ser alvo. Mas a charge não ficou jornal. Acho que é esse o desafio para os chargistas
sem assunto ou sem serventia. Continua nascidos no fim da década de 1990. Superando isso,
necessária e pertinente. Tanto aqui acho que a nova geração pode desenhar qualquer
quanto na Islândia. coisa, menos Maomé.

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fotorreportagem

A quebra
Fotos Daniel Marenco [provacontato.blogspot.com]

Retratos de dependência e abandono protagonizados por corpos magros e ausentes


de esperança e de políticas públicas que lhes apontem novos e melhores caminhos.
O olhar torna-se mais incômodo ao passar das imagens, que mostram gradualmen-
te a apatia de quem não encontra saídas possíveis para o vício. Tristes passagens
da realidade brasileira revelam a decadência proporcionada pela droga, no ensaio
fotográfico Crack, produzido em Porto Alegre, em 2009.

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LITERATURA
balaio
Os 120 Dias de Sodoma, de Marquês de Sade (su-
gestão de edição: Iluminuras, 2008)
Quatro poderosos membros da nobreza francesa se
enclausuram por 120 dias em um castelo, na compa-

Sinais de alerta nhia de prostitutas e pré-adolescentes (que foram se-


questrados). Durante esse período, cometem as mais
diversas e absurdas atrocidades. O livro foi adaptado
para o cinema por Pier Paolo Pasolini em 1976 – o di-
Obras audiovisuais, musicais, literárias e fotográficas mostram o poder da
retor trouxe a história para uma Itália fascista – e para
arte diante de opressões políticas. os palcos, entre outros, pela companhia paulistana de
teatro Os Satyros, que contextualizou a obra na cida-
Por André Seiti | Fotos divulgação de de Brasília, em 2006.

cinema MÚSICA
A Vida dos Outros, de Florian Henckel von Donners- Show Opinião, de vários artistas (Phillips, 1965)
marck (Sony Pictures Classics, 2006) A apresentação, que mesclou teatro e música, dirigi-
Um metódico integrante da Stasi – polícia política da da por Augusto Boal e produzida pelo Teatro Arena e
ex-Alemanha Oriental – é encarregado de espionar pela União Nacional dos Estudantes, reuniu composi-
um casal de artistas em busca de provas contra o go- ções com alto teor de contestação social e política, em
verno. O que era para ser uma simples missão acaba se pleno ano de 1964. Com interpretações de Nara Leão,
tornando um conflito moral que provocará mudanças João do Vale e Zé Keti, o espetáculo se tornou referên-
irreversíveis na personalidade do agente secreto. cia da resistência durante os anos de chumbo.

cinema LITERATURA FOTOGRAFIA


A Batalha do Chile, de Patricio Guzmán (Videofilmes, Esaú e Jacó, de Machado de Assis (original, 1904; Walter Astrada (walterastrada.com)
1975, 1977, 1979) sugestão de edição: Martin Claret, 2002) Adepto do fotojornalismo clássico, o argentino Walter
Considerado pelos críticos um dos mais importantes O penúltimo romance de Machado de Assis, escrito Astrada testemunha, ao redor do globo, proble-
mas sociais e políticos que o resto do mundo pare-
documentários sobre a América Latina, esta obra, quatro anos antes de sua morte, conta a história dos
ce não enxergar – ou prefere não enxergar. Em seu
dividida em três partes – A Insurreição da Burguesia, gêmeos Pedro e Paulo, uma analogia direta com os
site, é possível conferir diversos ensaios, entre eles a
O Golpe Militar e O Poder Popular –, registra um dos personagens bíblicos que dão nome à obra. Tendo como série de imagens sobre a violenta eleição presiden-
períodos mais conturbados da história chilena: da pano de fundo eventos políticos como a Proclamação cial no Quênia, em 2007, que lhe rendeu o prêmio
tentativa do presidente Salvador Allende de implantar da República, o livro traça uma espécie de paralelo World Press Photo, em 2008.
um regime socialista aos episódios que resultaram na entre a trajetória dos irmãos – um republicano e o outro
ditadura militar de Augusto Pinochet. monarquista – e a própria história do Brasil.

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entrevista

Um lugar de errância e
impermanência
Por Marco Aurélio Fiochi | Fotos André Seiti e arquivo da artista

As relações de poder que atuam no corpo são o centro da pesquisa da criadora-intérprete de dança
Vera Sala. Professora do curso de comunicação das artes do corpo da Faculdade de Comunicação e Filosofia
da PUC/SP, onde desenvolve em grupo sua produção, Vera investiga um lugar marcado, entre outros ele-
mentos, pela transitoriedade e precariedade. Vulnerável às limitações impostas por fatores externos, como
arames ou cacos de vidro, é nesse espaço que o corpo tem de se organizar ou reorganizar. Sua trajetória,
iniciada em 1987, já deu frutos diversos, como os espetáculos Espelho d´Água (1996), Estudo para Macabéa
(1998) e Corpos Ilhados (selecionado pelo Rumos Itaú Cultural 2001), realizados em palco convencional.
Desde 2003, vem incorporando ao trabalho estruturas as quais batizou de Corpo-Instalação e que se modi-
ficam a cada estágio da pesquisa. Desse processo contínuo surgiram ImPermanências (2006) e Disposições
Transitórias ou Pequenas Mortes (obra dividida em procedimentos, iniciada em 2007). Premiada, entre outros,
pela Associação Paulista dos Críticos de Arte na categoria criação-intérprete em 2005, Vera acredita que a
dança, tanto quanto as outras artes, é sempre política. “A política está na forma até mesmo quando esta não
é organizada, quando se deixa ao acaso. Isso também é uma posição política.”

Vera: “[A dança] é sempre política, no sentido de trazer diferentes visões de mundo.”

Participe com suas ideias 35


Trata-se de um campo aberto de trocas. O público, ao O uso que se faz do corpo, num país que tem uma
entrar nesse espaço, tem uma experiência sensório- relação muito diferenciada com ele, que esbarra
motora. Ele causa instabilidade, não se sabe onde se na moralidade, mas também em certa permissivi-
está, se o que se vê é real ou não, porque há várias coi- dade, é uma preocupação em seu trabalho?
sas que refletem. Há pessoas que saem da instalação
completamente à deriva. Em primeiro lugar é errado falar “o corpo do brasileiro”,
porque dessa forma se exclui a diversidade de regiões,
Faz sentido à arte contemporânea falar de política de culturas. Se reduzirmos tudo a “o corpo do brasilei-
ou falta a ela mais abertura para essa questão? ro”, anulamos o que é mais importante: as diferenças.
Alguém que vive no campo tem um corpo totalmente
É difícil generalizar. É lógico que há trabalhos que diferente daquele que vive numa cidade. Tem ações,
produzem imediatamente uma reflexão política. percepções e possibilidades físicas distintas. O que há
Hoje se fala muito em pesquisa, e isso quer dizer que no meu trabalho é um recorte, um pensamento sobre

É errado falar “o corpo do brasileiro”, porque dessa forma se


exclui a diversidade de regiões, de culturas. Se reduzirmos
Fios de arame como elemento de contenção em ImPermanências | foto: Jorge Etcher tudo a “o corpo do brasileiro”, anulamos o que é mais im-
portante: as diferenças.
Em que medida a dança carrega em si uma ex- uma série de modos de cria-
pressão política? ção, que são uma ruptura política, é preciso encontrar uma nova organização para dar
no sentido de carregar outra visão de conta da atualidade. Deve-se olhar como os artistas
A dança é uma maneira de organização de determina- mundo. Em sua forma de organizar a dança, estão propondo outra organização de suas obras,
das questões. Ela é, tanto quanto as outras artes, sem- escolhia o acaso, tirava a hierarquia do espaço porque isso abre uma possibilidade, a quem entre
pre política, no sentido de levantar hipóteses e trazer e do corpo. Nas obras criadas antes dele, havia em contato com elas, de promover novas reflexões,
diferentes visões de mundo. Pode reforçar certo status uma hierarquia na organização da espacialidade. ter outro olhar, fazer conexões diferentes. Isso ajuda
social, afirmar um pensamento ou propor outro. Não Cunningham rompe com isso, mas sem uma pos- a reorganizar a relação das pessoas com o mundo.
tem a ver com o tema que se escolhe, mas, sim, com a tura panfletária. A estrutura de suas obras ajuda a É política no sentido mais amplo da palavra. Posso
maneira como se organizam o corpo, as relações de es- repensar as relações de poder. falar da relação entre homem e mulher, de amor, e
paço e o fazer da dança. Pode-se falar sobre um tema fazer isso de forma extremamente política.
absolutamente banal, mas com uma forma de organi- Alguma de suas obras teve a intenção de cons-
zar que aponte para uma reflexão. Pode-se fazer um cientizar? Sua pesquisa do corpo é ligada à mobilidade, à
tema dito político, mas de uma maneira absolutamen- motricidade, às possibilidades que o corpo pode
te contraditória. Sempre se trabalha com questões, vi- Nunca tive a intenção de conscientizar, mas, sim, de oferecer em movimento?
sões e relações de poder. A política está na forma até fazer as pessoas refletir. Desde o começo de minha
mesmo quando esta não é organizada, quando se dei- criação, fui passando por momentos bastante diferen- Sim, e também ligada ao não movimento. Em al-
xa ao acaso. Isso também é uma posição política. tes, mas o que mais motiva a minha pesquisa é pensar guns trabalhos, eu me imobilizo, eles são estáti-
que corpo é esse que discute as relações de poder e cos. Num dos meus espetáculos [ImPermanências,
Cite algumas obras de dança que tiveram inten- o estar no mundo hoje. Quero dar visibilidade a um de 2006], o corpo está imerso em um monte de
ção política. Essas obras a marcaram pela atitude tipo de corpo que tenha organização própria. Para fios de arame, que o contêm. Mas não quer di-
de cutucar determinadas feridas ou por uma rup- mim, interessa muito trabalhar com a precariedade, a zer que não haja movimento. É outro tipo de
tura estética? instabilidade e a transitoriedade. Por exemplo, a pes- mobilidade. Esses micromovimentos, essas
quisa para a instalação que estou desenvolvendo no microações me interessam muito. Não
Posso citar as obras do [coreógrafo americano] momento já vem de quatro anos. Iniciei esse trabalho é preciso fazer algo grandioso para
Merce Cunningham [1919-2009]. Ele introduziu sozinha e agora o estou desenvolvendo em grupo. ter visibilidade.

36 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 37


aspectos que me interessam no corpo: a precarieda- Dar aulas em uma universida-
de e a instabilidade, que são questões que vêm das de é algo que toca bem de perto a
relações de poder. A mim interessa, por exemplo, a questão política, nem que seja a política
fronteira entre a vida e a morte. Como essa potência acadêmica. Como professora, você sente a
coabita o cotidiano. Tenho interesse pela violência necessidade de vestir um personagem mais
implícita e explícita que vem das relações de poder. político do que aquele que veste como artista?
Comecei a criar em 1987 e essa questão já estava em
meu trabalho. Mas ela foi se desdobrando. Até 2000, Não consigo ver a separação desse ser político que é
fazia trabalhos no palco. De lá para cá, passei a buscar artista daquele que está dando aulas. Não tenho um
o que chamo de Corpo-Instalação. São ambientes que “casaquinho” de professor e um “casaquinho” de artista.
produzem outra relação com o corpo e com o públi- Acho que o fazer artístico exige 24 horas uma postura
co. É um lugar que permite às pessoas certa errância. diante das coisas, uma forma de atuar no mundo. Isso
ocorre tanto na hora em que se apresenta o trabalho,

Não consigo ver a separação desse ser político que é artista


daquele que está dando aulas. O fazer artístico exige 24 horas
uma postura diante das coisas, uma forma de atuar no mundo.
Num ambiente de contenções, como no espetá- quanto nas ações que precedem o resultado final.
culo ImPermanências, os movimentos são espon- Nesses momentos se organiza o trabalho, mas tam-
tâneos ou coreografados? bém são ações que determinam a relação do artista Para a criadora, a política cultural é um conjunto de ações que visam produção, circulação e pesquisa
com sua obra. Na dança, tem de se lidar com editais,
Na verdade, trabalho com conceitos de movimento, secretarias de cultura, instituições. No ambiente aca-
com qualidades de movimento, não com uma partitura dêmico, com outro tipo de instituição. Considero-me com a questão do professor que é também artista. No tocante à política cultural, o que é preciso para
fechada, um desenho. Não penso “vou fazer assim ou uma artista que compartilha com outros. Não me vejo Como permanecer artista nesse ambiente? Não te- que a dança se transforme numa arte que tenha o
vou fazer assado...”. Até porque a discussão, nesse tra- como “a mestra”. Detesto chegar com coisas prontas nho mestrado nem doutorado, e na universidade se é mesmo peso que as outras? Você vislumbra uma
balho com os fios, é sobre a relação, a coadaptação do e fechadas. Em todo trabalho deve haver um campo pressionado a ter esses títulos. Ao mesmo tempo não política efetiva de incentivo à dança no país?
corpo ao arame. Só posso me mover de acordo com o aberto para afetar o outro e ser afetado. É isso que se aceita uma obra artística como tese. A pesquisa que
que aquela estrutura me permite, e ela também é mó- trago ao ensino. Às vezes, falo que não sou professo- estou realizando com o grupo já dura quatro anos. Quer É claro que isso depende de políticas públicas, tan-
vel. Então, às vezes, ela impede o movimento em deter- ra, sou uma artista compartilhando parte da minha dizer, é uma tese. E isso é muito difícil de ser aceito e to para a produção, quanto para a circulação. Falta
minada direção, e não dá mais para ir por ali. Se a gente pesquisa. Não sou detentora de um saber, até porque negociado na universidade. Há um formato acadêmi- uma política mais constante para promover essa cir-
fizer um paralelo, isso ocorre a todo momento com as esse saber está sempre se modificando e vejo que te- co a seguir. Conheço artistas que se depararam com culação. A grande dificuldade do artista é estar fora
pessoas. É a vida, não é? Nesse espetáculo, não posso ter nho muito que aprender. grande angústia, pois quando entraram na universi- desse circuito. Ao apresentar seu trabalho, ele não
uma partitura. Não posso dizer “quero neste momento dade acabaram tendo de fazer mestrado e doutorado consegue divulgá-lo. Atualmente, há alguns editais
mexer a mão para a direita e a cabeça para a esquerda”, A dança é bem representada na universidade? e se viram afastados de suas obras. Para mim, não há de dança, o que é um ganho. Conseguimos ter fo-
porque às vezes não dá, o arame me impede e tenho uma separação entre teoria e prática. A criação artística mento, mas determinados editais pararam no tem-
de achar outro caminho. Peter Pál Pelbart [filósofo bra- Creio que a universidade, com a crise econômica, pas- envolve ambas. Ao elaborar o trabalho, estou criando po. Política cultural é ter um conjunto de ações que
sileiro] aborda em um de seus textos a capacidade de sa por um momento delicado. O Centro de Estudos do uma teoria sobre ele, um conceito que vem do próprio promovam a produção, a circulação e a manutenção
ser afetado e de afetar. Ele acredita que as pessoas têm Corpo, do Programa de Estudos Pós-Graduados em fazer. Mesmo quem escreve, os grandes pensadores, de pesquisas. Essas ações devem abarcar diferentes
de ter certa fragilidade para ser afetadas e, ao mesmo Comunicação e Semiótica da PUC/SP, por exemplo, tem é teórico-prático; elaboram, com base em suas vi- necessidades e a diversidade que hoje existe. O que
tempo, uma grande força para se deixar afetar. Então, uma proposta diferenciada. Ele tem uma indisciplinarida- vências, o seu pensar. O grande problema da uni- acontece em alguns editais é que tudo tem de se
não posso endurecer a ponto de dizer “quero, eu vou” e de, que é dança, teatro e performance. Mas a instituição versidade é fazer essa separação. A arte, por sua formatar para caber neles. A classe precisa ser ouvi-
aí me machucar inteira, porque o arame não me vai per- não consegue reconhecer isso. Uma multidisciplinari- própria organização, faz conexões com o da, pois há várias pessoas trabalhando com propos-
mitir fazer. Se eu me deixar afetar, meu corpo encontra dade, uma interdisciplinaridade, no entanto, ela aceita. mundo em que se vive, e isso é pro- tas diferentes, que podem se complementar.
outros caminhos para sobreviver com essa contenção. De modo geral, as universidades não conseguem lidar dução de conhecimento.

38 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 39


convocação área livre

Leitores também podem ser criadores

Ilustração [detalhe]: Virgílio Neto


Revista abre espaço para a colaboração de quem a lê.
A cada edição, a Continuum reserva algumas páginas para publicar, na seção Área Livre, colaborações
enviadas por leitores. São fotos, ilustrações, gravuras digitalizadas, cartuns, isso só para falar de imagens. Mas
é bom lembrar que os arquivos devem ter no mínino 300 dpi de resolução e 1 MB de tamanho. Se o seu
talento é escrever, você também pode participar enviando pequenos contos, crônicas ou textos analíticos
e poesias, com até 5 mil caracteres (contando o espaço entre as palavras). Enfim, vale tudo para mostrar sua
arte! Só não vale fugir do tema. Envie seu trabalho para participecontinuum@itaucultural.org.br – depois
de analisado, ele poderá ser publicado.

Por isso é que divulgamos nesta seção o assunto da próxima edição e também o prazo para que você possa
se programar e produzir com antecedência seu trabalho. Nos meses de janeiro e fevereiro, trataremos de
Colecionismo. Comece a pensar o que a arte de colecionar desperta em você. Receberemos trabalhos de
leitores de 10 de novembro a 10 de dezembro (após essa data, os trabalhos não serão mais analisados).

Estamos esperando sua obra. Leia, em itaucultural.org.br/continuum, o Regulamento da Área Livre. Se


tiver dúvidas, escreva para o e-mail da revista.

***

Agora o papo é com os estudantes universitários. Há uma seção aberta à sua participação. É a Deadline. Para
participar, ingressos em qualquer curso universitário, público ou privado e de todo o país, devem enviar uma
pauta, um projeto para a realização de uma reportagem, de acordo com o tema da edição: Colecionismo.
O projeto é um breve descritivo de até uma lauda.

Antes de enviá-lo para o e-mail participecontinuum@itaucultural.org.br, o estudante deve acessar em


itaucultural.org.br/continuum o Regulamento e a Convocatória específicos para a edição de janeiro-
fevereiro, que estabelecem as etapas e os prazos para o cumprimento da ação. Com o projeto, é necessário
enviar a ficha de inscrição preenchida, cujo modelo também está no site da revista. A seleção é feita por
uma Comissão Julgadora e apenas um projeto é escolhido. Em seguida, o estudante selecionado deverá
desenvolver a reportagem, que será publicada na seção.

Então, mãos à obra! A Continuum espera sua colaboração.

Cartuns do leitor Maurício Nunes

40 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 41


Serigrafia digitalizada, do leitor Renan Marcondes Ilustrações do leitor Derlon Almeida

42 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 43


artigo
Biblioteca estendida
Maurício Silva, doutor e pós-doutor em letras
clássicas e vernáculas e membro da Brazilian
Studies Association (Universidade do México) e
da Modern Language Association (Nova York),
fala sobre livros que marcaram e marcarão nossa
política e sociedade.

Você poderia citar clássicos que mudaram

Como tijolos numa construção ideias, modos de vida e mesmo o pensar a


política e a sociedade?

Não diria que certos livros mudaram modos de


Obras literárias que mudaram o mundo ou que o ajudaram a ser construído. vida ou o pensar a política como um todo, pois
acredito que a literatura, sozinha, não tenha esse
Por Micheliny Verunschk | Ilustração Mariana Leme poder. Mas, certamente, ajudaram – e muito – a
combater determinados regimes e formar opi- Que livros brasileiros você elegeria indispensá-
Muito embora tenham sido expulsos da República por Platão, os poetas e, por extensão, os escritores se niões favoráveis ou contrárias a eles. Thomas veis para a construção política do nosso país?
revelaram os tradutores por excelência do mundo em convulsão, sempre agitado em maior ou menor grau Mann, autor do célebre romance A Montanha
por mudanças sociais e políticas. Partindo da premissa de que toda obra literária é de certo modo uma obra Mágica (1924), foi um nome referencial con- Se dermos ao termo política um sentido am-
política, muitos livros serviram de apoio ao estabelecimento de normas e regimes, saindo da superfície e tra a política nazista na Alemanha; o contista plo, eu poderia citar centenas de nomes, desde
tocando o que de mais profundo há nas relações entre nós e os outros. Desse modo, não seria exagerado Rodolfo Walsh, na Argentina, autor dos Dez Padre Antonio Vieira (que por meio de seus ser-
dizer que o mundo se faz com pessoas e livros, parafraseando e ampliando a famosa frase do escritor brasi- Contos Policiais (1953), escreveu sistematica- mões defendia os índios) até Castro Alves (com
leiro Monteiro Lobato. mente contra a ditadura em seu país e foi morto a defesa dos escravos); desde Gregório de Matos
por ela; o russo Alexandre Soljenítsin, autor de (que atacava a aristocracia local) até José Lins
Assim, não seria absurdo pensar na construção de uma biblioteca imaginária que em poucas linhas, e, claro, de Arquipélago Gulag (1973), fez da literatura uma do Rego (que denunciava os desmandos dos
modo incompleto, pudesse dar conta do emblema “livros que mudaram a humanidade”. Político e República, arma de combate ao regime stalinista; no Brasil, senhores de engenho). Se dermos ao termo um
ambos de Platão, estariam na base do modo ocidental de entender as relações sociais e os métodos de aplica- Graciliano Ramos, preso pela ditadura getulista, sentido estrito, vinculando-o, por exemplo, à
ção da chamada arte de governar a coletividade; pois, embora se refiram a uma Grécia distante historicamen- acabou relatando sua experiência no comoven- atuação partidária, eu citaria Jorge Amado (prin-
te, mas diacronicamente presente em tudo o que fazemos até hoje, esses escritos filosóficos mantêm uma te Memórias do Cárcere (1953), exemplo de uma cipalmente seus primeiros romances, alguns de
atualidade ímpar porque, guardadas as diferenças, as distâncias tecnológicas e de estilos de vida e de pensa- obra que resulta de um regime ditatorial, mas evidente extração comunista).
mento, a humanidade é sempre a mesma em suas buscas, anseios, dúvidas, grandezas e mesquinharias. serve também como panfleto contra a ditadura.
Daqui a 50 anos ou mesmo um século quais
Na mesma prateleira, figura O Príncipe, de Maquiavel. A obra extrapola seu contexto e o objetivo de ser um livros terão mudado “nossa” época? Você tem
manual de conduta para o governante de uma Itália renascentista, idealizada como forte e poderosa. Legou às alguma aposta?
gerações seguintes um tratado sobre a arte política que, para além da frase que o conceitua e define, “os fins
justificam os meios”, ensina a todos, governantes e governados, os mecanismos do funcionamento do poder. Eu apostaria em livros que devem deixar uma
marca na literatura brasileira e, certamente, em
No entanto, talvez o mais ambicioso empreendimento das letras na tentativa de refletir e interpretar uma época, nossa mentalidade cultural: acredito que o ro-
dando-lhe de quebra uma gama de nuances e diretrizes intelectuais, morais e mesmo – ou principalmente – mance Eles Eram Muitos Cavalos, de Luiz Ruffato,
políticas, tenha sido a moderna Encyclopedie, compilada por Denis Diderot e Jean Le Ronde D’Alembert e pu- pode ser um deles; o mesmo deve ocorrer com
blicada na França no século XVIII. Com 33 volumes e 71.818 artigos, essa vasta obra provavelmente não impres- Subúrbio, de Fernando Bonassi.
sione a princípio os deslumbrados com sua prima distante, a contemporânea Wikipedia. Se levarmos em conta,
porém, que foi organizada numa época em que a imprensa começava a se consolidar e tinha entre seus cola-
boradores nomes do calibre de Jean Jacques Rousseau, Montesquieu e Voltaire, tudo muda de perspectiva.

44 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 45


Que livros proclamaram mudanças
sociais e de pensamento ao longo
da história?
O Manifesto Comunista, originalmente de-
Escritores brasileiros contemporâneos res- nominado Manifesto do Partido Comunista
pondem a questão e elencam os títulos de (em alemão, Manifest der Kommunistischen Publicado em 1949, o romance
sua preferência. Partei), publicado pela primeira vez em 21 de 1984 antecipa um mundo oprimido
fevereiro de 1848. pela massificação, em crise diante do tota-
A Metamorfose, de Kafka. Esse romance curto, publi- Chacal litarismo tanto de esquerda quanto de direita,
cado em 1915, mostra o cidadão comum reduzido a no qual a singularidade e a individualidade são
inseto, involuído, totalmente apartado de sua huma- Acho que os livros que preconizaram mudan- sacrificadas no altar de um coletivismo duvidoso.
nidade perdida. As duas guerras mundiais e as guer- ças no sentido de formar mentalidades, fora Do mesmo modo, obras poéticas podem ter a ca-
ras coloniais na África e na Ásia criaram um número da literatura e de algum jeito não deixando pacidade se não de instituir uma nação, ao menos
absurdo de Gregor Samsas alienados e famintos. de sê-la, são os livros religiosos, como o Velho de ser a planta sobre a qual se arquiteta o sentido
Nelson de Oliveira Testamento, por exemplo. de nacionalidade. É o caso de Os Lusíadas, de Luís de
Andrea Del Fuego Camões, epopeia sobre a força heroica do povo por-
Folhas de Relva, de Walt Whitman, que, segundo tuguês na saga de fundar não só a nação, mas sua
Borges, é de todos. Apesar do tom exaltado e das Daqui a algumas décadas o livro Cibercultura, própria identidade.
fortes referências à filosofia de Emerson – em O do filósofo Pierre Lévy, será imprescindível
Destino Manifesto –, as Folhas de Relva antecipam as em qualquer bibliografia deste século, embo-
lutas feministas, pela igualdade racial e pela liber- ra tenha sido escrito no século passado. Mos-
dade sexual. tra como a internet e as novas tecnologias Um bom romance na maioria das vezes tem um poder
Ronaldo Correia de Brito mudaram radicalmente nossa cultura, nossa
maneira de ver e se relacionar com o outro e insuspeitado de uma bomba contra o poder estabelecido.
com o conhecimento.
Edson Cruz
Os romances, a poesia e os costumes Ala brasileira
A Encyclopedie, filha predileta do Iluminismo, teve
sua parte de responsabilidade no abandono de anti- Voltando à imagem da biblioteca imaginária, é preci- Poderíamos citar à mancheia inúmeros títulos de
gas superstições e mais, na própria queda do Antigo so ter em mente que essa é uma biblioteca elevada uma seção brasileira nessa biblioteca. De Macunaíma,
Regime e no estabelecimento da crença de um mun- ao infinito, posto que nela cabem tanto os livros já de Mário de Andrade, a Casa Grande e Senzala, de
do mais objetivo, racional, capaz de se gerir pelo inte- escritos quanto aqueles que ainda estão por escrever. Gilberto Freire, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque
lecto e pelas tecnologias que constrói para conforto Versátil, nela estão catalogadas obras de certo modo de Holanda. No entanto, encerramos essa viagem
e assombro. díspares entre si, já que nem todo livro capaz de revo- com uma citação de um livro não muito conheci-
lucionar o mundo se configura como tratado filosófi- do. Trata-se de América Latina – Males de Origem, do
Da França do século seguinte vem uma carta. Intitula- co, ensaio ou manifesto. Um bom romance na maioria sergipano Manoel Bomfim. O livro, publicado em
do J’accuse e escrito pelo romancista Émile Zola, esse das vezes tem o poder insuspeitado de uma bomba Paris, em 1903, analisa a colonização ibérica e pre-
manifesto defende Alfred Dreyfus, oficial francês de contra o poder estabelecido. vê caudilhismos e crises ligados à corrupção política
origem judaica acusado de alta traição num processo a que países latinos seriam subordinados ao longo
fraudulento que desencadeou uma onda de antisse- Ora, se por um lado temos A Origem das Espécies, de do século XX e mesmo XXI, e oferece opções, saídas:
mitismo na Europa do século XIX. A carta de Zola, co- Charles Darwin, A Riqueza das Nações, de Adam Smith, “Eduquem-se as almas inconstantes destas popula-
movente em sua indignação por justiça, é um dos do- A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud, e ções, habituem-nas a vencer as impressões do mo-
cumentos políticos de maior intensidade dos últimos O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, por outro mento, ensinem-lhes as consequências últimas dos
séculos. O caso Dreyfus renderia ainda o romance lado e com igual intensidade temos A Náusea, de atos imorais […] e daí sairão as gerações de fortes,
O Anel de Ametista, no qual Anatole France reconstitui Jean-Paul Sartre, O Apanhador no Campo de Centeio, capazes de dominar-se a si mesmos, capazes de lutar
os ânimos agitados da época. de J. D. Salinger, e 1984, de George Orwell. e de progredir”.

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reportagem

Se você pudesse,
fugia deste mundo Odair José, que teve
mais músicas censuradas
que Gil e Caetano juntos
foto: divulgação

Os Novos Baianos apresentaram, e Agnaldo Timóteo, eram ignorados pela intelligentsia


mais que uma grande mistura de rit- musical e censurados em medida similar à dos artistas
No tempo das canções de protesto, artistas esquecidos pela esquerda também
mos, uma alternativa. “Em plena ditadura das canções de protesto.
foram censurados por contestar a realidade brasileira. militar, nós vivíamos em estado de sítio. Na
verdade, morávamos num sítio em Jacarepaguá O historiador Paulo César de Araújo, autor do livro Eu
Por Marco Lourenço onde passávamos o tempo respirando música”, brin- Não Sou Cachorro, Não (Record, 2002), conta que as te-
ca Paulinho, que definiu sua turma como anarquistas máticas abordadas pelos bregas – sexo, pílula, prosti-
Os anos de chumbo marcaram a história brasileira com chagas da repressão. A repressão, no entanto, não modernos, não militantes políticos, e com uma lingua- tuição – eram absolutamente reprimidas, consideradas
era apenas política, tal qual os artistas da MPB se empenharam em denunciar. Havia uma repressão moral, gem que se fazia entender pela juventude. “Não éramos subversivas e censuradas. Vale dizer que a própria letra
uma ditadura do corpo que não era observada pela arte considerada engajada. As roupas, o corte de cabelo hippies. O hippie era o jovem que havia abandonado o da canção composta por Waldick Soriano que dá título
e até o modo de viver eram condenados e muitas vezes reprimidos. sistema, e aqui seria o cara que acompanhava tudo o ao livro de Araújo é um exemplo das diversas formas
que acontecia lá fora sem questionar o que acontecia musicais que contestam a realidade social brasileira.
O músico dos Novos Baianos Paulinho Boca de Cantor conta que o estilo da sua “turma”, como ele prefere aqui dentro. Nós tínhamos uma alternativa que era falar
chamar, foi estranhado e, em alguns momentos, reprimido. “Cheguei ao Rio de Janeiro no dia que o homem tudo através da nossa música”, argumenta. Segundo o autor, “Odair José teve mais canções
chegou à Lua. Na TV, o homem pisando na Lua e eu pisando na calçada de terno amarelo, parecendo o censuradas que Gil e Caetano juntos. A canção ‘Em
Máscara”, diz ele. A música “Dê um Rolê”, por exemplo, é um retrato da vivência da juventude carioca daquele Sexo sem banalização Qualquer Lugar’, que propaga o amor livre, foi vetada
tempo. “A gente não podia ficar na beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, senão éramos parados na blitz. Por isso integralmente por contradizer um parâmetro da famí-
tínhamos que dar um rolê mesmo”, explica. À margem do prestígio de que gozavam figuras como lia brasileira, onde o sexo é mantido sob a discrição do
Chico Buarque, Gonzaguinha e Geraldo Vandré esta- quarto, no silêncio e ‘papai-mamãe’, de preferência.”
Conhecidos por fusões de estilos tidos como brasileiros e pela incorporação da guitarra elétrica e do rock, a “tur- vam artistas que dialogavam com as camadas popu-
ma” de Pepeu Gomes, Baby Consuelo, Moraes Moreira e Paulinho trazia uma ruptura estética musical que tem lares. À sombra da revolução estética musical que o “Nunca fiz canções sobre o sexo para banalizá-lo. Sei
uma dimensão política. Para o historiador José Geraldo Vinci de Moraes, “o artista quando promove essas mudan- tropicalismo propagou e da tietagem conquistada que na época parecia atrevimento, mas minha visão
ças está na realidade contestando a interpretação cultural hegemônica, como quem diz ‘a cultura deste mundo pela jovem guarda, muitos artistas tornaram-se pe- era livre e pura sobre a intimidade de um casal, fosse
não me satisfaz’, e, por isso, um enfrentamento é travado com a ordem dominante”. quenos coadjuvantes da historiografia musical brasi- ele homem com mulher, homem com homem, mu-
leira. Ícones do que ficou conhecido, e desprestigiado, lher com mulher. Em nenhuma forma ele deve ser re-
como brega, tais como Odair José, Luis Carlos Magno primido”, afirma o músico.

48 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 49


A proximidade com o público
que consome essas canções nos per-
mite observar os pontos escurecidos pela
batalha declarada entre a ditadura e a mili-
O quartinho da empregada tância de esquerda, seja ela armada ou não. Por
isso, Araújo entende que Odair José ao cantar “Eu
A despeito da intenção de um conteúdo crítico, a sei que seu quartinho fica lá no fundo, e, se você
abordagem das canções bregas revela uma série de pudesse, você fugia desse mundo”, embora não esta-
condições sociais do Brasil daquele tempo. Araújo se beleça uma discussão com a ordem institucional, pro-
lembra de trabalhos de Agnaldo Timóteo que ele ro- testa com a mesma importância que Chico Buarque
tula de “trilogia da noite”. Trata-se de três discos lança- ou Caetano Veloso. “Como disse, eu escrevia o que via,
dos entre 1975 e 1977 cuja temática homossexual é o assunto vinha e eu fazia a canção. A empregada do-
escancarada. “Por exemplo, ‘Eu Pecador’ é uma canção méstica, por exemplo, não servia para ser esposa. Eu
sobre a angústia que um rapaz do interior, de famí- sabia que ela era marginalizada”, comenta Odair.
lia católica, enfrenta ao chegar ao Rio de Janeiro e ter
de lidar com sua orientação sexual reprimida.” Apesar
de nunca ter sido panfletário da libertação sexual,
Timóteo, aos olhos de Araújo, provocou mais impacto Ao passo que o discurso da MPB se articulava nos centros
que qualquer passeata dos dias atuais. “É muito legal
ver essas manifestações, 1 milhão de pessoas brindan-
universitários, a partir de setores da classe média, os artistas
do a diversidade. Mas quem teve coragem de dizer
naquele tempo ‘Senhor, sou pecador, venho confessar
da jovem guarda e os cantores bregas, filhos de operários que
porque gostei, foi tudo por loucura, mas eu gostei’?” não passaram pela vivência desses centros e tampouco dis-
A sensibilidade dos artistas bregas com seu público punham de uma tradição familiar de politização, eram indevi-
era intensa. Falar da vida das empregadas domésticas
tornou-se tema amplamente explorado nas canções. damente condenados pela falta de participação e protesto.
Mas ali, diagnostica Araújo, era retratado o autoritaris-
mo do dia a dia, disseminado na nossa sociedade, e de-
nunciada a grande contribuição brasileira à arquitetura “Respeito todos esses grandes artistas, mas faziam par-
mundial, o quartinho de empregada, ironiza o autor. O te de outro rol de músicos. A censura que Odair sofria
Discos de Agnaldo Timóteo tocaram no cantor e compositor Luiz Carlos Magno, sucesso na épo- vinha de suas letras consideradas amorais. No meu
tema homossexualidade muito antes do ca, cantava: “Dois por dois mede o quarto da emprega- caso, eu fazia críticas contundentes à ditadura. Sempre
orgulho gay | foto: divulgação da, o quarto da empregada não tem janela, acham que tive uma posição política contrária ao que estava acon-
ela não merece olhar as estrelas”. tecendo”, observa o cantor e compositor Luiz Ayrão.

Ao passo que o discurso da MPB se articulava nos cen- “A música ‘Divórcio’, por exemplo, é o resultado de
tros universitários, a partir de setores da classe média, uma ideia que eu trazia desde os tempos da facul-
os artistas da jovem guarda e os cantores bregas, fi- dade de direito, onde tive influência dos grandes
lhos de operários que não passaram pela vivência ícones da esquerda naquele tempo, Fidel Castro e
desses centros e tampouco dispunham de uma tra- Che Guevara”, conta Ayrão. Censurada, a canção, que
dição familiar de politização, eram indevidamente também é conhecida como O Samba dos 13 Anos do
condenados pela falta de participação e protes- Regime Militar, explicita o protesto em versos como:
to. “Eu fazia apenas música e sentia aquilo que “Você vem me infernizando, você vem me enclausu-
estava no ar, o que acontecia. Nunca tive rando, você vem me sufocando como o próprio gás”.
preocupação com o impacto nas pes- O termo gás foi utilizado como referência a Ernesto Os Novos Baianos: “estado de sítio” em
soas”, revela Odair José. Geisel, presidente entre 1974 e 1979. plena ditadura | foto: Derly/Folhapress

50 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 51


reportagem
Como escreveu Artaud em
O Teatro e Seu Duplo (Martins Fontes, A reorientação da dramaturgia brasileira foi rápida, e
1993), a verdade é que “no ponto de des- o Arena se motivou a buscar soluções dramáticas e
gaste a que chegou nossa sensibilidade, certa- definições estéticas e políticas, bem como a discutir
mente precisamos, antes de tudo, de um teatro as peças de Brecht. O dramaturgo e poeta alemão é
que nos desperte: nervos e coração”. um dos responsáveis pela obra do teatro épico, que
pressupõe “um poderoso movimento social interessa-
No princípio era o Brecht do na livre discussão de seus problemas vitais e capaz
de defender seu interesse contra todas as tendências
No Brasil, o teatro épico moderno deu seu primei- adversas”, como o próprio autor observa em Escritos
ro passo em 1958 com Eles Não Usam Black-Tie, de sobre Teatro 1 (Nueva Visión, 1970).
Gianfrancesco Guarnieri, encenada pelo elenco do
Teatro de Arena, de São Paulo. Pela primeira vez, uma Em 1960, Augusto Boal, integrante do Arena, escreveu
greve operária figurava no centro de uma peça e, ao Revolução na América do Sul, que estreou num momen-
levar suas questões ao palco, o movimento popular to de acirramento dos movimentos nacionalistas em ra-
modificava o debate cultural. Em paralelo, o Cinema zão das eleições presidenciais. A peça utilizava canções,
Cena de Arena Conta Tiradentes, Novo tomava forma e convocava a arte ao neorrealis- cartazes e frases de ligação entre as cenas e dava es-
1967 | foto: Derly Marques/Acervo mo, que pretendia produções com mais realidade e paço para a direção manipular as técnicas brechtianas
Idart/Centro Cultural São Paulo menos recursos. em interpretações e soluções cênicas. O espetáculo de

“É possível ser inovador sendo político, ou não políti-


Nervos e coração co, e a maioria das grandes transformações teatrais no
O teatro épico, cuja política está tanto no tema quanto na forma, deixou sua Brasil surgiu a partir do teatro político.” (Márcio Boaro)
marca na produção de grupos contemporâneos.
Com a mudança de tema, deu-se a transformação Boal não ficou nem um ano em cartaz, o que na época
Por Roberta Dezan do público, que manteve o espetáculo em cartaz por sugeriu uma espécie de crise de identidade no grupo.
mais de um ano. Formada por “pessoas ligadas às rei-
Com o fim da ditadura militar, a classe teatral brasileira passou um tempo considerável, e necessário, dige- vindicações sociais, a plateia era mais jovem, politizada, Independência cultural
rindo os acontecimentos até retomar completamente o fôlego e voltar a tratar de temas políticos e sociais. informal e descontente com as elites”, lembra o crítico li-
As obras de Bertold Brecht, Antonin Artaud e de outros dramaturgos importantes para as mudanças teatrais terário Roberto Schwarz no prefácio de A Hora do Teatro A situação do teatro brasileiro era fruto de uma estratégia
ocorridas no Brasil, sobretudo nas décadas de 1950 e 1960, continuam a ser estudadas em montagens de Épico no Brasil (Graal, 1996), de Iná Camargo Costa. de pequena empresa incapaz de enfrentar a realidade
grupos como o Coletivo Núcleo 2 e a Cia. do Latão. do teatro comercial e sua legislação, como anotou Iná
Carregada de inocência, Eles Não Usam Black-Tie des- Costa. O ideal era que os profissionais pudessem con-
Hoje uma das preocupações centrais diz respeito à formação de público. Peças de conteúdo político, por lizava ao tratar de um conteúdo político utilizando o trolar os meios de produção, pois só a independência
exemplo, são levadas a instituições de ensino e locais como a Fundação Casa, em São Paulo. Para o ator e drama burguês como forma. “É possível ser inovador cultural seria capaz de permitir o desenvolvimento e a
diretor Sérgio Audi, “o artista deve sair das salas de espetáculo e ir ao encontro do público. A arte é muito sendo político, ou não político, e a maioria das grandes sobrevivência artística de peças políticas.
elitizada no Brasil e o sistema não privilegia a transformação por meio dela e também da cultura”. transformações teatrais no Brasil surgiu do teatro polí-
tico. O drama foi constituído pelas questões e neces- Descontente com os rumos do Arena, Vianinha,
A companhia paulista Ocamorana, por exemplo, realiza peças como A Guerra dos Caloteiros, para crianças sidades burguesas. Se pegarmos a receita de bolo do outro de seus integrantes, mudou-se para o Rio
e adolescentes, na tentativa de despertar-lhes o gosto pelo teatro. “No Brasil não existe um programa or- drama e tentarmos colocar assuntos maiores, a forma de Janeiro e se juntou ao grupo do Teatro
ganizado de formação de público e os jovens não são movidos a gostar de teatro. Precisamos de projetos não dará conta”, afirma Boaro. Vale lembrar que esse gê- Jovem para montar, em 1960, A Mais-Valia
efetivos nesse sentido”, observa Márcio Boaro, diretor e ator do grupo. nero, surgido na França do século XVIII, deu origem ao Vai Acabar, Seu Edgar. A peça – pri-
melodrama, conhecido no Brasil por meio das novelas. meira do Centro Popular

52 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 53


de Cultura (CPC) da UNE – Reação e susto
dava continuidade às experiências Cena de A Guerra dos
de Boal e era consequência da discussão Os que despertaram para a vida cultural logo após Caloteiros, da Cia. Ocamorana |
travada no grupo paulistano. 1964 foram assediados pela palavra de ordem “arte foto: Rogéria Bonfim
como incitação à ação política” – a própria razão de
A obra mostrava uma forma de produção coleti- ser do agit-prop (teatro de agitação e propaganda). Se
va, com ensaios abertos e participação efetiva dos naquela ocasião a frase parecia não fazer sentido, com
atores na concepção das cenas, prática comum no o tempo gerou questionamentos sobre o teatro dito
teatro brasileiro atual, sobretudo o da capital paulista, político feito no Brasil. Tania Pacheco, em registro de Conta Tiradentes foram identifi-
em grupos de elenco estável e locais como a Praça Iná Costa, indagou: “até onde você tem a coragem de cados como tentativas de resposta ao
Roosevelt. “Espaços de escuta, coletividade e diálogo inserir num contexto atitudes que, pessoalmente, não golpe. Escrito por um coletivo de autores,
possibilitam uma forma muito política de criação, in- tem coragem de assumir?”. Audi acredita que “cada o Show Opinião contou com a participação de
dependentemente do tema”, acredita o ator e diretor um desenvolve o papel que lhe cabe. Hoje vivemos Zé Keti, João do Vale e Nara Leão e com a cola-
Enrique Diaz, responsável, entre outras, pela monta- uma guerra ideológica, não armada, portanto o tea- boração de Cartola, Dona Zica e Ferreira Gullar, e
gem In On It, atualmente em cartaz. tro cumpre sua função de gerar questionamentos e marcou o despertar da música para a problemática
reflexões”. social. Dadas as características de época, tratou-se de
Em março de 1964, o CPC preparava a inauguração uma revolução, que resultaria no surgimento da mú-
de seu teatro na sede da UNE, no Rio, com a peça de Com o golpe militar, as experiências vividas colidiram sica popular brasileira nos círculos universitários.
Vianinha, Os Azeredo Mais os Benevides, inspirada em Mãe com um obstáculo assombroso. Parte do teatro rea-
Coragem, de Brecht. O golpe militar surpreendeu o elen- giu, parte se moldou e parte se moldou reagindo. O Quando o teatro político brasileiro se deu conta de
co em meio aos ensaios e o teatro acabou incendiado. Show Opinião e as peças Arena Conta Zumbi e Arena que em 1964 o caminho democrático estava defini-
tivamente bloqueado, a própria ideia de resistência
tomou outros rumos. Longe de resistir, a classe aban-
“A situação do teatro brasileiro era fruto de uma estraté- donou as frágeis conquistas do gênero épico, como
registrou Iná Costa em sua análise sobre o tema.
gia de pequena empresa incapaz de enfrentar a realidade como algo abrangente. A montagem apelava para
Terra em transe procedimentos paródicos, satirizava a ópera, a revista
do teatro comercial e sua legislação.” (Iná Camargo Costa) musical e a comédia de costumes e abusava de sig-
Diferentemente do Arena, o Teatro Oficina, fundado nos que remetiam a uma sexualidade explícita.
em 1958, desenvolveu-se à margem da movimen-
tação política. Até 1966, embora tenha feito uma ou O próximo passo na trilha não seria dado pelo Oficina.
outra experiência com a dramaturgia local, seu re- Em 1968, o grupo foi para o Rio com O Rei da Vela e Zé
pertório de sucesso concentrou-se em obras inter- Celso realizou sua única encenação fora da companhia:
Cena do espetáculo Roda Viva, nacionais que evidenciaram um considerável atraso Roda Viva, de Chico Buarque. Nesse espetáculo, o dire-
1968 | foto: Derly Marques/Acervo estético do grupo naquele momento. tor pôde dar expansão à sua criatividade e exercitar o
Idart/Centro Cultural São Paulo teatro da crueldade, do francês Artaud. O idealismo ar-
Paralelamente, uma das mais contundentes encenações taudiano pretendia transformações nas estruturas pro-
de José Celso Martinez Corrêa com o Teatro Oficina, O fundas, na forma de a sociedade viver suas relações,
Rei da Vela, de 1967, foi um espetáculo-manifesto que não como indivíduos isolados, mas como seres inte-
se tornou emblema do tropicalismo. O texto de Oswald grados ao social. Para ele, “a arte não se encontra como
de Andrade, de 1933, considerado inviável em termos algo a se apreciar, mas como algo a ser vivido”.
de encenação até então, forneceu o que o grupo bus-
cava para refletir sobre a crise do momento histórico e
cultural, tendo como alvo a pequena burguesia. Saiba mais
Conheça os principais dramaturgos, diretores, atores e
A montagem foi dedicada a Glauber Rocha, que lança- espetáculos do teatro épico na Enciclopédia Itaú Cultural
ra pouco antes Terra em Transe. Convergiam, assim, as de Teatro, em itaucultural.org.br/enciclopedias.
propostas estéticas que estruturavam o tropicalismo

54 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 55


reportagem
Não dá para ser, simplesmente, “contra” ou “a favor”
de produtos copiados, diz Rosana, “isso é banalizar a
questão, banalizar o debate público”. Por um lado, ex-
plica ela, as empresas que fabricam produtos de mar-
ca não são heroínas. Cobram muito caro. “A população
não pode defender o interesse privado, tem de lutar
de falsificação ou contrafação) quanto à cópia de um por preços mais justos. Meus 12 anos de pesquisa me
software, uma música ou um filme. Mas essas coi- certificaram que todos preferem o produto original,

Ganchos contemporâneos sas, realmente, podem ser comparadas? Para Rosana


Pinheiro Machado, cientista social e pós-doutora pela
UFRGS, não. “A diferença não está sob o aspecto legal
mas os preços são absurdos. Por outro lado, não dá
para defender a pirataria de bens de marca, porque
muitas vezes (nem sempre) ela envolve um sistema
nem formal, mas moral: piratear remédios pode ma- de trabalho informal, sem regulamentação, cuja base
A pirataria de bens culturais exige ser pensada de forma diferente da de outros
tar, falsificar um relógio não.” explora mulheres e crianças. “O que não é possível é
bens de consumo. relacionar a pirataria com o crime organizado, pois são
Rosana é uma estudiosa do tema. Sua tese de dou- coisas muito diferentes e nunca ninguém provou tal
Por Patricia Cornils | Fotos Renata Ursaia torado, baseada em mais de dez anos de pesquisa, correlação.” Pirataria, explica Rosana, é uma indústria
acompanhou a cadeia global de mercadorias na rota baseada na cópia e no não cumprimento das políticas
O Fantástico divulgou, no dia 15 de agosto de 2010, uma reportagem especial sobre o “submundo da pira- China-Paraguai-Brasil, com foco no mercado informal. de propriedade intelectual. “Apenas isso. A demoniza-
taria”. A equipe do programa, diz a reportagem, percorreu todo o caminho da pirataria, desde as fábricas no Ela passou meses estudando os camelôs de Porto ção não leva a nada.”
Paraguai – onde são montados relógios e produzidas escovas de dentes com marcas falsificadas, vendidos
remédios e contrabandeados videogames – até o comércio popular no Brasil. A reportagem explica, logo na
abertura, que por causa da indústria da pirataria o país perde, todos os anos, 40 bilhões de reais e 2 milhões “A diferença não está sob o aspecto legal nem formal, mas
de postos de trabalho, e que o mercado da pirataria movimenta, no mundo, mais dinheiro do que o tráfico
de drogas: o equivalente a 1 trilhão de reais. Mas não cita a fonte desses números. moral: piratear remédios pode matar, falsificar um relógio
Um mês depois, a Business Software Alliance (BSA) – associação internacional que representa a indústria não.” (Rosana Pinheiro Machado)
de software comercial e seus parceiros de hardware (Adobe, Apple, Autodesk, Cisco Systems, Corel, Dell, HP,
IBM, Intel, Microsoft e Siemens, entre outros) – divulgou um release no qual argumenta que, se a pirataria Alegre e depois morou no Paraguai e também nas zo-
de software no Brasil diminuir dez pontos percentuais nos próximos quatro anos, haverá um aporte extra de nas econômicas especiais (ZEE) do sul da China para
3,9 bilhões de dólares para as empresas do setor, 888 milhões de dólares em impostos arrecadados e 12,3 entender como funciona essa cadeia de produção e
mil novos postos de trabalho no país. A BSA divulga anualmente uma pesquisa sobre a pirataria de software, comércio. Foi uma das especialistas entrevistadas pelo
feita pela IDC. Mas os números que servem de base a essa pesquisa, no Brasil, não são divulgados. Fantástico na elaboração da reportagem (embora sua
participação não tenha ido ao ar). E não gostou do re-
Qual é a relação entre a falsificação de um relógio, a falsificação ou o contrabando de remédios, o contra- sultado daquela matéria. “O problema é apontar apenas
bando de videogames e a pirataria de software? Nas matérias sobre o tema, todas essas práticas são classi- um lado da questão, o da ilegalidade, do perigo à saúde
ficadas como “pirataria”. No Brasil, em termos legais, a pirataria refere-se tanto à cópia de marcas (chamada e do crime”, diz ela, “e assim cair no risco da história úni-
ca”. A história única não é uma mentira, mas reproduz
estereótipos e deixa de lado uma parte riquíssima do
tema. “Morei na Tríplice Fronteira [região fronteiriça
entre Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai] e en-
contrei a figura de trabalhadores mais do que
a de contrabandistas”, conta. “Milhões de
trabalhadores que tentam ganhar seu
pão diariamente.”

56 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 57


Um mundo diferente A confusão ajuda, afirma Oona, Cópias não autorizadas de obras intelectuais fazem
os diversos segmentos de proprie- parte do dia a dia de artistas hoje, na chamada era da
Com a internet, que é uma gigantesca máquina de dade intelectual em suas campanhas de cultura digital. Cópias, aliás, fazem parte da criação inte-
copiar arquivos digitais, operada a partir de cada combate à pirataria. Mas o que deveríamos lectual. Sem copiar parte das velhas histórias dos irmãos
computador ligado a ela, a pirataria de bens culturais nos perguntar é quanto isso contribui para a cria- Grimm, ou outras velhas histórias, explica Lawrence
protegidos por direitos autorais ganhou escala global. ção de políticas públicas para a área ou a prejudica. Lessig, professor da Escola de Direito da Universidade
Como a natureza da informação – e da cultura – é Segundo ela, a formulação e a aplicação de políticas de Harvard, Estados Unidos, e um dos criadores do
circular, é ser compartilhada, a indústria que depen- eficazes dependem da distinção de natureza dos pro- Creative Commons, Walt Disney não poderia ter reali-
de desses direitos autorais está realizando um esforço blemas. Essas políticas buscariam respostas adequa- zado obras como Branca de Neve, Pinóquio, Alice no País
igualmente global para impedir que seus produtos das aos problemas. “Conhecemos diversas iniciativas das Maravilhas, Peter Pan, Robin Wood. “Em todos esses
sejam acessíveis sem gerar receitas. É nesse espaço da inovadoras que não se baseiam necessariamente no casos, Disney, ou sua empresa, usou a criatividade do
rede mundial que a ideia de pirataria de marcas e pro- direito autoral para tornarem possível a sustentabili- mundo à sua volta, misturou-a ao seu extraordinário
dutos se encontra com a de pirataria de software e de dade do autor/criador. Tratar cópias não autorizadas
música, apesar de serem coisas de natureza e conse- de obras intelectuais e software como caso de polícia
quências distintas, explica Oona Castro, diretora execu- significa apenas perpetuar a falta de solução para um “Ao utilizar o argumento dos riscos que a falsificação de me-
tiva do Instituto Overmundo. De acordo com Oona, os
benefícios dessa confusão, para a indústria que com-
problema que é, basicamente, a falta de equilíbrio
entre a sustentabilidade dos criadores, o retorno de dicamentos pode representar à saúde pública, a indústria do
bate a pirataria, são dois: primeiro, popularizar a pauta,
o debate. O segundo é o que ela chama de “troca de
investimentos no mercado e o acesso às obras pelos
cidadãos”, explica. Essas obras, hoje, estão quase to-
copyright beneficia-se de uma justificativa que nada tem a
argumentos”. “Ao utilizar, por exemplo, o argumento
dos riscos que a falsificação de medicamentos pode
das digitalizadas, e acessíveis por meio da internet. ver com as consequências da pirataria em si.” (Oona Castro)
representar à saúde pública, a indústria do copyright Há criadores para os quais o problema da pirataria
beneficia-se de uma justificativa que nada tem a ver não existe ou, pelo menos, existe de maneira diferen- talento e imprimiu esse mix na alma da cultura.” Com à leitura. Isso é um direito que temos de assegurar; a
com as consequências da pirataria em si.” te do que os consumidores e a indústria pensam. “Os acesso a computadores e à internet, qualquer pessoa universidade, o Estado brasileiro”, observou a diretora da
A moda vai ao teatro
piratas de música são os fãs”, constata Helder Aragão, pode recriar obras – não é preciso uma fábrica, não é escola, Mavi Pacheco, em entrevista à imprensa. Uma
o DJ Dolores. “Somos nós que baixamos um track [fai- preciso fazer contrabando de mercadorias para pro- das mudanças propostas pelo Ministério da Cultura, na
Figurinos
xa musical] de disco,
ou um peçase são uma prova
há ferramentas deisso
para queà duzir e compartilhar músicas e filmes. Ao combater a revisão da Lei de Direitos Autorais, visa permitir a cópia
a moda certamente é arte.
disposição de qualquer um.” Para os produtores, diz pirataria sem pensar nessa possibilidade, é isso que se de livros para finalidades didáticas – de resto, uma práti-
ele, essa mudança tecnológica transformou também combate também. É por isso que a confusão de con- ca comum nas faculdades, apesar de condenada pelas
o modelo de produção musical. “Se antes havia o fil- ceitos impede as pessoas de enxergar a revolução digi- associações de defesa dos direitos autorais.
tro da gravadora, responsável por bancar o disco e tal e pensar em um mundo diferente, a partir dela.
promover o trabalho, hoje em dia produz-se em casa. Essa proposta do MinC esteve em consulta pública
O artista pode ser seu próprio divulgador usando a Mais que isso: a atual Lei de Direitos Autorais brasileira até o fim de agosto, e o ministério deverá apresen-
web. E funciona! Como alguém que já trabalhou com proíbe cópias de obras. Com base nisso, e em uma de- tar um projeto de lei ao Congresso antes do final do
gravadora, sinto que tenho de me virar, ser músico e núncia anônima de violação de direitos autorais, a Polícia ano. Além de permitir a cópia para fins educativos, a
label ao mesmo tempo.” Sobre a pirataria e as campa- Civil invadiu o campus da UFRJ, na Praia Vermelha, Rio alteração vai possibilitar a reprodução de obras para
nhas que tentam mostrá-la como algo que faz mal à de Janeiro, no dia 13 de setembro, para fechar o xerox preservação. Hoje, bibliotecas, museus e cinematecas
saúde, o músico opina: “Falta de informação é que faz da Escola de Serviço Social. Apreenderam todo o ma- não podem copiá-las sem a autorização dos detento-
mal à saúde. Cresci numa era pré-web, numa cidade terial deixado pelos professores e levaram Henrique, res dos direitos. A revisão também vai permitir o uso
pequena onde ter acesso a livros, filmes e música era o dono da loja, à Delegacia de Repressão de obras em sala de aula e a cópia de arquivos digitais
um trabalho árduo. A facilidade de conseguir informa- aos Crimes contra a Propriedade Imaterial (músicas, por exemplo) do computador para o toca-
ção com o advento da internet não tem preço, é um (DRCPIM). “Temos de pensar um caminho dor MP3. E ainda a modificação de obras para a cria-
sonho, uma coisa que faz bem para a humanidade”. que não nos exponha a essa brutali- ção de outras (como no remix de músicas). Tudo isso
dade e garanta o acesso hoje é proibido, tudo isso, hoje, é pirataria.

58 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 59


Não há dúvidas
de que a internet tenha
reportagem
feito nascer uma modalidade de No contexto democrático, o Twitter também mostrou
ação política que beira uma nova gera- suas garras quando o candidato à presidência norte-
ção de paradigmas. O Twitter, por exemplo, americana Barack Obama usou a ferramenta para
mostrou há pouco mais de um ano sua vio- divulgar sua campanha e mobilizar novos eleitores.
lenta capacidade de mobilização: internautas in- Acredita-se que o segredo do sucesso de Obama, sobre-
dignados com a reeleição do presidente iraniano tudo entre os jovens, esteja justamente ali, no mouse.
Mahmoud Ahmadinejad organizaram protestos pela
rede, levando centenas de opositores às ruas de Teerã, No Brasil, em tempos de eleições, a maioria dos can-
além de divulgarem pelo mundo inteiro as imagens didatos também se beneficia da internet – e não
da repressão policial no país. “Da mesma maneira que apenas do Twitter – para discutir propostas e até an-
no Irã, há indícios de que as eleições no Afeganistão gariar fundos. Na esteira de Obama, a ex-candidata do
tenham sido influenciadas pelo Twitter. É a voz das Partido Verde à presidência, Marina Silva, é uma das
pessoas comuns ganhando dimensão pública”, afir- que mais apostaram na força da rede. Desde feverei-
ma o site Web Ecology Project, centro de estudos ro, colocou no ar seu blog, Minha Marina, que reúne
sobre a internet da Universidade de Harvard, Estados biografia, artigos e fotos. Uma aba chamada “Fatos e
Unidos, que comanda uma pesquisa sobre o assunto. Versões” responde a boatos e esclarece sua opinião

“[A campanha Ficha Limpa] é a prova de que os indiví-


Rebelião à beira de um mouse duos, por meio da tecnologia, têm hoje um poder maior
Política pela internet é algo vivo. Qualquer um pode reclamar, se mobilizar, do que um político profissional, ou seja, o centro do poder
opinar, votar e até abalar a estrutura de um governo por meio da rede. Seja foi deslocado.” (Massimo Di Felice)
bem-vindo a uma nova era da democracia.
Por Mariana Sgarioni | Ilustração Zé Otavio

A jornalista e blogueira Yoani Sánchez é uma mulher marcada. Em Cuba, país onde nasceu, cresceu e vive até
hoje, é vigiada pela polícia dia e noite. Mal consegue sair de casa. Não pode viajar, passear, dar entrevistas.
Seus textos foram proibidos na ilha e ela chegou a ser sequestrada e espancada por agentes do governo.
Nada disso, no entanto, a impede de se expressar [leia artigo inédito da autora para a seção Mirada, na página
64]. Por meio de seu blog, chamado Generación Y [desdecuba.com/generaciony], ela conta como é viver em
um lugar em que não há o direito à liberdade individual. Yoani revela detalhes do cotidiano em seu país, des-
mente a propaganda do governo, ironiza seus dirigentes. Em suma: para a ditadura castrista, ela é intolerável.
Para o resto do mundo, é uma importante porta-voz que escancara os meandros de um regime autoritário.

O que os governantes cubanos, que tomaram o poder em 1959, não previram na época é que anos depois
teriam de engolir o poder incontrolável de um inimigo oculto: a internet. Blogs, sites, e-mails, redes sociais:
um caminho de revolução muito mais poderoso do que as armas, ainda que seus ícones, segundo dizem os
estudiosos, não tragam a força da mudança de valores como trazia uma foto de Che Guevara, por exemplo.
Por mais que se tente, a verdade é que nos dias de hoje ninguém consegue conter um internauta ativo. Até
a blogueira Yoani consegue burlar os arapongas cubanos e postar seus textos, escondida em lan-houses,
apenas permitidas a turistas estrangeiros.

60 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 61


sobre assuntos polêmicos. Em julho, Marina alcançou
a marca de 100.746 seguidores no Twitter, contando
com uma mobilização que surgiu entre seus simpa-
tizantes no Orkut e se espalhou pelo Facebook, cha-
mada “twitaço”. “Na minha época, a gente chamava
de panelaço, agora é panelaço virtual. É bom porque A Web 2.0, por exemplo,
não faz barulho”, brincou a candidata em sua página tem apenas quatro anos e hoje é
no Twitter. José Serra, do PSDB, também tirou o má- uma realidade de conexão e comuni-
ximo proveito da tecnologia em sua campanha – ele, cação mundial. “As comunidades da Web
aliás, foi o primeiro a entrar no Twitter, em junho de 2.0 são para nós hoje o que as comunidades
2009. Em pouco mais de um ano, já contava com cer- tribais ou de aldeia eram para nossos ancestrais.
ca de 300 mil seguidores. Elas representam um lugar no qual podemos fazer
Felice lembra que essa revolução já foi discutida por novas conexões, compartilhar detalhes de nossa
Processo em andamento pensadores de décadas passadas. O cientista políti- vida e discutir tópicos que nos interessam”, afirma a
co italiano Norberto Bobbio, no texto “O futuro da especialista em indústria high-tech Ayelet Noff, em
A força política da comunicação digital inaugura democracia”, de 1992, diz que a democracia direta é um estudo da Universidade de Tel Aviv sobre o as-
um conceito do fluxo comunicativo em que todas algo totalmente utópico e só seria possível quando sunto. Esse é o fenômeno do agrupamento das tribos
as pessoas podem receber e distribuir mensagens. É houvesse uma máquina que permitisse ao cidadão para o qual Maffesoli tanto chama a atenção em seus
como se não houvesse mais emissor nem receptor. apertar um botão e assim distribuir sua ideia ou voto trabalhos – nas comunidades virtuais, os participan-
“Isso significa uma grande revolução no conceito em tempo real à população inteira. Talvez, em 1992, tes têm a sensação de pertencimento, de fazer parte
de democracia. Trata-se de uma superação desse isso realmente fosse impossível. Hoje em dia essa ati- de determinado grupo.
conceito, que agora se torna algo colaborativo, tude é real e acontece o tempo todo, o dia inteiro.
em que todos os indivíduos podem participar
do processo decisório, sem existir um centro de Um bom exemplo recente é a campanha Ficha Limpa, Blogs, sites, e-mails, redes sociais: um caminho de revolução
poder. É uma nova forma de cidadania, a de- que impôs, a partir de um processo dirigido pela rede,
mocracia direta”, afirma Massimo Di Felice, a impugnação da candidatura de políticos com pro- muito mais poderoso do que as armas, ainda que seus ícones,
professor da ECA/USP e coordenador blemas na Justiça. “Trata-se de um marco histórico na
do Centro de Pesquisa Atopos, da América Latina. A campanha foi disseminada pelas re- segundo dizem os estudiosos, não tragam a força da mu-
mesma universidade. des sociais e foram elas que obrigaram os políticos a
aprovar a lei em Brasília. É a prova de que os indivíduos, dança de valores como trazia uma foto de Che Guevara.
por meio da tecnologia, têm hoje um poder maior do
que um político profissional, ou seja, o centro do poder
foi deslocado”, lembra Felice. “É como se cada indivíduo No campo da cultura, as comunidades virtuais vão troca de ideias. Foi esta convicção na democratização
tivesse seu próprio meio de comunicação”, teorizou o além desse agrupamento de pessoas com interes- da informação e na profissionalização que nos juntou
sociólogo francês Michel Maffesoli, durante um simpó- ses em comum. Elas discutem determinado seg- neste projeto”, afirma o texto de apresentação do site.
sio realizado na USP, em 2007. mento artístico, informam seus desdobramentos,
debatem as políticas públicas e chegam a promover E é justamente para esse novo conceito de demo-
Entretanto, é difícil falar em democracia se pensarmos certos artistas. É o caso do site Canal Contemporâneo cracia que apontam os especialistas. Não se trata de
que o acesso à tecnologia e a inclusão digital não (canalcontemporaneo.art.br). Em sua descrição, a pá- algo que se aplica apenas a uma forma de governo,
são uma realidade para boa parte da população. Ou gina é definida acertadamente como “uma comuni- e sim a todas as esferas da vida. “Todos os processos
seja: ainda não é um meio de expressão para todos. dade digital focada na arte contemporânea brasileira decisionais serão colaborativos, desde políticos, artís-
De acordo com pesquisadores, trata-se de um pro- para promover sociabilidade, informação, participa- ticos, empresariais. O centro das decisões passou a ser
cesso em andamento. Se formos colocar a internet ção política e senso de pertencimento, com o objeti- a opinião pública”, diz Massimo Di Felice. Seria o cami-
no mapa histórico da evolução da humanidade, em vo de provocar transformações no seu contexto”. Já no nho mais curto para uma sociedade aberta, do povo,
comparação com a disseminação da escrita, a rede Idança (idanca.net), site ligado à dança contemporâ- como tanto queriam os hippies da década de 1970 ou
mundial avança em todas as camadas sociais numa nea, a conexão com a política está mais do que aber- os anarquistas do início do século passado? Ainda não
velocidade assustadora. “Não há elementos parecidos ta. “É também uma atitude política de juntar pessoas, se sabe. Quem quiser fazer parte da nova contracultu-
na história”, pontua Felice. habilidades e conhecimentos para tornar possível a ra poderá escrever o final desta história.

Participe com suas ideias 63


da sociedade. Campeiam à solta
mirada
o nepotismo, a condescendência
popular com o mercado negro, a falta de
confiança nas instituições e nos processos de
suposta solução que elas promovem. Com uma
população carcerária beirando os 80 mil detentos,
Cuba se transformou num país onde trabalhar che-
ga a ser visto como um absurdo e, na melhor das hi-
póteses, como uma formalidade.

O pior de tudo, porém, não é a variedade nem a inten-


sidade desses problemas, e sim a falta de perspectiva
de encontrar-lhes uma solução. A sociedade civil está
desarticulada e os meios de comunicação só projetam
um país que não tem relação com a realidade. Não há
um debate estruturado sobre as mazelas que assolam o
país. A oposição política, dispersa, perseguida, sataniza-
da e, muitas vezes, instrumentalizada ou infiltrada pouco
pode fazer para divulgar seus programas e propostas.

O pior de tudo não é a variedade nem a intensidade dos


O sonho de ninguém problemas, e sim a falta de perspectiva de encontrar-lhes
uma solução. A sociedade civil está desarticulada e os meios
Após 52 anos da revolução, Cuba segue em lenta derrocada do sistema.
de comunicação só projetam um país que não tem relação
Por Yoani Sánchez | Ilustração Lourival Cuquinha | Tradução Josely Vianna Baptista com a realidade.
A revolução, o sistema, o processo, isso – qualquer que seja o nome que se use – esgotou há muito tempo
seu combustível, sua capacidade de renovação. Não lhe resta mais nada de velho para destruir, mas ainda As mudanças que a sociedade cubana reivindica são
há muita coisa a ser feita. Cinquenta e dois anos depois do triunfo revolucionário, o país tem mais terras inadiáveis, mas podem ser consideradas, se analisadas
improdutivas do que nunca e o déficit habitacional mais alto da história. A moeda com que se paga o salá- do ponto de vista estritamente revolucionário, um re-
rio dos trabalhadores não tem valor real e as duas áreas de maior prestígio, a educação e a saúde, passam trocesso. Em decorrência disso, há uma enorme resis-
por um momento de verdadeira crise. Observa-se um índice demográfico em retrocesso e uma emigração tência para implementá-las de vez, principalmente
crescente. O marxismo-leninismo, que um dia foi a ideologia oficial, hoje é uma curiosidade arqueológica entre aqueles que dedicaram seus melhores anos à
só mencionada em círculos acadêmicos, e o Partido Comunista, o único permitido pela lei, não convoca construção de um ideal que jamais foi alcançado. No
nenhum congresso há mais de uma década. campo dos direitos civis, as pessoas almejam que o
governo acabe com os trâmites humilhantes da “per-
Todos se preocupam com a crise de valores, principalmente com a diminuição da cidadania responsável, missão de saída”, que restringe as viagens ao exterior.
com a aceitação do ilícito como algo normal, até mesmo como forma de sobrevivência. Saltam à vista a de- E, principalmente, com o conceito de “saída definiti-
preciação das regras de decência mais elementares, a falta de respeito pelo que é do outro, principalmente va”, que transforma em estrangeiros os emigrantes,
se for um bem comum. Nós, cubanos, convivemos com o vandalismo, o enraizamento do racismo, o aumen- impedindo-os de se radicar novamente em seu pró-
to do regionalismo, o culto crescente a tudo o que é estrangeiro, o desprezo desmedido pelo que é nacional. prio país e confiscando suas propriedades na saída. Já
Somados a tudo isso, a falta de escrúpulos na gestão dos recursos públicos, o suborno como método prefe- houve um pequeno avanço quando se permitiu que
rencial para solucionar um problema ou satisfazer um desejo, a metástase da corrupção em todas as esferas cubanos se hospedassem em hotéis e contratassem
telefonia celular. Em meados de 2008, suspendeu-se

64 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 65


o veto à venda de alguns artigos eletrodomésticos – No começo deste ano, a greve de fome do preso No longo percurso de transformações, foi dado um primeiro
como fornos de micro-ondas, leitores de DVD e com- político Orlando Zapata Tamayo comoveu a opinião
putadores, até então proibidos –, mas ainda há muito pública dentro e fora de Cuba. Um dia depois de seu passo com a libertação dos presos políticos encarcerados
a ser conquistado. Entre as reivindicações nesse senti-
do, está a permissão para que o cidadão cubano pos-
falecimento, ocorrido em 23 de fevereiro, o psicólogo
e jornalista independente Guillermo Fariñas declarou- durante a Primavera Negra de 2003.
sa comprar livremente um carro ou contratar serviços se em greve de fome e sede até a morte ou até que
de internet e TV a cabo. o governo beneficiasse, ao menos com “licença ex- seu conjunto, os acontecimentos das últimas sema- são motivo de alegria, porque os que não deviam ter
trapenal”, os presos que estavam com a saúde mais nas poderiam ser considerados um sinal positivo para ficado nem um único dia atrás das grades hoje estão
Essas “aspirações de classe média” são pouca coisa debilitada. O próprio presidente Raúl Castro disse pu- aqueles que estão esperando mudanças profundas em liberdade. No entanto, não há, nem haverá, uma
se comparadas às mais essenciais: a necessidade de blicamente que o deixaria morrer, mas jamais cederia na sociedade cubana, mas somente isto: um sinal. De atmosfera de agradecimento ou de complacência até
expressar livremente suas opiniões e o direito de se à chantagem. Aconteceria por aqueles dias o sétimo pouco adianta o governo libertar um grupo de presos que a discordância não seja descriminalizada; não an-
associar a qualquer tendência ou preferência sem aniversário da Primavera Negra e as Damas de Branco políticos se não puser abaixo todo o arcabouço legal tes que Raúl Castro pegue o microfone e garanta que
temer represálias. desafiaram o regime decretando sete dias seguidos que lhe permite mandar novamente para a prisão um ninguém mais nesta ilha será preso por suas opiniões.
de passeatas por todas as ruas da cidade. Levavam número igual de pessoas pelos mesmos motivos. Mas o tempo está se esgotando.
Descriminalizar a discordância gladíolos nas mãos e foram agredidas e insultadas
por partidários do sistema, que, fingindo representar Ainda hoje segue em vigor a Lei 88, conhecida como A Revolução Cubana, tal como é atualmente, não se
No longo percurso de transformações que temos pela o povo indignado, eram conduzidos de ônibus até os Lei da Mordaça, que prescreve longas penas para quem parece com o sonho de ninguém, nem dos que a
frente, ao menos foi dado um primeiro passo com a li- locais das manifestações. As agressões provocaram a colaborar em revistas e jornais estrangeiros ou conceder construíram e muito menos de nós, que a herdamos.
bertação, a partir de julho deste ano, dos presos políti- reação da alta hierarquia da igreja católica, que, num entrevistas a jornalistas desses meios. Sem caminhos le- Ao menos já sabemos que não há tempo nem vonta-
cos encarcerados durante a Primavera Negra de 2003. feito sem precedentes, conseguiu uma moratória gais disponíveis para a criação de associações, a funda- de de começar de novo pelo princípio.
Foi essa a principal reivindicação apresentada ao go- para os ataques e um acordo para sentar-se e conver- ção de sindicatos, partidos políticos ou organizações
verno da ilha por todos aqueles que, por um motivo sar com as autoridades. estudantis constitui um crime de “associação ilícita”, e Yoani Sánchez, jornalista cubana, tornou-se internacional-
ou outro, tentam mudar o atual estado das coisas. qualquer meio pelo qual um cidadão manifeste sua mente conhecida por denunciar, em seu blog, Generación Y
Nas mais diversas agendas de política e cidadania Em decorrência desse diálogo e com a intervenção divergência com o governo, mesmo que seja um (desdecuba.com/generaciony), a situação de exceção vivida
dos partidos de oposição e dos grupos da so- do chanceler espanhol Miguel Ángel Moratinos, inocente cartaz, pode ser interpretado como em seu país devido à ditadura castrista. Recebeu vários prê-
ciedade civil, a libertação desses prisionei- levantou-se o compromisso de libertar todos esses o cometimento de um crime de propa- mios internacionais por seu trabalho e foi considerada uma das
ros era obrigatória para o avanço da prisioneiros num prazo não superior a quatro meses e ganda inimiga. Do ponto de vista dos cem pessoas mais importantes do mundo pela revista ameri-
democratização do país. de facilitar sua saída do país para a Espanha. Vistos em opositores, as libertações cana Time, em 2008.

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