Você está na página 1de 7

Confesso Este Meu

Capricho
por Pôncio Arrupe
Capítulo 10
Beleza Interior
Capítulo 10
Beleza Interior

Caro leitor, os meus caminhos cruzaram-se e cruzam-se,


inúmeras vezes, com adeptos convictos e incondicionais da
ideia de “beleza interior”. Aliás, posso dizer, muitos desses
fãs caracterizam-se por assumirem, sem qualquer receio e
dúvida, a superioridade dessa - seja lá o que for - beleza
interior em comparação com uma outra beleza, para eles
menos valiosa: a exterior. Esta, inclusive, chega a ser por
eles considerada como dispensável ou, até, desprezível. E
quase todos, ou mesmo todos, concordam que a exterior não
resiste à passagem do tempo e que isso é uma prova
irrefutável da superioridade da outra, da beleza interior…
Seja lá o que isso for… Como se a passagem do tempo não
pudesse, também, corroer por dentro.
E, caro leitor, tudo isto, em tese, é para eles, quase todos,
também válido nas relações amorosas. Afirmam
despudoradamente, apesar das evidências estatísticas
contrárias, que valorizam no parceiro amoroso, ou num
potencial parceiro, a dita interior – seja lá o que isso for! - em
detrimento da exterior.
Estas pessoas utilizam com frequência pares de
expressões supostamente opostas como sejam embrulho e
conteúdo, aparência e realidade, primeiras impressões e
conhecimento em profundidade, e outros, para afirmar, sem
hesitação, no essencial a mesma tese.
Não pretendo aqui alongar-me na argumentação de que
nos está vedado apreciar o que quer que seja, incluindo
pessoas, apenas focando-nos em parte do objeto em causa;
Que todas as nossas impressões se formam partindo do todo
que chega aos nossos sentidos; Que não conseguimos
autonomizá-las, a essas impressões, de uma parte, focando-
nos apenas numa outra; Que isto, essa suposta
autonomização, acontece apenas aparentemente e a

2
Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
posteriori, através de um processo de racionalização que
resulta da impressão prévia global e, em grande parte,
formada de modo inconsciente. Em suma, e retornando ao
tema da beleza, não existe a interior e a exterior; Ou, se se
preferir, embora incorrendo numa imprecisão simplificadora,
a interior alimenta-se da exterior, e vice-versa.
Mas, diferentemente, caro leitor, o que pretendo é dar nota
da minha experiência relacional exasperante com pessoas,
mulheres e homens, defensoras acérrimas da tese da
separação nos seres humanos dos supostos dois géneros de
beleza – a interior e a exterior. É que estabelecem de tal
forma essa distinção rígida que isso chega a implicar que
aqueles são dois tipos de beleza mutuamente exclusivos.
Nunca ouvi nem li ninguém afirmá-lo de modo claro, é certo,
mas, creio, muitas pessoas não o fazem mais por medo do
ridículo do que por falta de convicção.
E acrescento ainda, não o fazem sobretudo por medo do
ridículo resultante de estarem a advogar em causa obvia e
escandalosamente própria. Sim, a esmagadora maioria das
pessoas a que me refiro são portadoras de uma considerável
fealdade “exterior”. (E perdoe-me, de novo, o recurso a esta
racionalização simplificadora.) A versão mais frequente que
encontro desta postura é a da constante tentativa de
exibição, a propósito e a despropósito, de uma inteligência
superior. Este suposto atributo é, para muitas dessas
pessoas, a sua versão de eleição mais frequente de beleza
interior. Beleza interior, que, portanto, porque seria por
demais evidente, explicaria e falta da sua contraparte exterior
e que, acresce e afinal, não seria, essa falta, de todo em
todo, importante, uma vez que só a dita interior valeria a
pena. Como que a dizer com todos os poros: sendo eu
obviamente feio – não posso negá-lo, está à vista de todos -,
só posso ser inteligentíssimo, como está bem de ver pelo que
digo e faço. Em síntese: Antes ser feio e inteligente do que
bonito e burro; E não haveria mais combinações possíveis.

3
Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
Simplificando, há por aí muitos feios que se autonomeiam
inteligentes, e muitos vêem-se como tal - bendita a
plasticidade da mente humana! -, só pelo simples facto de se
acharem feios.
Ocorrem-me, a este propósito, três reflexões, embora
nunca as tenha partilhado de viva voz com ninguém, muito
menos com algum feio, ou alguma feia, defensores acérrimos
da superioridade da beleza interior e da impossibilidade da
sua coexistência com a beleza exterior. Não o fiz por
escrúpulos? Por receio de magoar? Para evitar
enfrentamento? Não sei ao certo.
A primeira reflexão tem a ver com a circunstância de a tese
que agora rebato de imediato se me apresentar como um
evidente absurdo do ponto de vista da preservação e
evolução da espécie humana: Como é que as pessoas mais
bonitas, em geral mais atraentes sexualmente, logo mais
propensas à reprodução e disseminação de descendência,
não hão de ser as mais inteligentes? Ou seja, o que me
parece mais lógico é que haja uma correlação claramente
positiva, e perdoe-me de novo, caro leitor, esta imprecisão
simplificadora, entre os dois géneros de beleza, e também
entre a falta de ambos. Esta minha chamada de atenção para
o referido absurdo revela-se tão mais pertinente quanto
também mais atentarmos no mundo animal e em como
muitas vezes a beleza do macho, por exemplo, é
determinante para aumentar as suas probabilidades de
fecundar fêmeas e assegurar descendência. E, quanto a este
assunto - não leve a mal, caro leitor, se for o caso de se
considerar feio -, parece-me que estamos conversados…
A outra reflexão conduz-nos à evocação dos filmes da
Disney e uma crítica que soe ser-lhes feita. Se se recordar,
caro leitor, muita gente bem-pensante – inteligente… -
aponta a esses filmes para crianças a grave pecha de,
sistematicamente, retratarem os maus como feios, e os bons
como bonitos, imprimindo assim desde muito cedo nos

4
Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
petizes preconceitos enviesadores injustos, supostamente
sem fundamento, negativos a propósito da gente feia e
positivos quanto aos belos. Pois, lamento mais uma vez, caro
leitor, se for o caso de se considerar feio, que, de acordo com
a argumentação desenvolvida no parágrafo anterior, existe
sólido fundamento para a correlação, que os filmes da Disney
repetidamente evidenciam e ilustram, entre fealdade e
maldade e entre beleza e bondade. Ou seja, este tipo de
filmes são, afinal, educativos, no sentido em que alertam e
preparam as crianças para as realidades da vida. O Monstro,
de “A Bela e o Monstro”, é uma exceção ficcional, mas
apenas parcialmente. É que foi necessária a determinante
influência de uma beldade bondosa para que ele, o monstro,
pudesse revelar, também, alguma bondade. E, mesmo
assim, atributo esse extremamente instável nele, como fica
maravilhosamente ilustrado ao longo das vicissitudes do
enredo.
Aliás, como poderiam os feios, desprovidos de inteligência
como são, desenrascar-se e aspirar a algum feito digno de
nota se não fosse, em compensação, por via do exercício da
perversidade, de ações malévolas, muitas vezes
cobardemente dissimuladas? Ou seja, e esta, caro leitor, é a
minha terceira e última reflexão, definitivamente, terá que
existir uma forte correlação positiva entre fealdade, estupidez
e maldade, e também entre beleza, inteligência e nobreza de
carácter.
E conclusões práticas?, poderão pedir-se… É simples, e
perdoe-me a crueza, caro leitor: Cuidado com os feios! Por
todos os motivos e mais alguns. Por alguma razão os bebés,
que vêm já munidos de ferramentas de defesa e
sobrevivência, inscritas no código genético, moldadas e
aprimoradas num processo de adaptação da espécie
humana via Seleção Natural de milhões de anos, se sentem
mais atraídos por pessoas bonitas do que pelas feias, e mais
facilmente se entregam às primeiras, desatando

5
Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
frequentemente em prantos incontroláveis de pânico e
comportamentos de rejeição ostensivos perante as últimas…
Antes de terminar, e a bem da transparência, valor que
muito preso, quero só revelar que eu, o autor deste pequeno
texto, sou bonito. Bebés e crianças pequenas, simplesmente,
adoram-me!... E não só ao primeiro contacto. Posso
apresentar inúmeras testemunhas.
E sempre assim foi comigo mas, no entanto, não posso
deixar de ignorar a evidência factual de que bonitos por
vezes se tornam feios e de que, embora, creio, em bem
menor número, feios se tornam por vezes bonitos. O que
acontecerá nestas circunstâncias à inteligência e à bondade
e à estupidez e perversidade? Não sei, é assunto a que
ainda não me dediquei.
Retire, caro leitor, as ilações que bem entender mas, no
caso de se considerar feio, recomendo que se arme das
devidas defesas mentais contra os enviesamentos a que me
refiro acima. Também não vale, claro, e a propósito e,
eventualmente, à boleia do parágrafo anterior, fazer uso
abusivo e de pura conveniência da nossa muito humana e,
até, compreensível plasticidade mental para, por artes
mágicas, passar a considerar-se belo, ou bela, quando até
agora não era o caso. Mesmo que seja apenas por algum
ângulo recôndito; Um ângulo que só alguns – inteligentes,
claro! – seriam capazes de descobrir e de valorizar… E, por
favor, não se ponha a ensombrar e a assombrar bebés e
crianças! Eles não se lhe fizeram mal nenhum e, muito
menos, têm culpa das incontornáveis e temporalmente
milionárias determinações genéticas. Conforme-se. Evite ao
menos a prática do mal, já que a estupidez,
irremediavelmente, tanto se manifesta no concreto, como em
abstrato.
Antes de terminar, porque me parece importante afirmá-lo
e para que conste, não há crianças feias. Só gente malévola,
horrenda, poderá pensar o contrário.

6
Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
Os bonitos ao poder!
E por aqui me fico. Perdoe-me, caro leitor, algum eventual
desconforto, agravo ou embaraço.

7
Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe

Você também pode gostar