Você está na página 1de 64

capa

Sobre o livro

Lorena Martins é uma colecionadora de guarda-chuvas, ela veste o tecido umbroso para recolher as
sombras. Seu livro é um traçado de pequenas fugas masculinas e hesitações femininas, meditando
sobre a difícil pontualidade que é o amor. Mostra a diferença entre sentir muito e dizer “sinto
muito”.

Passei o dia em mim


e te encontrei.

Livro sentimental, e de exageradas águas: dilúvio, lábios, tempestades, torrentes que batem nas
janelas como se fossem portas a lembrar de quem desejamos. Os versos sinalizam: ela se excita
com pouco. A poesia sempre foi o mínimo.
Fabrício Carpinejar
Sobre o autor

LORENA MARTINS nasceu em Dom Pedrito-RS, em 1982. Graduou-se em Letras pela UFRGS, em
Porto Alegre-RS, cidade onde se criou. Morou em Paris, em Londres e em Brasília. Atualmente
vive em São Paulo.
Folha de rosto

lorena martins
água para viagem
Prefácio
Sinestesias by Lorena
Chacal

Nunca acreditei na poesia classificada por classe social, gênero, raça, cor,
religião. Acredito nos bons e maus poetas. Mas percebo que uma coisa
não exclui a outra. Ninguém fala de lugar nenhum. É a nossa segunda
pele, nossas digitais. A poesia de Lorena deixa claro uma alma feminina,
um contínuo viajar num mar sensorial de perfumes, pequenos gestos,
sabores, detalhes, interiores. A mulher sente mais. A mulher sente muito.
E sente com o corpo. E sente pelos poros. E isso é o tempo todo expresso
por Lorena.
se eu pudesse provar
o meu amor
lambê-lo-ia.
***
debruçados sobre meu ombro
teus olhos des
afiam sua boca
e me molham.

O tato, o sabor, sensações difíceis de compartilhar. Mas Lorena aqui e ali


abre a janela e as imagens vão entrando. E seu humor vai florindo:
planetárias
as pupilas delatam
o céu
***
sigo atropelável
pedindo suco de laranja
às lágrimas
pro vendedor de guarda-chuvas.
***
o domingo
que entre mim
preguiça
acorda
essa gaveta
de insônia.

Densa como uma bailadora andaluza, Lorena aperta o parafuso de verso à


última volta. E elipses, conexões súbitas de imagens se dão:
não me venha com as tuas boletas
a minha fantasia
é te encontrar no hospital
brigar com os enfermeiros
deitar no primeiro bar
descobrir a cidade embriagada
matar-me aos poucos
abrindo as garrafas com o vestido
negando moedas
estúpida
sozinha
com uma bic e um guardanapo
e um garçom
que me fere
me inveja
chorar.

Lorena sabe o momento certo de se lançar. Esse livro foi maturado com
cuidado, teve talvez outras versões e Lorena contendo o impulso e
lapidando o verso. “água para viagem“ sai na hora certa. Água que
começa a correr e vai. Para encanto de nosotros.
Dedicatória

Para Marçal Aquino


Epígrafe

Hoje roubei todas as rosas dos jardins


e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.
EUGÉNIO DE ANDRADE
CALADA, OUTONO EM TI

calada,
outono
em ti
a espera
a espera

a não mais poder


a criminosa delata-se.
passa bilhetes por baixo da porta
infere-se às coxas
e às meias-palavras.
sem mais beber
ela vislumbra o copo:
o vidro é o espelho dos lábios.
sem mais ver
arrasta os dedos à mesa
depura os olhos derramados
entrega-se.
do outro lado do copo,
difuso e
amarelado,
o sorriso dilata-se
detém o ar.
[nula parte]

nula parte
é meu ar apoiando-se na janela:
os olhos calados de sol
e o rosto queimando
à boca entreaberta.
(uma folha demora a cair sobre mim)
entre os versos à porta
talhados à ponta de chave
desabo singela
e música.
é meu o olhar que se abre na fresta do banho
é tua a ausência que escorre
inunda os pés
deságua silêncios.
(queria mesmo a cama das tuas pernas)
não há mais chão para o cansaço
sou pluma e cinzas flutuando pela casa
a encarar a porta
a cegar à janela
a chorar nua.
na soleira do quarto
abandono a cabeça entre as mãos
até sentir o cheiro da minha pele
vazio.
[veja só]

veja só
é como se eu tirasse os sapatos
estendesse minha perna sobre a mesa
e
antes de rasgar o vestido
dedilhasse teu rosto.
desfiz o passo
dei meia volta
caí no teu colo
balancei humores
ritmei os colares
e me abandonei.
é como se eu sentisse
ao soar o corpo
tu me olhares a seguir:
eu não te encaro.
diante do espelho
carrego a água
mais palpável do que eu.
veleidades
veleidades

I
mastiga minha ansiedade
a impossibilidade
de conhecer
a tua noite.

II
escombros à mesa
a taça vazia
teu pé fugindo do meu.

III
eu desdenho o poema
eu sonho contigo
nu silêncio.

IV
das dores,
a chuva
para de mim extrair a poesia.
[eu vivo]
para Chacal

eu vivo
como quem prende o cabelo a grampos
e deixa o dia escorrer assim
solvente
na esquina.
eu desfaço
enquanto ele é cama
a cantar sonoro.
(eu não acredito)
da nudez vaga que paira, só resta isso
fumar às auréolas
imaginar que ele tira a roupa
e se encaixa ali
no espaço despassado.
a vislumbrar o tempo
a acelerar o desprezo
a acalmar a impaciência
eu,
que nem ao gesto amanheço,
tomo tudo com o mesmo gosto
do mergulho perverso
inverso
que de pouco
de tão pouco
me excita.
(da sutileza dos poros, a imersão)
(da sutileza dos poros,
a imersão)

sugiro um mergulho
ou a cáustica fotografia
de meus retalhos
desmesurados
à tua esquina.
sugiro-me assim,
distante.
dos faróis que flertam
com meus insultos olhos,
bebo a metade.
salivo teores
insones
temo voltar.
eu vejo,
cansado
e calado claustro,
o desespero:
diante da porta,
visto
e guardo chuvas.
24:04
24:04

ando assim
a buscar os pássaros em meio a tanto barulho
a chorar pinturas de Boldini
a lembrar-me de ti.
ando assim
ao vento
deixando seu abano soar suave
a rir de minhas saias
a fazer-me dançar os pés
ando assim
sincera e sonora
sentindo o ventre pulsar
embalado a poesias
agarrado pelos dedos
silenciado às pinceladas
escrevo-te assim
subitamente
deixando com que as palavras me tomem
descompassadas
a transbordar
escrevo-te assim
como quem corta o espelho
com a unha do verso.
13:12
13:12

ando louca de paixão


a arrastar meu olhar pelas pernas dos homens
para que então minhas volúpias se abram
debaixo das toalhas
úmidas
para que então as coxas enervem-se
a enredar as saias
e debaixo dos meus olhos
revele-se ele todo
envergonhado
e nu
(o pensamento, luxurioso, arranca as roupas)
ando às cachoeiras
sorrindo às escondidas
os lábios descasando-se a ruborecer a língua
a lamber como quem pinta vermelhos toscos
nas estranhezas do torso
a rasgar-se sob as pálpebras noturnas
deixando a uva vulva volver-se
veludo molhado.
[espelhos nas pontas dos dedos]

espelhos nas pontas dos dedos


a pluma do teu ego
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaos primos
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaos pregos
e o medo do corte
dores feridas
soltas na pia
pequena parede descascada,
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaavelada
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa e tu
tua pose
teu pelo
teu palco
de doenças vestidas
minha raiva
(eu cicatrizando em ti).
[não comi nada antes de te escrever]

não comi nada antes de te escrever


meu estômago atual
é a puta ou a causa
do enjoo reticente.

a falta da mão deslizando pelo braço


o dissolver da nuca
o calor cego
calam o gesto mais simples:

o encontro depois da água gelada


o deitar nu
o resumo do dia.

a ausência,
exilada e mais ainda,
me deixa uma dor baldia.
cenas
cenas

I
da possibilidade de te ver
arranco tudo, arrasto
canto a mesma canção
até ensurdecer.

II
do teu silêncio
corto o cabelo com faca
faço tatuagens com bic
fumo aos maços.

III
da tua ausência
já não sono mais,
sonoro.
[eu não fui à guerra]

eu não fui à guerra


eu fugi pelo beco
tropecei numa esquina
e não deixei o corpo cair.
eu bem que chorei pelos cantos
não recolhi os copos espalhados pela casa
não troquei a cor do vestido
te vi entrar pela aresta
e te deixei sair.
assim, como quem escolhe o vinho
o mais seco.
eu não deixei o corpo enaltecer o marasmo
tampouco vesti a dor com as mãos:
eu vi a noite caindo sobre meus olhos.
eu deixei todas as janelas abertas
para o vento entrar e renovar
da cama dos pés
ao vazio dos lábios.
eu desejei o dia a tomar meu rosto
eu fiz o que pude
tramei caminhos às escuras
corri para o cinema
dormi onde apenas o corpo contorce.
eu bem que tentei
e sigo a dar voltas
enxugando o cansaço
sentindo as pernas tremerem
ousadas
a me confundir.
eu não desafio suspiros
eu nem vou tão longe
eu tenho a audácia
de não te esquecer.
receitas do cerrado

receitas do cerrado

I
saudade
derrama-se
o chá da xícara
até o colo queimar.

II
suor
molhar a ponta da língua
resvalar vestígios
emoldurar umbigos.

III
calmante
aos prantos,
corta-se a fúria
em copos de leite.
poesia no nokia
poesia no nokia

19:04
da sutil taça emergiu minha fúria,
não mais contendo falas e músculos
– essa azia da dor –
mas dormindo falos e amores
guardando sorrisos na redoma do busto
mostrando uma nudez que intimida
respirando saudade e desapego
sincero no seu ar Anseio que é devasso e culmina
num som de abraço estilhaço O vazio se vira e dorme
migrado de um som antigo Miragem de poucos rumores
calados
A minha tristeza,
o teu rastro.
21:32
das crueldades do corpo guardo apenas uma:
a tua ausência.
22:02
com a palma da mão sobre o chão áspero
sustento o caos do corpo
acalmo a embriaguez do gesto
esqueço o desejo em prato raso.
não há mais silêncio onde há vento:
faz-me voar.
22:34
http://images.google.com.br/images?hl=pt-BR&q=degas+absinthe
&btnG=Pesquisar+imagens
lírica
lírica

guardando o sol sob a árvore


agarrando as folhas
como se fossem suas
calando sabores
como se os galhos, esquecidos da chuva,
pudessem despertar sua calma,
a mulher respira:
aaaaaaaaaaaconta os dias que faltam
aaaaaaaaaaavasculha a sombra
aaaaaaaaaaaaté as nuvens partirem.
a mulher descabida
esquece suas botas
descobre a água de seu vestido
até seus dedos miúdos,
confusos,
murcharem entre as coxas.
diante da estrada,
da sedenta sonolência do silêncio,
dos rumores pintados à boca,
(a lascívia escondida embaixo do queixo),
a mulher corre
aaaaaaaaaaacomo se o homem que guarda
aaaaaaaaaaano chão de sua pele
aaaaaaaaaaapudesse desesperar espelhos
aaaaaaaaaaaesquecer da nudez de suas cores
e deixar seu cheiro em vão.
PASSEI O DIA EM MIM E TE ENCONTREI

passei o dia em mim


e te encontrei
à cama do ouvido
à cama do ouvido

cega-me
tua língua rouca
pouca
ponte aguda.
[será denúncia]

será denúncia
os cabelos que sem rima
abandonei
o passo lento escorado à janela
o olhar que nada vislumbra
mas que tudo pede
e é sede?
será renúncia
adormecer à parede
deitar como quem se veste
aos poucos
sob o desejo do outro?
será denúncia
os dedos calados à nuca
as mãos amarradas à cintura
à espera
e nela
o desterro?
será que derrama
e é grito?
[adoeço às pálpebras]

adoeço às pálpebras
teu dilúvio
meu refúgio.
[a noite no sofá]

a noite no sofá
é pele
cascata
que não alcança
a janela.
as tardes
se trancafiam
nos cantos da sala:
desperto
meu bonde abandono
a mão no parapeito
e minha garganta
que voa.
[saliva-me]

saliva-me
teus desenhos
descobrem
teu corpo
na minha
língua
um céu.
[debruçados sobre meu ombro]

debruçados sobre meu ombro


teus olhos des
afiam sua boca
e me molham.
[escorre-me o cansaço]

escorre-me o cansaço
escuro
dos cabelos à laje
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaimunda
minha fala derramada.
(inunda-me pensar-te
aaaaaaaaaaaaaaaaaaalonge)
arrasto camisolas e divãs
respiro próximo
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaà janela
pequenos infernos
rachados às pressas.
visto violinos como se fossem
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaatroncos
e dos braços apunhalados
pudesse ver
arrepiarem os pelos.
corrijo as pernas entre as cortinas
escondo os farelos
aaaaaaaaado meu dia
desfaço flores à porta
rouca encostada
tramando
aafeixes de luz.
[eu te doo a minha apatia]

eu te doo a minha apatia


jogo os cinzeiros sobre a mesa
até os estilhaços
vidro, baganas
e meus pés em falso
eu desvio meu pensamento
pisando em cacos
mofando a toalha na cabeça
cinzenta
afogando banhos frios.
eu me ofereço pálida
meu amor atordoado
que se queima à
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaboca
aaaaaaaaaaaaaaaaaaado bule
retinta.
eu me concedo ansiosa
guardando dos
livros os trechos que
aaaaaaaaaaaaaaaaaaame podam
rasgando os poemas pela metade
permanecendo chuva
aaaaaaaaaaaaaturva
aaaaaaaaaaaaaaa e tua.
[quem dera agora um canto teu]

quem dera agora um canto teu


um lóbuloaaaaaaaaao alcance da língua
para lamber-te um canto meu
quiçá
que está
que há
SE TE SINTO...

se te sinto
sem ti
sinto muito
[dá-me um branco]

dá-me um branco
ignora-me na tua
aaaaaaaaaaamesa de bar
mata-me
os insetos
com teu solado
aaaaaaaaaaade espanto
veste-me
como a tua saída
aaaaaaaa– uma noite se quebra
aaaaaaaa com uma taça.
sua-me
enquanto dispo-me
diante da bula
reclusa
teu insano sacrilégio
aaaaaaaaaaaaté que eu te odeie
burla-me
doa-me um pedaço
no fim do teu túnel
aajaz-me vermelha aguda
minha saia curta
a cortar-te a barba
meu veludo gasto
a alfinetar-te o sopro
meu salto
agulha.
[hoje, enquanto o dia gritava seus lugares]
para Paula Gastaud

hoje, enquanto o dia gritava seus lugares,


lembrei de quando cresci.
cresci numa tarde
dessas em que o vento parece saudoso
suado
e num deslize
respira o rosto
e devaneia.
cresci como quem atravessa o trigo
arranca das árvores as folhas boas
e de qualquer vertigem passageira
o vestido.
cresci chorando sobre um gramado roxo,
destemperado,
que nos invernos cobria meus pés de terra
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaae formigava.
cresci diante dos meus olhos
épocas –
um só corpo ensolarado
enjoado.
eu ri quando cresci.
e despejei rumores, meias escuras
e copos pela metade.
assim que a noite,
não tão noite mas ríspida,
viu meus braços se alongarem,
os cabelos formarem cachos,
eu desfiz.
tramei meu conto.
quando cresci,
o cruzar de pernas que minha mãe ensinou,
o tom de voz que me era permitido,
a blusa de tricô
que escondia os mamilos,
amargaram.
foi então que amanheci.
cobri o embaraço com pitangas à boca
mergulhei onde era raso
desejei os meus pudores
e me vi
quando era quase entristecer.
eu cresci
e na moldura dos traços
rastros, lastros
eu te vi:
é um túnel.
[jazz méditerranée]

jazz méditerranée
eu de pés descalços
dançando saudades de você
[1. como se um jardineiro]
1.
(como se um jardineiro
aaaaaaaafosse me encontrar
aaaaaaaaaaaaaaaaao entardecer).
no espelho,
trapaço.
cansei de ser mínima.
mas no meu sonho
vêm quebrados
os vidros:
de repente, teu cheiro
acorda com o gosto do vinho
e me vacino:
na coxa esquerda,
antitétano
na outra, hepatite b
no braço direito,
não posso:
meu mal é febre.
de resto uma gripe qualquer
uma antidoença
ou uma noite.
no meu sono, uso chapéu:
do jardim vejo
perambulares
e volta ou outra
escapo.

2.
antes fumo
uma última vez
a tua saliva.
[não que meus pés]

não que meus pés


não estivessem
escondidos no sofá
amarelo
queimado
minha cabeça
é mais um foco de incêndio
atravessando a asa norte
vazia
11%
os passantes correm de calor
e de atraso eu tropeço
arranco pedaços da pele seca
e sangro
não que os ventos
não soprem mais
no meu ouvido
não que eu não minta
estou com gripe
para adorar amargar
na minha cama
mas a chuva
só em outubro
quando alguém que não houve
me ouvir
no olhar.
[não me venha com as tuas boletas]

não me venha com as tuas boletas


a minha fantasia
é te encontrar no hospital
brigar com os enfermeiros
deitar no primeiro bar
descobrir a cidade embriagada
matar-me aos poucos
abrindo as garrafas com o vestido
negando moedas
estúpida
sozinha
com uma bic e um guardanapo
e um garçom
que me fere
me inveja
chorar.
[assim como se pode amar]

assim como se pode amar


meu casaco é só pose
neste inverno de fotos e almas
meu chapéu tem a cor
das fugas
o sorriso que posa pro álbum
com seus dentes suados
esbarra
no colete claro
de naftalina
ao lado.
a tempestade
a tempestade

no último degrau
(suspiro)
pro inferno carregue
teus sapatos vermelhos
teu suspeito convite
para dançar
respire
no the end
tudo o que eu digo é
lamento
não há como chover mais
neste dia embriagado
de solidão
sigo atropelável
pedindo suco de laranja
às lágrimas
pro vendedor de guarda-chuvas.
[eu curo meu silêncio]

eu curo meu silêncio


com gaze, museus
mercúrio
a noite em claro
a semana chove
ferida
ninguém mais suporta
molhar os pés
eu peço um duplo
cafeína, vodka,
versos
fotos de abajur
à meia-noite
suspira
billie na calçada
a heaven just for two

é uma saga
[o domingo]

o domingo
que entre mim
aaaaaaaaaaaaapreguiça
acorda
essa gaveta
aaaaaaaaaaaaade insônia.
[planetárias]

planetárias
as pupilas delatam
o céu
desamor
desamor

é a dor de um morto
as fotos guardadas
na caixa de sapato
é da cor do grito
e me ventila
sempre que insone desabo
pela casa
vazia
é uma ressaca
que quando me acorda
chora
seu nó na garganta
é um ensaio
que tardando para ir embora
adormece seu sonho
insalubre
é um soneto arredio
um sol que se põe
sobre mim
é um soco,
aaaaaaaaaaaaaaaaaum escândalo
sempre que desperto
e me vejo
partir.
manhã de tijolos

manhã de tijolos

do quarto escuto
abafada pelos cobertores
a sirene
rodopia
tua voz
vermelha
rouba-me as maçãs
do rosto.
[a janela gradeada]

a janela gradeada
suspensa na xícara
café amargo
esqueço de adoçar,
eu nem sempre
esqueço.
a mala ocupando o
corredor
arranca-me os sapatos
eu salto
eu caio
eu esparramo mapas
enquanto o telefone
toca
e eu não atendo.
do parapeito
desconheço vizinhos
aceno em vão
deixo queimar
o rosto
a metade
memorizo o caminho
de volta
com as bolas do colar
vermelho
embrulho tudo no
lençol
lenços, casacos
caixas-pretas
amarradas, assustam o porteiro
bom dia, dona flor
é feriado.
[teu silêncio]

teu silêncio
faz de ti
meu deserto.
OUTRA TEZ

outra tez

para Armando Freitas Filho


[e com a mesma gravidade]
para Bóris Marin

e com a mesma gravidade


com que as fotos perdem o foco
com que o olhar de minha mãe
condena e o fato
de todos nós sorrirmos
para o homem que descansa
sua bengala e sua consciência
naquelas tardes de verão
ninguém ousaria
invadir as casas.
[não desfruto das tuas bocas]

não desfruto das tuas bocas


as palavras mais devastadas
eu não sinto o rubro
das bochechas encabuladas
o gelo entre os dentes
eu não registro
as palavras mastigadas
eu não sinto o cheiro
de quem não me vê
sequer vem me ver
no meu sofá azulado
dormem todos os prantos.
[está tão frio]

está tão frio


tão pálido cada passo
pelo sótão até a poeira
arrepia
o grito em eco
lembra a tua manhã
o cheiro quente, o sol que não entra
e todas as taças secas
as terças e as varandas
como se fôssemos pouco
e estrangeiros
com os pés cobertos
no seu silêncio de lã.
perdão
perdão

I
a foto no meio do livro
entre os melhores versos
você em mim.

II
se eu pudesse provar
o meu amor
lambê-lo-ia.
uma
bossa
uma bossa

o meu amor me deixou


imune à gripe
aos flertes e às flores
que murcham nas escadarias
o meu amor me deixou boquiaberta
suada como se vestisse
mil invernos
o meu amor não me deixou
na foto do ano que esquecemos
o meu amor segurou-me o braço
e como um pássaro
veio comigo e com a mesma fuga
dos olhares
o meu amor anda num feitiço
que só de acordar
eu perco todos os ponteiros
nua e coberta de ontem
eu posso vê-lo partir
pelo ruído da noite.
[como um mágico escondido]

I
como um mágico escondido
atrás dos livros
meu amor me olha com gosto
de lágrima
do fim de tarde vazio
restam as pernas cruzadas
sobre o vaso e as flores
enroscadas
pétala a pétala na pele
do meu amor que me fita
triste
a mão macia apoiada
no ventre de um verso.

II
espero por teus olhos,
meu demorado amor,
detendo-se sobre o meu colo
com sua saliva
o cheiro áspero e eterno
da sua saliva.
Agradecimentos

agradeço imensamente
aos meus queridos e tão fundamentais
armando freitas filho, paula gastaud, ramiro breitbach, chacal, fabricio
carpinejar, felipe ehrenberg, lourdes hernandez fuentes, felipe jornada,
grace luzzi, liliane pereira, pablo gonçalo, caio carmacho, marcelino
freire, pata de elefante, leandro de paula, bruna beber, arrudA, otávio
afonso (em memória), bóris marin, ivan marin (em memória), gabriel
brandelli, marcela santos, dadá e bibi ripoll, lia kroeff, as jacaroas +
otto, alice ruiz, carô rothfuchs, juliana costa, cristina paiva, silvia cruz,
mariana cruz, letícia e maria lúcia verdi.
agradeço aos meus pais, lino e aurora,
que merecem uma oração só para eles.
e ao marçal, meu amor.

LM
Ficha técnica
2011 © Lorena Martins

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação editorial
Isadora Travassos

Produção editorial
Cristina Parga
Eduardo Süssekind
Larissa Salomé
Rodrigo Fontoura
Sofia Soter
Sofia Vaz

Caso o seu dispositivo não permita o acesso direto aos audiopoemas deste livro, você pode acessá-
los em http://www.7letras.com.br/agua-para-viagem.html.

ISBN: 978-85-7577-792-3

Viveiros de Castro Editora Ltda.


R. Goethe, 54. Botafogo
Rio de Janeiro, RJ, CEP: 22281-020
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br

Você também pode gostar