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O duplo: um estudo psicanalítico 156

Resenha
Rank, Otto. (2013). O duplo: um estudo
psicanalítico (Erica Luisa Sofia Foerthmann
Schultz, trad.). Porto Alegre: Dublinense
Marcus Vinicius Neto Silva1
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

1Geralmente esperamos que uma O próprio Freud forneceu um relato


resenha se refira a uma obra recente, com dessa ocasião: “Um belo dia um jovem
a intenção de apresentá-la ao público. No que fora aprovado numa escola de ensino
caso do livro de Otto Rank, originalmente técnico apresentou-se com um
publicado em 1914, e com duas edições manuscrito que indicava compreensão
posteriores, em 1919 e 1925, uma fora do comum. Persuadimo-lo a cursar o
justificativa se faz necessária. Gymnasium e a Universidade e a dedicar-
Embora o livro seja antigo, a tradução se ao aspecto não-médico da psicanálise”.
que debateremos aqui é de 2013, e vem (Freud, 1914/2006, p.35)
em excelente hora. Uma outra tradução Em 1906, se tornou secretário da
para o português, de 1939, já há muito Sociedade Psicanalítica de Viena, e seu
esgotada, deixou um vácuo que obrigava cuidadoso trabalho com as atas das
os leitores brasileiros a recorrer às reuniões fica evidente ao lermos Minutes
diversas traduções em outros idiomas. E of the Vienna Psychoanalytic Society,
melhor ainda quando a tradução é feita de publicadas em quatro volumes
forma cuidadosa, como é o caso desta organizados por Federn e Nunberg entre
publicada pela editora Dublinense. 1962 e 1975. Entre suas principais
No que diz respeito ao autor, algumas publicações se encontram Der Künstler
palavras podem ser ditas, à guisa de (1907), The incest theme in literature and legend
introdução. Otto Rank entrou em contato (1912/1992), The myth of the birth of the
com a Psicanálise em 1905, ao ler A hero (1914/2011) e The trauma of birth
interpretação dos sonhos (1900) e em seguida (1924/2010), obra que marcou seu
Estudos sobre a histeria (1895). Alfred Adler, distanciamento da psicanálise.
na ocasião ainda membro do movimento Vamos ao conteúdo do livro, portanto.
psicanalítico, era médico de Rank e o Já no primeiro capítulo vemos Rank
apresentou a Freud no mesmo ano apresentando o que serviu como a
(Lieberman, 1985). inspiração para sua discussão do duplo: o
filme O estudante de Praga, de Ewers, que
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havia sido exibido na época em Viena. que “sempre se trata de uma imagem
Apresentando ao leitor o enredo do filme, idêntica à do protagonista, até nos
ele logo passa à hipótese de que o mínimos traços, como nome, voz e
impacto emocional que é provocado em indumentária” e que esse duplo “lhe
quem assiste deve significar que ele toca atrapalha a vida, e, via de regra, a relação
conteúdos profundos. Assim, estabelece o com a mulher vira uma catástrofe, que
plano de investigar, nos capítulos pode acabar em suicídio – como
seguintes, o problema central do filme, a consequência indireta da morte planejada
figura do duplo, nos variados contextos: para o perseguidor incômodo” (Rank,
literatura, tradições folclóricas, 2013, p.60).
etnográficas e míticas, além de uma O capítulo 3, que ainda mantém a
discussão psicanalítica da questão. discussão próxima da literatura, mas se
Dessa forma, no segundo capítulo, centra agora no estudo dos autores, e não
passa a um estudo bastante detalhado do mais de suas criações literárias. Nele Rank
uso do duplo na literatura. Rank vai tenta colher dados sobre a vida dos
percorrendo cuidadosamente a obra de autores que escreveram trabalhos se
diversos autores, entre os quais se servindo do tema do duplo para
destacam Hoffmann, Chamisso, demonstrar como eles tinham certos
Dostoiévski, Poe e Maupassant. Ao guiar traços patológicos que acabavam tentando
o leitor por esse percurso, ele vai aos tratar simbolicamente em seus escritos.
poucos traçando paralelos entre as Ele conclui que mesmo que possamos
diversas formas de apresentação do observar em um grande número de
duplo, aproximando todas estas escritores características de certas
narrativas, mesmo quando usam formas perturbações mentais, isso não nos
diferentes de representar o problema. autoriza a afirmar que o tema do duplo é
Vemos que certo autor liga o duplo à meramente a manifestação da patologia
sombra, outro enfatiza a imagem no dos autores. Desse modo, ainda é
espelho, alguns optam por uma necessário investigar outros aspectos
representação mais “psicológica”, na dessa questão.
forma de uma alucinação. No quarto capítulo, tendo já
Nas palavras de Rank, “todas essas demonstrado a relação do duplo com a
narrativas apresentam, sombra, a imagem no espelho e a alma
independentemente das figuras de duplo humana na literatura, Rank passa a
plasmadas na forma de diferentes tipos, considerar as crenças de povos primitivos
uma série de motivos tão notavelmente e também costumes populares e
análogos que parece ser quase superstições. Também aí encontra uma
desnecessário salientá-los novamente”. equivalência entre a sombra e a alma, e
(Rank, 2013, p.60) E prossegue afirmando uma relação ambivalente com a figura do

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duplo: ora protetor, ora perseguidor. engenhosa que o duplo quase


Analisando os tabus envolvendo as invariavelmente interfere nas relações
sombras, Rank destaca que “uma série de amorosas do protagonista e vê nisso uma
investigações relacionadas ao folclore analogia à incapacidade de amar de
mostrou, sem dúvida alguma, que os alguém capturado no amor por si mesmo.
homens primitivos consideram seu Apesar de não colocar isso em primeiro
misterioso duplo, a sombra, como a real plano, em certos pontos parece apontar
essência da alma” (Rank, 2013, p.102). O para a conclusão de um caráter mortífero
outro aspecto do duplo, a imagem no do narcisismo. Ele também discute como
espelho ou reflexo na água, também é se dá a inversão do duplo, de protetor a
discutido através de um grande número perseguidor, através de mecanismos de
de exemplos, chegando finalmente ao defesa, tendo para isso um claro paralelo
mito de Narciso, que explicita mais uma nos casos de paranóia.
vez a proximidade entre o amor e o ódio As formulações de Rank sobre o duplo
(ou a morte). são citadas por Freud em O estranho
Finalmente, no quinto capítulo, Rank (1919), apesar de não explorar
apresenta uma leitura psicanalítica da profundamente o tema nesse texto. Freud
questão do duplo. Como já havia ficado também acrescenta algumas outras
claro ao final do capítulo anterior, o que hipóteses, afirmando que o duplo pode
nos ajuda a compreender o duplo é o estar na base da formação de uma
conceito de narcisismo. Não é difícil instância crítica, com a função de
acompanhar a hipótese de que a observar e criticar o eu (o que
duplicação da imagem que vínhamos posteriormente seria atribuído ao
observando na literatura, mitos e similares supereu, em O eu e o id).
é uma espécie de projeção da imagem do A contribuição mais evidente do livro
próprio eu. Assim, ora ela aparece como de Rank é sua teorização sobre o
sombra, ora como reflexo no espelho e às narcisismo. Sua explicação do processo de
vezes como um segundo eu real. Em projeção das partes rejeitadas do eu, que
todos estes casos, porém, Rank localiza retornam na figura ameaçadora do duplo,
uma separação de certos aspectos é coerente com as teorizações freudianas
indesejáveis, como se o eu expulsasse a respeito do tema (desde seus
parte de si para manter sua ilusão de comentários no caso Schreber a sua
onipotência. discussão mais detalhada em À guisa de
A parte rejeitada através desse introdução ao narcisismo), mas o modo como
processo, entretanto, retorna e é às vezes Rank trabalha a questão, transitando entre
visto como espírito protetor, embora no literatura, antropologia e Psicanálise é
geral acabe se tornando um inimigo particularmente interessante. Esse talento
perseguidor. Rank observa de forma para integrar o conhecimento de áreas

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diversas é visível em O duplo, mas é em na grande maioria das vezes em que isso
outro de seus trabalhos, The incest theme in ocorre há uma nota de rodapé com o
literature and legend (1912/1992), que atinge trecho traduzido. De toda forma, não é
seu ponto mais alto. nada que impeça a compreensão da obra
Há também um aspecto do narcisismo como um todo e nem prejudique de
presente no livro de Rank, mas pouco forma mais séria a fantástica experiência
explorado por Freud diretamente: seu de ler esse livro antigo, porém atual.
caráter mortífero. Rank se preocupa com Embora o livro deva servir muito mais
esse elemento ao longo de toda a obra, e a psicanalistas, não há dúvidas de que
percebe que a figura do duplo transita também é de grande utilidade para
pelos dois sentidos opostos, de protetor a qualquer pessoa interessada em literatura,
perseguidor. Em Freud, as menções a um e ele fornece elementos para pensar
narcisismo mortífero são muito mais também filmes e outras produções
discretas, como, por exemplo, em Além do artísticas.
Princípio de Prazer (1920/2006), em que ele
denomina de narcísicas “as células das Referências
Freud, S. (1914/2004). À guisa de introdução ao
formações malignas que destroem o narcisismo. In S. Freud, Escritos sobre a Psicologia do
organismo” (Freud, 1920/2006, p.172). inconsciente (L. A. Hanns, trad., V. 1, pp. 95-131). Rio
de Janeiro: Imago.
Em Rank, a proximidade entre narcisismo
Freud, S. (1914/2006). A história do movimento
e morte está colocada quase que desde o psicanalítico. In S. Freud, A história do movimento
início, e é um elemento essencial para a psicanalítico, Artigos sobre Metapsicologia e outros trabalhos
(V. XIV, pp. 15-73). Rio de Janeiro: Imago.
compreensão da figura do duplo.
Ao final do livro, as editoras ainda Freud, S. (1920/2006). Além do princípio de prazer.
In S. Freud, Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente (L.
fornecem uma lista bastante extensa de A. Hanns, trad., V. 2, pp. 123-198). Rio de Janeiro:
Imago.
filmes, obras literárias e estudos teórico-
críticos que abordam ou fazem referência Freud, S. (1911/1996). Notas psicanalíticas sobre um
relato autobiográfico de um caso de paranóia. In S.
ao tema do duplo. Isso complementa Freud, O caso de Schreber, Artigos sobre a técnica e outros
muito bem o livro e aponta alguns trabalhos (V. XII, pp. 15-89). Rio de Janeiro: Imago.

caminhos ao leitor que pretende Freud, S. (1919/1996). O estranho. In S. Freud,


aprofundar em seus estudos. História de uma neurose infantil e outros trabalhos (V.
XVII, pp. 235-269). Rio de Janeiro: Imago.
Há apenas um ponto no livro que
causa algum incômodo, mas que pode ser Freud, S. (1923/2007). O eu e o id. In S. Freud,
Escritos sobre a Psicologia do inconsciente (L. A. Hanns,
facilmente resolvido em futuras edições. trad., V. 3, pp. 13-92). Rio de Janeiro: Imago.
Em alguns trechos, quando Rank cita
Lieberman, J. (1985). Acts of will: the life and work of
alguma obra em outro idioma (francês e otto rank. New York: Free Press.
inglês, principalmente), não há uma Nunberg, H., & Federn, E. (1962). Minutes of the
tradução do que foi citado. Talvez tenha Vienna Psychoanalytic Society (V. 1). New York:
International Universities Press.
sido por descuido ou desatenção, já que

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Nunberg, H., & Federn, E. (1967). Minutes of the Rank, O. (1914/2011). The myth of the birth of the hero.
Vienna Psychoanalytic Society (V. 2). New York: Mansfield: Martino Publishing.
International Universities Press.
Rank, O. (1924/2010). The trauma of birth. Mansfield:
Nunberg, H., & Federn, E. (1974). Minutes of the Martino Publishing.
Vienna Psychoanalytic Society (V. 3). New York:
International Universities Press.

Nunberg, H., & Federn, E. (1975). Minutes of the


Vienna Psychoanalytic Society (V. 4). New York:
International Universities Press.

Rank, O. (1907). Der Künstler. Viena: Hugo Heller.


Recebido em: 26/07/2014
Rank, O. (2013). O duplo: um estudo psicanalítico. (E. Aceito em: 01/02/2015
L. Schultz, trad.) Porto Alegre: Dublinense.

Rank, O. (1912/1992). The incest theme in literature and


legend. (G. Richter, trad.) Baltimore and London:
Johns Hopkins University Press.

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