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As minhas primeiras incursões no campo dos estudos urbanos se deram por conta da
minha pesquisa de mestrado, sobre a favela do Vidigal, situada na Zona Sul do Rio de
Janeiro, próximo aos bairros nobres de Ipanema e São Conrado. Fortemente
influenciado pelas críticas de Lícia Valladares a respeito dos “dogmas” que perpassam
as pesquisas sobre favelas (2005), mas também pelos trabalhos de Luiz Antônio
Machado da Silva (2011/1967) e Anthony Leeds (1978) sobre a diferenciação
socioespacial das favelas, a minha dissertação buscava romper com alguns estereótipos
acerca das favelas como focos exclusivos da violência e da pobreza (CORTADO,
2012).
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a favela passava, naquele tempo, por um período de paz, para retomar uma categoria
nativa, após o fim de uma “guerra” violenta entre as facções Comando Vermelho e
Amigos dos Amigos. Em um contexto de consolidação sócio-urbanística, de relativa paz
entre os grupos armados que disputavam o controle do território (inclusive a própria
polícia), mas também de crescimento da economia brasileira e fluminense, que
contrastava com a situação vivida na Europa, e de expansão do turismo nas favelas, o
Vidigal tinha se tornado o novo destino de muitos estrangeiros, em busca de exotismo,
de alugueis mais baratos ou de oportunidades imobiliárias (CORTADO & NINNIN,
2013). Assim como eles, eu fui um “gringo na laje” (FREIRE-MEDEIROS, 2009).
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trabalhava sobre o Rio de Janeiro, cabia estudar favelas e marginalidade (SILVA,
2011/1967; PERLMAN, 1977; LEEDS & LEEDS, 1978), enquanto os antropólogos
pesquisavam camadas médias, na linha de Gilberto Velho (2010/1973). Acredito que
esta divisão teve desdobramentos importantes para os estudos urbanos no Brasil, pois
foram poucas as pesquisas sobre a periferia do Rio de Janeiro, sobre a favela e a
produção do espaço urbano ou sobre a família e a produção do espaço.
A respeito da pesquisa sobre periferias, acredito que temos hoje uma divisão do
trabalho acadêmico muito nítida entre, por um lado, uma sociologia quantitativa que
tem como ponto de partida o sentido espacial da categoria (TORRES & MARQUES,
2001; MARQUES & BICHIR, 2001; TORRES et al., 2003; TORRES, BICHIR &
CARPIM, 2006) e, por outro lado, uma socio-antropologia qualitativa que tem como
ponto de partida o sentido social da categoria (FELTRAN, 2008; NASCIMENTO,
2011; CUNHA & FELTRAN, 2013a). De fato, a periferia no sentido clássico da escola
marxista pressupunha a existência de uma correlação entre distância espacial
(afastamento e dependência física) e distância social (afastamento e dependência
política). Já hoje, esta correlação virou um problema. Em primeiro lugar, do lado da
etnografia das periferias, o sentido sociológico acabou absorvendo completamente o
sentido geográfico: a periferia virou sinônima de margem, de uma marginalidade
sociocultural e politicamente construída, seguindo portanto um movimento geral de
retorno à temática da marginalidade no campo da sociologia e da antropologia urbana
(DAS & POOLE, 2004; WACQUANT, 2006; PERLMAN, 2010). A coletânea Sobre
periferias, organizada por Neiva Vieira da Cunha e Gabriel de Santis Feltran em 2013,
reflete muito bem este deslize semântico: das 12 contribuições reunidas, oito têm a ver
com violência, quatro com ação social, três com religião, duas com associativismo
popular e uma com criação artística. Se existem referências ao tema da moradia, é
sempre a partir da violência ou do associativismo que este é abordado. O ponto de
partida não é mais a reflexão sobre o processo de urbanização, mas a observação de
comportamentos marginalizados – daí a centralidade dos trabalhos sobre ilegalismos
nas etnografias das periferias (TELLES & HIRATA, 2007). Patrícia Birman, na
introdução da coletânea, reivindica explicitamente esta abordagem que identifica
“periferia” com as “margens” da sociedade abrangente, disqualificando o significado
propriamente espacial: “Os textos reunidos nesta coletânea revelam a elaboração rica de
um campo analítico, cuja complexidade se deve ao reconhecimento de que as fronteiras
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das periferias estão longe de se constituírem por coordenadas somente ou
primordialmente espaciais. Afinal, as margens, como muitos trabalhos publicados
demonstram, podem ser políticas, religiosas, sociais, administrativas, culturais – sem
que se recubram de forma a criar espaços fixos, homogêneos, unificados e submetidos
às mesmas clivagens”.
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periferia (LAGO, 2000; RIBEIRO, 2000) e o surgimento eventual de hiperperiferias
(TORRES & MARQUES, 2001), muitas vezes com base nos dados do censo – acredito
que parte dos discursos sobre o fim do dualismo entre centro e periferia no Brasil se
deve ao uso desses dados, hoje incapazes de captar as novas dinâmicas da segregação
(acesso a equipamentos culturais, qualidade da água, da luz, do esgoto e do asfalto,
tempo passado cotidianamente no transporte). O próprio conceito de “hiperperiferia”
chama atenção. Em primeiro lugar, porque ela continua aludindo ao conceito clássico de
periferia – a verdadeira periferia é aquela que combina distância espacial com distância
social. Em segundo lugar, porque, enquanto a periferia remetia à dinâmica histórica do
capitalismo brasileiro, a hiperperiferia tem um sentido meramente tipológico –trata-se,
na perspectiva da sociologia quantitativa paulista de produzir uma tipologia da “pobreza
urbana” (TORRES, BICHIR & CARPIM, 2006). Por conta deste deslize, a “periferia”
aparece, retrospectivamente, como uma reflexão sobre “pobreza” e “segregação”
urbana, só que não era bem assim: os estudos marxistas sobre loteamentos periféricos
tinham por objeto a “exploração” (OLIVEIRA, 1972; MARICATO, 1979) e a
“espoliação” (KOWARICK, 1979) dos proletários expulsos do campo. A “periferia
urbana” funcionava como uma categoria dinâmica, indexada em um processo histórico:
a exploração do proletariado pelo modo de produção capitalista. Já na sociologia
quantitativa contemporânea, a “periferia” serve como categoria tipológica, indexada na
correlação entre distância social e distância geográfica. Só que nunca fica muito claro
nesta nova literatura até que ponto a categoria de periferia continua, ou não, indexada no
processo histórico da exploração capitalista – por exemplo, quando se fala de “periferia
consolidada”, o estado de consolidação remete a um grau menor de pobreza entre
assentamentos situados em uma mesma distância espacial do centro metropolitano ou a
uma inflexão no processo histórico de “crescimento por expansão de periferia”?
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categoria tipológica, sob este aspecto, abriu caminho para o estudo empírico das
periferias. Afinal, tanto os estudos marxistas quanto os estudos contemporâneos sobre
periferia têm em comum o fato de silenciar o próprio processo de urbanização, as
formas concretas que a produção do espaço urbano assume: os estudos marxistas por
subordinar esse processo às categorias da economia política, os estudos contemporâneos
por marginalizar o espaço enquanto fator explicativo ou por reduzir a urbanização à
distribuição de tipos socioespaciais em um determinado “território”.
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criativamente destruídas frente às tendências do capitalismo moderno às crises e a sua
dinâmica de desenvolvimento mais abrangente”. Essa tese nos leva a um olhar diferente
sobre o “loteamento periférico”, que não se restringe a constatar a “transformação do
solo rural em solo urbano”, mas considera as tecnologias políticas através das quais os
centros do poder urbano atuaram nesses territórios remotos, assim como as interações
entre as tecnologias e as outras modalidades de apropriação do espaço.
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operações técnicas”. É importante ressaltar que tanto os moradores quanto os agentes da
governamentalidade urbana têm suas “políticas” e suas “poéticas”.
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um processo espaço-temporal, o que também abre caminho para um estudo da
“experiência” da urbanização.
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