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o trabalho como princípio educativo em Gramsci
Paolo Nosella • . . . . • . . • . . . . . . . . . . . . . . . • . . • . .. ... .. .. . .. ... .... .. 3
Currículo e poder
Michael W. Apple • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 46
PAOLO NOSELLA('
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A essa altura me seja permitido um Gramsci escreve: " . . . o desepvolvimento
parênteses. Há algum tempo venho afir da grande indú�tria atraiu para Turim a
mando a necessidade, para uma correta flor da classe operária italiana . O
hermenêutica dos textos gramscianos, processo de desenvolvimento dessa
de se ler os Escritos Políticos anteriores cidade é, do ponto qe vista da história
ao cárcere ( 1 913- 1 926) como chave ex italiana e da revolução proletária ita
plicativa dos Cadernos e Cartas do Cár liana, interessantíssimo. O proletariado
cere. De fato, Gramsci nos Cadernos turinês tornou-se assim o dirigente es
dilata e universaliza os conceitos, tais piritual das massas operárias italianas"
como trabalho, hegemonia, revolução, (Santucci, ibidem) . Da mesma forma,
intelectuais, educação etc. Entretanto, também o conceito de intelectual or
essa dilatação e universalização não gânico só pode ser percebido correta
rompem com o núcleo conceitual e ex mente quando estudado à luz dessa con
periencial elaborado por ele antes do cepção de fundo de hegemonia. Para
cárcere, isto é, durante o processo de Gramsci, de fato, é o proletariado in
sua formação e durante sua prática de dustrial, organizado em Partido (isto é,
militância política. Ao contrário, os os quadros em volta de Ordine Nuovo) a
Cadernos são a universalização daquele se constituir no protótipo de intelectual
núcleo teórico. Ora, sem a percepção orgânico das massas italianas. Ora, a
desse núcleo teórico de base, a univer leitura dos Cadernos, sem essas páginas
salização dos Cadernos pode, fácil e anteriores, muito dificilmente poderá
equivocadamente, ser entendida como transmitir a densidade política dessas
abstração, o que, infelizmente, muitas concepções. De uma apreensão abstrata
vezes aconteceu . Assim, por exemplo, de suas sínteses teóricas elaboradas no
vejamos o conceito de trabalho: a carac cárcere, decorre o perigo de cada in
terística ênfase gramsciana sobre a telectual bem intencionado, individual
qualificação "industrial", poderia pas mente (inclusive os educadores) , se
sar desapercebida se não conhecessemos autodefinir orgânico ou revolucionário,
sua "passagem" da Sardenha a Turim. com a pretensão de possuir o aval de um
Há outro exemplo ainda mais evidente: autor como Gramsci.
o cOl}ceito de hegemonia. Nos Cadernos Encerrado esse parêntese sobre certa
freqüentemente ele dilata esse conceito leitura abstrata que se faz dos Cadernos
para uma significação a mais abrangen do Cárcere, retornemos ao nosso tema
te possível, identificando-se, no limite, do trabalho industrial como princípio
com o próprio conceito de poder diretivo educativo.
sem maiores especificações. Nos Escritos
Políticos, entretanto. o conceito de
hegemonia se concentra quase exclu
sivamente na histórica relação entre o 4. O TRABALHO INDUSTRIAL
proletariado industrial e as massas É O PRINCipIO EDUCATIVO
pobres do campo. Por isso, é preciso UNIVERSAL DE TODA
afirmar que o núcleo original, jamais A SOCIEDADE MODERNA
negado, e sem o qual não é possível en
tender o conceito de hegemonia em Na citada conferência de M. A.
Gramsci, consiste na tese de que his Manacorda ( Humanismo de Marx e In
toricamente a direção espiritual das dustrialismo de Gramsci) há uma pas
massas operárias italianas (inclusive dos sagem que diz: "Ficará, aliás, evidente
funcionários públicos e dos intelectuais que Marx, mesmo partindo da neces
tradicionais) cabe ao proletariado indus sidade não apenas do trabalho mas tam
trial. Ou seja, não podemos esquecer bém do sobretrabalho (social), coloca
que o tradicional símbolo da "Foice e geralmente fora do trabalho o reino da
Martelo" tinha para Gramsci um co liberdade (o que lhe foi censurado por
lorido e um sentido vivo, real e fun Oella Volpe como se fosse uma aporia) ;
damental . Para nós, talvez, esse sentido enquanto Gramsci aparece, por assim
tenha perdido suas cores primitivas e dizer, mais marxista do que Marx, pois
vivas. Em julho de 1920, de fato. no coloca o crescimento da personalidade
relatório enviado para o Comitê Exe não fora, mas sim dentro do trabalho"
cutivo da Internacional Comunista, (Manacorda, ibidem, p. 21, mimeo) .
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Manacorda nesse texto não se esten organização social de toda a vida in
de sobre essa questão que fica como dividual, familiar, intelectual, cultural,
"batata quente" em nossas mãos, pois criativa, artística sob o princípio geral
toca na importantíssima questão do da racionalidade, do industrialismo.
trabalho e do não-trabalho. A obser f: óbvio, portanto, que no Caderno
vação de aporia que Della Volpe faz 22, sobre Americanismo e Fordismo
com referência a Marx, não é objetivo (1935), quando Gramsci se refere ao
dessa exposição, mas sobre a univer trabalho industrial, se opondo porém ao
salização do conceito de trabalho indus de marca americana, subentende ele
trial no pensamento de Gramsci, algo aquele de marca revolucionária russa.
bem definido pode ser dito. (Não é possível esquecer que se nas
Em primeiro lugar já ficou claro, páginas dos Cadernos, por óbvias ra
como vimos, que Gramsci nega (pois a zões, não faz explícitos acenos à Rússia,
própria história o negou) aquele tra o conteúdo das cartas a Júlia e aos filhos
balho que não gera sobretrabalho, isto deixa entender que ele escreve freqüên
é, aquele trabalho que gera apenas a temente pensando naquele horizonte).
sobrevivência individualizada sem ja Após a defesa do trabalho industrial,
mais produzir riqueza universal, base mesmo daquele americano fordista,
objetiva e necessária para a construção ridicularizando as críticas pequeno bur
do novo homem culturalmente desenvol guesas e reacionárias dos intelectuais dos
vido e potencialmente socialista. Por is cafés de Paris, passa a analisar os li
so ele defende, e cada vez mais radical mites histórico-formativos do trabalho
mente, o trabalho industrial, como a industrial americano-capitalista, apon
forma moderna de atividade produtiva e tando com clareza para o novo trabalho
princípio educativo do homem moderno. industrial (não-americano), socialista:
Em segundo lugar , é certo que para "as iniciativas 'puritanas' têm apenas o
Gramsci esse trabalho industrial possui objetivo de conservar, fora do trabalho,
densidade histórica que transcende o es um certo equilíbrio psico-físico para
pecífico modo de produção capitalista evitar o colapso fisiológico do traba
burguês, portanto, é um modo de lhador, espremido pelo m étodo de
produção que se constitui em base produção. Este equilíbrio só pode ser
universal educativa do próprio homem exterior e mecânico, mas poderá tornar
moderno e socialista. O conceito de se interior se o mesmo for proposto pelo
"não-trabalho" , para Gramsci é es próprio trabalhador e não imposto de
tranho. Em todo caso não significaria fora, isso por uma nova forma de so
jamais lazer ou preguiça ou pura ati ciedade, através de meios adequados e
vidade cultural, e sim apenas trabalho originais" (Caderno 22, p. 2166, Ei
industrial que se torna autônomo e naudi). Essa passagem rápida do Cader
criativo, portanto não aquele de tipo no 22, contém em síntese os limites his
americano, isto é, não o trabalho indus tóricos do trabalho industrial americano
trial sob a forma capitalista e sim o e acena aos novos princípios organi
trabalho industrial sob a forma socialis zativos sociais que darão ao trabalho in
ta. A expressão "não-trabalho" vem as dustrial sua forma universal e liber
sociada, em Gramsci a estranhas teo tadora: interioridade da disciplina,
rias, fantasiosas e absurdas, por ele for autonomia e originalidade operária.
temente ridicularizadas e classificadas O trabalho industrial, para Gramsci,
com o termo de Lorianismo ( leia-se o transcende, em sua essência, os limites
Caderno 28, Lorianismo, 1935). O "não "americanos" , pois lança as raízes no
trabalho" historicamente sério passa Renascimento e se estende após a
pela incorporação da disciplina (au Revolução. Nessa perspectiva é impor
todisciplina) do próprio processo de tante lembrar a concepção geral desse
trabalho industrial, sob a direção po autor sobre a história. Para ele, de fato,
lítico-administrativa do trabalhador (in a revolução socialista dão rompe a
dustrialismo de tipo socialista) ; passa, relação histórica com a civilizaç ão
ainda, pelo fortalecimento científico do moderna cujas raízes estão no Renas
próprio processo do trabalho que gera cimento de .Maquiavel, Bacon, Descar
cada vez mais riqueza universal e pela tes, Galileu, etc. Ao contrário efetiva o
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sentido socialista radical que a revolução poder, não em sua essência produtiva,
burguesa clássica havia prometido. A uma vez que o sobretrabalho industrial
ruptura se dá, e é radical, com referên se reveste de valor universal e é com
cia à traição da burguesia contempo ponente válida e indispensável para a
rânea ou do século XIX, uma vez que, nova civilização socialista.
em termos de civilização a grande rup
tura da história começou com o que o
Renascimento operou contra a civili 5. O TRABALHO INDUSTRIAL
zação metafísico-teocêntrica da I dade Ê O PRINCIpIO EDUCATIVO
Média. A propósito, em dezembro de GERAL DA ESCOLA UNITÁRIA
1 9 1 6, escrevia Gramsci no jornal
"Avanti", na rubrica "Sotto la Mole", Como vimos, para Gramsci o tra
um interessante comentário sobre uma balho industrial destruiu a velha forma
carta circular que havia recebido na de sociedade e está substituindo seu
queles dias, de seu antigo pároco, que tecido, gasto e dilacerado, recompondo
lhe solicitava colaboração financeira uma nova ordem humana e social. A
para a construção de um templo con racionalidade, o ritmo, a dinâmica, as
sagrado à Anunciação de Maria, de leis dessa nova forma de trabalho mol
sejoso de reunir toda a Itália aos pés de dam aos poucos, inexorável e molecular
Nossa Senhora: "Preocupa-me o fato de mente, os homens e as instituições da
esta atividade ter por fim deixar em al sociedade moderna. O trabalho indus
guns metros quadrados da superfície do trial, como novo demiurgo, modela o
globo um vestígio arquitetônico que homem integralmente, desde criança,
consuma pedra e cal, engenho e tra determinando seus brinquedos, seus
balho, de que resulta um edifício para o hábitos e suas habilidades, até a idade
qual não se prevê uma utilidade no adulta; forja suas necessidades, seu
futuro, quando a atividade atual se tor físico e seus músculos, seus princípios e
nará definitivamente mito, quando o seus sonhos. É um demiurgo que cria
edifício terá perdido para todos o seu uma nova concepção e funcionamento
caráter hierático e não será mais do que de moradia, desde os materiais de cons
pedra e cal organizados em edifícios. trução até seu projeto geral; a racio
( . . . ) A circular do meu pároco preocupa nalidade do trabalho industrial organiza
me muito neste vago crespúsculo mi também uma nova forma de economia
tológico no qual é imerso o estado de es doméstica, modificando a organização
pírito. Mas não consigo vencer os sen da cozinha, as roupas, a sala de estar, o
timentos suaves e ternos . É a mesma quarto de dormir, etc. Modifica os trans
suavidade e ternura que se experimen portes, as ruas, as praças e todos os es
tam em presença de todas as criaturas paços públicos e privados. Enfim, o
imperfeitas. Pensa-se na fatal infecun trabalho industrial modifica radical
didade, no esquecimento que a submer mente o "estado geral das coisas" , isto
girá num tempo não longínquo. O mito é, o próprio Estado, a nível de suas
pagão deixou monumentos de beleza relações de poder e de suas concepções
que continuam a viver por este seu histórico-políticas.
caráter de perenidade que fazem reviver É natural que o moderno princípio
algum dos sentimentos ancestrais. O educativo universal do trabalho indus
mito cristão, pelo menos na nossa ci trial transforme também a tradicional
dade, só deixará entulho, matéria fácil instituição escolar, mesmo que sua for
para a futura picareta." ( Sotto la Mole, '
ma arcaica secular a torne freqüente
Einaudi, 271 -272). mente mais refratária do que outras ins
Pois bem, se é possível pensar num tituições: "É (o trabalho) - diz Grams
mito pagão e num mito cristão, não é ci - o fundamento da escola elementar;
possível dizer o mesmo referente à que ele tenha dado todos os seus frutos,
revolução burguesa, ou seja, os templos que no corpo dos professores tenha exis
impotentes e estéreis desses mitos não tido a consciência de seu dever e do con
fazem paralelismo nenhum com as teúdo filosófico deste dever, é um outro
velhas fábricas inglesas ou as modernas problema, ligado à crítica do grau de
americanas. A história superará o consciência civil de toda a nação, da
trabalho industrial em sua relação de qual o corpo docente é tão somente uma
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expressão amesquinhada ainda, e não A. Escritos durante a Ia Guerra
certamente uma vanguarda" ( Caderno (1915-1918). Deste período, tendo
12). presente o tema que nos interessa
Precisamos logo esclarecer que nor ( trabalho-educação) , sugerimos para a
malmente Gramsci utiliza um conceito leitura os seguintes textos:
de escola muito amplo. Às vezes, o nos 1) La Luce che si é spenta (A luz que
so debate educacional sofre de escassez se apagou - não traduzido - li Grido
de categorias ou conceitos: de fato, entre dei Popolo, 20/09/ 1915);
a prática produtivo-social ( princípio 2) La scuola dei lavoro ( A escola do
educativo informal) e a escola pro trabalho - não traduzido - A vanti,
priamente dita (instituição educativa 18/07/ 1916);
tradicional) existem formas educativas 3) La scuola all'officina ( A escola vai
organizadas, isto é, verdadeiras "es à fábrica - não traduzido - Avanti,
colas", com efetivos programas unitários 08/09/ 1916) ;
e orgânicos de atividades formativas 4 ) Homens ou máquinas? ( Avanti,
( "attivitá educativa diretta"), criados e 24/ 1 2/ 1 9 1 6) - (OBS. - Os textos an
ligados às diferentes práticas produtivas teriores ao cárcere que foram tra
da sociedade. Quando Gramsci fala de duzidos para o português, se encontram
escola, deve-se prestar atenção porque na pobre e mal feita antologia da
muitíssimas vezes entende referir-se jus Editora Seara Nova, com o título de Es
tamente a esse conceito mais amplo de critos Políticos. Os em italianos perten
escola ( círculos culturais , Rotary cem às edições Einaudi).
Clubes, escolas dos grandes jornais, das 5) L A Universidade popular ( Avanti,
fábricas, do comércio, etc., etc. ) . Esse 29/ 1 2 / 1 9 1 6) ;
dilatamento da idéia de escola é natural 6) Para uma Associação de Cultura
para Gramsci, de fato ele não é um (Avanti, 1 8/ 1 2/917);
professor, nem um "especialista edu 7) Cultura e luta de classe (11 Grido
cacional", é um jornalista e chefe de dei Popolo, 25/05/19 18).
Partido, A educação o interessa muitís
simo; mas o trabalho educativo-escolar B. Escritos do após guerra (1919-
que efetivamente desenvolve se dá na 1921). Deste período, destacamos nove
"escola de Ordine Nuovo" do Partido textos:
Comunista, que justamente é uma es 8) Democracia operária ( Ordine
cola no sentido amplo. Nuovo, 21 /06/ 1919);
Para uma aproximação suficiente da 9) A escola de cultura (Ordine Nu
concepção educativo-escolar de Grams ovo, 20/ 1 2/ 1 919);
ci, precisamos acompanhar o processo 1 0 ) Lo strumento dei lavoro (O Ins
de reflexão que ele fez sobre esse tema, trumento do Trabalho - não traduzido
lendo seus escritos (pelo menos os mais - Ordine Nuovo, 14/02/ 1 920) ;
importantes) nos diferentes momentos 1 1) Operário de fábrica (Ordine
históricos de sua vida, porque Gramsci Nuovo, 21/02/ 1 9 1 0);
constrói sua teoria ao longo da história, 12) Partido de Governo e Classe de
no debate contínuo com interlocutores Governo ( Ordine Nu ovo , 2 8 / 0 2 e
concretos, a partir de planos e estra 06/03 / 1920);
tégias políticas bem definidas . O guia de 13) Superstição e realidade ( Ordine
leituras que sugerimos é mínimo, porém Nuovo, 08/05/ 1920);
suficiente para uma primeira abor 14) O Conselho de fábrica (Ordine
dagem do tema em pauta. A síntese Nuovo, 05/06/1 920) ;
final decorrerá naturalmente. 15) O Programa de L'Ordine Nuovo
Podemos dividir a produção teórica (Ordine Nuovo, 14/08 e 28/08/ 1 920) ;
gramsciana em quatro momentos: 1 6) Gestão capitalista e Gestão
a) Escritos durante a Ia. Guerra operária (Ordine Nuovo, 22/ 1 1 / 1921).
(1915-1918)
b) Escritos do após guerra ( 1919- C. Escritos durante a ascensão do
1921) fascismo (1924-1926). Deste período,
c) Escritos durante a ascensão de destacamos três textos:
fascismo ( 1 924- 1 926) 17) O Programa de L'Ordine Nuovo
d) Escritos do cárcere ( 1 927- 1937) (Ordine Nuovo, 01 a 15/04/ 1 924);
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18) A escola de Partido ( Ordine tas, economicistas da 2a. Internacional,
Nuovo, 01/04/ 1 925) ; contra os "revolucionários" ( maximalis
19) Ainda acerca das capacidades tas) retóricos e, naturalmente, contra os
orgânicas da classe operária (L'Unitá, conservadores liberais. Para Gramsci o
0 1 /0 1 / 1 926) . exemplo dos comunistas revolucionários
russos era imperativo: algo de seme
D. Escritos do cárcere (1929-1934) . lhante havia de acontecer na I tália onde
Deste período, destacamos dois longos a guerra também estava apressando as
textos: condições revolucionárias.
20) o Caderno n� 1 2: Apontamentos Seu interesse para as questões cul
e notas esparsas para um conjunto de turais-formativas era orientado pela ob
ensaios sobre a história dos intelectuais jetiva preocupação que tinha de pre
( Caderno especial, 1 932) ; parar os quadros dirigentes que ha
'
21) o Caderno n � 22: A mericanismo veriam de governar o novo Estado
e Fordismo (Caderno especial, 1 934) . Proletário. Nessa direção, o problema
principal era formar pessoas de visão
ampla, complexa, porque governar é
Obviamente, nos limites desta ex
uma função complexa e de histórica im
posição será impossível descrever a con portância. U ma palavra chave que nesse
textualização histórica detalhada desses debate emerge é o tenno "desinteres
textos e, menos ainda, comentar cada sado" ( cultura desinteressada, escola e
um deles. Teremos que dar, necessa formação desinteressada) que conota
riamente, apenas algumas informações horizonte amplo, de longo alcance, isto
gerais sobre o m o mento histórico é , que interessa objetivamente n ão
político e apontar para as idéias prin
apenas a indivíduos ou a pequenos
cipais de Gramsci sobre o trabalho como grupos, mas à coletividade e até à
princípio educativo daquele momento . humanidade inteira. U ma segunda
palavra chave é "trabalho", isto é, a
A. Escritos durante a Ia Guerra. cultura, a escola e a formação devem ser
Durante a la. Guerra Mundial, o Par classistas, proletárias, do Partido
tido Socialista I taliano, ainda relati do trabalho.
vamente pequeno, no qual e para o qual No primeiro texto que sugerimos,
Gramsci trabalhava como militante jor "La luce che si é spenta" , Gramsci traça
nalista, enfrentava a grande questão o perfil de um verdadeiro mestre
nacional (e não apenas nacional) de se professor, isto é, daquele que não so
manter neutro ou de apoiar a guerra. De nega ao aluno (proletário) as grandes
fato o PSI não possuía uma linha po fontes genuínas da cultura. O verda
lítica de ação clara, unitária e revolu deiro mestre coloca o aluno em contato
cionarIa. Decidiu, obviamente, pela direto com as fontes clássicas do pen
neutralidade, solidário com a Inter samento e não se interpõe como um in
nacional, mas de fato não foi uma termediário que de fato impede a co
decisão forte, massiva e unitária. Mus municação direta entre os verdadeiros
solini , favorável à participação na grandes intelectuais e os "pequenos e
guerra, saiu do Partido Socialista em humildes" do povo, chamados a serem os
novembro de 1914. Foi nessa conjuntura grandes dirigentes do amanhã.
que Gramsci e seu grupo começou a "A Escola do Trabalho e a Escola
marcar posição revolucionária, denun (vai) à Fábrica" se constituem talvez nos
ciando o conjunto caótico do Partido primeiros textos importantes que abor
Socialista e definindo cada vez mais dam a complexa relação entre formação
"sua" linha política que tinha como es humanista e formação profissional.
tratégia preparar efetivamente, a médio Gramsci denuncia a mesquinhez do Es
e curto prazo, os quadros necessários à tado que se interessa pela profissio
tomada do poder estatal , por parte do nalização a partir de uma "interesseira"
proletariado italiano. A política de situação conjuntual: trata-se da ace
Unin e a revolução russa de 1 9 1 7 lerada e febril necessidade que o Estado
animou-o fortemente e reforçou sua vive de aumentar a produção industrial
linha de ação revolucionária. Ao mesmo de material consumido pela guerra.
tempo polemizava contra os determinis- Denuncia a retórica falsa desse Estado
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que, de repente, se lembra de enaltecer conheceram e exercitaram a "lingua
a escola do trabalho, discursando sobre gem" nacional e internacional; viven
a vantagem do aluno de classe média ciaram a solidariedade dolorosa da clas
entrar cedo nas fábricas porque assim se proletária posta na bucha dos ca
mais cedo se tornará adulto e elogiando, nhões pela burguesia; ouviram diferen
agora, a tradição educativa inglesa mar tes posições políticas; conheceram os
cada pela fábrica etc., etc. Gramsci partidos e ouviram falar de um estron
defende a Escola-do-Trabalho, no sen doso fato social (a revolução russa) e de
tido porém de uma relação de posse da Unin encabeçando o proletariado de
escola por parte da classe trabalhadora. seu país. Esses homens (os que so
"Homens ou máquinas? ", "A braram) voltaram às suas casas, muitos
Universidade Popular", "Para uma As fisicamente mutilados, todos moralmen
sociaçâo de Cultura" e "Cultura e luta te feridos e agora surdos às retóricas
de classe" são textos clássicos de Grams demonstrações de vitória. A inda restava
ci sobre trabalho e cultura. Neles reage a esperança de alguma recompensa por
violentamente às tentativas de se ofe parte do Estado: bons empregos,
recer à classe trabalhadora uma cultura aposentadorias para os inválidos, terras
e uma escola pobre, vulgar, sem vida, para os lavradores. Quando essa es
sem história, enfim, uma indigesta sopa perança também morreu, a revolta e a
de informações que mantém o opera indignação tomaram conta da I tália:
riado eternamente de chapéu na mão e greves, invasões de terras e manifes
boca fechada e o fixam, como máquina, tações de descontentamento constituíam
à política econômica do capitalista. o cenário social daqueles anos. As teses
do Partido Socialista, concluía-se, eram
B. Escritos do após guerra. O pe- verdadeiras . O mundo do trabalho
ríodo do após guerra, de 1 9 1 9 a 1 921 , elevou para o nível político o desconten
ano da criação do Partido Comunista tamento individual: em julho de 1 9 1 9
I taliano, pode ser considerado um houve uma greve geral de solidariedade
momento de apogeu para as aspirações à revolução russa e em novembro do
revolucionárias e proletárias italianas e mesmo ano o Partido Socialista saiu das
internacionais. De alguma forma tinha urnas enormemente fortalecido. Era
sentido o paralelismo que Gramsci (e agora o maior Partido italiano ( 1 56
muitíssimos outros) faziam com a re deputados).
volução russa, cujas condições ama Infelizmente, porém, este Partido
dureceram rapidamente durante a continuava não possuindo clara visão da
guerra. De fato, também na Itália a situação e das possibilidades de mudan
guerra determinou um rápido ama ça da realidade. Gramsci (e seu grupo,
durecimento das condições revolucio Ordine Nuovo) percebeu que essa falta
nárias. O período do após gu.erra de direção política frustraria a I tália do
deixará sempre na história, assim como trabalho, o proletariado. Talvez Ordine
1945 e, talvez, 1968, a doce lembrança Nuovo tenha sido o único grupo "que se
da revolução "quase" acontecendo. A colocasse com seriedade os problemas
vitória italiana contra a Âustria logo se daquela revolução italiana que outros se
evidenciou como uma vitória fortemente limitavam a vaticinar como iminente e
mutilada. 600 mil homens mortos. Os inevitável" ( P focacci, Storia degli
feridos incontáveis. Os soldados vol italiani, Laterza, p. 497) . Nem a retórica
tavam às suas casas física e espiritual revolucionária dos maximalistas so
mente "curtidos" pela tragédia da cialistas, nem a morna cautela ou
guerra que, no entanto, havia sido tam traição dos reformistas: precisava es
bém um verdadeiro estágio ou escola de tabelecer um sério programa de trabalho
política e cultura nacional e interna para, teórica e praticamente, estruturar
cional. Esses jovens soldados, quando um verdadeiro Estado proletário alter
foram à guerra, haviam saído de aldeias nativo que desse forma política às for
afastadas e fechadas; falavam apenas os ças revolucionárias italianas. Foi essa a
dialetos, impregnados de experiência linha de trabalho de Gramsci e de seu
secular, mas pobres de horizontes grupo nos anos do após guerra.
modernos; seu universo linguístico não Neste sentido Gramsci abandonava,
conota perspectivas futuras. Na guerra em termos ideológico-educativos, a linha
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da mera oposição e se aplicava, com didos.
rigor e com o máximo esforç o , na No entanto, como deixar de fazer es
elaboração de uma proposta de política pecial referência ao originalíssimo texto
nacional efetiva e socialista. Do ponto "O Instrumento de Trabalho" (não
de vista teórico a primeira questão era traduzido) em que se descreve plasti
unificar definitivamente o mundo do camente a base epistemológica da
trabalho com o mundo da cultura; a unitariedade da nova sociedade socialis
ciência produtiva com a ciência hu ta, polemizando o conceito mecanicista
manista; a escola profissionalizante com positivista que pensa no instrumento de
a escola desinteressada. Essa questão trabalho como algo morto e inerte? Esse
devia ser resolvida radicalmente e, para é um texto importante porque estabelece
isso a base ou ponto de partida devia ser a primazia política dos Conselhos de
único. Este, obviamente, será o trabalho Fábrica sobre o próprio Sindicato e Par
industrial, a fábrica, a comissão interna, tido; questão muito séria que causou
o conselho de fábrica. Na intimidade não poucos problemas ao nosso autor
dessa "molécula" social m odern a, nas relações políticas com alguns com
residia em filigrana o projeto das novas panheiros.
formas de humanismo e de cultura: o E cumo também não fazer especial
sindicato, o Partido, a economia, a his referência ao texto "Operário de Fá
tória, o socialismo e também a escola brica " que aclara, com o tipico estilo e
unitária. Esta visão epistemológica cons linguagem mediterrâneos (límpidos e
titui, para Gramsci, a sólida base diretos) , o processo educativo de um
teórica para pensar coerentemente uma novo tipo de humanidade (a classe
sociedade, uma cultura, e uma escola trabalhadora) que se forja na "escola"
realmente unitárias. Aos poucos Grams da fábrica? Ou, então, como não lem
ci conseguiu que a "escola" de Ordine brar outro texto precedente "A Escola
Nuovo funcionasse dentro desta visão de Cultura" , que em apenas quatro
que outros companheiros (Tasca, so parágrafos nos dá um projeto de escola
bretudo) não compartilhavam, porque que, sem ser a tradicional instituição da
não aceitavam que o sindicato e o Par escola , não deixa de constituir-se numa
tido fossem "decorrências" dos Con verdadeira escola de "educação direta" ,
selhos de Fábrica; ou seja, não acei organicamente ligada à sua matriz
tavam que a cultura, a ciência, as ins pedagógica, isto é, à própria fábrica?
tituições proletárias brotassem do chão No oitavo texto sugerido, "O Programa
do novo "esforço muscular nervoso" in de Ordine Nuovo", Gramsci finalmente
dustrial e coletivo que, para Gramsci se nos explica em detalhes essa sua "briga"
constituía na base universal do edifício com o camarada Tasca e, por contra
socialista. Para a sede ( escola) de Or posição, acaba expondo s ua linha
dine Nuov o , Gramsci convidava os política e educacional (que ora lidera a
operários dos Conselhos de Fábricas, escola de Ordine Nuovo) com maior
alunos sim, mas sobretudo mestres nitidez.
naquela escola, que o próprio Agnelli, Em abril de 1920, aconteceu algo
dono da Fiat, tentou comprar, fasci que traumatizou o movimento revo
nado, mas sobretudo preocupado, por lucionário italiano: houve uma primeira
aquela experiência educacional. grande e fracassada grev e : "f omos
Gramsci escreveu muito, nesse derrotados" confessará Gramsci logo no
período, sobre a relação trabalho e primeiro parágrafo do texto "Supers
educação. A tentação de pinçar expres tição e realidade". F oi um duro golpe.
sões tipicas ou de comentar os trechos Será preciso "recomeçar do princípio" .
mais importantes é muito grande, de Mas, em setembro do mesmo ano,
nossa parte. Um dia, talvez , faremos is houve a grande tomada das fábricas de
so. Mas, o que importa realmente, é que Turim por parte dos trabalhadores. O
todos leiam e estudem diretamente esses gesto não durou muito, mas não foi uma
textos, pelo menos os nove aqui sele derrota, porque acabou sendo uma ex
cionados, porque só assim a riqueza e a periência ou teste positivo da adminis
força do pensamento gramsciano sobre a tração das fábricas por parte da classe
relação trabalho-educação poderão ser trabalhadora. A polícia precisou arran
convenientemente apreendidos e difun- car os trabalhadores de dentro das
11
fábricas. A incompetência adminis nário que desde a derrota de 1 848 havia
trativo-produtiva da gestão operária, ao perdido vigor p ermanecendo aceso
contrário, aumentou quantitativa e apenas nas formas da conspiração anár
qualitativamente a produção. A policia quica ou se havia apagado de todo no
arrancou os operários das fábricas, por determinismo economicista da 2a. Inter
que o Partido Socialista não soube dar a nacional. A partir do novo surto re
cobertura político-econômica: a matéria volucionário do após guerra, o capital
prima foi barrada antes de chegar aos entendeu que o velho Estado liberal
port ões das fábricas e os p rodutos burguês, velho "bombeiro" da sociedade
acabados não foram distribuídos. Em capitalista, não dava conta de controlar
"Gestão capitalista e gestão operária" esse vigor revolucionário em ascensão e
sente-se o sabor de "laboratório" da ex não conseguia abaixar suas elevadas
perimentação político-econômica que labaredas: era preciso criar um corpo de
deu certo, isto é, a grande hipótese "bombeiros" especializado, paraestatal,
gramsciana de se construir uma so armado e sob o imediato controle do
ciedade nova e unitária embasada nas capital. Logo, portanto, os industriais
vivas células dos conselhos de fábrica italianos transformaram sua associação
(sovietes italianos) , revelou-se com de categoria - a Confindústria ( espécie
provada, embora, por circunstâncias de FIESP) - num verdadeiro comando
outras, não se tenha universalizado. contra-revolucionário, com a única fun
Realmente, precisava-se de um partido ção de sabotar, neutralizar e reprimir os
mais forte e decidido. movimentos revolucionários. Pode-se
dizer, portanto, que o processo de as
C. Escritos durante a ascensão do censão do fascismo é a resposta do
fascismo. Em 1921, em Livorno, o grupo capital à nova e incontrolável esperança
revolucionário dos comunistas separa revolucionária mundial desencadeada
se do velho e confuso Partido Socialista, com o fato e o sucesso da revolução rus
criando o novo Partido Comunista sa. A Confindústria, sem deixar de pres
Italiano. Evidentemente, a antiga briga sionar o velho Estado liberal italiano
com Tasca, ou seja, a questão da pri para que reprimisse os movimentos
mazia partidária versus primazia dos revolucionários, p aralela e extra
conselhos de fábricas, não parava. A oficialmente organizava, financiava e
criação do Partido Comunista, a ida à protegia a triste guerrilha das brigadas
Rússia de Gramsci e, sobretudo, o fas fascistas que, no campo e nas cidades,
cismo que se organizava, fazem Gramsci invadiam, incendiavam, massacravam
repensar a relação entre o Partido e os sedes e líderes socialistas e comunistas.
Conselhos de Fábrica: "Todos os Mussolini seria o homem indicado para
problemas de organização de fábrica dar a essas brigadas aparência de res
serão por nós, portanto, repostos em peitabilidade política. Conseguiu
discussão, porque só através de uma "seduzir" o novo Papa Pio XI, eleito em
potente organização do proletariado, al fevereiro de 1 922, que forçou a Igreja
cançada com todos os sistemas possíveis toda (e não só a italiana) a "deixar a
em regime de reação, a campanha para política" nas mãos desse líder. O velho
o governo operário e camponês pode não Partido Popular Italiano (mais tarde,
se transformar numa repetição da Democracia Cristã) , fundado por Padre
ocupação das fábricas" (O Programa de Sturzo, que de alguma forma Gramsci
Ordine Nuovo, 1 924) . respeitava, viu de repente a hierarquia
De fato, o terTor branco fascista eclesiástica colocar-se contra. Também
varria, como um vendaval cada vez mais o velho Estado liberal "deixava a po
furioso, as esperanças, os planos e as lítica" nas mãos de Mussolini e de seu
tentativas revolucionárias dos anos do movimento. E mesmo muitos intelec
após guerra. O capital, nacional ( Fiat) o tuais e políticos respeitados (Pirandello,
internacional ( Nações Unidas) , havia se Marinetti, Croce, De Gasperis), pelo
dado conta que o movimento revolu menos até o delito Matteotti (maio de
cionário ( nacional e internacional) não 1924) , acreditaram na "respeitabili
estava brincando. A revolução russa, dade" do movimento fascista que Mus
que resistia e dava certo, elevou altís solini dirigia. Após o delito Matteotti,
simas as labaredas do fogo revolucio-
12
vários intelectuais ( Croce inclusive) se para ela é preciso se preparar. Toda a
dão conta que tudo aquilo não passava teoria que havia produzido nos anos
de uma farsa, mas já era tarde . Só o 1 9 1 9 e 1921 é ora burilada, não desmen
capital, de um lado, e os comunistas tida. O texto "Ainda acerca das ca
(sobretudo os de Ordine Nuovo), de pacidades orgânicas da classe operária "
outro, nunca se enganaram: conheciam ( 01 / 10/1926) testemunha essa "tei
perfeitamente qual era a real função mosia da inteligência gramsciana.
(repressiva e anti-revolucionária) desse Aliás, também os outros dois textos, "A
movimento e desse líder " carismático". escola de Partido" e "O programa de
Mussolini não perdoará <} Gramsci (e Ordine Nuovo " , assim como os Cader
a seu grupo) o fato dele não ter entrado nos que escreverá na prisão, provam que
nas malhas enganosas de sua sedução a referência teórica fundamental será
política. Fez de tudo para consegui-lo, sempre o que produziu naqueles pri
inclusive prometendo para mais tarde meiros anos do após guerra, na "Es
uma verdadeira revolução social. Grams cola" de Ordine Nuovo. Reafirma o
ci utilizava sua aguda inteligência para princípio educativo geral de que toda es
pôr a nu a direção política objetiva da cola ou movimento educativo se definem
história italiana daqueles anos: à me didática e essencialmente pela ligação
dida que a esperança revolucionária ( orgânica ou menos, adequada ou
imediata ia se afastando, a única alter menos) "entre as ' escolas' projetadas ou
nativa que restava seria um longo pe iniciadas e um movimento de caráter
ríodo de repressão violentíssima. À objetivo" (A escola de Partido). No caso,
medida que ele e seu Partido eram for a Escola de Ordine Nuovo tinha como
çados a calar-se, as massas de traba base e princípio educativo objetivos "o
lhadores italianos retrocediam no caos do movimento de fábrica e de Partido em
individualismo e do obscurantismo for Turim" (Ibidem). Constata ele que o
çados. A tênue forma organizativa de movimento objetivo que embasava a Es
classe revolucionária que havia emergido cola de Ordine Nuovo era imensamente
era agora apagada com o exílio, a tortura mais vasto e desproporcional à escola
e o sangue. Para Mussolini, a teimosa, que gerou, porque, infelizmente, poucos
cortante e penetrante inteligência de eram os "professores" e as estruturas
Gramsci, uma vez que não podia ser tur "escolares" . Mas, isso não faz mal; pior
bada, precisava ser emprisionada e ca seria se houvessem penetrado artifi
lada pela força. Foi o que mandou fazer ciosamente "professores" mal formados
em 1926. e o movimento objetivo operário se
Mesmo neste novo e trágico quadro houvesse tornado "campo de saque ou
político, Gramsci não desistiu de ela instru mento de experiência para a
borar novas táticas de trabalho: "Pas suficiência de mal formados pedagogos"
saram seis anos desde setembro de 1920. ( Ibidem) .
Neste penodo, muitas coisas mudaram Esse ranço contra os "mal formados
no interior das massas operárias que em pedagogos" refletia o debate pedagógico
setembro de 1920 ocuparam as fábricas que estava ocorrendo na Itália (a Refor
das indústrias metalúrgicas" escreveu ma Educacional de Gentile de 1 923),
em outubro de 1926, um mês antes de impelida pelos ventos da emergente
ser preso. Entretanto, sua "teimosia filosofia nacionalista e fascista, cujo
revolucionária" não cede: disposto a maior expoente filosófico era o próprio
rever táticas, disposto a enfatizar a im Gentile. Com essa reforma educacional
portância do Partido com referência aos Gramsci acertará as contas nas suas
Conselhos de Fáb ric a , continua a meditações carcerárias, contrapondo-lhe
atribuir toda a responsabilidade da a idéia da verdadeira escola
fracassada revolução ao próprio Partido unitária do trabalho. O que mais ir
e jamais à classe operária. O fascismo, ritava Gramsci no discurso educacional
para ele, é um momento ( talvez longo) gentiliano era sua hipócrita crítica con
de retirada, no qual a guerra de posição tra o positivismo e autoritarismo di
terá necessariamente a primazia tática, dáticos. De fato, a reforma educacional
mas a guerra de movimento, mais cedo de Gentile, ao impor no currículo na
ou mais tarde, haverá de acontecer, por cional a educação religiosa, forçava a
que sem ela a revolução é impossível, e metafísica a tornar-se "ciência objetiva"
13
e ao mesmo tempo, pior que o auto ser gerida pela classe trabalhadora que,
ritarismo da relação didática professor a partir de sua prática transformadora,
aluno,; dogmatizava o conteúdo cien molda um novo currículo educacional.
tífico da escola. E observe-se que Grams Em segundo lugar, Gramsci afirma que
ci não chegará a ver tudo o que o fas a diferença essencial entre a escola
cismo delirante de 1 939 fará em termos unitária do trabalho e a escola profis
de reformas educacionais. Gentile era só sionalizante está no fato da primeira ser
o começo. "desinteressada", isto é, formativa.
Nesse sentido, a escola unitária não deve
predeterminar o jovem e sim deve ob
D. Escritos do cárcere. No cárcere jetivar sua formação para que se tome
Gramsci realizará uma grande síntese de um homem de visão geral e superior;
sua teoria a respeito da relação tra enquanto a escola profissionalizante,
balho-educação. Sem dúvida os dois que se segue à unitária, sem deixar sua
documentos mais importantes sobre o função formativo-desinteressada, deve
assunto são: "o caderno especial nO 12" objetivar também o treino ( educação in
( 1932) sobre os intelectuais, a cultura e teressada) do jovem para que possa
a escola, e "o cadereno especial n 022" exercer a curto prazo uma função in
(1934) sobre americanismo e fordismo. telectual ou prática imediata.
Não me alongarei sobre esses dois Estrutura também o plano educa
primorosos documentos, porque preten tivo-escolar. A escola unitária do tra
do brevemente estudá-los de forma es balho e desinteressada abrange o pri
pecífica e o mais possível detalhada. meiro e segundo graus, enquanto que a
Do cárcere Gramsci mal podia "es escola profissionalizante compreende os
piar" a história acontecendo lá fora; anos universitários (para as profissões
trocar rápidos comentários com os com intelectuais) ou de academia (para as
panheiros presos; receber informações profissões práticas). Trata-se de um
incompletas nas cartas de amigos e projeto de escola unitária que pressupõe
familiares; ouvir sussurros sobre a con naturalmente relações sociais gerais
juntura nacional e internacional durante unitárias, embora embriões ou células
as breves visitas; e, sobretudo, lembrar e educativo-escolares unitárias sejam pos
sintetizar, ler livros e revistas que a cen síveis ou até auspiciáveis mesmo antes
sura carcerária permitia, planejar en do advento da sociedade socialista
saios de tal forma que os fascistas não unitária. Exemp lo de um embrião
passassem nas páginas de seus cadernos educativo-escolar assim concebido foi,
ou de suas cartas uma negra tinta in diz ele, a nossa escola de Ordine Nuovo
delével. Mesmo nessa difícil circunstân que teve grande êxito em Turim.
cia, aflito por repetidas e fortes crises de
saúde e preocupado pelas reviravoltas
políticas "confusas e problemáticas" de 6. CONCLUSÃO: A QUESTÃO
seu Partido (percebe as contradições do DO 2!' GRAU E DA POLlTECNIA
movimento revolucionário internacional
e não se convence de certos expurgos in Ao concluirmos essa exposição sobre
compreensíveis), Gramsci deixa para a "O Trabalho como Princípio Educativo
história 29 ricos cadernos e inúmeras em Gramsci", que pretendeu estimular
cartas que constituem uma maravilhosa e orientar as pessoas interessadas ao
síntese de seu pensamento. tema na leitura direta e ordenada dos
Em poucas palavras, pode-se dizer principais escritos de Gramsci sobre o
que Gramsci no cárcere, ao reorganizar assunto , acreditamos ser oportuno dizer
sua reflexão, reafirma a tese de que a algumas palavras sobre duas questões
base da cultura, da educação e da escola hoje muito debatidas pelos educadores.
é a prática produtivo-política do mundo Essas questões podem receber escla
do trabalho industrial. Reafirma que a recimentos importantes se analisadas à
expressão escola-do-trabalho conota luz da teoria gramsciana sobre a relação
uma relação de genitivo possessivo. A trabalho-educação.
escola unitária não pode pertencer ao A primeira questão diz respeito à
vago mundo do trabalho que confunde definição do estatuto pedagógico do 2?
capital com trabalhador, e sim só pode grau e sua relação com a escola unitária.
14
Existe um sentimento difuso de que o 2!l pelo trabalho e identificada com a or
grau sofre de falta de identidade pe dem natural" (Gramsci, Caderno. 12).
dagógica: é um ensino sanduichado en Assim, recomposta a unitariedade da
tre o 1!l grau e o ensino superior; geral escola de 1!l e 2!l graus que leva a crian
mente é posto no limbo confuso da ça até aos 15-16 anos., resta perguntar
"iniciação" ao trabalho. qual é a especificidade do 2!l grau. A
Muitas vezes ouve-se dizer que o 1 !l resposta para Gramsci é a seguinte: "Eis
grau visa formar o cidadão, enquanto o portanto que na escola unitária, a última
2!l grau visa prepará-lo para o trabalho. fase ( Liceu) deve ser concebida e arti
Sugere-se, às vezes, que "ao lado" de culada como a fase decisiva na qual se visa
todo curso colegial se criem oficinas de desenvolver ( criar) os valores fundamen
mecânica, ou de carpintaria, ou de tais do 'humanismo', a auto-disciplina in
eletrônica, etc. , etc. Dessa forma, na telectual e a autonomia moral necessárias
tentativa de esclarecer, parece que de para a posterior especialização seja de
fato se aumenta a confusão; ou, na ten caráter científico ( estudos universitários),
tativa de tirar o 2!l grau do limbo da in seja de caráter imediatamente prático
definição, se acaba deixando-o no pur produtivo ( indústria, burocracia, or
gatório da "iniciação ao trabalho". ganização comercial etc). O estudo e a
Parece-nos que a primeira questão a aprendizagem dos métodos criativos na
ser esclarecida é a seguinte: o 2!l grau ciência e na vida deve começar nesta úl
faz parte da escola unitária? Ninguém tima fase da escola e não ser monopólio da
duvida de que o 1 � grau deve ser a es Universidade ou ser deixado ao acaso da
cola unitária, mesmo que o conceito de vida prática: esta fase escolar deve já con
escola unitária nem sempre seja cor tribuir para o desenvolvimento do ele
retamente entendido; mesmo que mento de responsabilidade autônoma nos
freqüentemente se entenda que seu indivíduos, ( deve) ser uma escola criativa;
caráter de unitariedade se opõe, em é preciso distinguir entre escola criativa e
primeira instância, à fragmentação escola ativa ( . . . ) a escola criativa é o
curricular regionalista. Na verdade, coroamento da escola ativa" (Gramsci,
como vimos, à luz da teoria gramsciana, Caderno 12).
a unitariedade da escola se contrapõe à Em suma, a diferença entre o 1!l e o
duplicação entre escola científica, 2!l grau, para Gramsci, não está no
profissionalizante, técnica de um lado e princípio educativo ( uma vez que o
escola humanista, formativa de outro trabalho informa os dois), nem na ques
lado. A unitariedade horizontal geo tão da profissionalização ou iniciação ao
gráfica, poderá ser decorrência. Por is trabalho produtivo (pois os dois graus
so, quando se afirma que o ensino de 1 !l devem ser formativos ou desinteres
grau tem como ohjetivo geral formar o sados) e sim no método didático, uma
cidadão, enquanto o ensino de 2!l grau vez que no colegial "a aprendizagem se
tem como objetivo geral preparar ( re dá especialmente através de um esforço
mota ou imediatamente) para o tra espontâneo e autônomo do discente, on
balho, já foi rompido o princípio da de o professor exercita somente a função
unitariedade. de guia amigável como acontece ou
Para Gramsci não existe dúvida: a deveria acontecer na Universidade. Des
escola unitária abrange tanto o 1!l quan cobrir por si mesmos, sem sugestões e
to o 2!l graus; toda ela é escola-do auxílios externos, uma verdade é criar,
trabalho, desinteressadamente. Nesse mesmo quando a verdade é velha, e
sentido, o 2!l grau representa a fase final demonstra a posse do método ( . . . ). Por
da escola unitária. A noção de cidadania isso nessa fase a atividade escolar fun
tinha mais sentido para a ilustração damental desenvolver-se-á em semi
burguesa, já para a educação socialista nários, nas bibliotecas, nos laboratórios
o "cidadão universal" é o trabalhador. experimentais; através dessas ( ativi
Portanto, mesmo as primeiras séries do dades) serão recolhidas as indicações or
I? grau ( primário ou "scuola elemen gânicas para a orientação profissional"
tare") tem no fato e no conceito de (Gramsci, ibidem). A expressão "in
trabalho seu princípio educativo geral e dicações orgânicas" não pode sugerir
imanente: "porque a ordem social e es oficinas prático-produtivas anexadas às
tatal (direitos e deveres) é determinada escolas de 2!l grau, nem sugere a ins-
15
truç ão politécnica ou profissional de " desinteressado" na exp ressão
universal, e sim remete às leis funda "trabalho em função não imediatamente
mentais da própria ciência da técnica, profissional" . "Para se compreender
ou seja, da tecnologia. melhor o que Gramsci quer dizer quan
Estabelecida a unitariedade do I !> e 2!> do defende uma relação pedagógico
graus e a especifiéidade didática do 2� , didática 'desinteressada' deve se meditar
falta precisar a diferença que existe en atentamente as páginas sobre o Caderno
tre a escola unitária ( l !> e 2!> graus) e as 12 onde se fala do ensino do latim e do
escolas profissionalizantes ( Universi grego na velha escola média clássica
dades e Academias). Sem dúvida, o italiana (. .. ) Gramsci conclui que, assim
divisor de águas entre essas escolas e como aquela escola média clássica en
determinado pelo conceito de "interes sinava aquelas línguas desinteressa
sado/ desinteressado" , ou seja, a escola damente (porque não objetivava treinar
unitária é desinteressadamente "profis intérpretes e nem tradutores) da mesma
sionalizante" , ou seja, é formativa, de forma a nova escola unitária proposta
cultura geral, humanista, do trabalho; deve ensinar a 'linguagem' do trabalho
enquanto que a escola especializada industrial moderno desinteressadamen
superior é interessadamente profis te" ( Nosella, Apresentação do Caderno
sionalizante, ou seja, sem renunciar a 1 2) .
toda formação formativa geral, ela é Se a questão da definíção de estatuto
também explicitamente treinadora para pedagógico do 2!> grau é polêmica em
o exercício imediato de ofícios e com muitos países, no Brasil esse tema se
petências específicas. "enriquece" de ingredientes políticos e
A categoria gramsciana de "interes sócio-econômicos tristemente caracteris
sado/ desinteressado" merece um estudo ticos. De fato, sabe-se que à maioria da
filológico especial ( que já encaminhamos juventude do Brasil é negado o direito
em nossa Apresentação ao Caderno 1 2 de se determinar profissionalmente após
de Gramsci). Ê um conceito que não os 1 6 anos de idade. Ora, essa situação
conota aspecto moral, mas indica violenta e caótica, que força a juventude
apenas visão de longo ou imediato al brasileira a produzir sua própria exis
cance; indica uma utilidade geral ( para tência (e o lucro) desde os mais tenros
toda a coletividade) ou uma utilidade anos de idade, determina também al
individual imediata. Trata-se de uma guma necessidade de treinar profis
terminologia muito recorrente nesse sionalmente de forma interessada esses
autor em todos seus escritos. mesmos trabalhadores crianças ou
A definição do estatudo pedagógico adolescentes.
didático do 2!> grau é uma questão A violência é atroz. Cabe, entretan
polêmica, não apenas no Brasil. Ma to, se perguntar quem deveria assumir
nacorda, referindo-se à reforma escolar este papel de treinar precoce e interes
italiana de 1 962, diz: "A unificação de sadamente essa novíssima geração. Do
todas as estruturas escolares para os meu ponto de vista seria um equívoco
adolescentes de 1 1 a 14 anos e a in solicitar que a escola unitária renuncie à
trodução das matérias científicas, antes sua dimensão formativa desinteressada
ausentes, coincidem com a aspiração para exercer esses treinos profissio
gramsciana. I gualmente coincidem as nalizantes prematuros. De fato, cabe às
tendências, até agora emergentes, mas instâncias "escolares" naturalmente
fortemente contrastadas, para uma profissionalizantes (faculdades, aca
unificação posterior à instrução secun demias , ou as próprias atividades
dária para os adolescentes de 14 a 1 8 / 1 9 prático-produtiva, o comércio e a indús
anos (ainda e m discussão neste momen tria) se adequarem ao estado de violên
to em que escreve), para uma ampliação cia social que vivemos e organizarem os
nesse nível das disciplinas científicas, e treinos de seus trabalhadores precoces.
para uma presença do componente Ao invés de a Escola Unitária renunciar
trabalho, em função não imediatamente à sua essencial dimensão desinteressada,
profissional, mas geralmente formativa" tentando assim de forma assistencial
(Manacorda, H istória da Educação, p. substituir as escolas imediatamente
334-335, Cortez, 1989) . Como se vê, profissionalizantes, é preciso colocar sob
aparece de novo o conceito gramsciano a direção dos trabalhadores estas escolas
16
ou cursos. Por exemplo, ao invés de ten smolllmos e, se é verdade que a palavra
tar substituir ou imitar os cursos do é a casa do ser, o respeito por ela é o
SENAI e do SENAC, é preciso lutar respeito pelo ser. Já no segundo capítulo
para que estas instituições sejam di do citado livro História da Educação,
rigidas pela classe trabalhadora que, em Manacorda traduz o termo grego ( téch
última instância, as mantém. Na rea ne) como "ofício" ( p. 57). profissão ar
lidade as atividades prático-produtivas tesanal ou intelectual de execução e não
já treinam seus trabalhadores precoces, de mando: "Em geral, o ofício de mestre
movidas pelas necessidades da produção era o ofício de quem caíra em desgraça
e do lucro. Por isso, se a escola unitária (como no exemplo de Dionísio de Si
renunciar à sua função educativo racusa) e nisto parece perpetuar-se o
desinteressada , estará desnecessaria destino de F é nix e Pátroclo. Mais
mente ajudand o, substituindo-as, as or exatamente: entre as téchnai, os ofícios
ganizações prático-lucrativas em sua ou profissões artesanais, esta téchne in
função educativa profissionalizante in telectual em geral não era exercida por
teressada, enquanto o inverso não acon homens do démos, em cujas famílias o
tecerá, ou seja, ninguém substituirá a ofício passava de pai para filho, mas por
função educativo-desinteressada da es homens de classes cultas que por des
cola unitária. graça tiveram que descer na escala
A segunda questão que me propus a social" (Manacorda. ibidem, p. 6 1 ) .
expor nessa conclusão, para o debate e Manacorda, entretanto, não faz essa
para ulteriores estudos, refere-se à assim discussão com base apenas na filologia
chamada formação politécnica, que, ob antiga, e sim no próprio terreno dos tex
viamente, nos faz pensar na noção de tos socialistas de Marx, Engels, Lênin,
politecnia. Krupskaya, Makarenko e Gramsci. À
Mario A. Manacorda, ao ler minha página 314 do mesmo livro, após uma
apresentação "Ao leitor brasileiro" de citação de Krupskaya que diz expli
sua História da Educaçâo - da An citamente: "Em vez de 'instrução profis
tiguidade aos nossos dias , fez alguns sional' é preciso dizer 'instrução politéc
reparos. Entre esses, pediu que subs nica' ", afirma: "Na verdade, isso precisa
tituísse a expressão "fixa as bases de de um aprofundamento posterior: Marx,
uma escola politécnica para os traba de fato, fala de 'instrução tecnológica
lhadores" com a expressão "fixa as teórica e prática' e deixa para os bur
bases de uma escola tecnológica para os gueses a ' tese predileta' de uma ins
trabalhadores" . Naturalmente seu trução politéc nica ou profissional
pedido foi logo atendido, e tentei enten universal" (Manacorda, ibidem, p.
der a razão dessa sua exigência. F oi fácil 3 14) .
constatar que não era uma mera questão Krupskaya, de fato, defende a 'ins
terminológica. Havia por trás uma longa trução politécnica' não, porém, con
discussão e uma posição teórica precisa trapondo-a à tecnológica e sim à ins
que o próprio M anacorda sustentava trução profissional, ou seja, de fato a
desde os anos de suas atividades de direção de seu pensamento aponta para
tradutor para a língua italiana dos es um afastamento do pólo profissiona
critos de Marx, Engels e Lênin sobre lizante. Ê justamente o vetor ou direção
educação. Parte dos resultados dessas dos textos pedagógicos marxistas que
atividades de tradutor crítico foi pu interessa a Manacorda. De Marx e En
blicada pela editora Armando em 1 964, gels, para Unin e Krupskaya e ainda
sob o título I1 marxismo e l 'Educazione , para Gramsci e Makarenko há uma
Marx-Engels-Lênin, base filológica de direção a ser captada e, por que não,
seu posterior livro, por muitos de nós levada avante. Não é possível, portanto,
conhecido, Marx y la Pedagogia Moder cristalizar as teses pedagógicas do mar
na, que está sendo traduzido para nossa xismo em expressões ou citações iso
língua. ladamente tomadas ; cada texto tem seu
A princípio, como disse, a questão contexto e o conjunto dos textos tem
pode parecer uma mera disputa ter uma direção. Nesse mesmo estudo de
minológica entre os termos "politecnia" caráter filológico que Manacorda faz
e "tecnologia" . Na verdade, é preciso sobre os textos relativos à educação de
reconhecer que os dois termos não são Marx, Engels e Lênin ( 1 964) se afirma
17
que os textos marxianos e m que se defen Educação, p . 1 1 - 1 2) .
de a instrução politécnica devem ser O b v i a me n te s a b e - s e q u e m u i t o s
contextuados e justificados no sentido de educadores brasileiros quando sugerem
que a proposta marxiana da politecnia a " instrução politécnica" de fato não
tinha um carácter estratégico-tático con entendem sugerir a pluriprofissiona
siderando-se a situação sócio-econômica lização, no sentido que c termo " po
do momento. O mesmo argumento vale litecnia" sugere etimologicamente e no
para Lênin e Krupskaya. Entretanto, a sentido que a burguesia quer. Esses
tese mais profunda e fecunda de M arx educadores freqüentemente aponta m ,
deve ser procurada no Capital. Lá ele falando d e politecnia, para uma ver
fala claramente da dimensão burguesa, dadeira formação tecnológica. Entretan
que instrumentaliza o operariado, da ins to, me propus a abrir esse debate p or
trução politécnica e abre o caminho que, se aprofundado, pode ser fecundo e
para a verdadeira instrução socialista trazer para nós esclarecimentos que,
que é a tecnológica : "Mas ao mesmo quanto menos , serão de caráter his
tempo - comenta M anacorda - a tórico-filologico. Se .de fato, percorrermos
fábrica capitalista quer pela contínua o caminho teórico sobre essa questão ao
exigência de acompanhar as flutu açõe� longo de toda a produção marxista, re
anárquicas do mercado deslocando o lacionando-a com as diferentes conj u n
operário de um para outro ramo de turas p olítico-econômicas e estudando os
produção, quer pelo caráter revolu textos nas suas diferentes significações
cionário de sua base técnica, exige não teóricas, creio que a tese de M a nacorda
mais a fixação, mas a máxima versa realmente seja correta. Nessa caminhada,
tilidade na divisão do trabalho ( . . . ) . Gramsci (e sem dúvida Makarenko)
Para isso há a tendência, igualmente elimina qualquer dúvida sobre o fato do
n a tu ra l e e sp on tâ n e a da p ro d u ç ã o ensino politécnico se r burguês : para ele de
capitalista, a se criar esse operário mais fato a escola u nitária deve, mantendo as
versátil através de escolas politécnicas, caracteristicas culturais do Renascimen·
profissionais e agrícolas, que ministram to, estudar a prática- trabalho da so·
uma certa instrução na tecnologia e no ciedade moderna \ mundo da p olitec·
v
manuseio prático dos diferentes ins nia) , à luz da ciência- trabalho ( tecno
trumentos de produção ( . . . ). Todavia, se logia) e da história-trabalho ( hu manis
a legislação de fábrica, primeira con mo) .
quista arrancada ao capital, combina Finalmente, arriscamo- nos sugerir
com o trabalho apenas a instrução que a Lei de D iretrizes e Bases inc or
elementar ( p rimária) , a conquista do pore, no caput dos fins e princípios da
p o d e r p o lí ti c o p or p a rte da c la s s e educação, uma referência explicí ta ao
operária desenvolverá a instrução tec trabalho como p rincípio educativo,
nológica em todos os níveis, quer no dize n d o m a i s ou me n os a s s i m : " A
plano teórico quer no plano prático ( . . . ) . Educação Nacional, inspirada nos prin
E m 1867 Marx sublinha a o contrário o cípios de liberdade, igualdade e justiça
caráter teórico-prático de uma instrução social e pautada no trabalho social como
destinada a transmitir os fundamentos fonte de riqueza, dignidade e bem estar
científicos universais de todos os proces universais, deverá contribuir para o fim
s o s de p r o d u ç ã o, s obre a b ase da das desigualdades sociais e . . . " .
'moderníssima ciência da tecnologia '
que decompõe as policromas confi
gurações do processo de produção em Quanto ao 2? grau , seria conveniente
aplicações conscientemente planejadas se dizer mais ou menos o seguinte : "O
das ciências naturais. A distinção, de ensino de 2? grau constitui a e tapa con
resto, foi já frisada também pela clara clusiva da escola unitária e é direito e
polêmica feita por Marx em 1 847 contra obrigação de todos . Visa a aprofundar o
a escola que chamaríamos plu riprofis entendimento das relações entre os
sional, preferida pelos burgueses, à qual homens e destes com a natureza, através
polêmica mais tarde, em outra situação, de métodos didáticos que levem os
corresponderá a polêmica de Engels j ovens a estudar e pensar de forma cada
contra [' enseignément intégral de Com vez mais autônoma, livre, independente,
te" ( M a na c o r d a , O M a rx i s m o e a criativa e crítica " .
18
Obs. Existe um anexo, por mim organizado, os textos de Gramsci referentes à relação
que recolhe, pela o""em cronológica, todos trabalho-educação, citados nesta palestra.
Conferência proferida, parte na XI e parte na XII Reunião anual da ANPED, Porto Alegre,
26/4/1988 e São Paulo, 9/5f89.
* * *
19
A escola e a produção
da sociedade
ANDRÉ PETITAT
22
pelas mmUClas de uma sucessão de dicionais. As diferenças entre os colégios
eventos e do s o ciólogo q u e n unca protestantes e católicos eram bastante
apreende um fenômeno específico, in secundárias. A estrutura específica desta
dividuaI. Os conc,�itos de "estrutura" e nova instituição pode ser captada em
"longue durée" 110S fornecem um ter quatro níveis: espaço, tempo, a seleção de
reno comum no qual o sócio-historiador elementos sócio-culturais, e estruturas de
pode combinar um interesse no espe poder (Dainville, 1978; Aries, 1965; Rin
cífico com uma paixão pela reconstrução ger, 1978).
sistemática. Aqui, "leis" e "regulari (a) Historicamente, a revolução que
dades" são meramente um momento os colégios representaram foi, antes de
num processo de c o mposição tudo, uma revoluçào no espaço em que o
decomposição de categorias e estruturas ensino tinha lugar, envolvendo a subs
sociais. tituição de instalações dispersas, an
A perspectiva construtivista vê a es teriormente ocupadas por professores
cola não como um instrumento de cor "independentes", por um único edifício
pos pré-estabelecidos, mas antcs como contendo um certo número de salas de
um agente na em ergência de estruturas aula. A transição do espaço individual
e grupos sociais. Não há lugar aqui para artes anal para o espaço coletivo
subordinar a escola a uma visão global manufatureiro estava intimamente
de evolução ou leis históricas gerais das relacionada à maioria das outras trans
quais seríamos prisioneiros. Mas esta formações subseqüentes: controle dos
rejeição do historicismo não deve im estudos, supervisão dos estudantes, ad
pedir a existência de outras zonas in ministração centralizada, racionalização
terativas e dinâmicas. Através da adoção e planejamento dos estudos, etc.
desta abordagem, em que a busca da (b) À medida que os estudantes eram
"verdade" centra-se no movimento e levados a se reunirem em um único e
não nos mecanismos sincrônicos, po grande espaço, havia uma crescente sis
demos "ver" a escola como agente, tematizaçào do uso de seu tempo, en
como um meio fazendo uma contri corajada por uma transformação fa
buição insubstituível à gênese de certas vorável de mentalidades. Esta orga
categorias sociais. nização ia bem além do planejamento
A validade desta abordagem é ilus das atividades diárias, para os quais os
trada nas páginas seguintes com uma monastérios forneciam in umeráveis
discussão das origens dos colégios e da modelos; ela cobria todos os aspectos
burguesia no século XVI. Algumas dos estudos, culminando numa gra
outras e poucas situações serão bre dação sistemática e na corresponde
vemente discutidas a fim de sugerir as definição e separação das matérias. Esta
múltiplas contribuições que a escola faz racionalização acarretava e reforçava
para a produção da sociedade (para mais uma certa idéia de trabalho, de trabalho
detalhes, ver Petitat, Produetion de compulsório, assim como uma relação
l'éeole. produetion de la soeieté, 1982). institucionalmente definida entre
matéria e tempo de aprendizagem, entre
o ato de ensinar e a verificação do que
era aprendido. Ela plantava a semente
A Emergência dos colégios de uma abordagem educacional in
e da Burguesia no Século Dezesseis teiramente nova, baseada em exames,
notas, e definições dos estudantes como
inteligentes, preguiçosos ou estúpidos.
(c) A imposição desta grade "espaço
Presente sob forma embriônica já no tempo" sobre o corpo, a mente e a
século XV, o colégio humanístico trans matéria era acompanhada por uma
formou-se em sua forma tipica entre 1530 correspondente ruptura na escolha do
e 1550 e veio a espalhar-se por toda a que era ensinado. Um currículo cons
Europa a uma taxa exponencial. Com um truído em torno da lógica e da dialética
novo programa. uma nova organização de era descartado em favor de um currículo
estudos e novos métodos educacionais, os centrado nas Belles-Lettres, isto é,
colégios representaram uma ruptura Latim e Grego em suas expressões for
notável com as faculdades de artes tra- mais altamente desenvolvidas. Nas
23
faculdades católicas, mesmo os graus popala grassa, em contraste com a
primários devotados à leitura e à escrita "gente comum", o papaia minuta, para
eram ensinados em Latim, antes de se usar o vocabulário herdado das cidades
seguir para a gramática, com todas as italianas da época. De acordo com es
suas conjugações e declinações, e mais tudos históricos sérios, os nobres e os
tarde, para a história, poesia, retórica e artes ãos constituíam a minoria da
finalmente filosofia. Da mesma forma, população estudantil (Frijhoff e Julia,
escrever era o método básico de ensino 1975). A aristocracia desenvolveu sua
na educação dos colégios, o qual, à própria rede de ensino nas academias
primeira vista, parecia consistir numa nobres, enquanto as artes mecânicas
longa litania de exercícios e exames es preparavam a maioria dos estudantes
critos. para a futura rede das escolas de ca
(d) Para se extrair alguma produ ridade.
tividade educacional deste mundo fe
chado e regulado, em que se esperava
que os estudantes absorvessem grandes Analogias Estruturais com a
doses de conhecimento divorciado do Transformação das Condições Gerais
contexto social da época, era necessário
ter-se uma nava autaridade educacianal, Há, portanto, uma boa razão para se
capaz de canalizar as energias das pes pesquisar as afinidades estruturais sub
soas. jacentes entre os colégios e o papaia
As estruturas corporativas tradi grassa emergente. Ao fazer isso, exa
cionais foram substituídas por hierar minaremos os mesmos aspectos que
quias burocráticas de complexidade e examinamos na seção anterior e apon
tamanho variados. Enquanto os colégios taremos os devidos paralelos com os
jesuítas, por exemplo, pertenciam a uma colégios.
grande rede educacional, com uma am (a) O colégio correspondia a um
pla hierarquia, alguns dos outros eram domínio institucional do espaço que
faculdades independentes com pouco pode ser atribuído em parte aos monas
mais que um conselho, um diretor, térios, mas também e acima de tudo a
professores e estudantes. Em todos os certas realizações do papaia grassa A.
24
cartado em favor do espaço infinito à es que trabalhavam com suas mãos, e a
pera dos novos conquistadores e do fim de se identificarem mais estreita
minadores do mundo (8raudel, 1972; mente com a vida improdutiva e com o
Koyré, 1969; Francastel, 1967). desprezo pelo trabalho da nobreza cor
(b) Durante os séculos XV e XVI, tesã e ociosa (Seyssel, 1981; Loyseau,
houve transformações i gualmente 1620; Pernoud, 1960/62; Mousnier,
profundas na forma pela qual o tempo 1973; Delumeau, 1973).
era percebido. No centro dessa mudança A escrita e os colégios foram os
situa-se o mercador, a alma do popolo meios para que se mantivesse uma certa
grasso. O tempo libertou-se da Igreja e distância da vida, para que se obtivesse
dos céus. A vida ordenada do monge, um divórcio entre a cultura e a vida
cadenciada pelos ritmos cósmicos, cedeu cotidiana. Esta distância mediada con
caminho à vida cotidiana s ecular duziu talvez a uma consciência obje
gradualmente subordinada aos ritmos tivadora, a este divórcio entre o sujeito e
do relógio. O relógio simbolizava o o objeto que constihü o próprio fun
domínio do tempo, tanto para o honnête damento do conhecimento científico. O
homme que planejava seu próprio tem burguês letrado não estava de forma al
po, quanto para o empresário que guma imerso em sua cultura escolar do
planejava o tempo de outras pessoas (Le mesmo modo que um mercador comum,
Goff, 1980; Quinones, 1972; Mumford, que escrevia prosa sem reconhecê-la, es
1963; Weber, 1958; Gutton, 1971; An tava na sua. Sua relação com a cultura
thony, 1977). era ornamental, instrumental e ana
Para além dessa convergência geral lítica.
entre a forma pela qual tanto os em (d) Os colégios eram um microcosmo
presários modernos quanto os colégios dos elementos fundamentais do poder
viam e usavam o tempo, deve ser obser moderno, na forma sob a qual estava
vado que os colégios corporificavam esta apenas começando a emergir no século
nova relação com o tempo melhor que XVI. A emergência do estado central
qualquer outra instituição. Em nenhum significou o fim da autonomia dos se
outro lugar havia um planejamento que nhores e das cidades, juntamente com o
se estendesse por tantos anos, afetando das guildas e dos Estados Gerais provin
tantas pessoas. As crianças e os adoles ciais ou nacionais; da mesma forma, a
centes eram o campo de prova para o Igreja tornou-se subordinada e alinhada
novo controle sobre o tempo. (Mousnier, 1967; Durand, 1969). A or
(c) Embora os colégios não tivessem ganização burocrática moderna, com
inventado a escrita, ou mesmo os livros seus muitos níveis de funcionários civis,
de contabilidade, sua pedagogia ba demissíveis, estava ainda nos seus es
seada nos textos escritos refletiam uma tádios embriônicos quando os notáveis
mudança fundamental em direção a sistemas administrativos dos colégios se
uma das características distintivas da difundiram - o mais notável deles sen
sociedade moderna, a saber, o uso sis do a enorme organização centralizada e
temático da escrita não apenas em uns hierarquizada dos jesuítas. Se os colégios
poucos domínios (religioso, legal, co imitaram o estado, isto aconteceu
mercial) , mas na definiçào cultural de apenas nas primeiras tentativas de
uma classe social como um todo. generalização. Afinal de contas, o es
Os colégios não foram o berço do tado educador p odia simplesmente
Renascimento; eles foram seu resultado seguir as bem testadas trilhas tornadas
normal, educado. A novidade do colégio conhecidas pela Ratio Studiorum.
estava não em seu amor explícito pelas Este processo de racionalização
Belles-Lettres e em sua admiração pelas burocrática, iniciada pela monarquia
obras da antigüidade, mas antes no fato centralizada com o apoio do popolo
de que todos, do nível mais baixo ao grasso, ganharia velocidade e ritmo
mais alto deste popolo grasso, concor quando a burguesia tomasse o poder.
daram em usar um cultura distante,
moribunda, talvez morta, como seu A Classe Burguesa:
ponto de referência cultural a fim de impensável sem os colégios
definir a si mesmos como estando si
tuados à parte das "classes mecânicas" Destaquei de forma deliberada as
25
convergências estruturais entre os co traste com as "promíscuas" condições
légios e as transformações contempo da Idade Média. A distância espacial e
râneas - transformações que estavam cultural substituía a incessante exibição
mais ou menos relacionadas à emergên pas marcas externas e ostensivas de con
cia de uma nova classe social. Em vista dição . social. Este processo pode ser
das funções sociais dos colégios, a serem comparado com a internalização da
identificadas, estes isomorfismos po relação individual com Deus, em con
deriam facilmente atuar em qualquer traste com a conformidade religiosa ex
das direções. Sem negar as circur,.;tân terna ou com a compra de indulgências.
cias que tornaram a emergência dos A formação de um grupo ou classe
colégios, com as caracteristicas acima social exige inevitavelmente uma certa
mencionadas, muito provável, uma série homogeneização cultural. Em minha
de fatores sugere que as atividades opinião, a "classe burguesa" não existia
educacionais assim estruturadas tiveram no início do século XVI; o que existia
seu próprio impacto. eram papali grassi, com uma consciên
Os colégios não foram os primeiros a cia local e fortes identidades urbanas,
introduzir a maioria de suas caracteris combinados com redes de familiares e
ticas distintivas; eles não foram ino clientes. A emergência de estados
vadores radicais, mas corporificaram monárquicos centralizados e a subor
certas tendências contemporâneas mais dinação das cidades e das guildas ar
perfeitamente que qualquer outra ins tesanais intimaram o burguês a existir
tituição. Da mesma forma, eles reu como uma classe numa escala nacional
niram as novas tendências numa es e, conseqüentemente, a movimentar-se
trutura moderna forte, durável e coeren para além do estádio dos papali grassi, os
te. Uma vez estabelecida, esta estrutura quais embora talvez livres, estavam con
difundiu-se muito rapidamente, conser finados aos limites de bolsões urbanos en
vando seus traços distintivos por mais de ciumados e belicosos. Foi a partir da
dois séculos. unidade cultural básica partilhada por
Esta corporificação avançada de ten gente comum endinheirada que a .bur
dências profundamente arraigadas, que guesia moderna emergiu, antes que exis
passam a gozar de uma popularidade tisse como uma classe com suas próprias
súbita e maciça, dá credibilidade à idéia ambições políticas.
de que os colégios influenciaram as Penso que os colégios exerceram um
mentalidades e as relações com o tempo, papel essencial neste casamento entre
o espaço, com modelos de administração dinheiro e cultura letrada, na consti
e com a cultura, estimulando, assim, tuição de um espaço simbólico baseado
relações com o mundo e com os outros na escrita. É impossível supor que não
que já estavam sendo cultivadas pela tenha havido nenhum agente de ho
burguesia emergente. mogeneização cultural neste processo.
Mas existe uma área em que a con Alguma outra instituição b as tante
tribuição específica dos colégios parece diferente dos colégios poderia eventual
inegável: a homogeneização cultural do mente ter exercido este papel, mas a
papaia grassa. Os colégios deram aos emergência de uma classe letrada neces
mercadores e aos notáveis um ponto de sariamente pressupunha uma base que
convergência, um terreno comum na estivesse além das redes familiares e da
cultura escrita e letrada, que os distin educação familiar.
guia radicalmente das ordens mais Até um certo ponto, os colégios
baixas e os deixavam mais próximos dos representaram uma autoconstrução da
estratos mais altos da sociedade. A cul burguesia, na medida em que um co
tura greco-latina dos colégios atendia ao légio era usualmente aberto por algum
seu desejo de distinção, de aquisição de homem rico nas cidades. Mas é óbvio
uma cultura estrangeira, decorativa, que estas elites urbanas não estavam
como uma sólida âncora para sua de pensando em termos de se produzirem a
manda de superioridade social. Não si mesmas como uma classe ao nível
constitui nenhuma coincidência que nacional; em vez disso, elas estavam
uma tendência pararela em direção à preocupadas com a possibilidade de
segregação espacial se tenha enraizado mobilidade individual, a qual exigia o
também durante o século XVI, em con- domínio de uma certa cultura e boas
26
maneiras, ou carreiras acadêmicas, etc. certas caracteristicas distintivas de nos
As virtudes homogeneizadoras dos sas estruturas sociais teria sido sem a
colégios eram mais evidentes para as instituição da escola. Por exemplo, exis
Igrejas, tanto para os jesuítas quanto tem boas razões para se pensar que a es
para os protestantes, ansiosos por cola exerceu um papel ativo na indi
ganhar os corações e as almas da futura vidualização do controle social, uma
elite e por recrutar padres ou ministros. hipótese confirmada por uma análise
Seja como for, estas elites identificavam dos colégios e das escolas de caridade. E
se com seus colégios e estavam prontas a pode haver alguma dúvida sobre a con
lutar para preservá-las se por acaso as tribuição da escola para a emergência
autoridades decidissem que h avia das modernas e relativamente homo
graduados inúteis em demasia no reino gêneas nações-estados? Finalmente,
(Dainville, 1957). como podemos compreender a afir
De tempos em tempos, uma percep mação da cultura escrita e a supressão
ção mais leiga emergia, a qual via os da cultura oral sem o meio "escola"? Os
colégios como um instrumento para a livros e a escolas introduziram uma cul
homogeneização da cidade inteira tura mediada, um divórcio entre a
(Bodin, 1559). Mas não foi senão na produção cultural e o consumo cultural,
segunda metade do século XVIII que a e propiciaram às representações sim
burguesia começou a demandar ex bólicas uma nova autonomia da vida
plicitamente que os colégios se tornas cotidiana. Na metade do século XVI, os
sem um instrumento para a produção e colégios combinavam uma cultura morta
a reprodução da burguesia como uma com certas relações sociais e ajudavam a
classe dominante (Petitat, 1982). estabelecer novos processos de pro
Após essas breves notas históricas, dução-reprodução cultural que eram
podemos agora fazer um balanço tanto radicalmente diferentes dos processos que
das incertezas quanto da riqueza da governavam a cultura oral, inseparáveis
abordagem construtivista. A repetitiva da natureza social geral.
insistência na reprodução como o único As escolas são parte de nosso tecido
papel da escola leva-nos a esquecer que social, o qual não poderia produzir e
as categorias reproduzidas eram e ainda reproduzir a si mesmo sem elas. Isto
são objetos de produção. Acima de significa que ademais de participar da
tudo, esquecemos que o instrumento emergência de estruturas e grupos
para a reprodução de uma classe pode sociais, a escola toma parte em sua
também ter sido o instrumento para sua transformação. Um bom exemplo disto
produção original e subseqüentes trans pode ser encontrado na "modernização"
formações. Na vetdade, a própria idéia dos colégios no século XIX.
de "instrumento" não é mais adequada; Já no século XVIII, os desenvolvi
nem a de "autonomia": revisões impor mentos cientificos e as primeiras fases
tantes fazem-se necessárias. da revolução industrial estavam ques
Uma análise da relação entre as tionando a relevância do colégio clás
primeiras escolas técnicas e a emergên sico. A ampliação do currículo dos
cia dos engenheiros como uma categoria colégios, a fim de cobrir as linguagens
distintiva levariam a observações criticas modernas, as ciências humanas e na
análogas. Desenvolvidas na França para turais, a história e a literatura nacionais
servir ao estado, as escolas técnicas er e a geografia, pode ter significado a
gueram-se acima da compartimenta diversificação da população estudantil.
lização das relações entre poder e co Em vez disso, foi o inverso o que acon
nhecimento nos níveis superiores. Elas teceu no século XIX, como um resultado
tornaram-se assim uma instituição chave de duas sucessivas inovações conser
num novo processo de produção vadoras.
reprodução da cultura técnica (Arzt, Primeiro, estimulou-se a introdução
1966; Taton, 1964; Hahn, 1971; Petot, de departamentos "especiais", "moder
1958). nos", ou de escolas "práticas", seja nos
Em acréscimo a essas contribuições próprios colégios (como foi o caso da
das escolas para a gênese e o desenvol França, por exemplo) ou em escolas
vimento de certos grupos, é importante diferentes (a Realschulen na Alemanha).
examinar quão provável a emergência de Estes novos departamentos ou escolas
27
não levavam, entretanto, à universidade. ser necessário à produção-reprodução de
Esses ramos menores (conhecidos como grandes instituições políticas dominadas
"classes dos merceeiros" , na França), por uma "classe" social maior que o clã
que ofereciam uma educação em parte familiar. Aqui, os canais educacionais
profissional, em parte geral, foram não especializados (a família, o clã, o
purificados de seus aspectos utilitários local de trabalho, a pequena comuni
em meados do fim do século XIX. Daí dade) provam-se incapazes de produzir e
em diante elas passaram a levar a um reproduzir os princípios maiores de es
diploma "moderno", que dava acesso tratificação social: aqueles que dividem
às polytechniques, às escolas superiores o clero dos fiéis; os senhores e os fun
de engenharia e aos colégios de ciência e cionários públicos de seus sujeitos; os
humanidades e ciências sociais. Num produtores e os mercadores dos con
desenvolvimento paralelo, os aspectos sumidores; os gerentes e os técnicos
profissionais e seus estudiosos foram ex superiores dos trabalhadores; e assim
cluídos dos colégios e relegados a ins por diante.
tituições separadas (Ringer, 1978; Fal A produção-reprodução de uma
cucci, 1939; Prost, 1960; Piobetta, 1937; grande religião ou da ciência exige ins
Day, 1972, 1974). tituições homogeneizadoras supra
Os programas de estudo mais longos familiares. Isto resulta de uma neces
preservavam assim a relação privilegiada sidade estrutural. Talvez, com o desen
com a reprodução das classes dominan volvimento de novos meios, possam�s ter
tes, mas o preço pago era a adaptação. êxito em passar sem a velha estrutura
Esta adaptação conservadora às novas escolar burocrática ou em modificá-la
condições da ciência e da indústria substancialmente, inventando algum
acarretava a produção homogênea de tipo de substituto eletrônico ou ao estilc
uma cultura "moderna" exclusiva, de das redes de "convivência" de Illich, que
alto nível. Aqui, a escola produzia a fim tenha virtudes homogeneizadoras si
de melhor reproduzir uma classe social milares. Mas não podemos evitar a
em transformação. Tanto no Renas necessidade de um lugar, um "meio"
cimento quanto na revolução industrial, entre uma cultura com divisões cam
esta classe social necessitava de uma ins biantes e grupos sociais em movimento.
tituição de homogeneização cultural de A abordagem construtivista tende a
forma a assegurar sua definição em demonstrar que a escola, estreitamente
mudança e sua adaptação. Valeria a ligada ao meio da "escrita" até agora,
pena analisar essas situações em maior não é meramente um instrumento banal
profundidade, pois elas podem revelar para ser moldado de acordo com nossos
quão estreitamente os processos de desejos. O meio é aqui um produtor, de
produção e reprodução social estão in algum modo da mesma forma que o foi
terligados. a própria escrita, sem o qual grandes
A escola contribui para a produção sistemas poli ticos estáveis seriam difíceis
da sociedade, pois depois de um certo de ser imaginados. O uso generalizado do
nível da divisão do trabalho, a sociedade meio "escola" transforma os usuários e
não pode mais produzir a si mesma - deixa sua marca na própria estrutura
nem reproduzir-se - sem as escolas. Na social. Entretanto, o meio "escola" não é
história da civilização, as escolas às simplesmente uma outra forma de co
vezes precederam a escrita; mas na municação; ela é em si mesma um cru
maior parte do tempo, as duas invenções zamento de atores vivos, de professores,
caminharam juntas. Na escola apren estudantes, adminis tradores, políticos,
demos tanto o código da escrita quanto moralistas, etc.
aquilo que a escrita codifica: antes de É, portanto, importante entender
tudo, as leis da religião e do estado, e ambos os aspectos da atividade pro
contabilidade. Dos Sumérios ao Egito dutiva da escola: sua participação na
dos faraós e à China imperial, a emer produção-reprodução da atividade
gência do estado, da cidade, e dos produtiva da escola, como uma con
aparatos administrativos coincide com a seqüência das atividades mediadora5
escrita e com as escolas (Myers, 1960). supra-familiares; e como um meio sus
O escolar - o futuro padre, funcionário tentado por agen tes especializados,
público letrado ou mercador - parece dotados de uma certa autonomia na in-
28
terpretação e aplicação de regras e vez menos dependentes da ordem
valores, no desenvolvimento de pro econômica?
gramas, etc. Isto significa que a escola Essas duas perspectivas - tecno
faz uma contribuição produtiva tanto ao cratização e autonomização - têm
nível das transformações sociais prin numerosas implicações para as práticas
cipais quanto ao nível micro-social - educacionais diárias. Uma delas dá
um achado que tem sido confirmado por prioridade à avaliação, às regras para a
vários estudos que usam uma perspec certificação de especialistas licenciados,
tiva dinâmica ou construtivista (deve ser à produ tividade dos professores, e à ob
também lembrado que os professores e jetificação de sujeitos e situações; em
estudantes periodicamente reclamam contraste, a outra abordagem enfatiza a
ruidosamente que eles não são meras cultura autônoma, as necessidades e
correias de transmissão: o movimen to de exigências pessoais, a multiplicidade de
protesto do final dos anos sessenta é o espaços imaginários, o tempo "não
exemplo mais recente e maciço). remunerado" .
É verdade que a ação produtiva da A sociologia da reprodução e a his
escola e de seus agentes nem sempre é tória fatual não são muito úteis para o
perceptível. Quanto mais longa esta especialista educacional que tenta
ação, menos nos tornamos conscientes posicj.enar-se em termos de movimento e
dela, mais ela passa a fazer parte da de diferença entre gerações, no ritmo de
pedagogia oculta. Tanto os estudantes transformações profundas. Mas o so
quanto os professores acabam por ciólogo-historiador do presente e o his
deixar de perceber as lentas mudanças toriador-sociólogo do passado podem
de significados nas quais eles estão ajudá-lo a detectar as lentas mutações
imersos. na sociedade e capacitá-lo a ver o sen
E contudo, ao fim e ao cabo, o im tido de seu trabalho, para além dos ins
pacto principal do meio "escola" está tantâneos ideológicos de curto prazo.
nessa ação de longo prazo que se passa Nas ciências sociais, assim como em
sob a superfície ideológica. Para dar a todas atividades produtivas da socie
suas ações mais que um significado dade, os fatos não são meramente fatos;
superficial, enganoso, os educadores eles são (re) construções em que novas
devem confrontar as profundas transfor perspectivas adquirem forma, num
mações de nossa época. Situados entre leque de possibilidades. Hoje, à medida
duas gerações, entre o passado e o em que as ideologias fossilizadas entram
futuro, entre uma cultura amadurecida em processo de deterioração e as velhas
e culturas potenciais a serem elabo utopias dissolvem-se em religiões es
radas, não estão eles idealmente lo tatais, à medida que a tecnologia
calizados para se tomarem conscientes ameaça nos soterrar a todos em seus
de uma história medida em termos de refugos, este retorno a um tempo na his
gerações? tória, medido em relação ao ciclo de
E que tal se a escola, de uma forma uma vida inteira, deveria estar no centro
para nós oculta, estiver fornecendo os de uma reconstrução do sentido de uma
elementos simbólicos essenciais para ação pedagógica que se queira cultural
uma nova classe dominante? Que tal se mente produtora, de grupos, de es
a liquidação do humanismo clássico, truturas sociais, do futuro.
ainda o valor mais alto de apenas uma NOTA
geração atrás, tiver deixado livre o es A abordagem aqui proposta poderia ser chama
da de perspectivismo construtivista. Ela está rela
paço simbólico necessário para a coesão
cionada com uma série de escolas, incluindo
de uma tecno-burocracia que, com a -a École des Annales e a sociologia alemã. A hist6-
longa e firme ascensão do estado acaba ria é entendida como um campo de possibilida
des, sem um significado pré-determinado ou
por invadir toda a vida social? Que tal
unilateral (Braudel, 1980; Weber, 1958; Dilthey'
se a difusão de processos automáticos, 1961; Piaget, 1972).
da informática, e menores jornadas de
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* *
30
Magistério de 12 Grau:
um trabalho de mulher
GUACIRA LOPES LOURO
E
fatos e que contribuam para pensar em
seus significados e desdobramentos.
VidenciO' a ligação da mulh" com Em um artigo recente ("Estudos
a educação provavelmente parecerá dis sobre Mulher e Educação: algumas
correr sobre um lugar-comum. Sem questões sobre o Magistério"), Cristina
dúvida não são necessár ios m uitos Bruschini e Tina Amado, considerando
elementos para comprovar o quanto - a maciça concentração feminina na
em diferentes sociedades e épocas - a educação e a construção histórica do
mulher foi e é responsável pela educação magistério, afirmam: ..
das crianças. Se com referência à
educação não formal este é um dado
bastante aceito, também tornou-se ver "••• se a condição feminina do
dadeiro - a partir de meados do século magistério, como acreditamos, jus
XIX, em muitas sociedades - no tocan tifica o discurso do amor e do ca
te à educação formal, escolarizada. rinho e não de outro qualquer, e se
No Brasil, segundo dados do Recen este é utiUzado para encobrir as
seamento Demográfico de 1980 (cf. condições concretas nas quais a
Bruschini e Amado, 1988), 86,6% do prática d ocente acontece; se a
professorado é do sexo feminino. Estes ideologia da vocação leva a baixos
números são ainda mais expressivos se níveis de organização da categoria,
tratamos da pré-escola (99%) e das por que a preocupação com o gê
séries iniciais do 1 � grau - 1!1 a 4!1 nero não é incorporada nos estudos
séries - (96,2%). No 2� grau cresce a sobre o magistério ou a educação de
presença feminina (em relação a épocas modo geral? E os estudos sobre
anteriores) e na Universidade ela também mulher, o que dizem a respeito?
está presente, porém concentrando-se (Bruschini, C. e Amado, T., 1988 , p.
em determinadas áreas e nos níveis 8).
menos elevados da carreira.
Podemos portanto aceitar que de
fato a relação da mulher com a edu Demonstram estas estudiosas que
cação é muito estreita. No entanto se grande parte da pesquisa educacional
desejamos conhecer melhor esta relação não incorpora a questão do sexo da
encontramos muitas dificuldades. O que professora como um elemento que "pos
quero ressaltar é que aceitamos este sa ter algo a ver com o que está sendo
fenômeno praticamente como se ele fos analisado". Embora reconhecendo a
se "natural", como algo dado. Há ainda predominância feminina no magistério,
muito poucas pesquisas que descrevam e muitas pesquisas assumem uma neu
analisem a relação mulher-educação, tralidade com relação ao gênero, ou en
poucos estudos que criem teoria sobre os tão justapõem a categoria gênero em
lhadores que hoje compartilham profes rativo portanto indagar se o que veio
soras e professores com membros de infelizmente a se chamar de fe
outras categorias profissionais. minização do magistério se refere
A doação e o sacerdócio cederam realmente à mesma ocupação" (Ap
lugar à reivindicação por melhores con pie, 1988, p. 16) (grifos do autor).
dições de trabalho e salários. A imagem
de mãe substituta (ou tia?) está sendo
substituída pela de trabalhadora as Acredito que esta é uma. área impor
salariada e sindicalizada. Mas haverá tante a ser investigadl'. rl imagem de
por parte das professoras o reconhe centenas (e até milhares) de professoras
cimento efetivo desta transformação, ou lotando os estádios em assembléias,
não? Não terá esta nova situação (talvez promovendo passeatas e vigílias de
não tão nova) implicações diretas no en greve, ou tentando acordar com suas
sino? sinetas os governantes do estado é muito
Apple fala na contraditória loca diferente do antigo modelo pregado
lização de classe dos professores e pelas escolas normais. A surpresa de C.
professoras e afirma, junto com Wright, Drumond de Andrade com uma greve
que "é sensato considerar esse grupo em Minas Gerais, em 1 979. é ilustrativa:
como localizado simultaneamente em
duas classes", partilhando tanto dos in
teresses da pequena burguesia quanto
do proletariado. Ele vai ainda além, "U ma greve não é acontecimento
chamando atenção para o fato de que comum no Brasil. Se a greve é de
estas pessoas são de um gênero espe professores, trata-se de caso ainda
cífico: mais raro. E se os professores são
mineiros, o caso assume proporções
"Em toda categoria ocupacional, as de fenômeno único.
mulheres estão mais sujeitas a serem O que teria levado as pacatas,
proletarizadas do que os homens. dóceis, 'modestíssimas professoras da
Isto pode ser devido a práticas capital e do interior de Minas
sexistas de recrutamento e pro Gerais a assumir esta atitude, senílo
moção, à tendência geral de se dar uma razão também única, fora de
menor importância às condições de qualquer motivação secundária e
trabalho das mulheres, à forma pela circunstancial? U ma razão de
qual o capital tem historicamente sobrevivência?" ( Drumond apud
tirado proveito das relações patriar Novaes, M., 1984, p. 60),
cais, e assim por diante" (Apple,
1987, p. 5).
38
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* * *
39
,," _ --J� ,) ", " " ." : J" ,
E
vimento popular, procurando dar-lhe
regras de ação. Situam-se nesse caso as
,ta reflexão p.,te de um conjunto soluções oficiais dos organismos apa
de sentimentos meus frente a concretude gu
zi adores e desmanteladores do mo
da situação vivida por famílias que vimento popular - vindos da esfera
trabalham na catação de lixo em Porto pública. Esse assédio se combina com os
Alegre. intelectuais viajeiros internacionais que,
Quando a gente se envolve com na procura do exótico tropical e tupi
situações concretas do cotidiano das niquim, trazem soluções recheadas de
classes subalternas, emergem sentimen recursos financeiros e controle social.
tos vários que desafiam nossa racio Esse impasse, além do primeiro men
nalidade de intelectuais. Precisamente cionado, é de um impacto terrível, pois
nas condições subumanas vividas pelos consegue desmobilizar o povo e intelec
catadores de lixo de Porto Alegre surge tuais através do disfarce das migalhas.
um impasse: ou remeter a solução sempre Além disso, outro limite se impõe ao
para a situação estrutural e ao mesmo educador popular especialmente nessa
tempo distante, ou procurar o encontro sua prática: trata-se da transposição
com o possível, com o imediato. O mecânica de caminhos percorridos pela
amanhã para mim tem um tempo de an Nicarágua e Cuba. Nesses dois países
tecipação e de programação, enquanto encontram-se formas concretas de aliar
que a organização do amanhã para o educação e trabalho através da criação
catador é, no máximo, a manutenção de de unidades produtivas dentro do
uma rotina onde o imprevisível sempre es próprio espaço da escola: as hortas,
tá presente. oficinas e até mesmo a colheita do café
Busco, pois, entender junto com esse e/ou cana-de-açúcar. Onde estaria a
segmento popular como, através deste diferença entre tais iniciativas e as
tipo de trabalho, é possível acontecer o propostas pelo Estado e agências inter
processo educativo, pela superação do nacionais?
vivido hoje coletivamente pelos cata
dores, sem perder a perspectiva de
modificações estruturais aparentemente Educação e Trabalho: breve
mais distantes. retrospectiva
Ao mesmo tempo que esta é uma
busca metodológica de educação po Estes impasses podem também ser
pular genuinamente nascida na prática relacionados com a evolução que a
cotidiana de educadores e a população, temática Educação e Trabalho vem ten
tem-se enfrentado uma permanente in- do nos últimos anos, em particular des-
41
Vale ressaltar aqui o continuum da com bom ou mau tempo, permeado por
constituição da classe trabalhadora ex celebrações religiosas e por (des) encon
presso nas análises de Oliveira (1981) e tros do afetivo, - aquela referência do
Kowarick (1987) a respeito do setor lixo impregna-se de tal forma que o
"marginal da economia" onde tais olhar sempre está atento ao que possa
trabalhadores existem. O conceito es representar sobra (que se torna sinô
tático e fechado de classe impede uma nimo de matéria-prima) e sobrevivência.
análise desse segmento popular. Se faz Para a superação do que seja "mar
necessário a colaboração de Thompson ginal"", no conjunto da produção eco
(1987) que na introdução de seu livro nômica, como sendo algo fora do modo
traz um enfoque de . 'constituiçào' " de de produção capitalista, as críticas de
formação de uma classe como parte in Oliveira são suficientes - mas para a
dissociável para seu entendimento. Com noção de "marginal" como sinônimo de
isso e também um artigo de Hobsbawm preguiçoso, indolente e vagabundo -
sobre os sapateiros revolucionários, quem nos auxilia? É exatamente alguém
ousamos uma tentativa de abordagem como Kowarick que já auxiliou na
antropológica para descrição da cons análise econômica anterior tanto quanto
trução de identidade desse grupo de Oliveira ele recupera a história da noção
trabalhadores. de vadiagem imposta ao escravo liberto
e que até hoje ainda permanece nas
representações sobre o trabalhador
Constituição - construção de uma nativo.
identidade A identidade então S( (vlbtitui por
reação a esse tipo de estigma imposto
Tanto para o agente de educação pelo senso comum - mas muito tam
popular quanto para a própria popu bém pela própria atividade cotidiana, na
lação envolvida se faz necessária a qual os catadores são determinados a
procura de um entendimento de como agir permanentemente para a garantia
um setor da classe trabalhadora constrói do mínimo para sobreviver. Este é um
sua identidade. Isso exige do educador momento importante para ser com
uma qualificação de ampliação de seus preendido por aqueles que trabalham,
sentidos ao extremo para poder captar como educadores populares, junto com
as manifestações, no seu cotidiano, da esse segmento das classes subalternas. É
cultura popular. Sem "a prioris" de que, em contraste com o estereótipo da
modelar esses registros é possível se vadiagem, neste caso, estes sujeitos se
atingir ao que Brandão (1988) denomina defendem por uma ação individual de
de "cultura em processo" como a trabalho constante. A questão se encon
maneira mais adequada para se superar tra mais na instância da combinação
o estático contido no termo "cultura desses sujeitos num projeto cooperativo,
popular", ou seja, para o "quebrar da ou seja, em relação ao trabalho o ca
embalagem pronta" desse conceito e tador não se omite a essa ação, mas sim
"para lidar com o que vem sendo cul na sua forma organizada cooperati
turalmente vivenciado nas elaborações vamente.
cotidianas" . Combinado com o item acima temos,
A partir disso se pode entender, por parte da constituição da sua iden
sempre com os limites da provisorie tidade, o acesso à mobilidade, através
dade, como a catação do lixo preside a da representação dos outros catadores
constituição de �·.as identidades. Com o hoje com segurança econômica garan
auxílio do texto riquíssimo de Luiz Fer tida. É interessante que isso não ocorre
nando Dias Duarte (1987) se pode en por uma superação de um polo oposto,
tender como o viver do lixo qualifica a como na fábrica através dos capitalistas
unidade produtiva familiar. Crianças e empregadores. Existe, entre os pro
adultos, em diferentes e complementares dutores de lixo (industrial e/ ou domés
tarefas, atuam nas ações que vão de tico) e os catadores, um conjunto de in
coleta na rua até a comercialização, e is termediários que, a partir do recolhi
to passa a ser uma rotina que perpassa mento de um lixo privilegiado, se tor
as mais diversas instâncias do cotidiano. navam donos de alguns setores (por
Do levantar ao dormir, na casa e na rua, exemplo: aparas de papel da indústria,
42
ou de bancos) que lhes garantem uma (nativos) existia (no tempo em que a
atividade sem interrupções e com es pesca propiciava a ação coletiva e neces
quema de vendas garantido. Existem até sária entre os pescadores: preparar o
conflitos abertos entre estes catadores barco; lançar as redes e retirá-las. A
ricos que mantém um mercado cativo distribuição do excedente também
não permitindo qualquer novo con ocorria da pesca).
corrente. Mas a imagem de que o lixo Nesse conjunto de concretudes -
produz riqueza, através do já acontecido formação da identidade desse segmento
com seus "ex-colegas" também é ali das classes subalternas - surge o papel
mentada pelo mito do tesouro escon da educação pelo trabalho num ato
dido. Correm histórias fantásticas de produtivo e coletivo, num espaço físico
descobertas de jóias, talheres de prata, que é também seu local de moradia.
dinheiro, etc., entre os restos dos lixos Num galpão comunitário, se estabe
domésticos. A ascenção social, possível e lecem as primeiras discussões através da
individual, rotineiramente compõe o palavra compartilhada e das propostas
referencial que permite, trabalhando reais de ação no campo produtivo.
num setor como esse, compensar o É nesse momento que a proposta do
caráter de "serviço sujo" pelo milagre, mutirão desafia as análises feitas "de
pelo inusitado. fora ", Nós, pesquisadores, costumamos
Na trajetória diária dos catadores em não privilegiar em nossos estudos esses
suas pequenas carroças, entre as ilhas e sujeitos como significativos num proces
as zonas centrais de Porto Alegre, se so de transformação social. Apesar de
fortalece a imagem que a família tem de que o caminho percorrido nos encontros
si, vis-a-vis aos outros espaços e às como as CBEs e ANPEds tem demons
outras pessoas. É contrastante essa trado em parte a superação desse tipo de
cena: - os catadores se vestem com limite. Mas quando tais anáijses "en
roupas caracteristicamente escuras e até quadram" no terreno do dispensável as
rasgadas pelo seu uso de segunda mão e tentativas de educação pelo trabalho,
lavadas nas águas poluídas e barrentas do como um retrocesso no caminho de
rio Guaíba. Outra comparação que se es mudanças e até mesmo como sendo tais
tabelece é entre os animais que compõe a soluções um exemplo de paternalismo
caravana dos catadores, cavalos e muitos por parte do Estado, é necessário buscar
cães e os animais de estimação das fa um esclarecimento numa reflexão crítica
mílias das residências da cidade. Mas e qualificada de José de Souza Martins
além desses e outros contrastes, como por (1986). Um momento de rara sensi
exemplo o ato de comer restos de co bilidade, motivado por seu engajamento
midas, existe o momento da volta ao seu teórico e concreto, permite uma com
local de origem: a periferia. Em outras preensão do caráter provisório (mas
palavras, a cada dia parece se renovar o necessário) do cooperativo, via mutirão,
sonho da aproximação com outras si no momento conjuntural em que vi
tuações mais ricas e isso se interrompe vemos no Brasil de hoje. Tomei a liber
também diariamente no momento da vol dade de trazer a referência do mutirão
ta. Como num ato de resignação ao mun como solução encontrada pelos pe
do real, o catador volta para sua residên quenos produ tores rurais, análise feita
cia para relatar o mundo dos outros para por Martins e tentei adaptá-la ao setor
seu grupo familiar. O papel do homem se "lumpen " ,
fortalece, pois a ele cabe trazer o "recur Mas qual a contribuição desse tipo de
so" econàmico para casa e a isso se associa análise? Respondo em primeiro lugar
deter a informação sobre o mundo exter para a quebra do sentimento de impotên
no, deixando a mulher em situação de cia anunciado no início deste artigo. Vejo
dependência. que mais do que uma contribuição
Outro as pecto significa tivo que se analítica (ampliando a necessidade de se
icrifica é o irucio da consti tuição de uma rever conceitos cristalizados de classe
comunidade. O espaço do "nosso" em social) é a possibilidade do educador
oposição ao "deles" está se formando a popular superar seus limites impostos por
partir da situação histórica e concreta de manuais prescritivos (por exemplo: da
estarem os catadores morando em ilhas, Editorial Progresso ou de Cartilhas dog
onde a tradição comunitária dos ilhéus máticas em termos de soluções).
43
Ora, não é por vontade de, gra Com essa perspectiva, e nos munin
tuitamente, 'pichar esse tipo de ação
. " do de referências teóricas e metodo
junto aos setores populares, mas sim é lógicas de au tores que se debruçam
pelo enorme leque que compõe a Cul sobre questões nessa área, como Bran
tura Popular ("em processos ) o qual
' dão e Martins, é possível compreender
demanda uma vigilância teórico/ me mos as proposições, sempre polêmicas,
todológica, de Miguel Arroyo. É nesse final que
surge a esc ola para nossa análise.
Por último vale salientar que, nas
Arroyo tem permanentemente desafiado
ações de educação popular, as represen
os educadores messiânicos, ou seja,
tações sobre ESTADO se transformam
aqueles professores e intelectuais que
na prática, De um grupo "margina/" em
pensam na transformação ao nív�l do
completa dependência das benesses ,.
discurso articulado, como se suas ldelas
(migalhas) do Estado se vão agrupando
fossem o único referencial para o desen
pessoas em situações educativas - pelo
cadear das consciências. Especialmente
trabalho - com um projeto superador
a concepção de escola que setores bur
de sua situação dependente. Não há
gueses têm, como sendo o local privi
nenhuma vontade de se parar no proces
legiado para a adequação à sociedade,
so educativo ao ponto de remeter o
para os assim chamados "marginais"
"trabalho com o lixo" para o exótico
-
44
respeitando ainda a "credencial" for REFER�NCIAS BIBLIOGRÁFICAS
necida por ela (o diploma - para con BRANDÃO, Carlos R. e NOGUEIRA, Adriano. A
seguir emprego) traga para si uma fun contribuição da Antropologia. In: Na escola que
trazemos. (org. P. Freire, A. Nogueira e D. Maz
ção menos de "tem que ser" (moral da
za). Petr6polis, Vozes, 1988.
transformação crítica) para uma instân DUARTE, Luiz Fernando Dias. De bairros operá
cia possibilitadora de encontros entre rios sobre cemitérios de escravos: um estudo de
sujeitos reais. O exemplo da Francisca construção social de identidade. In: Cultura e
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* * *
45
"nós" que decidiu que essa reunião
estudos de casos específicos da interação 4. Para uma discussão adicional sobre a necessida
de de se compreender o processo dos conflitos e
dialética entre esses fatores contradi alianças. veia John Clarke e Chas Critcher. The
tóriOs, não somente para esclarecer a devü makes work: leisure in capitalist Britain
explicação teórica indicativa que dei (Urbana: University of Illinois Press, 1985),
48-9. Veja também Michael W. Apple,Educa
neste ensaio, mas para refinar, desen ção e poder (Porto Alegre, Artes Médicas, 1989).
volver e justificar nova teoria. Demons 5. David Hogan, "Education and c1ass formation:
trar essa interação dialética na formação the peculiarities of the americans", in Cultural
dos curriculos e identificar os mecanis anti economic reproduction in education: essays
on closs, ideology and the state, ed. Michael W.
mos reais através da qual ela ocorre (40) Apple (Boston e Londres: Routledge and Kegan
é tão importante quanto afirmar sua Paul, 1982),52-3.
existência.. Estudos comparativos - 6. Michael W. Apple e Joel TaxeI, "Ideology and
nos quais o Estado se articula de forma the curriculum", in The social sciences in edu
cation, ed. Anthony Hartnett (London: Heine
diferente com a economia e nos quais as
mann, 1982). Coloquei a palavra "funções"
decisões curriculares são, ou centrali propositadamente entre aspas por causa da dis
zadas numa situação de forte controle cussão a respeito da utilidade do pr6prio con
ceito de funcionalidade, uma vez que ele muitas
do Estado, ou descentralizadas para um
vezes conota um processo indefinidamente re
nível local ou regional - seriam bas produtivo, relativamente isento de conflitos e
tante úteis, assim como o seriam es com pouca chance de mudanças. Para crfticas da
tudos daqueles países em que a ativi 16gica funcionalista em educação, veja Apple,
ed., Cultural anti economic reproduction in edu
dade do Estado é totalmente politizada e cation: essays on closs, ideology, anti the state.
propositadamente ideológica. Uma versão refinada da análise funcionalista é
defendida, entretanto, em G. A. Cohen, Karl
A comparação de situações concretas
Marx' s theory of history: a defense (Princeton,
dos países socialistas e capitalistas e em NJ.: Princeton University Press, 1978).
seguida comparações no seu interior - 7. Veja, por exemplo, Randall Collins, The cre
uma vez que os conflitos a respeito de dentiol society (Nova Iorque, Academic Press,
raça, classe e gênero e em relação ao 1979); John O.e;bu, Minority education and caste
(Nova Iorque: Academic Press, 1978); e Manuel
poder politico, cultural e econômico Castells, The economic crisis anti american 80-
variam notavelmente dentro dessas ciety (Princeton, N. J.: Princeton University
orientações globais - poderia também Press, 1980).
fornecer um conjunto bastante interes 8. Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron, Re
sante de estudos a partir dos quais production in education, society and culture
(Londres: Sage, 1977); e Basil Bernstein, Closs,
poderiamos produzir formas ainda mais codes, and control, v. 3 (Boston e Londres:
adequadas de compreender tanto a Routledge and Kegan Paul, 1977).
relação entre o poder e o curriculo, 9. Esta posição é defendida de forma sistemática
quanto como os acordos se desenvol- em Samuel Bowles e Herbert Gintis, Schooling
in capitaüst America (Nova Iorque: Basic Books, 23. Raymond Williams, Marxism and literature
1976). Há uma série de problemas, tanto te6ri (Nova Iorque: Oxford University Press, 1977).
cos quanto empíricos, nessa posição. Veja, por
24. Pierre Bourdieu, Distinction: a social critique of
exemplo, Apple, Educaçélo e poder, e Michael
the judgement of taste (Cambridge: Harvard
R. Olneck e David B. BiIIs, "What makes
University Press, 1984), 7.
Sammy Run: an empirica1 assessment of the
Bowles-Gintis correspondence theory", Ameri 25. Ibid., 23.
can JournaJ of Education, 89 (Novembro 1980):
26. Ibid., 26.
27-61.
lO. Apple, Educação e poder; Apple, ed., Cultural 27. Ibid., 5-6.
and economic reproduction in education, espe 28. Ibid., 2.
cialmente Cap. I; e Stuart Hall, "Rethinking
the 'base and superstructure' metaphor", in
29. Discuti isso com bastantes mais detalheS em
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31. Bernstein, Class, codes and control, v. 3, espe
13. Castells, The economic crisis and american so cialmente Capo 8.
ciety, especialmente Caps. 3-5; e loshua Cohen
e loel Rogers, On democracy (Nova Iorque: 32. Veja Apple, Teachers and texts; e Michael W.
Penguin Books, 1983). Apple, "National reports and the construction
of inequality", British Journal of Sociology of
14. C. B. Macpherson, "Do we need a theory of the Education, 7, n. 2 (1986): 171-90.
State?", in Education and the State, v. I, ed.
Roger Dale et ai. (Sussex: Falmer Press, 1981),
33. Apple, Teachers and texts.
65. 34. Apple, Educação e poder. Não quero dizer que
seja somente através desse conhecimento técni
lS. Agradeço a Walter Feinberg por parte desse ar
co/administrativo no sistema educacional que
gumento. Veja também David Noble, America
esta fração de classe obtém posições, status e
by design (Nova Iorque: Knopf, 1977); Apple,
mobilidade ascendente. O sistema educacional
ldeo/Qgy and curriculum; e Apple, Educação e
não é senão wn entre muitos outros no governo,
poder, Cap. 2.
nas ocupações do serviço social e na economia
16. Apple, ldeologyand curricuJum. em que esse conhecimerito atua como uma for
ma de capital cultural que pode fornecer essas
17. Veja, por exemplo, Paul WiIlis, Learning to /n
vantagens.
bour (Westmead, Inglaterra: Saxon House,
1977); Robert Everhart, Reading, writing, and
resistance (Nova Iorque e Londres: Routledge 35. Veja Apple, "National reports and the cons
and Kegan Paul, 1983); e Linda Valli, Becom truction of inequality".
ming clerical workers (Nova Iorque e Londres:
Routledge and Kegan Paul, 1986). 36. Michelle Barret, Women's opression today
(Londres: New Left Books, 1980). Veja tam
18. Apple, Educação e poder. bém Michael W. Apple e Lois Weis, eds.,
19. Veja Michael W. Apple, Teachers and texts: a Ideology and practice in schooling (Filadélfia:
polilical economy of class and gender relations in Temple University Press, 1983), especialmente
education (Nova Iorque: Routledge and Kegan Cap. l .
Paul, 1986).
37. Carol GiIIigan, In a different voice (Cambridge:
20. Roger Dale, "Education and the capitalist Sta Harvard University Press, 1982); e Kathy Fer
te", in Cultural and economic reproduction in guson, T.lre feminist case against bureaucracy
education, l3 7. (Filadélfia: Temple University Press, 1984).
21. Raymond Williams, "Base and superstructure
in marxist cultural theory", in Schooling and 38. Veja Apple, Teachers and texts.
capitalism, ed. Roger Dale et ai. (Boston e Lon
39. Michael Omi e Howard Winant, Racial forma
dres: Routledge and Kegan Paul, 1976), 205.
tion in the United States (Nova Iorque: Routled
Veja tambéllJ Apple, ldeologyand curricuJum.
ge and Kegan Paul, 1986).
22. Veja a discussão q� Basil Bernstein faz da re
40. Daniel Liston, Capitalist schools? (New York:
�ão entre culturas de classe e a "classificação e
Routledge and Kegan Paul, no prelo).
enquadramento" do conhecimento educacional
em seu Class, codes and control, v. 3. Veja tam 41. Fred Inglis, The management of ignorance: a
bém minha pr6pria discussão da forma curri political theory of the curricuJum (Londres: Basil
cular em Apple, Educação e poder, Capo 5. BlackwelI, 1985).
***
Artigo originalmente publicado em Educational Theory, v. 38, n. 2, 1988, aqui transcrito com auto
rização do autor. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva.
***
59
mostrar, a partir dos conhecimentos que performances econômicas e maior com
ela produziu desde os anos cinqüenta petitividade. Elas têm relação com: os
(2), que as relações entre mudanças téc modos de organização do trabalho que
nicas e formação são mediatizadas. É tornam possível a mobilização dos
assim que a introdução de uma mesma conhecimentos adquiridos e seu desen
tecnologia, o controle numérico, por volvimento; as mobilidades profissionais
exemplo, em empresas que têm um suscetíveis de gerar qualificações. Em
mesmo tipo de produção, faz-se acom outras palavras, com base nas lutas e
panhar de práticas diferentes quanto à criticas levadas a efeito sobre as con
seleção e designação aos novos postos de dições de trabalho, acaba-se por adotar,
trabalho, indo, para os operadores, des aqui ou ali, pontos de vista muito di
de o recrutamento de jovens titular�s de ferentes dos afirmados há alguns anos,
um "baccalaureat" (*) técnico até a no que diz respeito aos conhecimentos
jovens que apresentam poucas habili profissionais cujo desaparecimento era
dades técnicas, mas que possuem um considerado necessário para o desenvol
ni vel de ensino geral suficiente, a vimento da automação, por exemplo. �
preferência sendo dada a jovens que assim que, atualmente, admite-se que os
possuem uma formação profissional de operadores de máquinas de controle
operário, sancionada ou não por um numérico devem conhecer o metal, as
diploma (CAP, Certificado de Aptidão reações aos instrumentos de corte, etc. ,
Profissional, ou BEP, Brevê de Estudos ou seja, os conhecimentos próprios do
Profissionais) (3). A natureza das res operário especializado em mecânica{ 4).
postas dadas pelas empresas depende Em resumo, aos partidários dos dis
tanto de seu modo de organização do cursos que invocam a formaçao como
trabalho quanto de sua política de ges fator de crescimento ou de freio da
tão do pessoal. O que significa que uma produtividade, o sociólogo não tem
mudança t écnica não implica uma senão que lembrar truísmos socio
determinada mudança na composição lógicos: a formação não é redutivel a um
·
da força de trabalho e nas qualidades certo número de capacidades técnicas
desta. que agiriam invariavelmente e indepen
Por outro lado, é importante, igual dentemente de todas as condições so
mente, objetar ao caráter generalizante ciais, tais como a organização do
desse tipo de discurso que o sistema trabalho, a existência de grupos de
produtivo é eminentemente diversifi trabalho, as relações de cooperação que
cado. Processos de trabalho caracteris eles mantêm, as relações de autoridades
ticos de diversos "periodos técnicos" na empresa, os sistemas de valores, etc.
coexistem num dado momento. E, as Assim, ele quebra a simplicidade e a
sim, a persistência de certas formas de força desses discursos, mostrando o con
trabalho, representativas de um periodo junto dos processos a dominar para
anterior, necessitam, para serem exe chegar ao objetivo proC\lrado, nota
cutadas, de formações construídas em damente quando o processo de formação
torno de conhecimentos e habilidades se realiza, essencialmente, no aparelho
que, examinadas de um ponto de vista escolar, como na França, aparelho que
geral ou relativamente a processos de possui autonomia suficiente para ex
trabalho reorganizados a partir da in pressar a demanda que lhe é feita pela
tegração de novas tecnologias, podem esfera econômica, dentro da sua lógica
parecer obsoletas. Desconhecê-las é as própria. É neste momento da transfor
sumir o risco de ver óesaparecer certos mação da demanda econômica em ter
modos de produção que são, no entanto, mos de conhecimentos e de cultura que
rentáveis e socialmente úteis, se a for vamos, agora, nos situar.
mação que lhes corresponde não for
mais ensinada.
Enfim, opondo-se a esses discursos Discursos sobre a necessidade de uma
generalizadores e empobrecedores, difusão da Cultura Técnica na escola
dirigentes de empresa tendem, hoje em e Práticas Visando Instaurá-la na França.
dia, a reconhecer que certas condições
devem coexistir para que a penetração Faz-se necessário lembrar alguns
de novas tecnologias permita melhores fatos atualmente bem definidos pela
60
sociologia da educação: a escolarização As tentativas de modificação dos modelos
tornou-se o modo de socialização do culturais dominantes na escola.
minante nas sociedades industrialmente na França., para propiciar a constituição
desenvolvidas. É importante, portanto, de uma cultura técnica.
conhecer as características desse modo
de socialização: os tipos de seres sociais
que ela procura formar, as represen
tações do mundo e os sistemas de va Não é necessano enfatizar o que
lores que veicula; em suma, é importan todos têm conhecimento, a saber, que a
te questionar os conteúdos cognitivos e cultura escolar, na França, valoriza in
culturais inseridos nos programas de c 11- tensamente a abstração e atribui um es
sino. Em sociedades, como a francesa, tatuto muito elevado aos conhecimentos
em que a formação profissional dos acadêmicos e, especialmente nesse úl
operários, empregados e técnicos timo período, às ciências matemáticas,
realiza-se inteiramente no aparelho es que estão revestidas do maior prestigio.
colar, essa função cresce em função das Inversamente, os conhecimentos téc
outras instâncias, especialmente da nicos, maculados por suas ligações com
produção, e gera, assim, muitas con a prática e o trabalho, permanecem des
tradições. valorizados. Assim, a orientação dos
Se é verdadeiro, como Durkheim e alunos para o ensino técnico secundário
outros autores após ele afirmaram (5), (especialmente o que forma operários)
que todo o sistema educativo , que é o efetua-se de um modo essencialmente
produto de uma história, deve igual negativo e chega a encarar esses ensi
mente e ao mesmo tempo, articular-se namentos como reservados aos jovens
ao presente e estar apto a gerar o futuro, cujas performances escolares são muito
segue-se que toda a política escolar fracas nas disciplinas de conhecimento
deve, sob pena de fracassar, ser capaz geral. É com base neSSe modo de fun
de fazer face simultaneamente às exi cionamento, nas socializações que o
gências de ruptura e de continuidade acompanham e nas contradições que
nas relações sociais. Em outras palavras, elas geram, que o aparelho escolar, en
ele deve selecionar e transmitir os con contra-se fortemente interpelado por
teúdos de ensino que representam "a diversas forças sociais, e, singularmente,
verdadeira tradição", interpretada como neste periodo em que a demanda escolar
o caminho que conduz ao progresso se exprime majoritariamente em termos
universal e nacional, mas também con de competências e de qualificações que
frontar-se, de uma maneira ou de outra, possam ser reconhecidas no mercado de
com a existência de práticas culturais trabalho.
que são a expressão de novas relações Essas questões que, lembremos, têm
sociais já vigentes na sociedade (6). Os sido objeto de debates e conflitos há
currículos (7) programados pela escola mais de um decênio, igualmente oca
geralmente pertencem à "cultura es sionaram diversos tipos de intervenções
tabelecida, de tal modo que escola e estatais visando a respondê-las (8). Hoje,
valores do passado tendem a se iden medidas diversificadas, que têm por
tificar"(6). Mas, contrariamente à inter finalidade explícita "fazer da cultura téc
pretação geralmente dada, trata-se nica um verdadeiro componente da for
menos de uma inércia da instituição mação geral ", estão sendo tomadas.
diante da mudan�a que da situação das Entre essas medidas que tendem à buscã
relações de força dentro e fora do sis de uma coerência de conjunto, cita
tema educativo. A perpetuação de remos: o desenvolvimento de atividades
modelos culturais na escola traduz a de sensibilização à tecnologia, nas es
ausência ou a insuficiência de orga colas primárias; a introdução massiva
nização polí tica de forças sociais capazes dos computadores nas escolas primárias,
de dar uma outra orientação cultural, colégios e liceus (**); a introdução da
que seja aceitável pela sociedade como tecnologia entre as disciplinas obri
um todo. gatórias nos colégios, a introdução da
tecnologia entre as principais matérias
nos liceus; a profissionalizaç ão do
primeiro ciclo das universidades ( desen-
61
volvendo os Mestrados das Ciências e quema mental, há paridade de nível en
das Técnicas (MST) e a aproximação tre atividade técnica e atividade cien
entre a escola e as empresas (9). tífica, frisando "que subsiste uma certa
Sem prejulgar a inscrição e os modos diferença entre o esquema técnico do ob
de inscrição dessas medidas políticas na jeto (comportando a representação de
prática, centraremos nossa observação uma finalidade humana) e o quadro cien
em duas delas: a incorporação da tec tifico dos fenômenos (comportando
nologia nos conhecimentos prescritos a somente esquemas de causalidade efi
todos e o desejo de modificação da ciente, mútua e recorrente) . . . }" (12) .
hierarquia ensino geral! ensino técnico. Acrescenta-se que a hierarquia dos en
sinamentos feita pela escola apóia-se na,
e alimenta-se da, que é verificada no
A tecnologia em igualdade campo dos conhecimentos: os cienti
com as matérias ditas fundamentais ficos, universais, abstratos, canalizados
unicamente pela preocupação de co
nhecer, de compreender, dominando os
A programação da tecnologia entre outros, técnicos, particulares, concretos,
os conhecimentos reconhecidos como essencialmente destinados ao agir (13) .
socialmente necessários a todos (nos Essa hierarquia de estatuto entre
colégios) testemunha esse desejo de rup ciências e técnicas somente pode ser al
tura com um modelo cultural que terada mediante certas condições, entre
minimiza essa categoria de conhecimen elas: que a prescrição da tecnologia na
tos. Efetivamente, essa chegará a ad categoria dos conhecimentos necessários
quirir um estatuto de paridade com os e obrigatórios para todos se efetue de
conhecimentos ditos fundamentais, um modo aceitável para todos os grupos
como as ciências e as letras? Responder sociais, ou seja, que se revista de um
a essa pergunta exigiria uma análise das caráter geral e que repense as antigas
relações entre as forças sdciais que agem relações entre teoria e prática. lo
dentro e fora da escola, para identificar gramos, assim, examinar as diversas
suas concepções da cultura. Como isso modalidades em que esse ensino pode
não foi feito, nos limitaremos a cons ser programado: à maneira de co
tatar que essas prescrições vão ao en nhecimentos exigidos para pôr em
contro da ação efetivada por certos prática procedimentos, máquinas, ou à
grupos sociais, no sentido de fazer maneira de um conhecimento da uti
reconhecer e difundir a cultura técni lização dos dispositivos associado ao da
ca (lO). Esses grupos agem essencial· gênese e ao funcionamento daqueles
mente fora da escola, embora o Ma que, diz Simondon, estão no prolon
nifesto pela cultura técnica, publicado gamento "da atividade de invenção e de
pela CRCT, designe a escola como um construção dos objetos técnicos". Em
dos instrumentos essenciais para cons outras palavras, o ensino da tecnologia
tituir e difundir essa cultura, mas essas seria orientado, de modo predominante ,
idéias parecem ainda não ter sido as para a atividade de trabalho ou para a
similadas pela escola: a maioria dos explicaç ão dos objetos técnicos, sua es
professores das escolas primárias e dos trutura e fabricação(14}. Com a in
colégios lhes sendo, por sua própria for trodução de novas tecnologias, a escola
mação, indiferente ou hostil (11). dará origem a esta tensão dialética entre
A aquisição pela tecnologia de um pensamento cientifico e técnico ou, em
estatuto de igualdade com as ciências conformidade com certas tendências an
não poderia, é evidente, ser obtida por teriormente observadas, vai sacrificar o
medidas pedagógicas, pois implica uma fenômeno técnico a um ensino de infor
transformação dos valores enraizados mática, sob a forma de uma subdis
em uma história em que as técnicas são ciplina das ciências matemáticas. Outra
associadas ao trabalho manual. Certos interrogação ligada à precedente, mas
filósofos (como G. Simondon) e his distinta: a tecnologia será ensinada
toriadores (como B. Gilles) tentaram como um conjunto de conhecimentos
desfazer a confusão estabelecida entre particulares ou como um corpus de
conhecimento empírico e conhecimento conhecimentos "do sistema técnico"
técnico e mostrar que, no plano do es- caracteristico deste periodo de nossa
62
civilização (15), que não excluiria "uma cognitivos e culturais veiculados pela es
propedêutica dos meios elementares de cola não podem ser efetivados sem
ação sobre a matéria" ( 16)? Enfim, a mudanças notáveis nas relações sociais.
tecnologia seria ensinada de uma forma
reificadJ, a exemplo do que acontece
nos segmentos técnicos, ou tornará pos
gvel a constituição e a apropriação de A modificação da herarquia ensino
um conjunto de representações e de geralj ensino técnico
valores relativos aos objetos técnicos,
sua produção (e condições de sua
produção), sua difusão e sua utiliza Tal vontade é periodicamente afir
ção? Citando, ainda, G. Somondon, "a mada e poder-se-ia legitimamente ques
cultura comporta-se em relação aos ob· tionar sobre os mecanismos que asse
jetos técnicos como o homem em relação guram a perpetuação dessa hierarquia.
ao estrangeiro. quando se deixa levar pela Paradoxalmente, a história do ensino
xenofobia primitiva ... Para desempenhar técnico, na França, pode ser descrita
um papel completo. a cultura deve incor' como um longo movimento de inte
porar os seres técnicos. sob a forma de gração no aparelho escolar: movimento
conhecimento e sentido dos valores. . A
. orientado por uma busca de unifor
maior causa de alienação. no mundo co/! mização e igualação desse ensinamento
temporâneo. é o desconhecimento da com aquele que permanece o referente,
máquina. alienação que não é causada o ensino geral dos liceus. Seria fácil
pela máquina. mas pelo não· demonstrar que nesse pais a noção de
conhecimento de sua natureza e de sua es igualdade preside as reformas que
sência. pela sua ausência do mundo das direcionam o desenvolvimento da escola
significações. e pela sua omissão do e sua organização institucional. Longe
quadro de valores e dos conceitos que de ser puramente mágica, a idéia de
fazem parte da cultura" (17). igualdade está na origem da norma de
Das respostas trazidas a essa série de unicidade que legitima a integração do
interrogações, que estão no centro dos ensino técnico no seio de um sistema es
debates atuais, sendo que algumas ain colar que vai, simultaneamente, manter
da não foram formuladas, depende a contidas no ímplícito as diferenças
possibilidade d e atenuamen to dos sociais do público a que se dirige nos
modelos culturais dominanteS: 18). Se a vários segmentos, para não reconhecer
maioria dos discursos sustentados senão as diferenças psicológicas e in
desenvolve-se em torno da noção de cul telectuais dos alunos. Esse movimento
tura técnica ou tecnológica, pode-se de igual ação e de uniformização pode
facilmente demonstrar que, assim for ser detectado a nível de lugar e de res
mulados, eles tendem a ocultar uma pectivas funções atribuídas às insti
dimensão do que está em jogo: quem diz tuições e a nível das instruções peda
constituição de uma cultura técnica não gógicas que organizam o currículo
diz necessariamente que a técnica é um (sejam os programas ou os métodos de
componente da legí tima cultura, incor ensiílU e os exames que estes sancio
porada por todos. A cultura técnica nam) . No plano dos fatos, esse movi
pode existir e ser reconhecida pela es mento é, parece-nos, eminentemnte
cola como própria de certos grupos contraditório: ele provoca uma apro
sociais. Em outros termos: a prescrição ximação, se não uma identidade, no
de um ensino técnico comum a todos recrutamento dos professores, na no
conseguiria modificar o estatuto dos menclatura e qualificação dos diplomas,
conhecimentos técnicos e os valores que mas gera, simultaneamente, uma des
lhe são associados para fazer dos mes valorização dos ensinamentos técnicos.
mos valores constitutivos da cultura Perdendo sua autonomia, esses igual
comum ao conjunto dos grupos for mente perderam sua identidade positiva,
madores de uma sociedade, ou per para se tornarem modos de escolari
manecerão especificos dos grupos cujo zação menores, que são def inidos,
trabalho social útil situa-se na produção primeiramente, como "não geral" (19).
(operários e técnicos, especialmente). Isso é particularmente verdadeiro para o
Tais abalos na hierarquia dos conteúdos ensino técnico de curta duração, que se
63
apresenta como uma forma de esco de produção. É assim que aproxima
larização estreitamente associada ao damente um terço dos estudantes
fracasso das aprendizagens escolares no matriculados em Mensurações Físicas
primeiro ciclo (20). Esse movimento são portadores de um "baccalauréat"
seguiu-se de uma desvalorização deste em matemática e física (o mais pres
ensino, que está registrada nas concep tigiado), que aproximadamente três
ções veiculadas por uma disciplina como quartos dos estudantes matriculados em
o francês, conforme mostramos em uma Biologia Aplicada são titulares de um
análise dos temas abordados nos exames "baccalauréat" em ciências físicas e
profissionais (CAP e BEP). Enquanto naturais, e que, contrariamente, dois
que, nos anos cinquenta, as represen terços dos estudantes matriculados em
tações organizavam-se em torno da es Manutenção Industrial são titulares de
fera do trabalho, vinte anos mais tarde um "baccalauréat" técnico. Quanto às
elas se estendem à totalidade da vida chances objetivas que tem um portador
social. Mas, simultaneamente, o tra de "baccalauréat" técnico de aceder à
balho, a técnica e a produção não Escola de Engenharia, elas são extre
aparecem senão sob imagens depre mamente escassas.
ciativas. Assim sendo, o ensino técnico, Poder-se-ia mostrar que o ensino
que tem por objeto especifico transmitir técnico superior encontra-se, assim, de
a ciência dos modos de produção, en uma certa maneira, desviado de sua
contra-se desvalorizado e adquire uma função primeira, tendendo a articular-se
conotação negativa. mais estreitamente com o ensino cien
Ao mesmo tempo que a demanda tifico.
social de competências técnicas de alto Modificar essa hierarquia significa,
nível aumenta, saem, cada ano, da es em última instância, redefinir os mo
cola, sem qualificação, 100.000 jovens, e delos de produção das elites. E, se essa
o fluxo de saída, a nivel de qualificação redefinição passa necessariamente pela
operária, é três vezes superior ao fluxo escola, não está a ela limitada, longe
de saída a nivel técnico. Para puxar os disso. Para efetivar-se, essa mudança
fluxos de saída para cima e agir sobre a exige também outras relações entre
articulação negativa do ensino técnico teoria e prática, outros modos de or
no ensino geral, projetos preconizam dar ganização e delimitação dos conheci
uma maior abertura às passagens entre mentos técnicos, diferentes dos fun
os diversos estabelecimentos: seja entre damentados na separação, exclusão e
os liceus de ensino profissional (LEP) e reificação. São, no entanto, esses prin
os liceus técnicos (LT), entre os LT e os aptos que presidem, hoje, a distri
IUT (Institutos Universitários de Tec buição dos conhecimentos entre os
nologia), entre estes e as Escolas de En diversos segmentos formadores das
genharia. Isto significa que a modifi diferentes categorias que vão pôr em
cação da articulação negativa ensino funcionamento o processo de produção:
técnico/ ensino geral se obteria pela ins os engenheiros, os técnicos e os ope
tauração de uma espécie de encadea rários. Nós já mostramos, em outra
mento técnico, integrando os diversos oportunidade, que a divisão e a trans
niveis: inferiores (LEP), intermediários missão dos conhecimentos, realizadas
(L11 e superiores (IUT e Escolas de En pela escola, tendem a seguir este mo
genharia). No plano dos fatos, observa vimento descrito por J.M. Lévy-Leblond,
se um movimento inverso. Durante este o qual constata que, quanto mais uma
último periodo de afluxo profissional, o ciência penetra na produção, mais ela
ensino técnico superior (criado em 1965 perde seu caráter "científico": "Há uma
sob a forma dos IUT) tende, efetiva verdadeira reificação do conhecimento,
mente, a recrutar, de uma maneira que, nas mãos dos especialistas, se des
privilegiada, os titulares de um "bac cientlfica, no sentido de que toda
calauréat" de ensino geral, em detri aproximação teórica, e, portanto, crítica,
mento dos titulares de um "bacca dele é excluída, para dar lugar somente à
lauréat" de ensino técnico. Inegavel manipulação empírica" (23).
men te, essa seleção se realiza, na Assim sendo, a escola pode per
medida em que as formações sejam feitamente decretar uma valorização dos
muito ou pouco voltadas para as funções ensinamentos técnicos e lhes dar sig-
64
nificação através de uma mudança na escola para a empresa permitiria ad
organização dos conhecimentos, mas es quirir as qualidades sociais exigidas
sa não se realizará se não for consi para exercer o trabalho como ele é or
derada na divisão do trabalho, isto é, ganizado. De fato, essas aparecem como
caso o ensinamento técnico não par Um elemento constitutivo da qualifi
ticipe efetivamente da produção das cação, na medida em que essa quali
elites, em concorrência com o ensino ficação não pode se realizar plenamente
geraI(24). a não ser que integre o conhecimento
das condições de funcionamento das
técnicas de produção, conhecimento que
A aproximação escola-produção se acompanha, inevitavelmente, de uma
aprendizagem das relações sociais na
empresa, relações de autoridade e
Esse movimento, que teve ilÚcio no hierarquia, mas também de cooperação
começo dos anos setenta, na França, e solidariedade;
realiza-se com base nas contradições - as que visam a transformar os
geradas pela extensão da escolarização e conteúdos de formação, incorporando a
nas mudanças geradas pela crise nas eles o conhecimento dos novos proce
condições de acesso ao trabalho, es dimentos de produção praticados em
pecialmente pelos jovens. Embora esse um dado momento histórico, particular
movimento seja tido como um principio mente os procedimentos muito sofis
geral, ele essencialmente atingiu, no ticados, que não podem ser incorpo
decorrer deste último decênio, os seg rados à escola. De fato, nas sociedades
mentos que se destinam aos alunos em em que os processos de formação
situação de desvantagem, ou seja, con realizam-se parte na escola, parte na
cretamente: a "pré-aprendizagem" , dis empresa, como na República Federal
positivo destinado aos jovens que saem A lemã, as grandes empresas, que
do aparelho escolar sem qualificação, a utilizam as técnicas mais avançadas, in
formação profissional do tipo operária tegram o conhecimento destas e a
(nos LEP). Sem analisar aqui as dife aprendizagem de seu funcionamento, na
rentes formas assumidas por este formação dos operários, ampliando, as
movimento, diremos que o direito da sim, de maneira sensível, os conteúdos
empresa de educar e formar impôs-se definidos como caracteristicos de uma
em um contexto de questionamento da dada formação. Mas a situação é di
escola, na sua função de formação das ferente nas pequenas empresas em que o
competências técnicas e sociais, com processo de formação se confunde ain
base em um certo fracasso em instruir e da, em grande parte, com o processo de
socializar algumas parcelas da juven produção, e encontra-se, por essa
tude. razão, muito marcado por suas carac
Nestes últimos anos, o principio de teristicas particulare�2S). Em outras
uma aproximação escola-produção palavras, realizada nos locais de pro
parece dever estender-se ao conjunto dos dução, a formação mostra-se muito
segmentos de ensino e não mais aplicar heterogênea: em certos casos, apresenta
se somente aos segmentos escolares se como um trampolim para a elevação e
profissionais. ampliação dos conhecimentos técnicos,
Esse movimento é legitimado por em outros, como um freio ao conhe
duas ordens de idéias: cimento dos modos de produção em uso
- as que visam a organizar proces em um dado momento em uma dada
sos de socialização profissional que não sociedade.
podem realizar-se na escola, mesmo que Os discursos sobre a necessidade de
esta incorporasse a tecnologia à cultura um deslocamento de uma parte do
que veicula: a aculturação ao meio processo de formação para a empresa, a
profissional implica a aprendizagem de fim de nesta integrar novos conhecimen
um conjunto de representações, de tos, adquirem um aspecto relativo
valores, de atitudes, de comportamento, devido à diversidade própria do sistema
nos locais mesmos da produção e na produtivo. Por outro lado, a tendência a
prática. Em suma, o deslocamento de visualizar a empresa como sendo, hoje,
uma parte do processo de formação da um lugar de produção de conhecimen-
65
tos, um lugar onde realiza-se a sintese transfonna a escola no local onde os
entre conhecimentos cientificos, co mais interessados podem afirmar seus
nhecimentos técnicos e "savoir-faire" pontos de vista próprios: empregadores,
não implica de forma alguma que ela artesões, engenheiros, técnicos, em
seja o lugar inteiramente indicado para pregados e operários. Em outras pa
transmitir conhecimentos. Essa de lavras, reúne as condições que per
dução, freqüentemente feita, baseia-se mitem a manifestação e a confrontação
em uma imagem unificada da empresa e de diferentes concepções dos conhe
ignora a divisão do trabalho que lhe é cimentos técnicos e profissionais a serem
caracteristica. A formação profissional ensinados, de visões de mundo a trans
constituiu-se enquanto fonnação para o mitir, de valores a fixar. Como tal, ela
trabalho e pelo trabalho correlativamen gera igualmente novas contradições , as
te a uma organização do trabalho que das classes e grupos sociais presentes.
pennitia a transmissão dos conhecimen Para concluir, lembraremos que as
tos e "savoir-faire" ao mesmo tempo transfonnações tecnológicas não têm o
que a aquisição de identidades socio caráter generalizado que lhe atribuem
profissionais. os discursos. Pela sua diversidade, o sis
O taylorismo, destruindo os coletivos tema produtivo apresenta-se como uma
de trabalho, destruiu também as con combinação de processos de trabalho de
dições necessárias para que se efetuas diferentes épocas. Por outro lado, se as
sem as aprendizagens teóricas e práticas novas tecnologias produzem rupturas téc
e para que fosse possível a aquisição de nicas, não geram, necessariamente , rup
um conhecimento técnico e social dos turas sociais. Neste período de crise e/ou
procedimentos de produção em uso. de mutações tecnológicas, a demanda
Percebe-se perfeitamente que as novas social dirigida à escola, em termos de
tecnologias não são, em si mesmas, nem conhecimentos , competências e quali
geradoras, nem destruidoras de poten ficações, exacerba-se e empurra para o
cialidades de formação, mas elas podem segundo plano as lutas pela igualdade de
revestir-se de cada uma dessas funções, oportunidades. Se os problemas referen
confonne a organização do trabalho e as tes à formação tendem a ser colocados em
politicas de gestão da mão-de-obra termos estritamente técnicos - a própria
selecionadas pelas empresas. Isto sig noção de formação participa desse
nifica que não se pode afinnar, atual movimento - não é menos verdadeiro
mente, que as novas atividades profis que a prescrição da tecnologia como
sionais em preparação, possuirão poten categoria de conhecimentos necessários a
cialidades formativas, nem afirmar a todos leva a questionar os conteúdos cog
proposição contrária, porque nós não nitivos e culturais veiculados pela escola ,
dispomos de conhecimentos que per as relações teoria/prática que aí serão
mitam fazê-lo, seja porque estes são instituídas. a afirmar a necessidade da
muito localizados, seja porque, o mais constituição de uma cultura técnica den
freqüentemente , derivam de perspec tro e fora da escola, a desejar modificar a
tivas às vezes otimistas, às vezes pes hierarquia dos conhecimentos estabe
simistas. lecida. Ao mesmo tempo que a escola é in
Por essa razão, nós finalizaremos as terpelada na sua função de formação das
considerações sobre essas interrogações, competências e discutida na sua função
lembrando que as relações escola/ em de socialização, um conjunto de forças
presas são necessariamente contradi sociais procura aproximá-la da produção,
tórias, visto que a escola e a produção a fim de que a organização, o desenvol
têm lógicas diferentes, e que essas con vimento e o controle da fonnação seja
tradições devem ser geridas dentro das partilhada entre as duas instâncias . Mas
suas reivindicações. Pode-se destacar, ao essa análise continua realmente muito
menos, que, dividida entre a escola e a geral, para que se revista de uma perti
produção, essa formação acarreta uma nência ou de uma utilidade para a ação.
ampliação da equipe de educadores que Particularmente, o leitor deve ter notado,
inclui os próprios produtores. Como tal, ela fica a reboque dos discursos que falam
ela não é mais dominada pelos "experts" em "novas tecnologias" , em lugar de
do saber e da cultura tno mundo es questionar as formas concretas e espe
colar dos professores e inspetores, etc. ) e cíficas de que essas se revestem na escola,
66
como a introdução dos microcompu S. E. Durkheim. L'Ivobuion pldaRogique DI
"'rance, Presses Universitaires de France, Paria,
tadores em escolas e colégios, na forma de
1969.
instrumentos didáticos (ou auxiliares na
6. Sara Morgenstem de Finkel, Analysis of educa
aprendizagem) e a iniciação na linguagem tional policy, Universidad Nacional de Educac
informática. Ora, essa se define como um tion a Distancfa, Madrid, 1984.
conjunto de regras, de procedimentos e de 7. A noção de "currículo" designa aqui os pro
vocabulário , e não de significações. Dis gramas de ensino prescritos para uma institui
ção escolar, isto é, os conteddos de ensino su
tingue-se, assim, totalmente, da lin
bordinados a objetivos, transmitidos metodica
guagem natural, utilizada na comuni mente, e ocasionando, eventualmente, uma
cação humana. Desde logo, importa avaliação. J. -C. Forquin. "La sociologie du
curriculum en Grande-Bretagne: une nouvelle
saber que sistemas de representação de
approche des enjeux de la scolarisation" in Ca
mundo, que hábitos de pensamento são hiers du Centre de Recherches Sociologiques,
veiculados, induzidos por essas lin Toulouse, mai 1984.
guagens. Essas são, possivelmente, in 8. � assim que, no quadro da reforma Berthoin,
cumbências de um soci610go da educação ê introduzida, a título experimental, em 1962,
uma iniciação tecnolcSgica, nas classes de quarta
que se interesse pelas questões tecno- e terceira dos colégios. Em 1977, a reforma
16gicas, tarefas como, por exemplo, Haby busca o mesmo objetivo, mas de uma
forma diferente, visto que programa a educação
revelar o implicito, o escondido (26) . Mas �
manual e técnica (EMT). Em 1984, o ensino da
nos parecia necessário recolocar as in tecnologia é definido pela COPRET como uma
terrogações sobre as novas tecnologias síntese da iniciação tecnolcSgica dos anos ses
senta, por sua orientação intelectual e de EMT,
em uma análise mais ampla do lugar e
por seu método, o da fabricação de objetos. L.
do papel da tecnologia nas relações Geminard. Prlsentation des travaux de la com
sociais e culturais que a escola ajuda a mission pe17I1ll1Iente sur r enseignement de la
tecnologie (COPREn. Paris, 1984. W. Homer,
produzir, examinando um certo número
L'Uucation technoloBÜlue dans r enseignement
de condições necessárias para transfor glnlral en Europe. Etude critique des concep
má-las. tions et pratiques en France, en Angleterre, en
RFA, en URSS et en ROA INRP, collection
Recherches sur les enseignements technologi
NOTAS ques, 1985.
67
J. Guillenne, I. Sebestik, "Lea ooJDllllellCements de cialmeDte 'teia. L. Tanguy, A. Kieffcr,L'1cM
la technologie" in Revue Tholes, Paris, PUF, etfintreprlse, fexpIriena des deux AI1emag1W.
1966. La Documentation française, 1982.
Por outro lado, Pierre Thullier lembra que Le Chã
telier já observava, no inlcio do século, que, se 19. Essa proposição deve ser atenuada em relação
ao ensino técnico de longa dUração, cujos bae
os franceses não estão atrasados na �quisa téc
nica, o atraso é notável na prática dessas desco ealaurlats são relativamente valorizados pelos
bertas científicas: dois exemplos: quadros médios e superiores, como testemunha
- no meio militar: "os alemães bombardearam-nos o crescimento da proporção de alunos oriundos
dessas categorias sociais,desde o inlcio dos anos
com os canhões de aço do engenheiro francês
setenta (cf. Antoine Prost. La politique de de
Martin e com a p61vora sem fumaça do enge
moeratisation de r enseignement, 1950- 1980,
nheiro Vieille";
Relat6rio para o Commissariat au Plan)
- na microbiologia, "os trabalhos de Pasteur sobre
a fermentação da cerveja foram utilizados na 20. L. Tanguy, "Enseignement technique/enseig
Dinamarca antes de serem utilizados na Fran nement général, intégration et hierarchie" in
ça", Pierre Thuillier, L'Aventure industriel1e, Éehee seoklire Muveaux debuts, MUVelleS ap
Paris. Éditions Complexe, 1982. proehes sociologiques, Éditions du CNRS, Pa
ris, 1985.
14. Em alguns aspectos, as novas tecnologias pare
cem exigir esse movimento. Assim é com "a 21. L. Tanguy, C. Agullon, F. Rope "L'enseigne
caixa eletrônica que é uma caixa negra, cujo ment du français dans le LEP, miroir d'une
funcionamento exige um conhecimento técnico perte d'identitél, in Études de Linguistique Ap
que não é transfenvel para uma prática". A. pliqule, mai 1984.
d'Iribarne, Teehnologies Muvel1es, quali.fication
et édueation. L'intúêt d'une approehe societale 22. L. Tanguy, "Les savoirs enseignés aux futura
et eulturel1e, décembre 1982, LEST, Aix-en ouvriers",Sociologie du Travail n� 3, 1983.
Provence. 23. J. -M. Lévy Leblond, "Mais ta physique", in L'
15. B. Gilles, "La notion de systeme technique",
idlologie de/dans la seienee. Paris, Le Seuil,
Teehnique et Culture, n. I, 1979, e Histoire des 1977.
teehniques, Éditions Gallimard, 1978. 24. Como o demonstra a anãlise comparativa Fran
ça/Alemanha. M. Maurice, F. Sellier,J. -J. Sil
16. J. Chabal, J. Slafer,"Culture technique,educa vestre, Politique d'éducation et organisation in
tion",inCulture Teehnique, n. 2, 1981. dustriel1e, PUF, 1982.
17. G. Simonden, Du mode d'existenee des objets
teehniques, op. cit.,pp. 9-10. 25. L. Tanguy, A. Kieffer, Lécole et r entreprise ,
***
***
68
Reflexão sobre" educação
e filosofia a prflp ósito do ensino
de filosofia nol\J"e29Graus 'r'> ')1 <
70
to mais esta intencionalidade se frustra sabilidades e que se define como respon
quanto mais a experiência social nos faz sabilidade politica de participar no
experienciar a dilaceração dos vinculos trabalho de construção comum da vida
humanos e a dificuldade do encontro em comum, de uma sociedade eman
num espaço comum onde novamente cipada e livre.
façamos a experiência da razão e da O endereço primeiro da educação é o
liberdade, para lembrar um pensamento individuo-pessoa. Ele é o alvo e o sujeito
de Gadamer (Gadamer, 1983, p. 48). primeiro da ação educativa. Este in
Esta razão e liberdade só serão possí veis dividuo, que importa ser educado, é seu
na comunidade e no espaço do discurso mundo, seu universo complexo, or
e da ação. denado em vários patamares e esferas,
Tudo isso é bem sabido, mas pouco mundo no qual mundos se articulam,
meditado. Não mais havia motivos para modos intencionais de vida se imbricam,
ensinar nossos jovens a filosofar. Em compondo o projeto no qual a vida se
certos setores sociais a jovem geração analisa e se expõe como inalienável
deixa de ouvir as vozes dos poetas, dos exigência de unidade, de sentido na com
mitos e dos profetas, por isso presu plexidade dos modos de estar no mundo e
mivelmente está mais necessitada de com os outros. Esta complexidade ori
ouvir a voz da reflexão filosófica. Temos ginária torna difícil O empreendimento
que imitar novamente os gregos, que educativo se estiver preocupado tanto em
inauguraram esta atitude e ntre os respeitar a exigência de unicidade da pes
homens, e fazer valer o poder organi soa quanto em promover a dimensão
zador do conceito por sobre a infinita universal e comunicativa da vida na
multiplicidade. Ou será mais esta volta comunidade humana e na natureza. Não
ao conceito um movimento contra o é fácil educar, portanto, para a auten
poder sem limites da história? Não é o ticidade irrepetível e para a comunicação
instante sua verdade suficiente? Já não sem limites da vida política e comuni
sabemos que o conceito e o sistema é a tária. Sentimos o evidente predomínio de
inverdade do ser? A isso se pode opor o um estilo de racionalidade que cultiva o
contrário: não é a verdade já sempre poder de manipular o mundo objetivo
comunicável? Não nasce ela no aberto sobre o poder de ordenar a vida para seus
do encontro? Já não a supõem os discur interesses políticos e éticos. Existe um
sos que a negam? Mas onde está a ver evidente problema de liberdade, de
dade: na luta ou na reconciliação? Na emancipação, à procura de sua razão ou
dominação técnica ou no reconhecimen de suas razões e caminhos para se firmar
to do outro? frente ao poder, à coação inconsciente e
Importa pois manter ou reavivar a consciente.
capacidade da admiração, pois não tudo Ê evidente a confluência na atuali
é banal. Kosik nos alerta contra a ten dade, das preocupações filosóficas com os
tação de sucumbirmos ao bom senso, problemas mais sentidos no âmbito da
contra a inflação do óbvio (Kosik, 1969, educação: como traduzir, para o tempo
p. 198). O que é, por exemplo, mais presente, as exigências da liberdade, da
banal que a questão da liberdade? Mas, justiça. Os avanços da reflexão e da auto
o que é mais problemático do que ela? reflexão do homem no âmbito da filosofia
O que é menos óbvio, menos banal? beneficiam uma educação voltada desde
Somos avassalados por uma mul sempre à promoção do homem em sua
tidão de questões e respostas; problemas verdade e liberdade possíveis.
nos são propostos, soluções são aven Com isso se torna inevitável que a
tadas e cresce a impressão de que o es educação se interrogue frente à filosofia
sencial permanece oculto e não dito e as sobre o possível lugar ou critério da ver
mais das vezes positivamente silenciado. dade capaz de dar unidade e sentido ao
Se faz sentir de mil formas um poder do processo educativo. Sem um critério de
qual não dispomos; um saber que não verdade para o projeto pedagógico será
nos advém por trabalho próprio. Somos difícil promover uma ação coerente no
trabalhados pelo tempo sem que sai universo complexo da educação formal.
bamos para onde seremos levados. Mas Muito menos será possível ser sujeito do
esta consciência é também suficiente processo histórico. As situações se su
para despertarmos para novas respon- cedem sem que o educador tenha ca-
71
pacidade de decürar a mensagem do a totalidade que se reduz no desterro do
momento no interesse da educação dos sujeito, tanto mais profunda é a sua ten
jovens e da infância. Onde encontrar o dência para a dissolução" (Adorno ,
centro da gravidade no qual o discurso Negative Dialektik, Suhrkamp, 1966, p.
consiga organizar a experiência e orientar 337 cf. G. Bornheim, 1981, p. 46).
a educação? (a) O saber extensivo não Em filosofia, como em educação, não
mais obedece a um conceito intensivo on há como ignorar o problema do sentido,
de se pudesse acolher na unidade da idéia. da liberdade, da totalidade. Ê a posição
(b) Ou, quem sabe, o homem vive do da totalidade, do sistema, garantia de
trabalho e no trabalho em diálogo sem fim sentido, de verdade, de liberdade ou do
com a natureza e o melhor que pode é en terror? Ê a abdicação da totalidade
tregar-se a inteligência de suas próprias equivalente à proclamação do vazio, do
mãos fazendo-as o ponto de partida para sem-sentido, do arbítrio ou condição da
a ordenação racional-dialética da vida? liberdade?
Quem pode nos ajudar? Hegel, Marx, São problemas para a Filosofia e para
Foucault? (c) Ou com Sartre procla a Educação.
mamos os direitos, as exigências da liber
dade comprometida com a liberdade de
todos e nos dedicamos a um infinito REFERÍl.NCIAS BIBLIOGRÁFICAS
processo de totalização dos projetos? (d)
Ou a verdade se pode dar no diálogo irres 1. ADORNO. Negative dialektik suhrkamp. 1966.
trito livre de coação? (e) Ou deve a 2. G. BORNHEIM. Vigência de Hegel: os impasses
da categoria da totalidade in Hegel. Brasí
educação hoje deixar-se inspirar por uma
lia, Cadernos de UnB, 1981.
ampla sabedoria pragmática visando à
3. H. G. GADEMER. A razão na época da ci2ncia.
maior felicidade comum e minorar o Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1983.
sofrimento presente?
4. KANT. Rejlexions sur reducation. Trad. e Intr.
Não haverá mais nenhuma totalidade de A. Philonenko. Paris, Vrin, 1966.
capaz de nos inspirar sem causar o terror 5. K. KOSIK. Dialética do concreto. Rio de Janei
totalitário? (Merleau-Ponty, 1968). Aqui ro,Paze Terra, 1969.
recordamos Adorno quando escreve: 6. M. MERLEAU-PONTY. Humanismo e terror.
"quanto mais a sociedade contribui para Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968.
***
***
72
. p:ptuma soçiblogi;;t da
,v '�, .',<' ">";,, ' ;" __ ,
, _ _; _; "
_ _:/ _'" , _ _ �., ,,' _ , _ :
S
tribuição devida ao orocesso de de
mocratização da educação.
ua falta de at'ação é c.,tamente Como de ousadia, vou tentar des
responsável, em grande parte, pelo trinchar este espinhoso assunto, corren
pequeno número de estudiosos que a ela do o risco quase certo de alguns ara
se dedicam, deixando a descoberto nhões. Acho, entretanto, imprescindível,
vários pontos de grande importância e a esta altura, um pronunciamento sin
de graves conseqüências sbbre o de cero sobre um assunto tabu evitado por
senrolar do processo educativo . muitos, mas reconhecidamente inevi
Assunto quase "maldito", identi tável, se quisermos tratar devidamente
ficado por grande parte da comunidade do problema da democratização da
acadêmica especialmente com funções educação, já que a avaliação é parte
de controle e de repressão, a avaliação inerente dessa, como de muitas outras
teve sua história como disciplina mar atividades humanas.
cada por alguns percalços, que só fi Invoco agora o testemunho e as luzes
zeram ressaltar seu caráter restritivo e de Miguel Arroyo, em seu livro Da es
pouco simpático. Foi o caso de sua cola carente à escola possível (Arroyo,
quase total identificação com os proces 1986). No estudo introdutório aos vários
sos de mensuração e elaboração de tes trabalh os reunidos no livro, todos
tes, com vistas a aquilatar precisamente tratando de experiências relativas aos
os progressos dos alunos em sua pas muitos problemas de nossa educação
sagem pela instituição escolar. Foi tam básica, Arroyo alerta-nos para o risco de
bém o caso de sua subordinação irres considerarmos feita e completa a critica
trita à perseguição de objetivos instru às concepções tradicionais, ou mesmo
cionais pré-estabelecidos para o processo mais recentes, com relação a uma es
educacional, num arremedo, visto agora cola marcada pelo favorecimento claro e
à distância no tempo como quase cô domínio exclusivo de uma determinada
mico, do que se passa em algumas áreas classe social. Percebe-se em toda a ar
de atividades, onde a previsão e o con gumentação desenvolvida pelo autor, a
trole são não apenas possíveis, mas necessidade de expansão dessa critica,
necessários. Pois esses e outros percalços sobretudo em seus aspectos orientados
assinalaram de forma acentuada a fi para a prática e a formação do profes
sionomia dessa disciplina, dificultando sor. É necessário, portanto, muito esfor
seu pleno desenvolvimento como campo ço de reflexão teórica, bem como de ob
de investigação e, conseqüentemente, servação empírica, para a construção
reduzindo consideravelmente sua con- do conhecimento indispensável para
74
subordinadas ao jogo pesado dos in "working class", numa reivindicação
teresses da sociedade maior? E como se política, cujo seguimento não é possível
joga esse jogo dentro da esfera menor da traçar aqui. O que interessa destacar é a
escola? relação por eles traçada entre a com
Para tentar responder a essas e a posição do curriculum na escola e a das
muitas outras questões de cunho so classes na sociedade. Fica bastante
ciológico, no âmbito da avaliação es claro, a partir de então, que a escolha
colar, não há ainda dispomvel um re de determinadas disciplinas, e não de
pertório considerável de sugestões, or outras, de alguns conteúdos em de
ganizado de modo articulado. Há, en trimento de outros, não é absolutamente
tretanto, contribuições mais ou menos gratuita, mas segue interessese e pro
isoladas merecendo, sem dúvida, um es voca conseqüências bem e proposita
forço de sistematização , que as torne Íns damente estabelecidos.
trumentos úteis para análise e com Não seria possível explorar aqui toda
preensão dos problemas tão complexos a riqueza desse importante veio de pes
incluídos naquele âmbito. Gostaria de quisa, que durante todo esse tempo, a
destacar, embora muito brevemente, al partir do imcio dos anos 70, vem se
gumas dessas contribuições, e também desenvolvendo, embora com ritmo ir
de indicar, ainda que de maneira não regular. Só para indicar a variedade de
exaustiva, questões por elas apontadas temas a ele relacionados, gostaria de
que mereceriam, a meu ver, destaque mencionar uma de suas mais recentes
dentro de uma agenda mínima de inves incursões: a história das disciplinas do
tigações sobre a área especifica. curso secundário, através de uma série
Embora mereça especial conside de pesquisas lideradas por I. Goodson
ração a contribuição de Bourdieu, com (1985).
os seus conceitos de "capital cultural" e No que se refere à avaliação, con
de "hábitus", auxiliando a compreensão sidero particularmente importante as
do papel da instituição escolar, na con sinalar que muitos dos problemas com
servação da sociedade e de sua cultura, os quais nos debatemos, dentro do
foi na Inglaterra que surgiu a principal quadro de reprovação e evasão maciças
fonte de tratamento teórico para um no primeiro grau, estão diretamente
manancial de problemas que inundam a relacionados com a composição cur
escola básica e, portanto, a avaliação ricular escolhida (por quem?) para esse
dentro dela. Trata-se da sociologia do grau de ensino. Aliás, o mesmo se pode
curriculo, bandeira principal do mo afirmar em relação aos demais graus,
vimento iniciado oficialmente em 1971, obviamente sem as mesmas drásticas
com a publicação do livro de M. Y oung conseqüências seletivas que ocorrem no
Knowledge and control e que receberia Primeiro Grau. Ê bom lembrar, en
mais tarde a denominação de Nova tretanto, se isto puder nos consolar, que
sociologia da educação. Não é o caso de até hoje (ou até recentemente), os so
se traçar a trajetória desse movimento ciólogos ingleses continuam se debaten
aqut mas de destacar a importância dos do com essa questão crucial, como se
estudos sociológicos sobre curri cu lo, no pode verificar pelo agudo estudo de P.
que se refere à avaliação. Inicialmente Willis (1977), cujo título é Learning to
colocada por Bernstein, mas logo as labour, mas cujo expressivo subtítulo
sumida e desenvolvida por outros mem diz: "Como os garotos da classe tra
bros da corrente, a idéia básica é que há balhadora conseguem empregos de clas
um sistema social de escolhas sobre se trabalhadora". E a leitura do estudo
como é distribuído o tempo educacional revela por inteiro a responsabilidade da
ou qual é o status dos vários conteúdos, escola e sobretudo da reprovação (da
ou como estes se relacionam entre si. A avaliação portanto) na atribuição final,
partir dessas escolhas surge a conste desses empregos a esses garotos. Aqui
lação chamada curriculum. Para os entre nós não me parece que aconteça
sociólogos da nova corrente essa co exatamente a mesma coisa, pois os nos
locação era fundamental, pois um dos sos rapazes da classe trabalhadora nem
principais, se não o principal objeto de chegam à escola do tipo daquela fo
estudu para eles era a adequação da es calizada por Willis. De todo o jeito
cola basica às necessidades dos filhos da valeria a pena um estudo semelhante.
75
Ainda da Inglaterra gostaria de des lógica de pesquisa sobre avaliação es
tacar a contribuição de P. Broadfoot, colar, ainda que apenas tentativa. Al
com um interessante estudo histórico guns deles são bastante especificos de
sobre a avaliação, acompanhando a nossa cultura escolar, tais como o da
própria história da instituição escolar composição de classes homogêneas ou
(Broadfoot, 1979). Embora se refira a heterogêneas, como mais convenientes
seu pais, a autora traz interessantes dis ou não, para o aproveitamento d o
cussões sobre questões fundamentais, aluno, o u a questão do caráter cu
como a da seriação, por exemplo, fe mulativo das notas entre os bimestres,
nômeno relativamente recente na vida ou ainda o questionado papel do con
da escola, mas de tão graves repercus selho de classe, ou a debatida possi
sões sobre a vida dos alunos. As poucas bilidade da auto-avaliação dos alunos.
e importantes iniciativas institucionais Outros problemas são de natureza mais
que tentaram, ou estão tentando, de al ampla ou geral mesmo, como a impor
guma forma, romper com esse sistema, tante questão da distribuição do poder
merecem indiscutivelmente a atenção de dentro da escola e sua repercussão sobre
uma investigação de cunho sociológico, a avaliação do aluno; a delicada questão
para extrair as lições vividas por elas da autonomia do professor, do diretor e
sobre essa dificil questão. É o caso do até mesmo da escola, frente aos órgãos
sistema escolar de Santa Catarina e centrais da administração do sistema es
também de algumas experiências colar; a importante questão da parti
menores de Minas Gerais e do Distrito cipação dos pais e da comunidade na
Federal (Cf. MEC, 1985). Ainda a P. gestão da escola e, portanto, sobre o
Broadf oot devemos alguns estudos próprio processo de a valiação dos
muito oportunos sobre o papel dos cer alunos.
tificados na trajetória educacional dos Esta é apenas uma agenda inicial e
indivíduos e, portanto, da sociedade. sobretudo sugestiva. Acho que a ava
Novamente é toda uma gama de suges liação do aluno pode favorecer o esforço
tões que se abrem para estudos se de democratização da educação, se se
melhantes, aqui entre nós, por exemplo, beneficiar do conhecimento adequado
sobre os exames supletivos, ou outros dos fenômenos envolvidos em seu
certificados. processo. Não esqueço que ela se res
Bem dentro da perspectiva da escola tringe aos limites já por si estreitos da
de Primeiro Grau, embora estudando atividade escolar. Mas também não pos
uma realidade tão distante da nossa, so esquecer que até agora, mesmo den
como a de Genebra, destaca-se a con tro desses limites, ela vem servindo
tribuição de Ph. Perrenoud, com seu in muito mais aos interesses já sobejamente
teressante livro, cujo titulo já encerra a servidos pela escola marcada pela
mensagem: A fabricação da excelência subordinação às classes dominantes. Se
escolar (1984). Não pretendo repetir quisermos romper essa ordem, é indis
aqui a análise, ainda que breve, já feita pensável conhecermos bem os mecanis
anteriormente (Lüdke, 1987), mas mos avaliativos, sobretudo seus com
apenas reafirmar a riqueza e a ade ponentes sociológicos.
quação do tratamento decididamente Gostaria de terminar emprestando
sociológico que esse autor dá aos fe uma feliz expressão do grupo de pes
nômenos avaliativos na escola. Tendo quisadores da Fundação Carlos Chagas,
passado com sua equipp vários anos es já citado:
tudando o sistema escolar genebrino, ele
oferece um quadro extremamente de
talhado e profundamente analisado da "O fato de que a superação da in
realidade da escola. justiça social e das contradições de
Ao lado dos recursos teóricos e classe não se resolva nos limites da
metodológicos e dos problemas obser escola, mas deva constituir-se numa
vados pela literatura dispOlÚ vel em âm luta que perpassa todo o social, não
bito internacional, gostaria de apontar deve obcurecer a constatação de que
também para alguns problemas ainda a escola tem um papel a cumprir no
não mencionados e que merecem sem atendimento do direito à cidadania
dúvida constar de uma agenda socio- r elacionado à apropriação do saber
76
historicamente acumulado" )Paro e GOODSON, I. Social histories of the seconáary cur
riculum. Londres, The Falmer Press, 1985.
outros, 1988, p. 199).
HEXTALL, I. MaI"king Work. In: WHITTY, G.&
YOUNG, M. (ed.). Explorations in the poütics
of sclwol knowledge. Nafferton, Nafferton Bo
Espero com este trabalho, ainda que
oks, 1976.
bastante sintético, ter contribuído para
LÜDKE, M. A caminho de uma sociologia da ava
um merecido e necessário resgate da liação escolar. Educação e sekçlJo. Fundação
avaliação escolar, como tema de estudo Carlos Chagas,jul.-dez., n. 16, 1987.
acadêmico mais adequadamente situado MEC - Secretaria de Ensino de 1� e 2� Graus Avan
e politicamente proposto. ços progressivos. Brasflia, 1985.
PARO, V. et alii. Escola de tempo integral. S. Pau
lo, Cortez, 1988.
BROADFOOT, P. Assessment, schools and society. YOUNG, M. (ed.). Knowkdge and contrai. Lon
Londres, Methuen, 1979. dres, Collier-MacMilan, 1971.
***
Trabalho apresentado no simp6sio "A avaliação do aluno e a questão curricular", V CBE, Brasflia,
agosto de 1988.
***
77
1. INTRODUÇÃO indissolubilidade teoria/prática, na tarefa
de não descuidar parcelas úteis e neces
Ê uma tarefa difícil apresentar sárias para o corpo revolucionário.
Gramsci na sua faceta pedagógica Nesse sentido. a formacão de Grams
educativa, uma vez que se faz necessária ci estará marcada por um estudo
para sua compreensão a inserção em um profundo da obra de Marx e Engels, o
código político (e no mesmo sentido desenlace da Revolução Soviética, o
moral e conceitual) que permita uma contato pessoal com Lênin e o conhe
colocação precisa e que não desfigure a cimento de seus escritos, o choque com
personalidade única e total do marxista a prática de luta da Turim dos anos vin
italiano. Levando em conta a evidente te, a militância no Partido Socialista
limitação de um artigo, tentaremos Italiano antes da ruptura que dá origem
apresentar algumas das linhas essenciais ao Partido Comunista, e o trabalho sis
das proposições teórico-práticas grams temático sobre a obra de Benedetto
cianas, com referências freqüentes a Croce (2). Gramsci constituirá, além
notas esclarecedoras, que permitam o disso, o nexo necessário do marxismo
aprofundamento em algum aspecto de para a Europa Ocidental, em um con
interesse para o leitor. texto sócio-político diferente por suas
Uma visão honesta de Gramsci exige caracteristicas histórias (Lênin e Rús
que o qualifiquemos como um político sia), e com o marxismo originário de
marxista integro, que trata de aplicar o senvolvido em outra época e em outras
materialismo histórico de forma dia condições. Aparece como o unificador
lética à sua realidade e que coloca - sistemático e orgânico das contribuições
como bom representante da tradição de teóricas e das realizações práticas re
luta revolucionária anterior - seu ob volucionárias. Ê, pois, o centro de uma
jetivo principal na instauração do poder dupla dimensão espaço-temporal (3).
de classe do proletariado (1). Toda a sua A importância de Gramsci pode ser
argumentação teórica e sua ação política deduzida a partir de outra perspectiva.
está subordinada a esse fim a médio Ele será, juntamente com Lukács e Kor
prazo. Assim, o "Gramsci pedagogo", sch, o último marxista (no sentido pleno
que critica o novo cientificismo socio do termo) do mundo ocidental. Todos os
lógico, que analisa as normas sociais e autores anteriores haviam evitado a dis
metodológicas da educação, que se sociação teoria/prática: não se concebia
ocupa de um currículo apropriado para a elaboração teórica separada da rea
o ensino primário... é o mesmo que en lidade social, do trabalho no partido, da
cabeça a luta nas ruas de Turim, o que politica responsável - não entendida
trabalha na organização dos conselhos como profissão. O trabalho teórico pos
operários no partido. Um Gramsci fiel à terior é o produto da transformação do
85
quais são as posiç'ões do inimigo e as que são o Estado (distintas burocracias),
nossas, para poder melhor adequar a o que traz complicações em relação à
essas, nossa ação de cadadia.Estudo e classe que domina o Estado a nível
cultura não são para nós outra coisa econômico.
senão consciência teórica de nossos
Todos os componentes de um par
fins imediatos e últimos e da maneira
tido são intelectuais, apesar das diferen
pela qual podemos levá-los a cabo
ças de grau que possam subsistir inter
(36). "
namente. Isso ocorre dessa maneira por
Contudo a iniciativa prospera com o que as funções dentro de um Partido
tempo e alcança os lugares mais recôn político são diretivas e organizativas, ou
ditos da geografia italiana. No local on seja, educativas e intelectuais.
de houvesse um militante, criava-se ao Assim, uma parte importante do
mesmo tempo um círculo de estudo à "Príncipe Moderno" deve dedicar-se à
sua volta. A passagem do material era gestação de uma reforma intelectual e
feita por correspondência. Material que moral, à construção de uma concepção
apresentava uma certa programação, do mundo unitária (de uma religião no
com perguntas, reflexões, etc., que o sentido croceano). Deverá formar uma
aluno de teoria política deveria respon vontade coletiva nacional-popular. Essa
der e conhecer. As respostas eram en reforma intelectual e moral não pode
viadas para correção ao encarregado de divorciar-se de uma reforma econômica,
formação do Partido mais próximo, que que é precisamente o modo concreto em
as devolvia, uma vez corrigidas, com as que se apresenta toda reforma intelec
sugestões oportunas. Periodicamente, e tual e moral. Não obstante é necessário
na medida do possível, alunos e profes deixar explicitamente claro que não
�ores reuniam-se para trocar impressões. existe nisso o menor indício de meca
E impressionante o esforço enorme, não nicismo: estando efetivamente a he
só humano mas também material, que gemonia enraizada nas relações de
comporta tal iniciativa. Porém pouco produção, isso leva a deduzir-se que seja
podia com a moral de vitória revolu sua expressão imediata. Para Gramsci:
cionária do proletariado italiano da
época. "essa afirmação deve ser discutida
Porém, como forma o partido os in teoricamente como um infantilismo
telectuais e como os relaciona? Para al primitivo••.já que, sendo a poUtica,
guns grupos sociais, o Partido político realmente, em cada momento, a
constitui - principalmente - o modo reflexão das tendências de desenvol
peculiar de organizar seus intelectuais vimento da estrutura, não é neces
diretamente no campo político e filo sário que essas tendências devam
sófico e não no campo da técnica reaUzar-se" ( 37).
produtiva. O Partido político cumpre na
Isso quer dizer que, ainda que o
sociedade civil a mesma função que o
Partido tivesse êxito em alcançar essa
Estado na sociedade política, isto é,
reforma econômica uma vez conquistado
realizar a união entre seus próprios in
o poder, nem por isso a classe operária
telectuais orgânicos e a categoria dos in
teria assegurada sua hegemonia, que
telectuais tradicionais. O Partido cum
deve ser construída dia a dia, em todos e
pre essa função formando seus com
em cada um dos âmbitos da vida social,
ponentes, elementos de um grupo social
que nasceram e se desenvolveram no mesmo em aspectos que não têm um
econômico, até tomá-los qualificados conteúdo de classe imediato (cuidado
dirigentes políticos, organizadores de com o meio natural, respeito pela crian
todas as atividades e funções inerentes ça, machismo, etc). Disso deduz-se que
a reforma cultural não seja somente a
ao desenvolvimento de uma sociedade
integral: isto é, política e civil. conseqüência da mudança econômica.
Sobretudo pelo diferente controle e Por isso:
disciplina em uma organização operária,
Gramsci afirma que essa união entre in "O Príncipe ocupa nas consciências
telectuais é maior no Partido político o lugar da divindade e do imperativo
que no Estado. Isso é demonstrado, en categórico, converte-se na base de um
tre outras razões, pelo fato de alguns in laicismo moderno e de uma completa
telectuais tradicionais chegarem a crer secularização de toda a vida e de
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todas as relações de comportamento pré e p6s-carcerária. A esse respeito pode-se
consultar em espanhol, entre outros, os traba
Inteuocial"(38) •
lhos e seleções:
Anderson, Perry. Las antinomias de Antonio Grams
Do exposto até aqui pode-se deduzir cio Barcelona, Fontamara, 1978.
que Gramsci adjudica a o Partido-o Buci-Glucksmann, Christine. Gramsci y el Estado.
Barcelona, Anagrama, 1976.
educador coletivo um papel até certo Gramsci, Antonio. Antologia. Mexico, Siglo XXI,
ponto onipotente. Em certa medida não 1978.
La construcci6n deI Partido Comunista
faz uma análise das contradições dentro •
pular, 1977.
nas que se converteram a maior parte 2. Consultar: Gramsci, Antonio. El materialismo
dos partidos comunistas do Ocidente. historico y Úl filosofia de Benedetto Croce. Bue
Delineia-se aqui uma infinidade de nos Aires, Nueva Vision, 1971.
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10. O ponto mais alto dessa conclusão é a teoria trelaçamento de relações da luta pela hegemonia
pragmática do eurocomunismo, como dnica al operária.
ternativa poIrtica viável, autêntica e inevitável
23. A dissociação de que fala Gramsci não somente
para a revolução nos pa!ses desenvolvidos (se se mantém, como é ainda maior, atualmente.
gundo sua pr6pria versão). Existe, além disso, Adquire nova relevância o papel do filósofo em
uma cerração ideol6gica em todas as tendências seus processos de investigações salvadoras, de
que fixam suas rafzes no marxismo, que possi
pois de uma etapa de maior compromisso. A
bilita uma atuação poIftica desencontrada e mesma observação pode ser válida para as car
contradit6ria. O acreditar-se na posse absoluta reiras mais te6ricas de nossa universidade.
da verdade revolucionária toma imposs!vel
(tampouco existem verdadeiras motivações para 24. Gramsci, A.Antologia. op. cit., pág. 442.
isso) qualquer tipo de conciliação e aproxima 25. Um grupo social é, normalmente, dirigente so
ção entre as diferentes correntes. Marxismo so bre seus aliados e dominante sobre seus inimi
viético, chinês, eurocomunismo, social-demo gos. As tarefas de direção ideol6gica e cultural
cracia... falam linguagens distintas e, muitas vão pesar fundamentalmente na hora do domí
vezes, sem ponto de comparação poss!vel. Sem nio hegemônico.
ter que recorrer à obra especializada sobre o te
ma, o leitor encontrará uma boa demonstração 26. Williams, R. Marxismo y Literatura. Barcelo
desse fato na imprensa diária, mais especifica na, Pen!nsula, 1979.
mente no noticiário referente à poIftica interna 27. Enquanto elaboradores e depositários de um
cional. código ideol6gico de chaves de caráter restrito,
11. É nesse sentido a universalização desligada de pertinente, portanto, à necessidade dirigente da
qualquer base contextual das análises das insti classe dominante. A aliança clero-poder poUti
tuições educacionais italianas, ou a abstração co é estudada por Gramsci principalmente com
que dissocia a educação da luta pelo poder poIr base nas concordatas Itália-Santa Sé, com as
tico. prebendas significativas para a Igreja, enquanto
organização e seleção cultural, educativa, e
12. Ver nota 5. controle dos dirigentes sociais.
13. Análise dos intelectuais, discussão do princípio
28. Ver Gramsci, A: La formaci6n de los intelec
educativo, etc. Ver os cap!tulos referentes a es tuaIes. Madrid, Grijalbo, 1967.
ses aspectos nas recompilações de Gramsci cita
das anteriormente. 29. Ver Therborn, G.: ;,Como domina la c/ase do
minante? Madrid, s. XXI, 1978.
14. Ver principalmente os capítulos 11 e IV de An
derson, P. Las Antinomias op. cit. 30. A posição dessas duas instâncias varia em con
sonância com as diferentes circunstâncias his
15. Ibidem, pp. 51 e 88
tórico-sociais e a elaboração te6rica de Gramsci
16. Ver Kosic, Ilard. DiaMctica de 10 concreto. ao longo de sua obra. Da inter-relação Conse
México, Grijalbo, 1967. lho, Sindicato, Partido é o dltimo que sai defi
17. Ver segunda parte, nota três. nitivamente fortalecido. Ver a esse respeito:
Portantiero, J. C.: "Los usos de Gramsci in
18. Ver "La educaci6n en el Partido", nesse mes Portantiero-Gramsci op. cito
mo artigo. Em geral, Gramsci não perde de
vista o essencial, em favor do secundário. 31. Ver Lenin, V. I.: i,"Que Hacer?". in Obras es
cogidos. Moscd, Progreso, 1961, tomo I.
lY. Nessa mesma linha, encontra-se o desenvolvi 32. Athos, Lisa. "Discusi6n poIrtica com Gramsci
mento te6rico dos conselhos operários, os sindi en la cárcel". in Portantier-Gramsci: Los
catos, a frente dnica, guerra de posição, etc. Usos op. cito O texto integral desse apêndice
•••
20. Gramsci, A. La alternativa ••• op. cit., pág. 223. foi apresentado pelo autor ao Comitê CentraI do
PCI.
21. A esse respeito diz Betti: "parece-nos que se
pode dizer que Gramsci tenha sido condiciona 33. Ibidem, pág. 308.
do por Croce como sempre ocorre quando duas 34. Portantiero-Gramsci: Los usos, •• op. cit., pág.
forças opostas lutam reciprocamente. A relação 64.
com Croce, à parte uma simpatia inicial, nunca
se expressa como dependência espiritual, mas 35. Ver entre outros:
como tensão, como discrepância cordial, isto é, Gramsci, A.: Panido y revoluci6n. México, Cultura
desacordo puro e simples". Betti, G. Escuela •••
Popular, 1977.
op. cit., pág. 39. Idem La construcci6n op. cito
•••
Traduzido da revista espanhola Tempora, n� 2, 1981, por gentileza especial do autor e desse peri6di
co. Tradução de Iara Gonçalves. Revisão de Tomaz Tadeu da Silva.
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