Você está na página 1de 87

i eduç .0& .,�.

� reallcade
------ '....---
.. --
o trabalho como princípio educativo em Gramsci
Paolo Nosella • . . . . • . . • . . . . . . . . . . . . . . . • . . • . .. ... .. .. . .. ... .... .. 3

A escola e a produção da sociedade


André Petitat . ... . .. . . . . . . . ... ... . . . . ... . .... ......... . . . . . 21 . . .

Magistério de 12 grau: um trabalho de mulher


Guacira Lopes Louro .. . ... .. ...
. . . . . . . .. .. . ... .... .. . ... .. 31
. . . . . .

A luta emancipat6ria entre os catadores de lixo na periferia


de Porto Alegre: a provisoriedade da educação pelo trabalho
Nilton Bueno Fischer • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 40

Currículo e poder
Michael W. Apple • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 46

A questão da cultura técnica na escola


Lucie Tanguy . .... . .. .. .. .... . .
. . . . . . . . ... . ..... . . . . ...... . . . . 58

Reflexão sobre educação e fIlosofia a prop6sito do ensino de fIlosofia no 12 e 22 graus


Laetus Mario Veit • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 69

Por urna sociologia da avaliação


Menga Lüdke • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 73

Considerações prévias a um estudo da educação em Gramsci.


Política/Educação no Partido
Blás Cabrera Montoya • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 78

Composição: Artexto - Serviços Gráficos e Edho­


riais Ltda. - Rua 13 de maio, 468-
Fone: (054)222.6223 - Caxias do Sul- RS

Capa: Kundry Lyra Klippel sobre pintura de Go­


ya (La Cucagna)

V. 14, n2 2, julJdez. de 1989 Assinaturas e n6meros avulsos: Pedidos de assi­


naturas devem ser enviados ao seguinte endereço,
Educação & Realid3de é uma publicação semestral juntamente com cheque cruzado em nome de Edu­
da Faculdade de Educação da Universidade Federal cação e Realidade:
do Rio Grande do Sul.
Educação e Realidade
Editores: Rovilio Costa e Tomaz Tadeu da Silva Faculdade de Educação
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Çonselho Editorial: Alceu R. Ferrari (presidente), Av. Paulo da Gama, sln�, 8� andar
Angela M. B. Biaggio, Laetus M. Veit, Margot B. 90.040 - Porto Alegre- RS- Fone:(OSI2)2S.1067
OU, Maria Beatriz M. Luce, Renita L. AIIgayer, Brasil
Rovilio Costa e Tomaz Tadeu da Silva

Secretária: Jacy Busato

Projeto Gráfico: Abne! de Sousa Lima Filho


(Central de ProdUÇÓllS- FACED/UFRGS) ISSN 0100-3143
o trabalho�jpmo princípio
educativo. Gramsci
, , " ' , ' '.:i >�
'�
, ,

PAOLO NOSELLA('

zação histórica do pensamento grams­


1. INTRODUÇÃO: PARA ciano e assim melhor introduzir a citada
QUE VOLTAR AO ASSUNTO? conferência de Manacorda sobre "O In­
dustrialismo de Gramsci" .

O trabalho como princípio educativo


em Gramsci é tema sobejamente es­
2. "SOU UM TRIPLO
OU QUÁDRUPLO PROVINCIAL"
tudado, conhecido e difundido. Que
fazer mais, a não ser listar e comen tar Para se entender o valor que Grams­
uma ampla bibliografia específica sobre ci atribui ao trabalho industrial, é im­
o tema? Quem não sabe que Gramsci portante conhecer seu itinerário, isto é,
assenta a cultura, a filosofia, a educação da Sardenha a Turim; de Turim à Rús­
no sólido terreno do trabalho? Quem sia; da Rússia à prisão. Nesse sentido, é
não sabe que nos Cadernos do Cárcere muito útil a leitura de seus Escritos
há longas notas especificamente redi­ Políticos (anteriores ao cárcere). Pes­
gidas sobre o trabalho como princípio soalmente creio que só é possível "sen­
educativo (sobretudo os Cadernos 1 2 e tir" as razões de sua insistência sobre
22 da Edição Critica, escritos entre 1 930 certos assuntos políticos, filosóficos e
e 1935)? Quem não sabe que o próprio culturais quando percebermos o forte
Mario Manacorda escreveu um impor­ componente meridional desse intelectual
tante e exaustivo estudo justamente italiano nascido, criado e emigrado aos
sobre "O princípio educativo em A. 20 anos (novembro de 191 1 ) de uma ilha
Gramsci"? Mais ainda, recentemente atrasada, pobre, fechada , arcaica,
( 29/ 10/87) o mesmo professor Ma­ sofrida, preconceituosa que era a Sar­
nacorda proferiu uma conferência por denha. Em 1 924, de Viena, escreve a
ocasião dos 1 0 anos de Mestrado do PP­ Júlia: "Eu fui acostumado pela vida
GE da Universidade Federal de São solitária, que vivi desde a infância, a es­
Carlos ensinando-nos magistralmente conder as minhas emoções atrás de uma
que o trabalho industrial está na base da máscara de dureza ou atrás de um
concepção educativa gramsciana. Para sorriso irônico ( . . . ). Isso me fez mal: por
que, então, mais uma palestra sobre o muito tempo as minhas relações com os
tema? Na melhor das hipóteses pode­ outros foram alguma coisa de enor­
remos apenas repisar aspectos já su­ memente complicado, uma multipli­
ficientemente estudados e divulgados . cação ou uma divisão por sete de todo
Entretanto aceitei fazer essa ex­ sentimento real, para evitar que os
posição porque me pareceu que poderia outros entendessem o que eu realmente
sobretudo contribuir na contextuali- sentia. O que foi que me impediu de me

EDUCAÇÃO E REALIDADE, Porto Alegre, 14(2):J-20,juVdez. 1989 3


tornar um absoluto trapo engomado? O tagnação histórica e um trabalho que se
instinto da revolta, que quando criança encerra na pura sobrevivência porque
era contra os ricos porque eu não podia não alcança a mínima margem de so­
ir estudar, eu que havia tirado 1 0 em bretrabalho social, única forma possível
todas as disciplinas nas escolas elemen­ para se obter a riqueza universal. O
tares, enquanto iam estudar o filho do campo representa o fechado regionalis­
açougueiro, do farmacêutico, do comer­ mo do dialeto e das relações sociais que
ciante de tecidos. Essa revolta se dilatou impedem ao pobre trabalhador a com­
para todos os ricos que oprimiam os preensão objetiva e universal da história;
camponeses da Sardenha e eu pensava para ele o pobre campo do sul da Itália
então que precisava lutar pela indepen­ representa até a impossibilidade de uma
dência nacional da região: "ao mar os prática sexual humana e construtiva. Pelo
continentais!" quantas vezes repeti essas negativo, portanto a vida e o trabalho da
palavras . Depois conheci a classe foice ( campesinato) o lançam a valorizar a
operária de uma cidade industrial e vida e o trabalho do martelo ( operariado),
compreendi o que realmente signifi­ até o final da vida quando escreve o fa­
cavam as coisas de Marx que havia lido moso Caderno 22 sobre Americanismo e
antes por curiosidade intelectual. Me Fordismo, cuja idéia central assim pode
apaixonei assim pela vida, pela luta, ser formulada: embora o americanismo e
pela classe operária" (in Santucci, 26- o fordismo possam ser historicamente
27) . limitados e devam ser superados, cons­
Piero Gobetti insiste, com razão, na tituem inegavelmente um grande avanço
importância dessa componente meri­ histórico diante do crônico atraso do sul
dional ao retratar a personalidade de A. da Itália; só os pequenos burgueses dos
Gramsci: "Parece ter vindo do campo cafés (bares) parisienses ou vienenses (que
para esquecer suas tradições, para subs­ não conhecem o que é o campo pobre)
tituir a hereditariedade doentia do podem desprezar o pragmatismo e a dis­
anacronismo sardo com um esforço ciplina do processo industrial americano
fechado e inexorável ( . . . ) traz na pessoa do século XIX.
física a marca desta renúncia à vida dos
campos e a sobreposição quase violenta
de um programa construído e renovado
pela força do desespero, pela necessi­ 3. ENTRE O OPERARIADO
dade espiritual de quem rejeitou e re­ TURINÊS
negou a inocência nativa" (Gobetti,
Scritti Politici, Torino 1 9 1 0, p. 1 003). Pois bem, se 20 anos de vida na Sar­
Enfim, é inegável a grande influên­ denha carregaram o jovem Gramsci de
cia que Gramsci sofreu durante os anos revolta, a saída dessa fase coincidiu com
passados na Sardenha. Essa influência a descoberta, em Turim, da classe
atinge seus escritos: revel a - s e nas operária de uma cidade industrial cuja
preocupações, nos temas, nos sentimen­ função revolucionária nacional foi por
tos que impregnam seus artigos, em Gramsci logo entendida: "o proletariado
suas anotações e suas cartas até a sua turinês tornou-se assim - escreveu em
morte. Ele mesmo se define no cárcere, 1920 - o dirigente espiritual das massas
talvez com demasiada severidade, um operárias italianas que possuem vínculos
"triplo e quádruplo provincial" . Não se com essa cidade através de muitas li­
trata de uma ma;�a bucólica ou român­ gações: parentes, tradição, história e
tica, obviamente, que o seduza em ligações espirituais (pois o ideal para
direção aos idílios do campo e do tra­ todo operário italiano é poder trabalhar
balho simples e arcaico, ao contrário, em Turim)" ( Santucci, 27).
trata-se de uma marca quase traumática Se é, portanto, historicamente
que o lança cada vez mais para a ne­ "natural" que o proletariado industrial,
gação desse tipo de vida sofrida em organizado em Partido. assuma a di­
direção à valorização da vida urbana e reção política das massas camponesas, da
do trabalho industrial. É uma experiên­ mesma forma, para ele, é historicamen­
cia que o torna uma espécie de Rous­ te indiscutível a primazia histórica do
seau às avessas, pois o campo para próprio trabalho industrial, base e prin­
Gramsci representa vida duríssima, es- cípio do novo homem.

4
A essa altura me seja permitido um Gramsci escreve: " . . . o desepvolvimento
parênteses. Há algum tempo venho afir­ da grande indú�tria atraiu para Turim a
mando a necessidade, para uma correta flor da classe operária italiana . O
hermenêutica dos textos gramscianos, processo de desenvolvimento dessa
de se ler os Escritos Políticos anteriores cidade é, do ponto qe vista da história
ao cárcere ( 1 913- 1 926) como chave ex­ italiana e da revolução proletária ita­
plicativa dos Cadernos e Cartas do Cár­ liana, interessantíssimo. O proletariado
cere. De fato, Gramsci nos Cadernos turinês tornou-se assim o dirigente es­
dilata e universaliza os conceitos, tais piritual das massas operárias italianas"
como trabalho, hegemonia, revolução, (Santucci, ibidem) . Da mesma forma,
intelectuais, educação etc. Entretanto, também o conceito de intelectual or­
essa dilatação e universalização não gânico só pode ser percebido correta­
rompem com o núcleo conceitual e ex­ mente quando estudado à luz dessa con­
periencial elaborado por ele antes do cepção de fundo de hegemonia. Para
cárcere, isto é, durante o processo de Gramsci, de fato, é o proletariado in­
sua formação e durante sua prática de dustrial, organizado em Partido (isto é,
militância política. Ao contrário, os os quadros em volta de Ordine Nuovo) a
Cadernos são a universalização daquele se constituir no protótipo de intelectual
núcleo teórico. Ora, sem a percepção orgânico das massas italianas. Ora, a
desse núcleo teórico de base, a univer­ leitura dos Cadernos, sem essas páginas
salização dos Cadernos pode, fácil e anteriores, muito dificilmente poderá
equivocadamente, ser entendida como transmitir a densidade política dessas
abstração, o que, infelizmente, muitas concepções. De uma apreensão abstrata
vezes aconteceu . Assim, por exemplo, de suas sínteses teóricas elaboradas no
vejamos o conceito de trabalho: a carac­ cárcere, decorre o perigo de cada in­
terística ênfase gramsciana sobre a telectual bem intencionado, individual­
qualificação "industrial", poderia pas­ mente (inclusive os educadores) , se
sar desapercebida se não conhecessemos autodefinir orgânico ou revolucionário,
sua "passagem" da Sardenha a Turim. com a pretensão de possuir o aval de um
Há outro exemplo ainda mais evidente: autor como Gramsci.
o cOl}ceito de hegemonia. Nos Cadernos Encerrado esse parêntese sobre certa
freqüentemente ele dilata esse conceito leitura abstrata que se faz dos Cadernos
para uma significação a mais abrangen­ do Cárcere, retornemos ao nosso tema
te possível, identificando-se, no limite, do trabalho industrial como princípio
com o próprio conceito de poder diretivo educativo.
sem maiores especificações. Nos Escritos
Políticos, entretanto. o conceito de
hegemonia se concentra quase exclu­
sivamente na histórica relação entre o 4. O TRABALHO INDUSTRIAL
proletariado industrial e as massas É O PRINCipIO EDUCATIVO
pobres do campo. Por isso, é preciso UNIVERSAL DE TODA
afirmar que o núcleo original, jamais A SOCIEDADE MODERNA
negado, e sem o qual não é possível en­
tender o conceito de hegemonia em Na citada conferência de M. A.
Gramsci, consiste na tese de que his­ Manacorda ( Humanismo de Marx e In­
toricamente a direção espiritual das dustrialismo de Gramsci) há uma pas­
massas operárias italianas (inclusive dos sagem que diz: "Ficará, aliás, evidente
funcionários públicos e dos intelectuais que Marx, mesmo partindo da neces­
tradicionais) cabe ao proletariado indus­ sidade não apenas do trabalho mas tam­
trial. Ou seja, não podemos esquecer bém do sobretrabalho (social), coloca
que o tradicional símbolo da "Foice e geralmente fora do trabalho o reino da
Martelo" tinha para Gramsci um co­ liberdade (o que lhe foi censurado por
lorido e um sentido vivo, real e fun­ Oella Volpe como se fosse uma aporia) ;
damental . Para nós, talvez, esse sentido enquanto Gramsci aparece, por assim
tenha perdido suas cores primitivas e dizer, mais marxista do que Marx, pois
vivas. Em julho de 1920, de fato. no coloca o crescimento da personalidade
relatório enviado para o Comitê Exe­ não fora, mas sim dentro do trabalho"
cutivo da Internacional Comunista, (Manacorda, ibidem, p. 21, mimeo) .

5
Manacorda nesse texto não se esten­ organização social de toda a vida in­
de sobre essa questão que fica como dividual, familiar, intelectual, cultural,
"batata quente" em nossas mãos, pois criativa, artística sob o princípio geral
toca na importantíssima questão do da racionalidade, do industrialismo.
trabalho e do não-trabalho. A obser­ f: óbvio, portanto, que no Caderno
vação de aporia que Della Volpe faz 22, sobre Americanismo e Fordismo
com referência a Marx, não é objetivo (1935), quando Gramsci se refere ao
dessa exposição, mas sobre a univer­ trabalho industrial, se opondo porém ao
salização do conceito de trabalho indus­ de marca americana, subentende ele
trial no pensamento de Gramsci, algo aquele de marca revolucionária russa.
bem definido pode ser dito. (Não é possível esquecer que se nas
Em primeiro lugar já ficou claro, páginas dos Cadernos, por óbvias ra­
como vimos, que Gramsci nega (pois a zões, não faz explícitos acenos à Rússia,
própria história o negou) aquele tra­ o conteúdo das cartas a Júlia e aos filhos
balho que não gera sobretrabalho, isto deixa entender que ele escreve freqüên­
é, aquele trabalho que gera apenas a temente pensando naquele horizonte).
sobrevivência individualizada sem ja­ Após a defesa do trabalho industrial,
mais produzir riqueza universal, base mesmo daquele americano fordista,
objetiva e necessária para a construção ridicularizando as críticas pequeno bur­
do novo homem culturalmente desenvol­ guesas e reacionárias dos intelectuais dos
vido e potencialmente socialista. Por is­ cafés de Paris, passa a analisar os li­
so ele defende, e cada vez mais radical­ mites histórico-formativos do trabalho
mente, o trabalho industrial, como a industrial americano-capitalista, apon­
forma moderna de atividade produtiva e tando com clareza para o novo trabalho
princípio educativo do homem moderno. industrial (não-americano), socialista:
Em segundo lugar , é certo que para "as iniciativas 'puritanas' têm apenas o
Gramsci esse trabalho industrial possui objetivo de conservar, fora do trabalho,
densidade histórica que transcende o es­ um certo equilíbrio psico-físico para
pecífico modo de produção capitalista evitar o colapso fisiológico do traba­
burguês, portanto, é um modo de lhador, espremido pelo m étodo de
produção que se constitui em base produção. Este equilíbrio só pode ser
universal educativa do próprio homem exterior e mecânico, mas poderá tornar­
moderno e socialista. O conceito de se interior se o mesmo for proposto pelo
"não-trabalho" , para Gramsci é es­ próprio trabalhador e não imposto de
tranho. Em todo caso não significaria fora, isso por uma nova forma de so­
jamais lazer ou preguiça ou pura ati­ ciedade, através de meios adequados e
vidade cultural, e sim apenas trabalho originais" (Caderno 22, p. 2166, Ei­
industrial que se torna autônomo e naudi). Essa passagem rápida do Cader­
criativo, portanto não aquele de tipo no 22, contém em síntese os limites his­
americano, isto é, não o trabalho indus­ tóricos do trabalho industrial americano
trial sob a forma capitalista e sim o e acena aos novos princípios organi­
trabalho industrial sob a forma socialis­ zativos sociais que darão ao trabalho in­
ta. A expressão "não-trabalho" vem as­ dustrial sua forma universal e liber­
sociada, em Gramsci a estranhas teo­ tadora: interioridade da disciplina,
rias, fantasiosas e absurdas, por ele for­ autonomia e originalidade operária.
temente ridicularizadas e classificadas O trabalho industrial, para Gramsci,
com o termo de Lorianismo ( leia-se o transcende, em sua essência, os limites
Caderno 28, Lorianismo, 1935). O "não­ "americanos" , pois lança as raízes no
trabalho" historicamente sério passa Renascimento e se estende após a
pela incorporação da disciplina (au­ Revolução. Nessa perspectiva é impor­
todisciplina) do próprio processo de tante lembrar a concepção geral desse
trabalho industrial, sob a direção po­ autor sobre a história. Para ele, de fato,
lítico-administrativa do trabalhador (in­ a revolução socialista dão rompe a
dustrialismo de tipo socialista) ; passa, relação histórica com a civilizaç ão
ainda, pelo fortalecimento científico do moderna cujas raízes estão no Renas­
próprio processo do trabalho que gera cimento de .Maquiavel, Bacon, Descar­
cada vez mais riqueza universal e pela tes, Galileu, etc. Ao contrário efetiva o

6
sentido socialista radical que a revolução poder, não em sua essência produtiva,
burguesa clássica havia prometido. A uma vez que o sobretrabalho industrial
ruptura se dá, e é radical, com referên­ se reveste de valor universal e é com­
cia à traição da burguesia contempo­ ponente válida e indispensável para a
rânea ou do século XIX, uma vez que, nova civilização socialista.
em termos de civilização a grande rup­
tura da história começou com o que o
Renascimento operou contra a civili­ 5. O TRABALHO INDUSTRIAL
zação metafísico-teocêntrica da I dade Ê O PRINCIpIO EDUCATIVO
Média. A propósito, em dezembro de GERAL DA ESCOLA UNITÁRIA
1 9 1 6, escrevia Gramsci no jornal
"Avanti", na rubrica "Sotto la Mole", Como vimos, para Gramsci o tra­
um interessante comentário sobre uma balho industrial destruiu a velha forma
carta circular que havia recebido na­ de sociedade e está substituindo seu
queles dias, de seu antigo pároco, que tecido, gasto e dilacerado, recompondo
lhe solicitava colaboração financeira uma nova ordem humana e social. A
para a construção de um templo con­ racionalidade, o ritmo, a dinâmica, as
sagrado à Anunciação de Maria, de­ leis dessa nova forma de trabalho mol­
sejoso de reunir toda a Itália aos pés de dam aos poucos, inexorável e molecular­
Nossa Senhora: "Preocupa-me o fato de mente, os homens e as instituições da
esta atividade ter por fim deixar em al­ sociedade moderna. O trabalho indus­
guns metros quadrados da superfície do trial, como novo demiurgo, modela o
globo um vestígio arquitetônico que homem integralmente, desde criança,
consuma pedra e cal, engenho e tra­ determinando seus brinquedos, seus
balho, de que resulta um edifício para o hábitos e suas habilidades, até a idade
qual não se prevê uma utilidade no adulta; forja suas necessidades, seu
futuro, quando a atividade atual se tor­ físico e seus músculos, seus princípios e
nará definitivamente mito, quando o seus sonhos. É um demiurgo que cria
edifício terá perdido para todos o seu uma nova concepção e funcionamento
caráter hierático e não será mais do que de moradia, desde os materiais de cons­
pedra e cal organizados em edifícios. trução até seu projeto geral; a racio­
( . . . ) A circular do meu pároco preocupa­ nalidade do trabalho industrial organiza
me muito neste vago crespúsculo mi­ também uma nova forma de economia
tológico no qual é imerso o estado de es­ doméstica, modificando a organização
pírito. Mas não consigo vencer os sen­ da cozinha, as roupas, a sala de estar, o
timentos suaves e ternos . É a mesma quarto de dormir, etc. Modifica os trans­
suavidade e ternura que se experimen­ portes, as ruas, as praças e todos os es­
tam em presença de todas as criaturas paços públicos e privados. Enfim, o
imperfeitas. Pensa-se na fatal infecun­ trabalho industrial modifica radical­
didade, no esquecimento que a submer­ mente o "estado geral das coisas" , isto
girá num tempo não longínquo. O mito é, o próprio Estado, a nível de suas
pagão deixou monumentos de beleza relações de poder e de suas concepções
que continuam a viver por este seu histórico-políticas.
caráter de perenidade que fazem reviver É natural que o moderno princípio
algum dos sentimentos ancestrais. O educativo universal do trabalho indus­
mito cristão, pelo menos na nossa ci­ trial transforme também a tradicional
dade, só deixará entulho, matéria fácil instituição escolar, mesmo que sua for­
para a futura picareta." ( Sotto la Mole, '
ma arcaica secular a torne freqüente­
Einaudi, 271 -272). mente mais refratária do que outras ins­
Pois bem, se é possível pensar num tituições: "É (o trabalho) - diz Grams­
mito pagão e num mito cristão, não é ci - o fundamento da escola elementar;
possível dizer o mesmo referente à que ele tenha dado todos os seus frutos,
revolução burguesa, ou seja, os templos que no corpo dos professores tenha exis­
impotentes e estéreis desses mitos não tido a consciência de seu dever e do con­
fazem paralelismo nenhum com as teúdo filosófico deste dever, é um outro
velhas fábricas inglesas ou as modernas problema, ligado à crítica do grau de
americanas. A história superará o consciência civil de toda a nação, da
trabalho industrial em sua relação de qual o corpo docente é tão somente uma

7
expressão amesquinhada ainda, e não A. Escritos durante a Ia Guerra
certamente uma vanguarda" ( Caderno (1915-1918). Deste período, tendo
12). presente o tema que nos interessa
Precisamos logo esclarecer que nor­ ( trabalho-educação) , sugerimos para a
malmente Gramsci utiliza um conceito leitura os seguintes textos:
de escola muito amplo. Às vezes, o nos­ 1) La Luce che si é spenta (A luz que
so debate educacional sofre de escassez se apagou - não traduzido - li Grido
de categorias ou conceitos: de fato, entre dei Popolo, 20/09/ 1915);
a prática produtivo-social ( princípio 2) La scuola dei lavoro ( A escola do
educativo informal) e a escola pro­ trabalho - não traduzido - A vanti,
priamente dita (instituição educativa 18/07/ 1916);
tradicional) existem formas educativas 3) La scuola all'officina ( A escola vai
organizadas, isto é, verdadeiras "es­ à fábrica - não traduzido - Avanti,
colas", com efetivos programas unitários 08/09/ 1916) ;
e orgânicos de atividades formativas 4 ) Homens ou máquinas? ( Avanti,
( "attivitá educativa diretta"), criados e 24/ 1 2/ 1 9 1 6) - (OBS. - Os textos an­
ligados às diferentes práticas produtivas teriores ao cárcere que foram tra­
da sociedade. Quando Gramsci fala de duzidos para o português, se encontram
escola, deve-se prestar atenção porque na pobre e mal feita antologia da
muitíssimas vezes entende referir-se jus­ Editora Seara Nova, com o título de Es­
tamente a esse conceito mais amplo de critos Políticos. Os em italianos perten­
escola ( círculos culturais , Rotary cem às edições Einaudi).
Clubes, escolas dos grandes jornais, das 5) L A Universidade popular ( Avanti,
fábricas, do comércio, etc., etc. ) . Esse 29/ 1 2 / 1 9 1 6) ;
dilatamento da idéia de escola é natural 6) Para uma Associação de Cultura
para Gramsci, de fato ele não é um (Avanti, 1 8/ 1 2/917);
professor, nem um "especialista edu­ 7) Cultura e luta de classe (11 Grido
cacional", é um jornalista e chefe de dei Popolo, 25/05/19 18).
Partido, A educação o interessa muitís­
simo; mas o trabalho educativo-escolar B. Escritos do após guerra (1919-
que efetivamente desenvolve se dá na 1921). Deste período, destacamos nove
"escola de Ordine Nuovo" do Partido textos:
Comunista, que justamente é uma es­ 8) Democracia operária ( Ordine
cola no sentido amplo. Nuovo, 21 /06/ 1919);
Para uma aproximação suficiente da 9) A escola de cultura (Ordine Nu­
concepção educativo-escolar de Grams­ ovo, 20/ 1 2/ 1 919);
ci, precisamos acompanhar o processo 1 0 ) Lo strumento dei lavoro (O Ins­
de reflexão que ele fez sobre esse tema, trumento do Trabalho - não traduzido
lendo seus escritos (pelo menos os mais - Ordine Nuovo, 14/02/ 1 920) ;
importantes) nos diferentes momentos 1 1) Operário de fábrica (Ordine
históricos de sua vida, porque Gramsci Nuovo, 21/02/ 1 9 1 0);
constrói sua teoria ao longo da história, 12) Partido de Governo e Classe de
no debate contínuo com interlocutores Governo ( Ordine Nu ovo , 2 8 / 0 2 e
concretos, a partir de planos e estra­ 06/03 / 1920);
tégias políticas bem definidas . O guia de 13) Superstição e realidade ( Ordine
leituras que sugerimos é mínimo, porém Nuovo, 08/05/ 1920);
suficiente para uma primeira abor­ 14) O Conselho de fábrica (Ordine
dagem do tema em pauta. A síntese Nuovo, 05/06/1 920) ;
final decorrerá naturalmente. 15) O Programa de L'Ordine Nuovo
Podemos dividir a produção teórica (Ordine Nuovo, 14/08 e 28/08/ 1 920) ;
gramsciana em quatro momentos: 1 6) Gestão capitalista e Gestão
a) Escritos durante a Ia. Guerra operária (Ordine Nuovo, 22/ 1 1 / 1921).
(1915-1918)
b) Escritos do após guerra ( 1919- C. Escritos durante a ascensão do
1921) fascismo (1924-1926). Deste período,
c) Escritos durante a ascensão de destacamos três textos:
fascismo ( 1 924- 1 926) 17) O Programa de L'Ordine Nuovo
d) Escritos do cárcere ( 1 927- 1937) (Ordine Nuovo, 01 a 15/04/ 1 924);

8
18) A escola de Partido ( Ordine tas, economicistas da 2a. Internacional,
Nuovo, 01/04/ 1 925) ; contra os "revolucionários" ( maximalis­
19) Ainda acerca das capacidades tas) retóricos e, naturalmente, contra os
orgânicas da classe operária (L'Unitá, conservadores liberais. Para Gramsci o
0 1 /0 1 / 1 926) . exemplo dos comunistas revolucionários
russos era imperativo: algo de seme­
D. Escritos do cárcere (1929-1934) . lhante havia de acontecer na I tália onde
Deste período, destacamos dois longos a guerra também estava apressando as
textos: condições revolucionárias.
20) o Caderno n� 1 2: Apontamentos Seu interesse para as questões cul­
e notas esparsas para um conjunto de turais-formativas era orientado pela ob­
ensaios sobre a história dos intelectuais jetiva preocupação que tinha de pre­
( Caderno especial, 1 932) ; parar os quadros dirigentes que ha­
'
21) o Caderno n � 22: A mericanismo veriam de governar o novo Estado
e Fordismo (Caderno especial, 1 934) . Proletário. Nessa direção, o problema
principal era formar pessoas de visão
ampla, complexa, porque governar é
Obviamente, nos limites desta ex­
uma função complexa e de histórica im­
posição será impossível descrever a con­ portância. U ma palavra chave que nesse
textualização histórica detalhada desses debate emerge é o tenno "desinteres­
textos e, menos ainda, comentar cada sado" ( cultura desinteressada, escola e
um deles. Teremos que dar, necessa­ formação desinteressada) que conota
riamente, apenas algumas informações horizonte amplo, de longo alcance, isto
gerais sobre o m o mento histórico­ é , que interessa objetivamente n ão
político e apontar para as idéias prin­
apenas a indivíduos ou a pequenos
cipais de Gramsci sobre o trabalho como grupos, mas à coletividade e até à
princípio educativo daquele momento . humanidade inteira. U ma segunda
palavra chave é "trabalho", isto é, a
A. Escritos durante a Ia Guerra. cultura, a escola e a formação devem ser
Durante a la. Guerra Mundial, o Par­ classistas, proletárias, do Partido
tido Socialista I taliano, ainda relati­ do trabalho.
vamente pequeno, no qual e para o qual No primeiro texto que sugerimos,
Gramsci trabalhava como militante jor­ "La luce che si é spenta" , Gramsci traça
nalista, enfrentava a grande questão o perfil de um verdadeiro mestre­
nacional (e não apenas nacional) de se professor, isto é, daquele que não so­
manter neutro ou de apoiar a guerra. De nega ao aluno (proletário) as grandes
fato o PSI não possuía uma linha po­ fontes genuínas da cultura. O verda­
lítica de ação clara, unitária e revolu­ deiro mestre coloca o aluno em contato
cionarIa. Decidiu, obviamente, pela direto com as fontes clássicas do pen­
neutralidade, solidário com a Inter­ samento e não se interpõe como um in­
nacional, mas de fato não foi uma termediário que de fato impede a co­
decisão forte, massiva e unitária. Mus­ municação direta entre os verdadeiros
solini , favorável à participação na grandes intelectuais e os "pequenos e
guerra, saiu do Partido Socialista em humildes" do povo, chamados a serem os
novembro de 1914. Foi nessa conjuntura grandes dirigentes do amanhã.
que Gramsci e seu grupo começou a "A Escola do Trabalho e a Escola
marcar posição revolucionária, denun­ (vai) à Fábrica" se constituem talvez nos
ciando o conjunto caótico do Partido primeiros textos importantes que abor­
Socialista e definindo cada vez mais dam a complexa relação entre formação
"sua" linha política que tinha como es­ humanista e formação profissional.
tratégia preparar efetivamente, a médio Gramsci denuncia a mesquinhez do Es­
e curto prazo, os quadros necessários à tado que se interessa pela profissio­
tomada do poder estatal , por parte do nalização a partir de uma "interesseira"
proletariado italiano. A política de situação conjuntual: trata-se da ace­
Unin e a revolução russa de 1 9 1 7 lerada e febril necessidade que o Estado
animou-o fortemente e reforçou sua vive de aumentar a produção industrial
linha de ação revolucionária. Ao mesmo de material consumido pela guerra.
tempo polemizava contra os determinis- Denuncia a retórica falsa desse Estado

9
que, de repente, se lembra de enaltecer conheceram e exercitaram a "lingua­
a escola do trabalho, discursando sobre gem" nacional e internacional; viven­
a vantagem do aluno de classe média ciaram a solidariedade dolorosa da clas­
entrar cedo nas fábricas porque assim se proletária posta na bucha dos ca­
mais cedo se tornará adulto e elogiando, nhões pela burguesia; ouviram diferen­
agora, a tradição educativa inglesa mar­ tes posições políticas; conheceram os
cada pela fábrica etc., etc. Gramsci partidos e ouviram falar de um estron­
defende a Escola-do-Trabalho, no sen­ doso fato social (a revolução russa) e de
tido porém de uma relação de posse da Unin encabeçando o proletariado de
escola por parte da classe trabalhadora. seu país. Esses homens (os que so­
"Homens ou máquinas? ", "A braram) voltaram às suas casas, muitos
Universidade Popular", "Para uma As­ fisicamente mutilados, todos moralmen­
sociaçâo de Cultura" e "Cultura e luta te feridos e agora surdos às retóricas
de classe" são textos clássicos de Grams­ demonstrações de vitória. A inda restava
ci sobre trabalho e cultura. Neles reage a esperança de alguma recompensa por
violentamente às tentativas de se ofe­ parte do Estado: bons empregos,
recer à classe trabalhadora uma cultura aposentadorias para os inválidos, terras
e uma escola pobre, vulgar, sem vida, para os lavradores. Quando essa es­
sem história, enfim, uma indigesta sopa perança também morreu, a revolta e a
de informações que mantém o opera­ indignação tomaram conta da I tália:
riado eternamente de chapéu na mão e greves, invasões de terras e manifes­
boca fechada e o fixam, como máquina, tações de descontentamento constituíam
à política econômica do capitalista. o cenário social daqueles anos. As teses
do Partido Socialista, concluía-se, eram
B. Escritos do após guerra. O pe- verdadeiras . O mundo do trabalho
ríodo do após guerra, de 1 9 1 9 a 1 921 , elevou para o nível político o desconten­
ano da criação do Partido Comunista tamento individual: em julho de 1 9 1 9
I taliano, pode ser considerado um houve uma greve geral de solidariedade
momento de apogeu para as aspirações à revolução russa e em novembro do
revolucionárias e proletárias italianas e mesmo ano o Partido Socialista saiu das
internacionais. De alguma forma tinha urnas enormemente fortalecido. Era
sentido o paralelismo que Gramsci (e agora o maior Partido italiano ( 1 56
muitíssimos outros) faziam com a re­ deputados).
volução russa, cujas condições ama­ Infelizmente, porém, este Partido
dureceram rapidamente durante a continuava não possuindo clara visão da
guerra. De fato, também na Itália a situação e das possibilidades de mudan­
guerra determinou um rápido ama­ ça da realidade. Gramsci (e seu grupo,
durecimento das condições revolucio­ Ordine Nuovo) percebeu que essa falta
nárias. O período do após gu.erra de direção política frustraria a I tália do
deixará sempre na história, assim como trabalho, o proletariado. Talvez Ordine
1945 e, talvez, 1968, a doce lembrança Nuovo tenha sido o único grupo "que se
da revolução "quase" acontecendo. A colocasse com seriedade os problemas
vitória italiana contra a Âustria logo se daquela revolução italiana que outros se
evidenciou como uma vitória fortemente limitavam a vaticinar como iminente e
mutilada. 600 mil homens mortos. Os inevitável" ( P focacci, Storia degli
feridos incontáveis. Os soldados vol­ italiani, Laterza, p. 497) . Nem a retórica
tavam às suas casas física e espiritual­ revolucionária dos maximalistas so­
mente "curtidos" pela tragédia da cialistas, nem a morna cautela ou
guerra que, no entanto, havia sido tam­ traição dos reformistas: precisava es­
bém um verdadeiro estágio ou escola de tabelecer um sério programa de trabalho
política e cultura nacional e interna­ para, teórica e praticamente, estruturar
cional. Esses jovens soldados, quando um verdadeiro Estado proletário alter­
foram à guerra, haviam saído de aldeias nativo que desse forma política às for­
afastadas e fechadas; falavam apenas os ças revolucionárias italianas. Foi essa a
dialetos, impregnados de experiência linha de trabalho de Gramsci e de seu
secular, mas pobres de horizontes grupo nos anos do após guerra.
modernos; seu universo linguístico não Neste sentido Gramsci abandonava,
conota perspectivas futuras. Na guerra em termos ideológico-educativos, a linha

10
da mera oposição e se aplicava, com didos.
rigor e com o máximo esforç o , na No entanto, como deixar de fazer es­
elaboração de uma proposta de política pecial referência ao originalíssimo texto
nacional efetiva e socialista. Do ponto "O Instrumento de Trabalho" (não
de vista teórico a primeira questão era traduzido) em que se descreve plasti­
unificar definitivamente o mundo do camente a base epistemológica da
trabalho com o mundo da cultura; a unitariedade da nova sociedade socialis­
ciência produtiva com a ciência hu­ ta, polemizando o conceito mecanicista­
manista; a escola profissionalizante com positivista que pensa no instrumento de
a escola desinteressada. Essa questão trabalho como algo morto e inerte? Esse
devia ser resolvida radicalmente e, para é um texto importante porque estabelece
isso a base ou ponto de partida devia ser a primazia política dos Conselhos de
único. Este, obviamente, será o trabalho Fábrica sobre o próprio Sindicato e Par­
industrial, a fábrica, a comissão interna, tido; questão muito séria que causou
o conselho de fábrica. Na intimidade não poucos problemas ao nosso autor
dessa "molécula" social m odern a, nas relações políticas com alguns com­
residia em filigrana o projeto das novas panheiros.
formas de humanismo e de cultura: o E cumo também não fazer especial
sindicato, o Partido, a economia, a his­ referência ao texto "Operário de Fá­
tória, o socialismo e também a escola brica " que aclara, com o tipico estilo e
unitária. Esta visão epistemológica cons­ linguagem mediterrâneos (límpidos e
titui, para Gramsci, a sólida base diretos) , o processo educativo de um
teórica para pensar coerentemente uma novo tipo de humanidade (a classe
sociedade, uma cultura, e uma escola trabalhadora) que se forja na "escola"
realmente unitárias. Aos poucos Grams­ da fábrica? Ou, então, como não lem­
ci conseguiu que a "escola" de Ordine brar outro texto precedente "A Escola
Nuovo funcionasse dentro desta visão de Cultura" , que em apenas quatro
que outros companheiros (Tasca, so­ parágrafos nos dá um projeto de escola
bretudo) não compartilhavam, porque que, sem ser a tradicional instituição da
não aceitavam que o sindicato e o Par­ escola , não deixa de constituir-se numa
tido fossem "decorrências" dos Con­ verdadeira escola de "educação direta" ,
selhos de Fábrica; ou seja, não acei­ organicamente ligada à sua matriz
tavam que a cultura, a ciência, as ins­ pedagógica, isto é, à própria fábrica?
tituições proletárias brotassem do chão No oitavo texto sugerido, "O Programa
do novo "esforço muscular nervoso" in­ de Ordine Nuovo", Gramsci finalmente
dustrial e coletivo que, para Gramsci se nos explica em detalhes essa sua "briga"
constituía na base universal do edifício com o camarada Tasca e, por contra­
socialista. Para a sede ( escola) de Or­ posição, acaba expondo s ua linha
dine Nuov o , Gramsci convidava os política e educacional (que ora lidera a
operários dos Conselhos de Fábricas, escola de Ordine Nuovo) com maior
alunos sim, mas sobretudo mestres nitidez.
naquela escola, que o próprio Agnelli, Em abril de 1920, aconteceu algo
dono da Fiat, tentou comprar, fasci­ que traumatizou o movimento revo­
nado, mas sobretudo preocupado, por lucionário italiano: houve uma primeira
aquela experiência educacional. grande e fracassada grev e : "f omos
Gramsci escreveu muito, nesse derrotados" confessará Gramsci logo no
período, sobre a relação trabalho e primeiro parágrafo do texto "Supers­
educação. A tentação de pinçar expres­ tição e realidade". F oi um duro golpe.
sões tipicas ou de comentar os trechos Será preciso "recomeçar do princípio" .
mais importantes é muito grande, de Mas, em setembro do mesmo ano,
nossa parte. Um dia, talvez , faremos is­ houve a grande tomada das fábricas de
so. Mas, o que importa realmente, é que Turim por parte dos trabalhadores. O
todos leiam e estudem diretamente esses gesto não durou muito, mas não foi uma
textos, pelo menos os nove aqui sele­ derrota, porque acabou sendo uma ex­
cionados, porque só assim a riqueza e a periência ou teste positivo da adminis­
força do pensamento gramsciano sobre a tração das fábricas por parte da classe
relação trabalho-educação poderão ser trabalhadora. A polícia precisou arran­
convenientemente apreendidos e difun- car os trabalhadores de dentro das

11
fábricas. A incompetência adminis­ nário que desde a derrota de 1 848 havia
trativo-produtiva da gestão operária, ao perdido vigor p ermanecendo aceso
contrário, aumentou quantitativa e apenas nas formas da conspiração anár­
qualitativamente a produção. A policia quica ou se havia apagado de todo no
arrancou os operários das fábricas, por­ determinismo economicista da 2a. Inter­
que o Partido Socialista não soube dar a nacional. A partir do novo surto re­
cobertura político-econômica: a matéria­ volucionário do após guerra, o capital
prima foi barrada antes de chegar aos entendeu que o velho Estado liberal
port ões das fábricas e os p rodutos burguês, velho "bombeiro" da sociedade
acabados não foram distribuídos. Em capitalista, não dava conta de controlar
"Gestão capitalista e gestão operária" esse vigor revolucionário em ascensão e
sente-se o sabor de "laboratório" da ex­ não conseguia abaixar suas elevadas
perimentação político-econômica que labaredas: era preciso criar um corpo de
deu certo, isto é, a grande hipótese "bombeiros" especializado, paraestatal,
gramsciana de se construir uma so­ armado e sob o imediato controle do
ciedade nova e unitária embasada nas capital. Logo, portanto, os industriais
vivas células dos conselhos de fábrica italianos transformaram sua associação
(sovietes italianos) , revelou-se com­ de categoria - a Confindústria ( espécie
provada, embora, por circunstâncias de FIESP) - num verdadeiro comando
outras, não se tenha universalizado. contra-revolucionário, com a única fun­
Realmente, precisava-se de um partido ção de sabotar, neutralizar e reprimir os
mais forte e decidido. movimentos revolucionários. Pode-se
dizer, portanto, que o processo de as­
C. Escritos durante a ascensão do censão do fascismo é a resposta do
fascismo. Em 1921, em Livorno, o grupo capital à nova e incontrolável esperança
revolucionário dos comunistas separa­ revolucionária mundial desencadeada
se do velho e confuso Partido Socialista, com o fato e o sucesso da revolução rus­
criando o novo Partido Comunista sa. A Confindústria, sem deixar de pres­
Italiano. Evidentemente, a antiga briga sionar o velho Estado liberal italiano
com Tasca, ou seja, a questão da pri­ para que reprimisse os movimentos
mazia partidária versus primazia dos revolucionários, p aralela e extra­
conselhos de fábricas, não parava. A oficialmente organizava, financiava e
criação do Partido Comunista, a ida à protegia a triste guerrilha das brigadas
Rússia de Gramsci e, sobretudo, o fas­ fascistas que, no campo e nas cidades,
cismo que se organizava, fazem Gramsci invadiam, incendiavam, massacravam
repensar a relação entre o Partido e os sedes e líderes socialistas e comunistas.
Conselhos de Fábrica: "Todos os Mussolini seria o homem indicado para
problemas de organização de fábrica dar a essas brigadas aparência de res­
serão por nós, portanto, repostos em peitabilidade política. Conseguiu
discussão, porque só através de uma "seduzir" o novo Papa Pio XI, eleito em
potente organização do proletariado, al­ fevereiro de 1 922, que forçou a Igreja
cançada com todos os sistemas possíveis toda (e não só a italiana) a "deixar a
em regime de reação, a campanha para política" nas mãos desse líder. O velho
o governo operário e camponês pode não Partido Popular Italiano (mais tarde,
se transformar numa repetição da Democracia Cristã) , fundado por Padre
ocupação das fábricas" (O Programa de Sturzo, que de alguma forma Gramsci
Ordine Nuovo, 1 924) . respeitava, viu de repente a hierarquia
De fato, o terTor branco fascista eclesiástica colocar-se contra. Também
varria, como um vendaval cada vez mais o velho Estado liberal "deixava a po­
furioso, as esperanças, os planos e as lítica" nas mãos de Mussolini e de seu
tentativas revolucionárias dos anos do movimento. E mesmo muitos intelec­
após guerra. O capital, nacional ( Fiat) o tuais e políticos respeitados (Pirandello,
internacional ( Nações Unidas) , havia se Marinetti, Croce, De Gasperis), pelo
dado conta que o movimento revolu­ menos até o delito Matteotti (maio de
cionário ( nacional e internacional) não 1924) , acreditaram na "respeitabili­
estava brincando. A revolução russa, dade" do movimento fascista que Mus­
que resistia e dava certo, elevou altís­ solini dirigia. Após o delito Matteotti,
simas as labaredas do fogo revolucio-

12
vários intelectuais ( Croce inclusive) se para ela é preciso se preparar. Toda a
dão conta que tudo aquilo não passava teoria que havia produzido nos anos
de uma farsa, mas já era tarde . Só o 1 9 1 9 e 1921 é ora burilada, não desmen­
capital, de um lado, e os comunistas tida. O texto "Ainda acerca das ca­
(sobretudo os de Ordine Nuovo), de pacidades orgânicas da classe operária "
outro, nunca se enganaram: conheciam ( 01 / 10/1926) testemunha essa "tei­
perfeitamente qual era a real função mosia da inteligência gramsciana.
(repressiva e anti-revolucionária) desse Aliás, também os outros dois textos, "A
movimento e desse líder " carismático". escola de Partido" e "O programa de
Mussolini não perdoará <} Gramsci (e Ordine Nuovo " , assim como os Cader­
a seu grupo) o fato dele não ter entrado nos que escreverá na prisão, provam que
nas malhas enganosas de sua sedução a referência teórica fundamental será
política. Fez de tudo para consegui-lo, sempre o que produziu naqueles pri­
inclusive prometendo para mais tarde meiros anos do após guerra, na "Es­
uma verdadeira revolução social. Grams­ cola" de Ordine Nuovo. Reafirma o
ci utilizava sua aguda inteligência para princípio educativo geral de que toda es­
pôr a nu a direção política objetiva da cola ou movimento educativo se definem
história italiana daqueles anos: à me­ didática e essencialmente pela ligação
dida que a esperança revolucionária ( orgânica ou menos, adequada ou
imediata ia se afastando, a única alter­ menos) "entre as ' escolas' projetadas ou
nativa que restava seria um longo pe­ iniciadas e um movimento de caráter
ríodo de repressão violentíssima. À objetivo" (A escola de Partido). No caso,
medida que ele e seu Partido eram for­ a Escola de Ordine Nuovo tinha como
çados a calar-se, as massas de traba­ base e princípio educativo objetivos "o
lhadores italianos retrocediam no caos do movimento de fábrica e de Partido em
individualismo e do obscurantismo for­ Turim" (Ibidem). Constata ele que o
çados. A tênue forma organizativa de movimento objetivo que embasava a Es­
classe revolucionária que havia emergido cola de Ordine Nuovo era imensamente
era agora apagada com o exílio, a tortura mais vasto e desproporcional à escola
e o sangue. Para Mussolini, a teimosa, que gerou, porque, infelizmente, poucos
cortante e penetrante inteligência de eram os "professores" e as estruturas
Gramsci, uma vez que não podia ser tur­ "escolares" . Mas, isso não faz mal; pior
bada, precisava ser emprisionada e ca­ seria se houvessem penetrado artifi­
lada pela força. Foi o que mandou fazer ciosamente "professores" mal formados
em 1926. e o movimento objetivo operário se
Mesmo neste novo e trágico quadro houvesse tornado "campo de saque ou
político, Gramsci não desistiu de ela­ instru mento de experiência para a
borar novas táticas de trabalho: "Pas­ suficiência de mal formados pedagogos"
saram seis anos desde setembro de 1920. ( Ibidem) .
Neste penodo, muitas coisas mudaram Esse ranço contra os "mal formados
no interior das massas operárias que em pedagogos" refletia o debate pedagógico
setembro de 1920 ocuparam as fábricas que estava ocorrendo na Itália (a Refor­
das indústrias metalúrgicas" escreveu ma Educacional de Gentile de 1 923),
em outubro de 1926, um mês antes de impelida pelos ventos da emergente
ser preso. Entretanto, sua "teimosia filosofia nacionalista e fascista, cujo
revolucionária" não cede: disposto a maior expoente filosófico era o próprio
rever táticas, disposto a enfatizar a im­ Gentile. Com essa reforma educacional
portância do Partido com referência aos Gramsci acertará as contas nas suas
Conselhos de Fáb ric a , continua a meditações carcerárias, contrapondo-lhe
atribuir toda a responsabilidade da a idéia da verdadeira escola
fracassada revolução ao próprio Partido unitária do trabalho. O que mais ir­
e jamais à classe operária. O fascismo, ritava Gramsci no discurso educacional
para ele, é um momento ( talvez longo) gentiliano era sua hipócrita crítica con­
de retirada, no qual a guerra de posição tra o positivismo e autoritarismo di­
terá necessariamente a primazia tática, dáticos. De fato, a reforma educacional
mas a guerra de movimento, mais cedo de Gentile, ao impor no currículo na­
ou mais tarde, haverá de acontecer, por­ cional a educação religiosa, forçava a
que sem ela a revolução é impossível, e metafísica a tornar-se "ciência objetiva"

13
e ao mesmo tempo, pior que o auto­ ser gerida pela classe trabalhadora que,
ritarismo da relação didática professor­ a partir de sua prática transformadora,
aluno,; dogmatizava o conteúdo cien­ molda um novo currículo educacional.
tífico da escola. E observe-se que Grams­ Em segundo lugar, Gramsci afirma que
ci não chegará a ver tudo o que o fas­ a diferença essencial entre a escola
cismo delirante de 1 939 fará em termos unitária do trabalho e a escola profis­
de reformas educacionais. Gentile era só sionalizante está no fato da primeira ser
o começo. "desinteressada", isto é, formativa.
Nesse sentido, a escola unitária não deve
predeterminar o jovem e sim deve ob­
D. Escritos do cárcere. No cárcere jetivar sua formação para que se tome
Gramsci realizará uma grande síntese de um homem de visão geral e superior;
sua teoria a respeito da relação tra­ enquanto a escola profissionalizante,
balho-educação. Sem dúvida os dois que se segue à unitária, sem deixar sua
documentos mais importantes sobre o função formativo-desinteressada, deve
assunto são: "o caderno especial nO 12" objetivar também o treino ( educação in­
( 1932) sobre os intelectuais, a cultura e teressada) do jovem para que possa
a escola, e "o cadereno especial n 022" exercer a curto prazo uma função in­
(1934) sobre americanismo e fordismo. telectual ou prática imediata.
Não me alongarei sobre esses dois Estrutura também o plano educa­
primorosos documentos, porque preten­ tivo-escolar. A escola unitária do tra­
do brevemente estudá-los de forma es­ balho e desinteressada abrange o pri­
pecífica e o mais possível detalhada. meiro e segundo graus, enquanto que a
Do cárcere Gramsci mal podia "es­ escola profissionalizante compreende os
piar" a história acontecendo lá fora; anos universitários (para as profissões
trocar rápidos comentários com os com­ intelectuais) ou de academia (para as
panheiros presos; receber informações profissões práticas). Trata-se de um
incompletas nas cartas de amigos e projeto de escola unitária que pressupõe
familiares; ouvir sussurros sobre a con­ naturalmente relações sociais gerais
juntura nacional e internacional durante unitárias, embora embriões ou células
as breves visitas; e, sobretudo, lembrar e educativo-escolares unitárias sejam pos­
sintetizar, ler livros e revistas que a cen­ síveis ou até auspiciáveis mesmo antes
sura carcerária permitia, planejar en­ do advento da sociedade socialista
saios de tal forma que os fascistas não unitária. Exemp lo de um embrião
passassem nas páginas de seus cadernos educativo-escolar assim concebido foi,
ou de suas cartas uma negra tinta in­ diz ele, a nossa escola de Ordine Nuovo
delével. Mesmo nessa difícil circunstân­ que teve grande êxito em Turim.
cia, aflito por repetidas e fortes crises de
saúde e preocupado pelas reviravoltas
políticas "confusas e problemáticas" de 6. CONCLUSÃO: A QUESTÃO
seu Partido (percebe as contradições do DO 2!' GRAU E DA POLlTECNIA
movimento revolucionário internacional
e não se convence de certos expurgos in­ Ao concluirmos essa exposição sobre
compreensíveis), Gramsci deixa para a "O Trabalho como Princípio Educativo
história 29 ricos cadernos e inúmeras em Gramsci", que pretendeu estimular
cartas que constituem uma maravilhosa e orientar as pessoas interessadas ao
síntese de seu pensamento. tema na leitura direta e ordenada dos
Em poucas palavras, pode-se dizer principais escritos de Gramsci sobre o
que Gramsci no cárcere, ao reorganizar assunto , acreditamos ser oportuno dizer
sua reflexão, reafirma a tese de que a algumas palavras sobre duas questões
base da cultura, da educação e da escola hoje muito debatidas pelos educadores.
é a prática produtivo-política do mundo Essas questões podem receber escla­
do trabalho industrial. Reafirma que a recimentos importantes se analisadas à
expressão escola-do-trabalho conota luz da teoria gramsciana sobre a relação
uma relação de genitivo possessivo. A trabalho-educação.
escola unitária não pode pertencer ao A primeira questão diz respeito à
vago mundo do trabalho que confunde definição do estatuto pedagógico do 2?
capital com trabalhador, e sim só pode grau e sua relação com a escola unitária.

14
Existe um sentimento difuso de que o 2!l pelo trabalho e identificada com a or­
grau sofre de falta de identidade pe­ dem natural" (Gramsci, Caderno. 12).
dagógica: é um ensino sanduichado en­ Assim, recomposta a unitariedade da
tre o 1!l grau e o ensino superior; geral­ escola de 1!l e 2!l graus que leva a crian­
mente é posto no limbo confuso da ça até aos 15-16 anos., resta perguntar
"iniciação" ao trabalho. qual é a especificidade do 2!l grau. A
Muitas vezes ouve-se dizer que o 1 !l resposta para Gramsci é a seguinte: "Eis
grau visa formar o cidadão, enquanto o portanto que na escola unitária, a última
2!l grau visa prepará-lo para o trabalho. fase ( Liceu) deve ser concebida e arti­
Sugere-se, às vezes, que "ao lado" de culada como a fase decisiva na qual se visa
todo curso colegial se criem oficinas de desenvolver ( criar) os valores fundamen­
mecânica, ou de carpintaria, ou de tais do 'humanismo', a auto-disciplina in­
eletrônica, etc. , etc. Dessa forma, na telectual e a autonomia moral necessárias
tentativa de esclarecer, parece que de para a posterior especialização seja de
fato se aumenta a confusão; ou, na ten­ caráter científico ( estudos universitários),
tativa de tirar o 2!l grau do limbo da in­ seja de caráter imediatamente prático­
definição, se acaba deixando-o no pur­ produtivo ( indústria, burocracia, or­
gatório da "iniciação ao trabalho". ganização comercial etc). O estudo e a
Parece-nos que a primeira questão a aprendizagem dos métodos criativos na
ser esclarecida é a seguinte: o 2!l grau ciência e na vida deve começar nesta úl­
faz parte da escola unitária? Ninguém tima fase da escola e não ser monopólio da
duvida de que o 1 � grau deve ser a es­ Universidade ou ser deixado ao acaso da
cola unitária, mesmo que o conceito de vida prática: esta fase escolar deve já con­
escola unitária nem sempre seja cor­ tribuir para o desenvolvimento do ele­
retamente entendido; mesmo que mento de responsabilidade autônoma nos
freqüentemente se entenda que seu indivíduos, ( deve) ser uma escola criativa;
caráter de unitariedade se opõe, em é preciso distinguir entre escola criativa e
primeira instância, à fragmentação escola ativa ( . . . ) a escola criativa é o
curricular regionalista. Na verdade, coroamento da escola ativa" (Gramsci,
como vimos, à luz da teoria gramsciana, Caderno 12).
a unitariedade da escola se contrapõe à Em suma, a diferença entre o 1!l e o
duplicação entre escola científica, 2!l grau, para Gramsci, não está no
profissionalizante, técnica de um lado e princípio educativo ( uma vez que o
escola humanista, formativa de outro trabalho informa os dois), nem na ques­
lado. A unitariedade horizontal geo­ tão da profissionalização ou iniciação ao
gráfica, poderá ser decorrência. Por is­ trabalho produtivo (pois os dois graus
so, quando se afirma que o ensino de 1 !l devem ser formativos ou desinteres­
grau tem como ohjetivo geral formar o sados) e sim no método didático, uma
cidadão, enquanto o ensino de 2!l grau vez que no colegial "a aprendizagem se
tem como objetivo geral preparar ( re­ dá especialmente através de um esforço
mota ou imediatamente) para o tra­ espontâneo e autônomo do discente, on­
balho, já foi rompido o princípio da de o professor exercita somente a função
unitariedade. de guia amigável como acontece ou
Para Gramsci não existe dúvida: a deveria acontecer na Universidade. Des­
escola unitária abrange tanto o 1!l quan­ cobrir por si mesmos, sem sugestões e
to o 2!l graus; toda ela é escola-do­ auxílios externos, uma verdade é criar,
trabalho, desinteressadamente. Nesse mesmo quando a verdade é velha, e
sentido, o 2!l grau representa a fase final demonstra a posse do método ( . . . ). Por
da escola unitária. A noção de cidadania isso nessa fase a atividade escolar fun­
tinha mais sentido para a ilustração damental desenvolver-se-á em semi­
burguesa, já para a educação socialista nários, nas bibliotecas, nos laboratórios
o "cidadão universal" é o trabalhador. experimentais; através dessas ( ativi­
Portanto, mesmo as primeiras séries do dades) serão recolhidas as indicações or­
I? grau ( primário ou "scuola elemen­ gânicas para a orientação profissional"
tare") tem no fato e no conceito de (Gramsci, ibidem). A expressão "in­
trabalho seu princípio educativo geral e dicações orgânicas" não pode sugerir
imanente: "porque a ordem social e es­ oficinas prático-produtivas anexadas às
tatal (direitos e deveres) é determinada escolas de 2!l grau, nem sugere a ins-

15
truç ão politécnica ou profissional de " desinteressado" na exp ressão
universal, e sim remete às leis funda­ "trabalho em função não imediatamente
mentais da própria ciência da técnica, profissional" . "Para se compreender
ou seja, da tecnologia. melhor o que Gramsci quer dizer quan­
Estabelecida a unitariedade do I !> e 2!> do defende uma relação pedagógico­
graus e a especifiéidade didática do 2� , didática 'desinteressada' deve se meditar
falta precisar a diferença que existe en­ atentamente as páginas sobre o Caderno
tre a escola unitária ( l !> e 2!> graus) e as 12 onde se fala do ensino do latim e do
escolas profissionalizantes ( Universi­ grego na velha escola média clássica
dades e Academias). Sem dúvida, o italiana (. .. ) Gramsci conclui que, assim
divisor de águas entre essas escolas e como aquela escola média clássica en­
determinado pelo conceito de "interes­ sinava aquelas línguas desinteressa­
sado/ desinteressado" , ou seja, a escola damente (porque não objetivava treinar
unitária é desinteressadamente "profis­ intérpretes e nem tradutores) da mesma
sionalizante" , ou seja, é formativa, de forma a nova escola unitária proposta
cultura geral, humanista, do trabalho; deve ensinar a 'linguagem' do trabalho
enquanto que a escola especializada industrial moderno desinteressadamen­
superior é interessadamente profis­ te" ( Nosella, Apresentação do Caderno
sionalizante, ou seja, sem renunciar a 1 2) .
toda formação formativa geral, ela é Se a questão da definíção de estatuto
também explicitamente treinadora para pedagógico do 2!> grau é polêmica em
o exercício imediato de ofícios e com­ muitos países, no Brasil esse tema se
petências específicas. "enriquece" de ingredientes políticos e
A categoria gramsciana de "interes­ sócio-econômicos tristemente caracteris­
sado/ desinteressado" merece um estudo ticos. De fato, sabe-se que à maioria da
filológico especial ( que já encaminhamos juventude do Brasil é negado o direito
em nossa Apresentação ao Caderno 1 2 de se determinar profissionalmente após
de Gramsci). Ê um conceito que não os 1 6 anos de idade. Ora, essa situação
conota aspecto moral, mas indica violenta e caótica, que força a juventude
apenas visão de longo ou imediato al­ brasileira a produzir sua própria exis­
cance; indica uma utilidade geral ( para tência (e o lucro) desde os mais tenros
toda a coletividade) ou uma utilidade anos de idade, determina também al­
individual imediata. Trata-se de uma guma necessidade de treinar profis­
terminologia muito recorrente nesse sionalmente de forma interessada esses
autor em todos seus escritos. mesmos trabalhadores crianças ou
A definição do estatudo pedagógico­ adolescentes.
didático do 2!> grau é uma questão A violência é atroz. Cabe, entretan­
polêmica, não apenas no Brasil. Ma­ to, se perguntar quem deveria assumir
nacorda, referindo-se à reforma escolar este papel de treinar precoce e interes­
italiana de 1 962, diz: "A unificação de sadamente essa novíssima geração. Do
todas as estruturas escolares para os meu ponto de vista seria um equívoco
adolescentes de 1 1 a 14 anos e a in­ solicitar que a escola unitária renuncie à
trodução das matérias científicas, antes sua dimensão formativa desinteressada
ausentes, coincidem com a aspiração para exercer esses treinos profissio­
gramsciana. I gualmente coincidem as nalizantes prematuros. De fato, cabe às
tendências, até agora emergentes, mas instâncias "escolares" naturalmente
fortemente contrastadas, para uma profissionalizantes (faculdades, aca­
unificação posterior à instrução secun­ demias , ou as próprias atividades
dária para os adolescentes de 14 a 1 8 / 1 9 prático-produtiva, o comércio e a indús­
anos (ainda e m discussão neste momen­ tria) se adequarem ao estado de violên­
to em que escreve), para uma ampliação cia social que vivemos e organizarem os
nesse nível das disciplinas científicas, e treinos de seus trabalhadores precoces.
para uma presença do componente Ao invés de a Escola Unitária renunciar
trabalho, em função não imediatamente à sua essencial dimensão desinteressada,
profissional, mas geralmente formativa" tentando assim de forma assistencial
(Manacorda, H istória da Educação, p. substituir as escolas imediatamente
334-335, Cortez, 1989) . Como se vê, profissionalizantes, é preciso colocar sob
aparece de novo o conceito gramsciano a direção dos trabalhadores estas escolas

16
ou cursos. Por exemplo, ao invés de ten­ smolllmos e, se é verdade que a palavra
tar substituir ou imitar os cursos do é a casa do ser, o respeito por ela é o
SENAI e do SENAC, é preciso lutar respeito pelo ser. Já no segundo capítulo
para que estas instituições sejam di­ do citado livro História da Educação,
rigidas pela classe trabalhadora que, em Manacorda traduz o termo grego ( téch­
última instância, as mantém. Na rea­ ne) como "ofício" ( p. 57). profissão ar­
lidade as atividades prático-produtivas tesanal ou intelectual de execução e não
já treinam seus trabalhadores precoces, de mando: "Em geral, o ofício de mestre
movidas pelas necessidades da produção era o ofício de quem caíra em desgraça
e do lucro. Por isso, se a escola unitária (como no exemplo de Dionísio de Si­
renunciar à sua função educativo­ racusa) e nisto parece perpetuar-se o
desinteressada , estará desnecessaria­ destino de F é nix e Pátroclo. Mais
mente ajudand o, substituindo-as, as or­ exatamente: entre as téchnai, os ofícios
ganizações prático-lucrativas em sua ou profissões artesanais, esta téchne in­
função educativa profissionalizante in­ telectual em geral não era exercida por
teressada, enquanto o inverso não acon­ homens do démos, em cujas famílias o
tecerá, ou seja, ninguém substituirá a ofício passava de pai para filho, mas por
função educativo-desinteressada da es­ homens de classes cultas que por des­
cola unitária. graça tiveram que descer na escala
A segunda questão que me propus a social" (Manacorda. ibidem, p. 6 1 ) .
expor nessa conclusão, para o debate e Manacorda, entretanto, não faz essa
para ulteriores estudos, refere-se à assim discussão com base apenas na filologia
chamada formação politécnica, que, ob­ antiga, e sim no próprio terreno dos tex­
viamente, nos faz pensar na noção de tos socialistas de Marx, Engels, Lênin,
politecnia. Krupskaya, Makarenko e Gramsci. À
Mario A. Manacorda, ao ler minha página 314 do mesmo livro, após uma
apresentação "Ao leitor brasileiro" de citação de Krupskaya que diz expli­
sua História da Educaçâo - da An­ citamente: "Em vez de 'instrução profis­
tiguidade aos nossos dias , fez alguns sional' é preciso dizer 'instrução politéc­
reparos. Entre esses, pediu que subs­ nica' ", afirma: "Na verdade, isso precisa
tituísse a expressão "fixa as bases de de um aprofundamento posterior: Marx,
uma escola politécnica para os traba­ de fato, fala de 'instrução tecnológica
lhadores" com a expressão "fixa as teórica e prática' e deixa para os bur­
bases de uma escola tecnológica para os gueses a ' tese predileta' de uma ins­
trabalhadores" . Naturalmente seu trução politéc nica ou profissional
pedido foi logo atendido, e tentei enten­ universal" (Manacorda, ibidem, p.
der a razão dessa sua exigência. F oi fácil 3 14) .
constatar que não era uma mera questão Krupskaya, de fato, defende a 'ins­
terminológica. Havia por trás uma longa trução politécnica' não, porém, con­
discussão e uma posição teórica precisa trapondo-a à tecnológica e sim à ins­
que o próprio M anacorda sustentava trução profissional, ou seja, de fato a
desde os anos de suas atividades de direção de seu pensamento aponta para
tradutor para a língua italiana dos es­ um afastamento do pólo profissiona­
critos de Marx, Engels e Lênin sobre lizante. Ê justamente o vetor ou direção
educação. Parte dos resultados dessas dos textos pedagógicos marxistas que
atividades de tradutor crítico foi pu­ interessa a Manacorda. De Marx e En­
blicada pela editora Armando em 1 964, gels, para Unin e Krupskaya e ainda
sob o título I1 marxismo e l 'Educazione , para Gramsci e Makarenko há uma
Marx-Engels-Lênin, base filológica de direção a ser captada e, por que não,
seu posterior livro, por muitos de nós levada avante. Não é possível, portanto,
conhecido, Marx y la Pedagogia Moder­ cristalizar as teses pedagógicas do mar­
na, que está sendo traduzido para nossa xismo em expressões ou citações iso­
língua. ladamente tomadas ; cada texto tem seu
A princípio, como disse, a questão contexto e o conjunto dos textos tem
pode parecer uma mera disputa ter­ uma direção. Nesse mesmo estudo de
minológica entre os termos "politecnia" caráter filológico que Manacorda faz
e "tecnologia" . Na verdade, é preciso sobre os textos relativos à educação de
reconhecer que os dois termos não são Marx, Engels e Lênin ( 1 964) se afirma

17
que os textos marxianos e m que se defen­ Educação, p . 1 1 - 1 2) .
de a instrução politécnica devem ser O b v i a me n te s a b e - s e q u e m u i t o s
contextuados e justificados no sentido de educadores brasileiros quando sugerem
que a proposta marxiana da politecnia a " instrução politécnica" de fato não
tinha um carácter estratégico-tático con­ entendem sugerir a pluriprofissiona­
siderando-se a situação sócio-econômica lização, no sentido que c termo " po­
do momento. O mesmo argumento vale litecnia" sugere etimologicamente e no
para Lênin e Krupskaya. Entretanto, a sentido que a burguesia quer. Esses
tese mais profunda e fecunda de M arx educadores freqüentemente aponta m ,
deve ser procurada no Capital. Lá ele falando d e politecnia, para uma ver­
fala claramente da dimensão burguesa, dadeira formação tecnológica. Entretan­
que instrumentaliza o operariado, da ins­ to, me propus a abrir esse debate p or­
trução politécnica e abre o caminho que, se aprofundado, pode ser fecundo e
para a verdadeira instrução socialista trazer para nós esclarecimentos que,
que é a tecnológica : "Mas ao mesmo quanto menos , serão de caráter his­
tempo - comenta M anacorda - a tórico-filologico. Se .de fato, percorrermos
fábrica capitalista quer pela contínua o caminho teórico sobre essa questão ao
exigência de acompanhar as flutu açõe� longo de toda a produção marxista, re­
anárquicas do mercado deslocando o lacionando-a com as diferentes conj u n­
operário de um para outro ramo de turas p olítico-econômicas e estudando os
produção, quer pelo caráter revolu­ textos nas suas diferentes significações
cionário de sua base técnica, exige não teóricas, creio que a tese de M a nacorda
mais a fixação, mas a máxima versa­ realmente seja correta. Nessa caminhada,
tilidade na divisão do trabalho ( . . . ) . Gramsci (e sem dúvida Makarenko)
Para isso há a tendência, igualmente elimina qualquer dúvida sobre o fato do
n a tu ra l e e sp on tâ n e a da p ro d u ç ã o ensino politécnico se r burguês : para ele de
capitalista, a se criar esse operário mais fato a escola u nitária deve, mantendo as
versátil através de escolas politécnicas, caracteristicas culturais do Renascimen·
profissionais e agrícolas, que ministram to, estudar a prática- trabalho da so·
uma certa instrução na tecnologia e no ciedade moderna \ mundo da p olitec·
v

manuseio prático dos diferentes ins­ nia) , à luz da ciência- trabalho ( tecno­
trumentos de produção ( . . . ). Todavia, se logia) e da história-trabalho ( hu manis­
a legislação de fábrica, primeira con­ mo) .
quista arrancada ao capital, combina Finalmente, arriscamo- nos sugerir
com o trabalho apenas a instrução que a Lei de D iretrizes e Bases inc or­
elementar ( p rimária) , a conquista do pore, no caput dos fins e princípios da
p o d e r p o lí ti c o p or p a rte da c la s s e educação, uma referência explicí ta ao
operária desenvolverá a instrução tec­ trabalho como p rincípio educativo,
nológica em todos os níveis, quer no dize n d o m a i s ou me n os a s s i m : " A
plano teórico quer no plano prático ( . . . ) . Educação Nacional, inspirada nos prin­
E m 1867 Marx sublinha a o contrário o cípios de liberdade, igualdade e justiça
caráter teórico-prático de uma instrução social e pautada no trabalho social como
destinada a transmitir os fundamentos fonte de riqueza, dignidade e bem estar
científicos universais de todos os proces­ universais, deverá contribuir para o fim
s o s de p r o d u ç ã o, s obre a b ase da das desigualdades sociais e . . . " .
'moderníssima ciência da tecnologia '
que decompõe as policromas confi­
gurações do processo de produção em Quanto ao 2? grau , seria conveniente
aplicações conscientemente planejadas se dizer mais ou menos o seguinte : "O
das ciências naturais. A distinção, de ensino de 2? grau constitui a e tapa con­
resto, foi já frisada também pela clara clusiva da escola unitária e é direito e
polêmica feita por Marx em 1 847 contra obrigação de todos . Visa a aprofundar o
a escola que chamaríamos plu riprofis­ entendimento das relações entre os
sional, preferida pelos burgueses, à qual homens e destes com a natureza, através
polêmica mais tarde, em outra situação, de métodos didáticos que levem os
corresponderá a polêmica de Engels j ovens a estudar e pensar de forma cada
contra [' enseignément intégral de Com­ vez mais autônoma, livre, independente,
te" ( M a na c o r d a , O M a rx i s m o e a criativa e crítica " .

18
Obs. Existe um anexo, por mim organizado, os textos de Gramsci referentes à relação
que recolhe, pela o""em cronológica, todos trabalho-educação, citados nesta palestra.

Conferência proferida, parte na XI e parte na XII Reunião anual da ANPED, Porto Alegre,
26/4/1988 e São Paulo, 9/5f89.

* * *

Paolo Noselkl é professor da Universidade Federal de São Carlos - SP.

19
A escola e a produção
da sociedade
ANDRÉ PETITAT

posição dominante. De acordo com al­


guns, esta "violência simbólica" ocorre
graças ao fato de que a sujeição da es­
revisão da literatura em so­ cola aos interesses dos grupos dominan­
ciologia da educação leva a uma ines­ tes é ocultada; esta asserção é difícil de
capável conclusão: reproduzir é a pa­ ser sustentada, entretanto, no caso de
lavra chave, a pedra angular de teorias certas sociedades de ordens e castas
que são, quanto ao resto, mutuamente (Bourdieu e Passeron, 1970, 1979; Briz­
contraditórias. De Parsons a P. Bour­ zi, 1976).
dieu, de Bernstein a S. Bowles, H. Gin­ A visão marxista representa uma
tis ou M. Apple, a educação é, acima de variação do ponto de vista do conflito,
tudo, reprodutiva. de acordo com a qual a escola impede
Um ponto de vista freqüentemente que o antagonismo entre burguesia e
encontrado em educação, e livremente proletariado tenha uma solução "li­
tomado de empr éstimo p or grupos beradora". Esta perspectiva está tam­
dominantes (independentemente de sua bém num estado de crise, relacionado à
ideologia) pode ser resumido nos temas crise geral do marxismo, o qual se trans­
chaves do consenso e da integração em formou numa religião estatal opressiva
tomo de valores essenciais e da har­ (Bowles e Gintis, 1972/73, 1976;
monização de aptidões e de funções Baudelot e Establet, 1971).
sociais complementares. Esta visão Outros sociólogos, preocupados com
limita a história das escolas à adaptação a sorte do indivíduo numa era de gigan­
de suas funções reprodutivas. Defendido tescas organizações, argumentam que a
por Durkheim (1956, 1964, 1973, 1977) escola trabalha basicamente para refor­
e mais tarde por Parsons (1959, 1971, çar uma burocracia sufocante e destruir
1974), e ainda presente a despeito de o potencial criativo e a autonomia in­
freqüentes críticas, este ponto de vista dividual. Alguns deles chegaram mesmo
tem-se tornado, é verdade, menos a esboçar soluções pedagógicas, que vão
popular nos últimos 15 anos, por razões da pedagogia institucional às redes de
conjunturais que não podem ser dis­ convivência de Ivan Illich (Illich, 1971;
cutidas em profundidade aqui. Lobrot, 1970).
O ponto de vista diametralmente Estes pontos de vista contraditórios
oposto é baseado numa visão conflitiva (apenas os principais foram mencio­
das relações sociais. Em vez de cimentar nados aqui) são notáveis pelo fato de
e de unir a sociedade em torno de va­ que todos eles se baseiam numa espécie
lores centrais, a escola impõe percep­ de paradigma da reprodução - de
ções, ideologias, que permitem que os valores centrais, de representações
grupos domi nantes preservem sua dominantes, do sistema, etc. E este

EDUCAÇÃO E RE\LIDADE, Porto\legre, 14(2):21-30,julldez. 1989 21


paradigma é aceito pela maioria dos tem o senso comum a seu favor. Se uma
sociólogos. sociedade quer evitar morrer, deve trans­
Neste paradigma, a contribuição da mitir qualquer cromossomo que seja
escola para a produção da sociedade é possível. Tudo, ou quase tudo, deve ser
de importância secundária. Esta visão renovado por cada geração. A inteligên­
deve ser vista como uma abordagem um cia, o produto de uma longa história,
tanto duvidosa, apresentando todas as deve ser pacientemente redesenvolvida
falhas do historicismo, abandonado com em cada criança.
a velha sociologia histórica do século Naturalmente, não ocorre a ninguén,
XIX. Três temas bastante característicos contestar a necessidade de uma tal
devem, entretanto, ser ressalvados. O reprodução-transmissão "externa" ,'"
primeiro - a contribuição da escola cultura. Entretanto, todas as sociedades
para a individualização democrática e estão em um constante estado de fluxo,
para oportunidades mais iguais - tem todas são confrontadas com o conflito;
sido defendido principalmen te por conseqüentemente, em todas as so­
membros da escola funcionalista, an­ ciedades existem formas de educação
siosos por reforçar uma visão da história que representam projetos e tendências
baseada na diferenciação gradual, num diversas.
processo de complexidade crescente e na As teorias que vêem a escola como
evolução, em contraste com uma his­ uma fonte e canal de reprodução res­
tória baseada na ruptura e em descon­ pondem à história com a afirmação de
tinuidades profundas. Nesta visão, a es­ que a instituição procura se adaptar às
cola democrática contribuiu para a mudanças externas a fim de continuar a
erosão das características herdadas, que exercer seu papel fundamental. Para es­
caracterizou a transição das sociedades sas teorias, a escola não está convidada a
de ordens para as sociedades industriais, participar da produção da sociedade;
abertas à mobilidade e à realização pior ainda, ela parece gastar seu tempo
(achievement) (Parsons, 1967, 1971; obstaculizando aquela produção.
Blau e Duncan, 1967). Esta é uma posição bastante descon­
Um segundo tema é o da escola fortável para o professor, que é algumas
como produtora de novas relações so­ vezes reverenciado como um sacerdote
ciais, mas no sentido da individuali­ da república, e outras, execrado como
zação do controle social e da buro­ um conservador renitente, ou ridicu­
cratização do mundo moderno. Este larizado como um criador impotente ou
ponto de vista weberiano tem sido um revolucionário cooptado. Sempre na
adotado com certo êxito por alguns contramarcha, sempre reagindo: esta
autores, incluindo Michel Foucault persistente imagem que a sociologia
(Foucault, 1979). devolve refletida aos educadores nega
Finalmente, hã a abordagem et­ seu papel como atores, ao mesmo tempo
nometodológica, que opera no nível que reduz sua instituição a um mero ins­
microsociológico, freqüentemente em trumento. Os professores estão interes­
situações face a face, interativas, nas sados na sociologia; mas esta, esquecen­
quais ela busca captar in vivo como as do a história, isolou a si mesma da
regras são desenvolvidas, como os dinâmica da produção social, na qual a
padrões são interpretados e como o sig­ multiplicidade de possibilidades e ten­
nificado é produzido. Há, entretanto, sões imprime significado às práticas
uma tendência, entre os estudiosos da educacionais. Está na hora de reverter
microrealidade tangível, a evitar es­ esta tendência.
peculações globais, tornando dUícil A abordagem empregada nas pá­
apreender as funções gerais dos sistemas ginas seguintes vai nos exigir que ig­
escolares (ver em particular os trabalhos noremos as fronteiras entre a história e a
de A. Cicourel, H. Garfinkel, D. H. sociologia. Ela se nega a olhar a história
Hargreaves, L. Barton, P. Woods, A. D. como limitada ao particular e a so­
Edwards, P. Willis e M. F. D. Young). ciologia como uma ciência envolvida
Em suma, nenhuma teoria geral da com abstrações universais ou litanias es­
educação reconhece a contribuição cons­ tatísticas. Levada a extremos, uma tal
tante da escola para a produçao da distinção entre história e sociologia leva
sociedade. Reproduzir: este paradigma ao absurdo do historiador soterrado

22
pelas mmUClas de uma sucessão de dicionais. As diferenças entre os colégios
eventos e do s o ciólogo q u e n unca protestantes e católicos eram bastante
apreende um fenômeno específico, in­ secundárias. A estrutura específica desta
dividuaI. Os conc,�itos de "estrutura" e nova instituição pode ser captada em
"longue durée" 110S fornecem um ter­ quatro níveis: espaço, tempo, a seleção de
reno comum no qual o sócio-historiador elementos sócio-culturais, e estruturas de
pode combinar um interesse no espe­ poder (Dainville, 1978; Aries, 1965; Rin­
cífico com uma paixão pela reconstrução ger, 1978).
sistemática. Aqui, "leis" e "regulari­ (a) Historicamente, a revolução que
dades" são meramente um momento os colégios representaram foi, antes de
num processo de c o mposição­ tudo, uma revoluçào no espaço em que o
decomposição de categorias e estruturas ensino tinha lugar, envolvendo a subs­
sociais. tituição de instalações dispersas, an­
A perspectiva construtivista vê a es­ teriormente ocupadas por professores
cola não como um instrumento de cor­ "independentes", por um único edifício
pos pré-estabelecidos, mas antcs como contendo um certo número de salas de
um agente na em ergência de estruturas aula. A transição do espaço individual­
e grupos sociais. Não há lugar aqui para artes anal para o espaço coletivo­
subordinar a escola a uma visão global manufatureiro estava intimamente
de evolução ou leis históricas gerais das relacionada à maioria das outras trans­
quais seríamos prisioneiros. Mas esta formações subseqüentes: controle dos
rejeição do historicismo não deve im­ estudos, supervisão dos estudantes, ad­
pedir a existência de outras zonas in­ ministração centralizada, racionalização
terativas e dinâmicas. Através da adoção e planejamento dos estudos, etc.
desta abordagem, em que a busca da (b) À medida que os estudantes eram
"verdade" centra-se no movimento e levados a se reunirem em um único e
não nos mecanismos sincrônicos, po­ grande espaço, havia uma crescente sis­
demos "ver" a escola como agente, tematizaçào do uso de seu tempo, en­
como um meio fazendo uma contri­ corajada por uma transformação fa­
buição insubstituível à gênese de certas vorável de mentalidades. Esta orga­
categorias sociais. nização ia bem além do planejamento
A validade desta abordagem é ilus­ das atividades diárias, para os quais os
trada nas páginas seguintes com uma monastérios forneciam in umeráveis
discussão das origens dos colégios e da modelos; ela cobria todos os aspectos
burguesia no século XVI. Algumas dos estudos, culminando numa gra­
outras e poucas situações serão bre­ dação sistemática e na corresponde
vemente discutidas a fim de sugerir as definição e separação das matérias. Esta
múltiplas contribuições que a escola faz racionalização acarretava e reforçava
para a produção da sociedade (para mais uma certa idéia de trabalho, de trabalho
detalhes, ver Petitat, Produetion de compulsório, assim como uma relação
l'éeole. produetion de la soeieté, 1982). institucionalmente definida entre
matéria e tempo de aprendizagem, entre
o ato de ensinar e a verificação do que
era aprendido. Ela plantava a semente
A Emergência dos colégios de uma abordagem educacional in­
e da Burguesia no Século Dezesseis teiramente nova, baseada em exames,
notas, e definições dos estudantes como
inteligentes, preguiçosos ou estúpidos.
(c) A imposição desta grade "espaço­
Presente sob forma embriônica já no tempo" sobre o corpo, a mente e a
século XV, o colégio humanístico trans­ matéria era acompanhada por uma
formou-se em sua forma tipica entre 1530 correspondente ruptura na escolha do
e 1550 e veio a espalhar-se por toda a que era ensinado. Um currículo cons­
Europa a uma taxa exponencial. Com um truído em torno da lógica e da dialética
novo programa. uma nova organização de era descartado em favor de um currículo
estudos e novos métodos educacionais, os centrado nas Belles-Lettres, isto é,
colégios representaram uma ruptura Latim e Grego em suas expressões for­
notável com as faculdades de artes tra- mais altamente desenvolvidas. Nas

23
faculdades católicas, mesmo os graus popala grassa, em contraste com a
primários devotados à leitura e à escrita "gente comum", o papaia minuta, para
eram ensinados em Latim, antes de se usar o vocabulário herdado das cidades
seguir para a gramática, com todas as italianas da época. De acordo com es­
suas conjugações e declinações, e mais tudos históricos sérios, os nobres e os
tarde, para a história, poesia, retórica e artes ãos constituíam a minoria da
finalmente filosofia. Da mesma forma, população estudantil (Frijhoff e Julia,
escrever era o método básico de ensino 1975). A aristocracia desenvolveu sua
na educação dos colégios, o qual, à própria rede de ensino nas academias
primeira vista, parecia consistir numa nobres, enquanto as artes mecânicas
longa litania de exercícios e exames es­ preparavam a maioria dos estudantes
critos. para a futura rede das escolas de ca­
(d) Para se extrair alguma produ­ ridade.
tividade educacional deste mundo fe­
chado e regulado, em que se esperava
que os estudantes absorvessem grandes Analogias Estruturais com a
doses de conhecimento divorciado do Transformação das Condições Gerais
contexto social da época, era necessário
ter-se uma nava autaridade educacianal, Há, portanto, uma boa razão para se
capaz de canalizar as energias das pes­ pesquisar as afinidades estruturais sub­
soas. jacentes entre os colégios e o papaia
As estruturas corporativas tradi­ grassa emergente. Ao fazer isso, exa­
cionais foram substituídas por hierar­ minaremos os mesmos aspectos que
quias burocráticas de complexidade e examinamos na seção anterior e apon­
tamanho variados. Enquanto os colégios taremos os devidos paralelos com os
jesuítas, por exemplo, pertenciam a uma colégios.
grande rede educacional, com uma am­ (a) O colégio correspondia a um
pla hierarquia, alguns dos outros eram domínio institucional do espaço que
faculdades independentes com pouco pode ser atribuído em parte aos monas­
mais que um conselho, um diretor, térios, mas também e acima de tudo a
professores e estudantes. Em todos os certas realizações do papaia grassa A.

casos, entretanto, os estudantes per­ analogia mais notável é com as ma­


deram o direito óe organizar os estudos nufaturas, que racionalizaram o proces­
de forma antônoma, e os professores so de trabalho ao reunir, sob um mesmo
tornaram-se financeiramente dependen­ teto, vários artesãos. Bem antes que esse
tes, supervisionados e passíveis de ad­ controle institucional do espaço fosse
vertência. U ma série completa de téc­ aplicado à produção ou à transformação
nicas educacionais - baseadas em de bens materiais, já era perceptível nas
recompensas, punições, competição e grandes empresas comerciais do século
delação - sustentavam uma atividade XIV, tais como as companhias Bardi e
artificial, perturbada, naturalmente, por Peruzzi, por exemplo, que chegaram a ter
uma ausência endêmica de disciplina. ocupados cerca de 300 vendedores e
Em duas gerações, esta estrutura representantes em todos os centros co­
educacional revolucionária, que pri­ merciais e financeiros da Europa.
meiramente tomou forma em Liége, an­ Falando de forma mais geral, os
tes que fosse sistematizada pelos protes­ séculos XV e XVI viram uma verdadeira
tantes e adotada pelos jesuítas, esta­ revolução do espaço do mundo e da
beleceu-se em pequenas cidades e mesmo Europa, à medida que os navegadores
em lugarejos com populações de apenas exploravam os mares. O espaço frag­
alguns milhares de habitantes. Em toda mentado da Idade Média feudal, com
parte, ela adquiriu as mesmas caracterís­ seus muitos diferentes domínios existin­
ticas distintivas, independentemente das do em estreita proximidade, foi subs­
condições locais. Entretanto, uma vez es­ tituído pelo controle centralizado; re­
tabelecido, o novo tipo de colégio presentações planas deram lugar à
apresentou uma certa autonomia. profundidade de campo; aglomerações
Quem apoiou e patrocinou isto? De de casas cederam caminho às perspec­
forma bastante clara, as elites urbanas, tivas de planejamento urbano; e o mun­
que na época eram conhecidas como o do fechado da abóbada religiosa foi des-

24
cartado em favor do espaço infinito à es­ que trabalhavam com suas mãos, e a
pera dos novos conquistadores e do­ fim de se identificarem mais estreita­
minadores do mundo (8raudel, 1972; mente com a vida improdutiva e com o
Koyré, 1969; Francastel, 1967). desprezo pelo trabalho da nobreza cor­
(b) Durante os séculos XV e XVI, tesã e ociosa (Seyssel, 1981; Loyseau,
houve transformações i gualmente 1620; Pernoud, 1960/62; Mousnier,
profundas na forma pela qual o tempo 1973; Delumeau, 1973).
era percebido. No centro dessa mudança A escrita e os colégios foram os
situa-se o mercador, a alma do popolo meios para que se mantivesse uma certa
grasso. O tempo libertou-se da Igreja e distância da vida, para que se obtivesse
dos céus. A vida ordenada do monge, um divórcio entre a cultura e a vida
cadenciada pelos ritmos cósmicos, cedeu cotidiana. Esta distância mediada con­
caminho à vida cotidiana s ecular duziu talvez a uma consciência obje­
gradualmente subordinada aos ritmos tivadora, a este divórcio entre o sujeito e
do relógio. O relógio simbolizava o o objeto que constihü o próprio fun­
domínio do tempo, tanto para o honnête damento do conhecimento científico. O
homme que planejava seu próprio tem­ burguês letrado não estava de forma al­
po, quanto para o empresário que guma imerso em sua cultura escolar do
planejava o tempo de outras pessoas (Le mesmo modo que um mercador comum,
Goff, 1980; Quinones, 1972; Mumford, que escrevia prosa sem reconhecê-la, es­
1963; Weber, 1958; Gutton, 1971; An­ tava na sua. Sua relação com a cultura
thony, 1977). era ornamental, instrumental e ana­
Para além dessa convergência geral lítica.
entre a forma pela qual tanto os em­ (d) Os colégios eram um microcosmo
presários modernos quanto os colégios dos elementos fundamentais do poder
viam e usavam o tempo, deve ser obser­ moderno, na forma sob a qual estava
vado que os colégios corporificavam esta apenas começando a emergir no século
nova relação com o tempo melhor que XVI. A emergência do estado central
qualquer outra instituição. Em nenhum significou o fim da autonomia dos se­
outro lugar havia um planejamento que nhores e das cidades, juntamente com o
se estendesse por tantos anos, afetando das guildas e dos Estados Gerais provin­
tantas pessoas. As crianças e os adoles­ ciais ou nacionais; da mesma forma, a
centes eram o campo de prova para o Igreja tornou-se subordinada e alinhada
novo controle sobre o tempo. (Mousnier, 1967; Durand, 1969). A or­
(c) Embora os colégios não tivessem ganização burocrática moderna, com
inventado a escrita, ou mesmo os livros seus muitos níveis de funcionários civis,
de contabilidade, sua pedagogia ba­ demissíveis, estava ainda nos seus es­
seada nos textos escritos refletiam uma tádios embriônicos quando os notáveis
mudança fundamental em direção a sistemas administrativos dos colégios se
uma das características distintivas da difundiram - o mais notável deles sen­
sociedade moderna, a saber, o uso sis­ do a enorme organização centralizada e
temático da escrita não apenas em uns hierarquizada dos jesuítas. Se os colégios
poucos domínios (religioso, legal, co­ imitaram o estado, isto aconteceu
mercial) , mas na definiçào cultural de apenas nas primeiras tentativas de
uma classe social como um todo. generalização. Afinal de contas, o es­
Os colégios não foram o berço do tado educador p odia simplesmente
Renascimento; eles foram seu resultado seguir as bem testadas trilhas tornadas
normal, educado. A novidade do colégio conhecidas pela Ratio Studiorum.
estava não em seu amor explícito pelas Este processo de racionalização
Belles-Lettres e em sua admiração pelas burocrática, iniciada pela monarquia
obras da antigüidade, mas antes no fato centralizada com o apoio do popolo
de que todos, do nível mais baixo ao grasso, ganharia velocidade e ritmo
mais alto deste popolo grasso, concor­ quando a burguesia tomasse o poder.
daram em usar um cultura distante,
moribunda, talvez morta, como seu A Classe Burguesa:
ponto de referência cultural a fim de impensável sem os colégios
definir a si mesmos como estando si­
tuados à parte das "classes mecânicas" Destaquei de forma deliberada as

25
convergências estruturais entre os co­ traste com as "promíscuas" condições
légios e as transformações contempo­ da Idade Média. A distância espacial e
râneas - transformações que estavam cultural substituía a incessante exibição
mais ou menos relacionadas à emergên­ pas marcas externas e ostensivas de con­
cia de uma nova classe social. Em vista dição . social. Este processo pode ser
das funções sociais dos colégios, a serem comparado com a internalização da
identificadas, estes isomorfismos po­ relação individual com Deus, em con­
deriam facilmente atuar em qualquer traste com a conformidade religiosa ex­
das direções. Sem negar as circur,.;tân­ terna ou com a compra de indulgências.
cias que tornaram a emergência dos A formação de um grupo ou classe
colégios, com as caracteristicas acima social exige inevitavelmente uma certa
mencionadas, muito provável, uma série homogeneização cultural. Em minha
de fatores sugere que as atividades opinião, a "classe burguesa" não existia
educacionais assim estruturadas tiveram no início do século XVI; o que existia
seu próprio impacto. eram papali grassi, com uma consciên­
Os colégios não foram os primeiros a cia local e fortes identidades urbanas,
introduzir a maioria de suas caracteris­ combinados com redes de familiares e
ticas distintivas; eles não foram ino­ clientes. A emergência de estados
vadores radicais, mas corporificaram monárquicos centralizados e a subor­
certas tendências contemporâneas mais dinação das cidades e das guildas ar­
perfeitamente que qualquer outra ins­ tesanais intimaram o burguês a existir
tituição. Da mesma forma, eles reu­ como uma classe numa escala nacional
niram as novas tendências numa es­ e, conseqüentemente, a movimentar-se
trutura moderna forte, durável e coeren­ para além do estádio dos papali grassi, os
te. Uma vez estabelecida, esta estrutura quais embora talvez livres, estavam con­
difundiu-se muito rapidamente, conser­ finados aos limites de bolsões urbanos en­
vando seus traços distintivos por mais de ciumados e belicosos. Foi a partir da
dois séculos. unidade cultural básica partilhada por
Esta corporificação avançada de ten­ gente comum endinheirada que a .bur­
dências profundamente arraigadas, que guesia moderna emergiu, antes que exis­
passam a gozar de uma popularidade tisse como uma classe com suas próprias
súbita e maciça, dá credibilidade à idéia ambições políticas.
de que os colégios influenciaram as Penso que os colégios exerceram um
mentalidades e as relações com o tempo, papel essencial neste casamento entre
o espaço, com modelos de administração dinheiro e cultura letrada, na consti­
e com a cultura, estimulando, assim, tuição de um espaço simbólico baseado
relações com o mundo e com os outros na escrita. É impossível supor que não
que já estavam sendo cultivadas pela tenha havido nenhum agente de ho­
burguesia emergente. mogeneização cultural neste processo.
Mas existe uma área em que a con­ Alguma outra instituição b as tante
tribuição específica dos colégios parece diferente dos colégios poderia eventual­
inegável: a homogeneização cultural do mente ter exercido este papel, mas a
papaia grassa. Os colégios deram aos emergência de uma classe letrada neces­
mercadores e aos notáveis um ponto de sariamente pressupunha uma base que
convergência, um terreno comum na estivesse além das redes familiares e da
cultura escrita e letrada, que os distin­ educação familiar.
guia radicalmente das ordens mais Até um certo ponto, os colégios
baixas e os deixavam mais próximos dos representaram uma autoconstrução da
estratos mais altos da sociedade. A cul­ burguesia, na medida em que um co­
tura greco-latina dos colégios atendia ao légio era usualmente aberto por algum
seu desejo de distinção, de aquisição de homem rico nas cidades. Mas é óbvio
uma cultura estrangeira, decorativa, que estas elites urbanas não estavam
como uma sólida âncora para sua de­ pensando em termos de se produzirem a
manda de superioridade social. Não si mesmas como uma classe ao nível
constitui nenhuma coincidência que nacional; em vez disso, elas estavam
uma tendência pararela em direção à preocupadas com a possibilidade de
segregação espacial se tenha enraizado mobilidade individual, a qual exigia o
também durante o século XVI, em con- domínio de uma certa cultura e boas

26
maneiras, ou carreiras acadêmicas, etc. certas caracteristicas distintivas de nos­
As virtudes homogeneizadoras dos sas estruturas sociais teria sido sem a
colégios eram mais evidentes para as instituição da escola. Por exemplo, exis­
Igrejas, tanto para os jesuítas quanto tem boas razões para se pensar que a es­
para os protestantes, ansiosos por cola exerceu um papel ativo na indi­
ganhar os corações e as almas da futura vidualização do controle social, uma
elite e por recrutar padres ou ministros. hipótese confirmada por uma análise
Seja como for, estas elites identificavam­ dos colégios e das escolas de caridade. E
se com seus colégios e estavam prontas a pode haver alguma dúvida sobre a con­
lutar para preservá-las se por acaso as tribuição da escola para a emergência
autoridades decidissem que h avia das modernas e relativamente homo­
graduados inúteis em demasia no reino gêneas nações-estados? Finalmente,
(Dainville, 1957). como podemos compreender a afir­
De tempos em tempos, uma percep­ mação da cultura escrita e a supressão
ção mais leiga emergia, a qual via os da cultura oral sem o meio "escola"? Os
colégios como um instrumento para a livros e a escolas introduziram uma cul­
homogeneização da cidade inteira tura mediada, um divórcio entre a
(Bodin, 1559). Mas não foi senão na produção cultural e o consumo cultural,
segunda metade do século XVIII que a e propiciaram às representações sim­
burguesia começou a demandar ex­ bólicas uma nova autonomia da vida
plicitamente que os colégios se tornas­ cotidiana. Na metade do século XVI, os
sem um instrumento para a produção e colégios combinavam uma cultura morta
a reprodução da burguesia como uma com certas relações sociais e ajudavam a
classe dominante (Petitat, 1982). estabelecer novos processos de pro­
Após essas breves notas históricas, dução-reprodução cultural que eram
podemos agora fazer um balanço tanto radicalmente diferentes dos processos que
das incertezas quanto da riqueza da governavam a cultura oral, inseparáveis
abordagem construtivista. A repetitiva da natureza social geral.
insistência na reprodução como o único As escolas são parte de nosso tecido
papel da escola leva-nos a esquecer que social, o qual não poderia produzir e
as categorias reproduzidas eram e ainda reproduzir a si mesmo sem elas. Isto
são objetos de produção. Acima de significa que ademais de participar da
tudo, esquecemos que o instrumento emergência de estruturas e grupos
para a reprodução de uma classe pode sociais, a escola toma parte em sua
também ter sido o instrumento para sua transformação. Um bom exemplo disto
produção original e subseqüentes trans­ pode ser encontrado na "modernização"
formações. Na vetdade, a própria idéia dos colégios no século XIX.
de "instrumento" não é mais adequada; Já no século XVIII, os desenvolvi­
nem a de "autonomia": revisões impor­ mentos cientificos e as primeiras fases
tantes fazem-se necessárias. da revolução industrial estavam ques­
Uma análise da relação entre as tionando a relevância do colégio clás­
primeiras escolas técnicas e a emergên­ sico. A ampliação do currículo dos
cia dos engenheiros como uma categoria colégios, a fim de cobrir as linguagens
distintiva levariam a observações criticas modernas, as ciências humanas e na­
análogas. Desenvolvidas na França para turais, a história e a literatura nacionais
servir ao estado, as escolas técnicas er­ e a geografia, pode ter significado a
gueram-se acima da compartimenta­ diversificação da população estudantil.
lização das relações entre poder e co­ Em vez disso, foi o inverso o que acon­
nhecimento nos níveis superiores. Elas teceu no século XIX, como um resultado
tornaram-se assim uma instituição chave de duas sucessivas inovações conser­
num novo processo de produção­ vadoras.
reprodução da cultura técnica (Arzt, Primeiro, estimulou-se a introdução
1966; Taton, 1964; Hahn, 1971; Petot, de departamentos "especiais", "moder­
1958). nos", ou de escolas "práticas", seja nos
Em acréscimo a essas contribuições próprios colégios (como foi o caso da
das escolas para a gênese e o desenvol­ França, por exemplo) ou em escolas
vimento de certos grupos, é importante diferentes (a Realschulen na Alemanha).
examinar quão provável a emergência de Estes novos departamentos ou escolas

27
não levavam, entretanto, à universidade. ser necessário à produção-reprodução de
Esses ramos menores (conhecidos como grandes instituições políticas dominadas
"classes dos merceeiros" , na França), por uma "classe" social maior que o clã
que ofereciam uma educação em parte familiar. Aqui, os canais educacionais
profissional, em parte geral, foram não especializados (a família, o clã, o
purificados de seus aspectos utilitários local de trabalho, a pequena comuni­
em meados do fim do século XIX. Daí dade) provam-se incapazes de produzir e
em diante elas passaram a levar a um reproduzir os princípios maiores de es­
diploma "moderno", que dava acesso tratificação social: aqueles que dividem
às polytechniques, às escolas superiores o clero dos fiéis; os senhores e os fun­
de engenharia e aos colégios de ciência e cionários públicos de seus sujeitos; os
humanidades e ciências sociais. Num produtores e os mercadores dos con­
desenvolvimento paralelo, os aspectos sumidores; os gerentes e os técnicos
profissionais e seus estudiosos foram ex­ superiores dos trabalhadores; e assim
cluídos dos colégios e relegados a ins­ por diante.
tituições separadas (Ringer, 1978; Fal­ A produção-reprodução de uma
cucci, 1939; Prost, 1960; Piobetta, 1937; grande religião ou da ciência exige ins­
Day, 1972, 1974). tituições homogeneizadoras supra­
Os programas de estudo mais longos familiares. Isto resulta de uma neces­
preservavam assim a relação privilegiada sidade estrutural. Talvez, com o desen­
com a reprodução das classes dominan­ volvimento de novos meios, possam�s ter
tes, mas o preço pago era a adaptação. êxito em passar sem a velha estrutura
Esta adaptação conservadora às novas escolar burocrática ou em modificá-la
condições da ciência e da indústria substancialmente, inventando algum
acarretava a produção homogênea de tipo de substituto eletrônico ou ao estilc
uma cultura "moderna" exclusiva, de das redes de "convivência" de Illich, que
alto nível. Aqui, a escola produzia a fim tenha virtudes homogeneizadoras si­
de melhor reproduzir uma classe social milares. Mas não podemos evitar a
em transformação. Tanto no Renas­ necessidade de um lugar, um "meio"
cimento quanto na revolução industrial, entre uma cultura com divisões cam­
esta classe social necessitava de uma ins­ biantes e grupos sociais em movimento.
tituição de homogeneização cultural de A abordagem construtivista tende a
forma a assegurar sua definição em demonstrar que a escola, estreitamente
mudança e sua adaptação. Valeria a ligada ao meio da "escrita" até agora,
pena analisar essas situações em maior não é meramente um instrumento banal
profundidade, pois elas podem revelar para ser moldado de acordo com nossos
quão estreitamente os processos de desejos. O meio é aqui um produtor, de
produção e reprodução social estão in­ algum modo da mesma forma que o foi
terligados. a própria escrita, sem o qual grandes
A escola contribui para a produção sistemas poli ticos estáveis seriam difíceis
da sociedade, pois depois de um certo de ser imaginados. O uso generalizado do
nível da divisão do trabalho, a sociedade meio "escola" transforma os usuários e
não pode mais produzir a si mesma - deixa sua marca na própria estrutura
nem reproduzir-se - sem as escolas. Na social. Entretanto, o meio "escola" não é
história da civilização, as escolas às simplesmente uma outra forma de co­
vezes precederam a escrita; mas na municação; ela é em si mesma um cru­
maior parte do tempo, as duas invenções zamento de atores vivos, de professores,
caminharam juntas. Na escola apren­ estudantes, adminis tradores, políticos,
demos tanto o código da escrita quanto moralistas, etc.
aquilo que a escrita codifica: antes de É, portanto, importante entender
tudo, as leis da religião e do estado, e ambos os aspectos da atividade pro­
contabilidade. Dos Sumérios ao Egito dutiva da escola: sua participação na
dos faraós e à China imperial, a emer­ produção-reprodução da atividade
gência do estado, da cidade, e dos produtiva da escola, como uma con­
aparatos administrativos coincide com a seqüência das atividades mediadora5
escrita e com as escolas (Myers, 1960). supra-familiares; e como um meio sus­
O escolar - o futuro padre, funcionário tentado por agen tes especializados,
público letrado ou mercador - parece dotados de uma certa autonomia na in-

28
terpretação e aplicação de regras e vez menos dependentes da ordem
valores, no desenvolvimento de pro­ econômica?
gramas, etc. Isto significa que a escola Essas duas perspectivas - tecno­
faz uma contribuição produtiva tanto ao cratização e autonomização - têm
nível das transformações sociais prin­ numerosas implicações para as práticas
cipais quanto ao nível micro-social - educacionais diárias. Uma delas dá
um achado que tem sido confirmado por prioridade à avaliação, às regras para a
vários estudos que usam uma perspec­ certificação de especialistas licenciados,
tiva dinâmica ou construtivista (deve ser à produ tividade dos professores, e à ob­
também lembrado que os professores e jetificação de sujeitos e situações; em
estudantes periodicamente reclamam contraste, a outra abordagem enfatiza a
ruidosamente que eles não são meras cultura autônoma, as necessidades e
correias de transmissão: o movimen to de exigências pessoais, a multiplicidade de
protesto do final dos anos sessenta é o espaços imaginários, o tempo "não
exemplo mais recente e maciço). remunerado" .
É verdade que a ação produtiva da A sociologia da reprodução e a his­
escola e de seus agentes nem sempre é tória fatual não são muito úteis para o
perceptível. Quanto mais longa esta especialista educacional que tenta
ação, menos nos tornamos conscientes posicj.enar-se em termos de movimento e
dela, mais ela passa a fazer parte da de diferença entre gerações, no ritmo de
pedagogia oculta. Tanto os estudantes transformações profundas. Mas o so­
quanto os professores acabam por ciólogo-historiador do presente e o his­
deixar de perceber as lentas mudanças toriador-sociólogo do passado podem
de significados nas quais eles estão ajudá-lo a detectar as lentas mutações
imersos. na sociedade e capacitá-lo a ver o sen­
E contudo, ao fim e ao cabo, o im­ tido de seu trabalho, para além dos ins­
pacto principal do meio "escola" está tantâneos ideológicos de curto prazo.
nessa ação de longo prazo que se passa Nas ciências sociais, assim como em
sob a superfície ideológica. Para dar a todas atividades produtivas da socie­
suas ações mais que um significado dade, os fatos não são meramente fatos;
superficial, enganoso, os educadores eles são (re) construções em que novas
devem confrontar as profundas transfor­ perspectivas adquirem forma, num
mações de nossa época. Situados entre leque de possibilidades. Hoje, à medida
duas gerações, entre o passado e o em que as ideologias fossilizadas entram
futuro, entre uma cultura amadurecida em processo de deterioração e as velhas
e culturas potenciais a serem elabo­ utopias dissolvem-se em religiões es­
radas, não estão eles idealmente lo­ tatais, à medida que a tecnologia
calizados para se tomarem conscientes ameaça nos soterrar a todos em seus
de uma história medida em termos de refugos, este retorno a um tempo na his­
gerações? tória, medido em relação ao ciclo de
E que tal se a escola, de uma forma uma vida inteira, deveria estar no centro
para nós oculta, estiver fornecendo os de uma reconstrução do sentido de uma
elementos simbólicos essenciais para ação pedagógica que se queira cultural­
uma nova classe dominante? Que tal se mente produtora, de grupos, de es­
a liquidação do humanismo clássico, truturas sociais, do futuro.
ainda o valor mais alto de apenas uma NOTA
geração atrás, tiver deixado livre o es­ A abordagem aqui proposta poderia ser chama­
da de perspectivismo construtivista. Ela está rela­
paço simbólico necessário para a coesão
cionada com uma série de escolas, incluindo
de uma tecno-burocracia que, com a -a École des Annales e a sociologia alemã. A hist6-
longa e firme ascensão do estado acaba ria é entendida como um campo de possibilida­
des, sem um significado pré-determinado ou
por invadir toda a vida social? Que tal
unilateral (Braudel, 1980; Weber, 1958; Dilthey'
se a difusão de processos automáticos, 1961; Piaget, 1972).
da informática, e menores jornadas de
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
trabalho, resultarem numa percepção da
educação como algo mais autôn<"mo do ANTHONY, Peter (1977) The Ideology of Work
mundo econômico? Que tal se, a con­ (London, Tavistock).
tinuar esta tendência, a escola se tornar ARIES, Philippe (1965) Centuries of Childhood: a
a fonte de novas divisões sociais, cada Social History of FamiJy Life (New York, Ran­
dom House),

29
ARZT, F. B. (1966)The Development ofTechnical FRIJHOFF, W. & JULIA, D. (1975)Ecole et sodété
Education in France, 1550-1850 (Cambridge, dans Úl France d'Ancien Régime (Paris, A. Co­
Mass., Society for the History of Technology lin).
Monograph Series, n2 3). GUTTON, J. P. (1971) La socihé et les pauvres,
BAUDELOT, C. & ESTABLET, R. (l97I)L'école 1534-1789 (Paris, Les Belles-Lettres).
capitaliste en France (Paris, Maspéro). HAHN, R. (1971)The Anatomy of a Sdentific Insti­
BLAU, P. M. & DUNCAN, O. D. (1967) TlzeAme­ tution, The Paris Academy of Sciences,
rican Occupational Structure (New York, Wi­ 1666-1803 (Berkeley, University of California
ley). Press).
BODIN, Jean (1559) Discours au Sénat et au peuple ILLICH, I. (1971) Deschooling Society (New York,
de Toulouse sur r Mucation à donner aux jeunes Harper & Row).
gens dans Úl République, in: Oeuvres philosophi­ KOYRE, A. (I968}From the Closed World to the In­
ques (Paris, PUF, 1951). finite Universe (Baltimore, The Johns Hopkins
BOURDIEU, P. & PASSERON J. C. (1970) La re­ Press).
production (Paris, Ed. de Minuit). LE GOFF, J. (1980)Time, Work and Cu/ture in the
____ . (1979)The 1nheritors: French Students Mldd/e Ages (Chicago, University of Chicago
and their ReÚltions to Cu/ture (Chicago, Univer­ Press).
sity of Chicago Press). LOBROT, M. (1970) La pédagogie institutionnel­
BOWLES, S. & GINTIS, H. (1972173) IQ in the le (Paris, Gauthier-Villars).
US Class Structure, Social Policy, 3(4-5), pp. LOYSEAU, CH. (1620)Traicté des ordres et sim­
65-96. ples dignitez (Paris, P. Albert).
----o (1977) Schooling in Capitalist Ameri- MOUSNIER, R. (1967)Etat et sodhé sous Francois
ca (New York, Basic Books). ler et pendant Ie gouvernement personnel de

BRAUDEL, F. (1972) The Mediterranean mUi the Louis XIV (Paris, Centre de Documentation uni­
Mediterranean Wor/d in the Age of Philip II (New versitaire).
Y ork, Harper & Row). ____ o (1973) Social Hierarchies: 1450 to the
---_. (1980) OnHistory (Chicago, University Present (Beckenham, Groom Helm).
of Chicago Press). MUMFORD, L. (1963) Technics and Civilisation
BRIZZI, J. P. (1976)La forrnazione deUa cÚlsse diri­ (New York, Harcourt, Brace and World).
gente nel sei-settecento (Bologna, 11 Mulino). MYERS, ED. D. (1960)Education in the Perspecti­
DAINVILLE, F. De (1957) Colleges et frequenta­ ve ofHistory (New York, Harper).
tion scolaire au XVlIe siecle, Populotion, 12, pp. PARSONS, T. (1959) The School Class as a Social
468-469. System, Harvard Education Review, 29, pp.

____ . (1978) L' Mucation des Usuites (Paris, 297-318.


Ed. de Minuit). ____ o (1971) The System of Modem Socie­
DAY, C. R. (1972173) Technical and Professional ties (Englewood Cliffs, N. J., Prentice-Hall).

Education in France: the Rise and Fali of I'En­ ---_o (1974) The American University (Cam­

seignement secondaire special, Journal of Social bridge, Mass., Harvard University Dress).

History, 6, pp. 177-201. PERNOUD, R. (1960)Historie de Úl bourgeoisie en


----o (1974) Education, Technology and So­
France (Paris, Seuil).
cial Change in France: the Short, Unhappy Life PETITAT, André (1982) Production de Ncole,

of the Cluny School, 1866- 1891, French Histo­ production de Úl socihé(Geneva, Droz).
rical Studies, 8, pp. 428-44 I. PETOT, J. (1958) Histoire de {administration des

DELUMEAU, J. & AI (1973) Ordres et CÚlsses


Ponts et Chaussées (Paris, Riviere).
PIAGET, J. (1972) Principies of Genetic Epistemo­
(paris, Mouton).
DILTHEY, W. (1962) Pattem and Mearuong inHis­ logy (London, Routledge & Kegan Paul).
PIOBETTA, J. (1937) Le baccaÚludat (Paris, J. A.
tory (New York, Harper & Row).
Bailliere).
DURAND, G. (1969)Etats et institutions, XVI-XVIle
siecles (Paris, A. Colin). PROST A. (1960)L' enseignement en France, 18()()-
DURKHEIM, E. (1956) Education and Sociology
1967 (Paris, A. Colin).
QUINONES, R. (1972) The Renaissance Discovery
(Glencoe, 111, Free Press).
____ • (1964)The Division of Labor in Society of Time (Cambridge, Mass., Harvard University
(New York, Free Press of Glencoe). Press).

____ o (1973) Moral Education (New York, RINGER, F. K. (1978) Education and Sodety in
Free Press of Glencoe). Modem Europe (Bloomington, Ind., Indiana
____ • (1977) The Evolution of Educational University Press).

Thought (London, Routledge & Kegan Paul). SEYSSEL, Cl. De (1981)The Monarchy of Fran­
FALCUCCI, C. (1939) L' hwnanisme dans r enseig­ ce (New Haven, Conn., Yale University Press).
nement secondaire en France au XIXe siecle TATON, R. (1964) Enseignement et diffusion des

(Toulouse, Privat). sciences en France au XVIl1e siecle (Paris, Her­


FOUCAULT, M. (1979) Disdpline and Punish: the mann).

Birth of the Prison (New York, Vintage Books). WEBER, M. (l958a) Essays in Sodology (New
FRANCASTEL, P. (1967) La figure et Ie lieu, {or­ York, Oxford University Press).
dre visuel du Quattrocento (Paris, Gallimard). ____ o (l958b) The Protestant Ethic and the
Spirit ofCapitalism (New York, Scribner).

Artigo traduzido do British Journal ofSociology ofEducation, v. 8, n. 4, 1987: pp. 37'1-90, por espe­
cial gentileza deste peri6dico e do autor. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva.

* *

André Petitat é professor do Departamento de Sociologia, Universidade de Quebec, Montreal, Canadá.

30
Magistério de 12 Grau:
um trabalho de mulher
GUACIRA LOPES LOURO

E
fatos e que contribuam para pensar em
seus significados e desdobramentos.
VidenciO' a ligação da mulh" com Em um artigo recente ("Estudos
a educação provavelmente parecerá dis­ sobre Mulher e Educação: algumas
correr sobre um lugar-comum. Sem questões sobre o Magistério"), Cristina
dúvida não são necessár ios m uitos Bruschini e Tina Amado, considerando
elementos para comprovar o quanto - a maciça concentração feminina na
em diferentes sociedades e épocas - a educação e a construção histórica do
mulher foi e é responsável pela educação magistério, afirmam: ..
das crianças. Se com referência à
educação não formal este é um dado
bastante aceito, também tornou-se ver­ "••• se a condição feminina do
dadeiro - a partir de meados do século magistério, como acreditamos, jus­
XIX, em muitas sociedades - no tocan­ tifica o discurso do amor e do ca­
te à educação formal, escolarizada. rinho e não de outro qualquer, e se
No Brasil, segundo dados do Recen­ este é utiUzado para encobrir as
seamento Demográfico de 1980 (cf. condições concretas nas quais a
Bruschini e Amado, 1988), 86,6% do prática d ocente acontece; se a
professorado é do sexo feminino. Estes ideologia da vocação leva a baixos
números são ainda mais expressivos se níveis de organização da categoria,
tratamos da pré-escola (99%) e das por que a preocupação com o gê­
séries iniciais do 1 � grau - 1!1 a 4!1 nero não é incorporada nos estudos
séries - (96,2%). No 2� grau cresce a sobre o magistério ou a educação de
presença feminina (em relação a épocas modo geral? E os estudos sobre
anteriores) e na Universidade ela também mulher, o que dizem a respeito?
está presente, porém concentrando-se (Bruschini, C. e Amado, T., 1988 , p.
em determinadas áreas e nos níveis 8).
menos elevados da carreira.
Podemos portanto aceitar que de
fato a relação da mulher com a edu­ Demonstram estas estudiosas que
cação é muito estreita. No entanto se grande parte da pesquisa educacional
desejamos conhecer melhor esta relação não incorpora a questão do sexo da
encontramos muitas dificuldades. O que professora como um elemento que "pos­
quero ressaltar é que aceitamos este sa ter algo a ver com o que está sendo
fenômeno praticamente como se ele fos­ analisado". Embora reconhecendo a
se "natural", como algo dado. Há ainda predominância feminina no magistério,
muito poucas pesquisas que descrevam e muitas pesquisas assumem uma neu­
analisem a relação mulher-educação, tralidade com relação ao gênero, ou en­
poucos estudos que criem teoria sobre os tão justapõem a categoria gênero em

EDUCAÇÃO E REALIDADE, Porto Alegre, 14(2):3 1-39,juUdez. 1989 31


suas análises, sem efetivamente articulá­ o texto que se segue traz algumas
la com as outras categorias explicativas. idéias iniciais de uma pesquisa que es­
Após muito tempo, durante o qual tou desenvolvendo nesta direção.
em nosso País pesquisar sobre educação
significava analisar métodos e técnicas A construção histórica
de ensino, diferenças individuais, estilos da relação magistério-mulher
de aprendizagem ou questões semelhan­
tes, medidos em pré e pós testes, pas­ Michael Apple, no artigo "Ensino e
samos mais recentemente a realizar pes­ trabalho feminino: uma análise com­
quisas que buscam os vínculos da sala parativa da história e ideologia", fala de
de aula com a sociedade, e, sem dúvida, um processo de "feminização do magis­
houve nisto um ganho qualitativo. As tério". Analisando dados históricos da
condições materiais e concretas nas Inglaterra e dos Estados Unidos, de­
quais se dá a educação - a sociedade monstra o progressivo abandono, pelos
de classes e suas contradições - têm homens, da direção das salas de aulas e
aparecido como preocupação nos tra­ atração das mulheres para esta função.
balhos mais críticos. Parece que já se Relaciona ele este processo às modi­
aceita que o capitalismo pode ajudar a ficações que a própria atividade do
entender melhor e explicar como a magistério sofreu: da autonomia à for­
educação tem se desenvolvido e acontece malização e controle.
em nossa sociedade. Nos primeiros tempos detinha o
Porém esta sociedade não está professor um grande poder de decisão
atravessada somente pela contradição de sobre seu trabalho: conteúdos, horários,
classe; outras contradições, de sexo, de composição das classes, etc. Posterior­
raça, de idade, também estão aí presen­ mente, com o aumento da necessidade
tes. No entanto, com apoio na consi­ de educação básica, surge também a
deração marxista clássica de que a con­ necessidade de maior organização e con­
tradição " classe é a fundamental, a trole da atividade docente: determinação
questão da' dominação .de gênero tem de programas, períodos de trabalho,
sido tratada não só secundariamente, maior preparo ou credenciais dos
mas também insuficientemente. professores e fixação de salários (o que é
Repito aqui o que mumeros pes­ feito em níveis baixos) . Estas caracterís­
quisadores (mulheres e homens) vêm ticas vão levar a uma mudança no
apontando em seus trabalhos - há professorado - deixam de servir aos in­
necessidade de se articular as preo­ teresses dos homens (que nesta fase pas­
cupações de classe e gênero. sam também a ter novas oportunidades
Isso implica tocar em algumas ques­ de trabalho) e atraem as mulheres (pois
tões ainda polêmicas, como a origem da responçlem às suas lutas pelo acesso à
opressão feminina; o patriarcado, suas educação e pelo trabalho fora de casa).
formas de expressão atuais e suas re­ Nas palavras de Apple:
lações com o capitalismo. Estas questões
estão de algum modo presentes na
divisão social e sexual do trabalho e pos­ "Alguns homens ficaram na edu­
sivelmente têm algo a nos dizer sobre a cação: só que eles saíram da sala de
construção do binômio magistério­ aula. Isto confIrma a alegação de
mulher. Lanford de que, entre 1870 e 1970,
Há ainda um elemento indispensável quanto maior a formalização do sis­
a considerar: a transformação histórica tema educacional, maior f oi •
do magistério. Esta atividade não foi proporção de mulheres professoras
sempre exercida do mesmo modo ou (Lanford apud Strober, s. d., p.21).
pelos mesmos sujeitos. Não foi primor­ E também fundamenta minha ar­
dialmente exercida por mulheres (e sim gumentação anterior de que, uma
por homens) e nem pelas mesmas vez que um conjunto de postos se
mulheres (quanto à origem de classe). toma 'trabalho de mulher', toma-se
Assim, se os sujeitos são outros e a for­ também cada vez mais sujeito a
ma de organização do trabalho também, pressões para racionalização. O
sem dúvida temos de conhecer melhor controle administrativo da prática
esta realidade e, com o aporte da his­ docente, dos currículos,etc., aumen­
tória, analisá-la criticamente. ta. A própria ocupação fica dlfereD-
32
te (Apple, 1988, p. 18) grifos do progresso do ensino de uma inspeção
autor). ativa e inteligente. A inspeção só
atingirá seus fins confiada a homens
especiais. Para possuí-los a adminis­
Creio que podemos pensar que no tração deve criá-los e para criá-los é
Brasil tenha ocorrido uma trajetória necessário não pequena despesa ( ...)
com alguns aspectos semelhantes. Nos­ A Escola Normal tem especial aten­
sos primeiros educadores - por 200 ção no relatório do diretor geral, pelo
anos praticamente os únicos - foram os número crescente de alunas, a par da
jesuítas. Embora com uma forte e cen­ diminuição de alunos. O Asilo de
tralizada organização escolar, eles eram Santa Tereza proporciona à Escola
"donos" desta organização. Tinham a todos os anos um bom número de
educação como missão e sua ação pe­ educandas, e o mesmo poderá fazer o
dagógica e evangelizadora serviu por Asi l o de Santa Leopoldina. As
muito tempo aos interesses do Estado, educandas têm em geral freqüentado
mas eles conservaram, de fato, uma com aproveitamento o curso normal e
grande autonomia e poder sobre seu algumas, na regência de cadeiras têm
trabalho, de tal modo que chegaram a dado provas de excelente vocação
ser percebidos como uma ameaça, como para o magistério. Dentro de certo
um poder paralelo e foram afastados tempo acontecerá que teremos su­
(1759). perabundância de professoras ha­
Na fase imediatamente subseqüente, bilitadas pela Escola Normal e falta
há um certo vazio de organização, e as de professores nas mesmas condi­
"aulas régias" são o substitu to capenga ções"(Moacyr, P., 1940, p. 475).
dos colégios jesuítas. São evidentemente
aulas proferidas por homens, já que
O texto permite que se acentue dois
somente eles estavam capacitados.
dos elementos antes referidos: uma
Também serão homens que irão ins­
maior preocupação em organização (ins­
talar aulas particulares nas nascentes
peção) e controle sobre o ensino, e a
cidades do País no início do século XIX
tendência crescente de concentração
com autonomia sobre o que ensinar,
feminina na área.
-

para quem, por quanto tempo e me­


Para construir este processo de
diante que remuneração ou recompensa.
"feminização" do magistério, irão con­
Ainda que haja preocupação com a
tribuir sem dúvida as transformações
orientação destas aulas, não há ob­
econômicas e sociais do País. Embora
viamente mecanismos para supervisioná­
com lentidão, o Brasil se encaminhava
las; e seus professores gozam, de fato,
para a urbanização e dava os primeiros
de liberdade para o exercício de seu
passos no setor industrial; recebia levas
trabalho.
de imigrantes (que teriam diferentes for­
Algumas tentativas de organização
mas de inserção na produção e na so­
escolar começam a aparecer após a
ciedade brasileira, conforme as áreas do
primeira Constituição (1824) e, mais ou
País em que se localizaram); e via
menos ao mesmo tempo, também se
desenvolverem-se suas camadas sociais
começa a falar no parlamento nacional
médias. Estas transformações provocam
da conveniência de v:rem mulheres as
o crescimento e a diversificação das
educadoras das primeiras letras.
oportunidades de trabalho - para os
Em meados do século XIX surgem as
homens - e, por ou tro lado, apontam
escolas normais em diferentes províncias
para a necessidade de escolarização
brasileiras. Abertas a homens e mu­
mais ampl? da população.
lheres, elas progressivamente irão se tor­ Às mulheres estava tradicional-
nar escolas de mulheres. A profissão
mente reservado o mundo doméstico e
começava a ganhar contornos mais
sua participação no trabalho fora de
rlefinidos.
casa precisaria ser justificada sem a
O registro de Primitivo Moacyr sobre
negação do seu destino primordial.
a Província de São Pedro do Rio Grande
Com raízes muito antigas, construiu­
do Sul, em 1874, parece exemplar:
se uma divisão entre o mundo público
(masculino) e o privado (feminino) que,
"...O diretor geral da instrução lem­ se nunca foi rígida e definida, se oscilou
bra que há necessidade p a r a o e até mesmo inexistiu em algumas
33
sociedades, ainda hoje não foi realmente Mas o capitalismo trouxe uma se­
destruída. paração clara entre a casa e o lugar de
Esta divisão empurra as mulheres trabalho - provocou uma divisão entre
para dentro de casa e incita os homens o trabalho doméstico não remunerado,

às atividades externas. Como decorrên­ exclusivamente feminino, e o trabalho


cia, atribui-se à "natureza" de cada um remunerado, fora do lar, que deveria ser
dos gêneros características que são preferentemente masculino (a presença
adequadas às suas diferentes funções e das mulheres nas fábricas é entendida
atividades: as mulheres seriam "na­ como uma inversão da ordem familiar) .
turalmente" dóceis, submissas, sen­ A participação das mulheres no
SlvelS, dependentes, minuciosas, in­ chamado mundo produtivo Uá que o
tuitivas, pacientes; os homens, mais trabalho doméstico é por muitos con­
lógicos, organizadores, fortes, agres­ siderado não produtivo) não se dá, pois,
sivos, independentes, decididos. sem dificuldades.
Esta organização de funções e de es­ Esse tipo de trabalho é encarado
feras de atuação (privada e pública) foi, para ela como provisório ou como um
evidentemente, construída historica­ extremo. O ideal é que ela possa dedi­
mente, ligada a condições materiais e car-se apenas às atividades domésticas,
concretas de produção e organização da às funções de dona-de-casa, esposa e
família; revelou-se de formas diferentes mãe. Afirmar que sua mulher "não
em sociedades e momentos determi­ precisa trabalhar fora" é um indicador
nados; e acentuou-se, ganhando marcas não só da capacidade provedora do
específicas, no capitalismo. Sobre esta homem, mas talvez até mesmo de sua
questão, examinando a situação das masculinidade. Assim, o trabalho fora
mulheres no século XIX, Michelle de casa deve ser abandonado pela
Perrot diz: mulher, logo que possível, para que ela
se reintegre ao seu local "natural".
"O século XIX acentua a racio­ Isto é ainda mais verdadeiro em
nalidade harmoniosa dessa divido relação às mulheres das camadas fa­
sexual. Cada sexo tem sua função, vorecidas. Estas são "poupadas" do
seus papéis, suas tarefas, seus es­ trabalho e das decisões. São "rainhas do
paços, seu lugar q uase pré­ lar", mas mesmo ali devem respeitar a
determinados, até em seus detalhes. autoridade maior, do homem, o chefe
Paralelamente, existe um discurso da família.
dos ofícios que faz a linguagem do Certamente este quadro não é rígido
trahalho uma das mais sexuadas e as transformações sociais mais amplas
possíveis. 'Aos homens, a madeira e interferem na organização das famílias e
os metais. Á mulher, a famíUa e os as alteram. No final do século passado
tecidos', declara um d elegado pode-se perceber o início de um mo­
operário da exposição mundial de vimento de saída das mulheres do fe­
18 67 . A economia política reforça chado mundo doméstico. Elas ocuparam
esta visão das coisas, ao distinguir diferentes lugares no mundo do tra­
produção, reprodução e consumo. O balho: fábricas, escritórios, escolas. (Es­
homem assume a primeira e a te movimento se acentuará interna­
mulher o h!rceiro, e cooperam na cionalmente nas décadas das guerras e
segunda" ( Perrot, M., 1988 , p. terá reflexos no Brasil. )
178). Para as moças das camadas médias o
magistério aparecerá, desde o início,
como a profissão ideal, a única bem
o capitalismo provavelmente deu aceita socialmente. Deste modo, as es­
contornos mais nítidos a esta divisão. colas normais serão o caminho não só
Antes a família constituia-se numa para aquelas que precisam trabalhar,
unidade de produção e consumo, não se como também para as que desejam es­
separavam as tarefas de reprodução da tudar um pouco mais.
vida e manutenção da unidade familiar, Se a tendência em considerar o
das tarefas de produção para consumo magistério de primeiras letras adequado
ou para troca; não se separava o tra­ à mulher iniciou-se nas primeiras dé­
balho doméstico de um outro, dirigido cadas do Império (e foi contemporâneo
para fora. às manifestações em favor da organi-
34
zação e controle da profissão), esta ela. Alguns (homens de ciência) que
posição continuou e fortaleceu-se nos se pronunciam pela incapacidade da
anos seguintes, estendendo-se pelo mulher não duvidam confiar-lhe a in­
período republicano. A fala de A. fância. Entretanto, é um mal, é um
Peixoto, em 1930, serve para ilustrar perigo, é irreflexão desas trosa.
(aqui ressaltando a contraface, ou seja, (...) A educação pela mulher só
a inadequação do homem a esta ati­ pode ser comparada à educação
vidade) : pelo clero. Ambos preparam para o
passado organismos que se devem
" O magistério elementar masculino mover no presente ou no futuro;
é, de fato, uma anomalia. A não ser ambos amoldam segundo o mundo
o caso vocacional, que é sempre tar· antigo que representam um organis­
dio no homem, não vejo porque, mo que tem de viver no meio atual.
senão por incapacidade de competir ( ...) A conclusão é uma e única.
com outros homens, nas carreiras Nenhum papel deve ser confiado à
masculinas, virão eles para aqui. mulher atual na direção intelectual
Tenho pena quando os vejo convos­ das gerações" (Castro, T.L. apud
co, se não lhes descubro vislumbre Saffioti. H., 1979, p. 211).
de vocação... Felizmente os que
aqui vejo são duas vocações. São, É verdade que este tipo de argumen­
para mim, falidos na vida os outros. tação trazia em sua base uma grande
Na idade em que se ousa e se tem crença no poder da educação e se en­
ambição de chegar, eles dão fundo, caminhava na direção da necessidade de
numa profissão sem glória e sem educar-se as mulheres, mas também
remuneração. É um teste psico­ torna evidente a desvantagem feminina.
lógico e econômico, de inferioridade Se alguns (poucos) apontavam para
viril. Num país que remunera tão este problema, a maioria passava sobre
bem todas as atividades masculinas, ele ou o desconhecia, e aceitava (até
abrigar-se parcimoniosamente no aplaudia) a tendência crescente de
magistério elementar é capitular serem mulheres as jovens normalistas e
diante da vida... Se não lhes des­ professoras. Esta é a tendência que se
cubro vocação, insisto, nos meus afirmará.
alunos homens, tenho pena deles, Assim constrói-se a relação magis­
dos meus a lunos homens ... " tério-domesticidade, ou séja, entende-se
(Peixoto, A. apud Saffioti, H., que o magistério é mais adequado para
a mulher, por exigir o cuidado de crian­
1979, p.194).
ças; ser professora é, de certa forma,
uma extensão do papel de mãe. Além
Havia também aqueles que argu­ disso, o magistério passa a ser visto
mentavam contra a indicação da mulher também como um bom preparo para a
para o magistério - embora suas razões futura mãe de família. Que outra ati­
fossem muito pouco lisonjeiras para com vidade proporcionaria o contato com
as mulheres. H. Saffioti cita Tito Lívio princípios, assuntos e habilidades mais
Castro, representante do cientificismo adequados à dona-de-casa ilustrada,
liberal da fase pré-republicana, que mãe e esposa dedicada e de boa for­
afirma: mação moral? Daí a organização dos
cursos normais com pontos de ligação
"Nada parece mais natural à pri­ com o lar, com sólida orientação moral e
meira vista que o ensino da criança religiosa , etc. O trabalho num só turno é
entregue à mulher. A aproximação também ideal para as mulheres, per­
notável da psicologia de uma e de mitindo-lhes combinar a atividade
outra, a fraqueza física nos do­ profissional com as responsabilidades da
mínios do fisiologismo que em falta casa. Tudo isto favorece a aceitação
de elevada cultura é uma das social da profissionalização - como
melhores garantias de benevolência professora - para as mulheres.
e da delicadeza, o sentimento da Vincula-se a estas idéias uma outra
maternidade criado e mantido por relação: magistério-vocação. A tarefa
uma influência multissecular in­ deve ser abraçada por aquelas que têm
dicam a mulher para guia da infãn- vocação; supõe uma doação. Isto leva a
35
uma certa desconsideração do salário, cativa. Paralelamente acentua-se o
ou seja, o magistério é praticamente um processo de proletarização do magis­
sacerdócio. Mais uma vez o fato de tério.
serem mulheres as ocupantes desta Ilustra esta afirmação a fala de
atividade serve para justificar os baixos Miguel Arroyo em um encontro de
salários; usualmente elas não são o supervisores da educação, em 1979:
único ou o principal componente do or­
çamento familiar e, supostamente, con­ "Quando no sistema escolar, a
tentam-se com menor remuneraçio. categoria mais alta era a normaUsta,
Este é um quadro simplificado (mas ela servia para depreciar o trabalho
verdadeiro) do perfil profissional das docente dos não-normalistas e
professoras primárias das primeiras rebaixar seus salários. Quando a
décadas do nosso século. As teorias percentagem de normalistas aumen­
pedagógicas modernas - principalmen­ tou na composição do corpo docente
te o escolanovismo dos anos 30 e 40 - brasileiro, foi necessário criar novas
renovam e acentuam muitas destas categorias de trabalho especializado
características. Dão um "status" mais para depreciar o nível, as funções e
profissional ao magistério (e mais cien­ os salários dos normaUstas, reduzin­
tífico também) pela exigência de maior do-os à categoria de não especia­
qualificação docente, pelo emprego da lizados. Para o sistema escolar
psicologia na educação e pelos aportes modernizado administrativamente,
da psicometria, biologia e higiene. Mas na lógica da empresa privada, in­
objetivamente a dedicação, a doação e o teressado em produzir mais e
amor continuam sendo enfatizados melhor educação com menos custo,
como os elementos fundamentais para o a introdução dos especiaUstas foi
exercício da profissão e alarga-se em uma grande invenção: o salário dos
todos os níveis de ensino o contingente normalistas _ tidos como não es­
feminino, ainda recrutado nas cha­ pecializados _ foi rebaixado aos
madas camadas sociais médias. níveis dos salários mais baixos da
sociedade, enquanto uma proporção
E a professorinha, continua a mesma? mínima de especialistas passaram a
fazer parte do quadro de magistério
Os anos 60 trazem à tona algumas das com salários baixos, mas relati­
profundas contradições que se haviam vamente compensadores em relação
gerado no Brasil. Há um processo de aos normalistas" (Arroyo, M., 1980,
grande concentração de capital, maior p.21 ).
burocratização, empobrecimento das
classes assalariadas e do proletariado,
Fazendo a ressalva ao emprego do
desenvolvimento da urbanização e da in­
masculino (os normalistas) para indicar
dustrialização, juntamente com o fe­
uma categoria maciçamente feminina,
chamento político e o controle dos di­
de qualquer forma o comentário de
ferentes organismos da sociedade civil
Arroyo ajuda-nos a perceber o processo
(sindicatos, escolas, partidos, associa­
de desvalorização da profissão e en­
ções, etc).
caminha-nos no entendimento de uma
A educação reflete e reproduz esta
outra condição do magistério.
conjuntura. Num contexto extremamen­
Os cursos normais perdiam assim
te autoritário são reduzidos os espaços
seu "status". A própria formação era
para resistência e para transformação.
"aligeirada". A partir da lei 5692/71 a
A avalanche de leis, normas e de­
escola normal cedia lugar à "termi­
cretos que caem sobre as escolas e re­
nalidade magistério", que desde aí pas­
gulamentam suas atividades são a face
sa a ser desenvolvida em cursos de 2�
mais evidente do controle que o Estado
grau constituídos de várias terminali­
pretende ter e tem sobre o setor.
dades:
Um processo que já se iniciara antes,
agora aparece com mais clareza: distin­
guem-se diferentes funções, criam-se es­ " a lei 5692/71 representa a
pecializações dentro do trabalho docen­ orientação legal que incorpora a
te, separam-se as esferas de decisão e tendência tecnicista ( ). Rege-a o
••.

execução, fragmenta-se a ação edu- espírito da produtividade, eficiência


36
e e ficácia, daí a busca de não precárias em que se dá a prática profis­
duplicação de meios para os mes­ sional.
mos fins, o caráter de terminalidade Ê interessante notar que este é um
de estudos ( com profissionalização processo muito contraditório. Ao mesmo
ao fim do 2!' grau) e uma certa ên­ tempo em que o professorado ia perden­
fase nas disciplinas mais operacionais do espaços importantes de decisão, via­
(Louro, G., 1986, p. 45.). se envolvido (quase se poderia dizer en­
"Esses conceitos _ racionalização, golfado ou so!errado) por fichas, ta­
eficácia_ passam então a dominar belas, pré e pós-testes, etc. que lhe davam
não só a área econômica e política, uma sensação de crescente responsa­
como outros setores da adminis­ bilidade, de tomada de "decisões téc­
tração, e também a educação. nicas" e, em conseqüência, de maior
A tendência do planejamento e con­ profissionalismo.
trole, que se anunciara em outros Apple chama atenção para isto,
momentos, implanta-se definiti­ dizendo:
vamente na educação brasileira"
(idem, p. 39 ). "Os professores e professoras pen­
savam a si mesmos como sendo mais
Gradativamente, como parte de um profissionais à proporção que em­
movimento que já começara alguns anos pregavam testes e critérios técnicos,
antes, os cursos de magistério são aban­ aceitavam as horas mais longas e a
donados pelas moças das camadas intensificação de seu trabalho que
médias e passam a ser freqüentados acompanhava o programa. Para
pelas jovens de camadas sociais mais fazer um 'bom trabalh o', você
baixas. necessitava ser tão 'racional' quanto
O ensino de I? grau também está se possível( Apple, 1987, p.l0).
transformando. Alguns setores sociais
que antes não tinham acesso à escola
agora ali conseguem chegar, mas as es­ Ainda adiante, desenvolvendo esta
colas pouco sabem o que fazer com eles. idéia Apple lembra-nos que a noção de
Com altos índices de evasão e repetência profissionalização é especialmente im­
e com vidas tão diferentes daquelas que portante para as mulheres, tanto na
são referidas nos cursos de magistério, busca de reconhecimento quanto de
as crianças das classes desprivilcgiadas salários e tratamento iguais aos dos
representam um desafio ao qual as homens. Esta é, pois, uma idéia que não
professoras não conseguem responder. se pode desprezar ao examinar uma
Também aqui o ensino é superficial, carreira feminina, como é o magistério.
aligeirado, pré-programado. Creio que na denominação que as
Sem ser dona do seu trabalho, (os) próprias (os) professoras (es) têm se
devendo seguir não só um programa, atribuído nas últimas décadas no Brasil
objetivos e normas pré-estabelecidos, há um indicador destas mudanças. A
mas também um livro texto que deter­ "professorinha normalista" foi subs­
mina as atividades, questões e as respos­ tituída pelo termo amplo de "educa­
tas corretas, esta professora vive, sem dora", depois (nos anos 70) pelos
dúvida, uma situação profissional muito "profissionais do ensino", e mais recen­
diferente e distante do professor au­ temente (anos 80) pelos "trabalhadores
tônomo dos primeiros tempos, ou mes­ da educação".
mo da educadora dos anos 40. Ocorre Parece-me, portanto, que tudo isto
aqui um processo como o que Apple aponta para a constatação de que a
descreve nos Estados Unidos, onde se prática docente é hoje muito diferente
pode perceber "desqualificação do daquela do início do século, não só pela
trabalho", "separação entre concepção e forma como ela é organizada, mas tam­
execução" e "intensificação" (neces­ bém pelos seus agentes.
sidade de acelerar as �tividades pelo As diferentes nomenclaturas também
aumento de testes, papéis, fichas, etc.) dão uma pista de novas superações. Ê
(Appele, 1987). E se estes fatos levam a provável que o tecnicismo e a (assim
uma degradação do trabalho, possivel­ chamada) profissionalização dele de­
mente em nosso País eles são mais acen­ corrente não representem mais, no
tuados pelas condições extremamente Brasil, a tendência dominante no magis-
37
tério e, em seu lugar, esteja se colocando muitas vezes de forma significativa,
a compreensão da situação de traba­ ao longo do tempo. ( ) Ê impe­
•••

lhadores que hoje compartilham profes­ rativo portanto indagar se o que veio
soras e professores com membros de infelizmente a se chamar de fe­
outras categorias profissionais. minização do magistério se refere
A doação e o sacerdócio cederam realmente à mesma ocupação" (Ap­
lugar à reivindicação por melhores con­ pie, 1988, p. 16) (grifos do autor).
dições de trabalho e salários. A imagem
de mãe substituta (ou tia?) está sendo
substituída pela de trabalhadora as­ Acredito que esta é uma. área impor­
salariada e sindicalizada. Mas haverá tante a ser investigadl'. rl imagem de
por parte das professoras o reconhe­ centenas (e até milhares) de professoras
cimento efetivo desta transformação, ou lotando os estádios em assembléias,
não? Não terá esta nova situação (talvez promovendo passeatas e vigílias de
não tão nova) implicações diretas no en­ greve, ou tentando acordar com suas
sino? sinetas os governantes do estado é muito
Apple fala na contraditória loca­ diferente do antigo modelo pregado
lização de classe dos professores e pelas escolas normais. A surpresa de C.
professoras e afirma, junto com Wright, Drumond de Andrade com uma greve
que "é sensato considerar esse grupo em Minas Gerais, em 1 979. é ilustrativa:
como localizado simultaneamente em
duas classes", partilhando tanto dos in­
teresses da pequena burguesia quanto
do proletariado. Ele vai ainda além, "U ma greve não é acontecimento
chamando atenção para o fato de que comum no Brasil. Se a greve é de
estas pessoas são de um gênero espe­ professores, trata-se de caso ainda
cífico: mais raro. E se os professores são
mineiros, o caso assume proporções
"Em toda categoria ocupacional, as de fenômeno único.
mulheres estão mais sujeitas a serem O que teria levado as pacatas,
proletarizadas do que os homens. dóceis, 'modestíssimas professoras da
Isto pode ser devido a práticas capital e do interior de Minas
sexistas de recrutamento e pro­ Gerais a assumir esta atitude, senílo
moção, à tendência geral de se dar uma razão também única, fora de
menor importância às condições de qualquer motivação secundária e
trabalho das mulheres, à forma pela circunstancial? U ma razão de
qual o capital tem historicamente sobrevivência?" ( Drumond apud
tirado proveito das relações patriar­ Novaes, M., 1984, p. 60),
cais, e assim por diante" (Apple,
1987, p. 5).

Os dez anos que nos separam desta


Em tudo isso, na realidade brasi­
fala tornaram algumas das expressões
leira, parece-me que há muitos aspectos
usadas por Drumond superadas. Hoje as
pouco claros sobre a situação concreta
greves são acontecimento comum no
do magistério e de seus agentes. Pro­
Brasil e, dentre elas, as greves de
vavelmente estamos com freqüência
professoras. A muitas delas certamente
lidando com uma realidade nova a par­
também não são adequados adjetivos
tir de características e estereótipos for­
como pacatas ou dóceis!
jados no passado e que obviamente não
Entender, portanto, quem está nas
têm condições de ajudar-nos a com­
salas de aulas, como está organizando
preender a situação atual.
seu trabalho, qual seu grau de auto­
Ainda citando Apple:
nomia ou a quem se subordina, o sen­
tido ou a representação que tem deste
"No fundo, pode ser que nílo es­ trabalho, são algumas questões indis­
tejamos descrevendo a mesma pensáveis. E esta realidade só poderá ser
ocupação, depois que o magistério entendida, é claro, se for examinada em
primário virou trabalho feminino. f: conjunto com as transformações sociais,
que as ocupações se transformam políticas, econômicas maiores.

38
REFER�NCIAS BIBLIOGRÁFICAS magistério" in Cadernos de Pesquisa. S. Paulo
(64):4-13. fev. 1988.
APPLE, M. "Relações de Classe e Gênero e Modi­ LOURO, G. Hist6ria, Educação e Sociedade no Rio
ficações no processo de Trabalho Docente" in Grarule do Sul. P. Alegre, Eduroção e Realidade
Cadernos de Pesquisa. S. Paulo (60):3- 14, fev. Ed.,I987.
1987. MOACYR, P. A Instrução e as Provfncias.
-___ . "Ensino e Trabalho feminino: uma 1834- 1889. S. Paulo, Cia Editora Nacional,
análise comparativa da Hist6ria e Ideologia" in 1940.
Cadernos de Pesquisa. S. Paulo (64): 14-23, fev. NOVAES, M. E. Professora primária: mestra ou
1988. tia? S. Paulo, Cortez e Autores Associados,
ARROYO, M. "Operários e Educadores se identifi­ 1984.
cam: que rumos tomará a Educação Brasileira?" PERROT, M. Os exclufdos da Hist6ria: Operários,
in Educação e Sociedade. S. Paulo Cortez e Mulheres e Prisioneiros. R. Janeiro, Paz e Terra,
Autores Associados, Ano 2(5), jan. 1980. 1988.
BRUSCHINI, C. e AMADO, T. "Estudos sobre SAFFIOTI, H. A Mulher na sociedade de Classes:
mulher e educação: algumas questões sobre o Mito e Realidade. Petr6polis, Vozes, 1979.

* * *

Guacira L. Louro é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do


Sul.

39
,," _ --J� ,) ", " " ." : J" ,

A iuta emancipatória entre os


c!Jtadores de lixo na periferia
de Porto Alegre: a
provisoriedade da educação
pelo trabalho
NILTON BUENO FISCHER

gerência de agências externas ao mo­

E
vimento popular, procurando dar-lhe
regras de ação. Situam-se nesse caso as
,ta reflexão p.,te de um conjunto soluções oficiais dos organismos apa­
de sentimentos meus frente a concretude gu
zi adores e desmanteladores do mo­
da situação vivida por famílias que vimento popular - vindos da esfera
trabalham na catação de lixo em Porto pública. Esse assédio se combina com os
Alegre. intelectuais viajeiros internacionais que,
Quando a gente se envolve com na procura do exótico tropical e tupi­
situações concretas do cotidiano das niquim, trazem soluções recheadas de
classes subalternas, emergem sentimen­ recursos financeiros e controle social.
tos vários que desafiam nossa racio­ Esse impasse, além do primeiro men­
nalidade de intelectuais. Precisamente cionado, é de um impacto terrível, pois
nas condições subumanas vividas pelos consegue desmobilizar o povo e intelec­
catadores de lixo de Porto Alegre surge tuais através do disfarce das migalhas.
um impasse: ou remeter a solução sempre Além disso, outro limite se impõe ao
para a situação estrutural e ao mesmo educador popular especialmente nessa
tempo distante, ou procurar o encontro sua prática: trata-se da transposição
com o possível, com o imediato. O mecânica de caminhos percorridos pela
amanhã para mim tem um tempo de an­ Nicarágua e Cuba. Nesses dois países
tecipação e de programação, enquanto encontram-se formas concretas de aliar
que a organização do amanhã para o educação e trabalho através da criação
catador é, no máximo, a manutenção de de unidades produtivas dentro do
uma rotina onde o imprevisível sempre es­ próprio espaço da escola: as hortas,
tá presente. oficinas e até mesmo a colheita do café
Busco, pois, entender junto com esse e/ou cana-de-açúcar. Onde estaria a
segmento popular como, através deste diferença entre tais iniciativas e as
tipo de trabalho, é possível acontecer o propostas pelo Estado e agências inter­
processo educativo, pela superação do nacionais?
vivido hoje coletivamente pelos cata­
dores, sem perder a perspectiva de
modificações estruturais aparentemente Educação e Trabalho: breve
mais distantes. retrospectiva
Ao mesmo tempo que esta é uma
busca metodológica de educação po­ Estes impasses podem também ser
pular genuinamente nascida na prática relacionados com a evolução que a
cotidiana de educadores e a população, temática Educação e Trabalho vem ten­
tem-se enfrentado uma permanente in- do nos últimos anos, em particular des-

40 EDUCAÇAO E REALIDADE, Porto Alegre, 14(2):40-45,julldez. 1989


de a I1� CBE de Belo Horizonte em formação do trabalhador acontecia fora
1982. Foi um d o s m om e ntos mais da escola, p redominantemente nas
pródigos que fertilizaram definitivamen­ relações entre os próprios trabalhadores
te esse terreno de discussão teórico­ entre si e este em confronto diuturno
metodológica e, ao mesmo tempo, de com as amarras do capital.
entrelaçamento c o m o político da Na seqüência cronológica de encon­
educação. Como exemplo desses encon­ tros nacionais nos quais a Educação e
tros cito aqueles que contaram com a Trabalho foram motivo de inovações e
participação competente e engajada de aprofundamentos teóricos, surge uma
Gaudêncio Frigotto e de Maurício Trag­ reunião no CNPq com a coordenação da
temberg. Acácia Kuenzer. O "estado da arte" na
Os painéis onde os dois colegas área foi construído pelo coletivo dos pes­
atuaram, trouxeram a questão d a quisadores presentes. Entre algumas
educação d o trabalhador d e forma com­ contribuições que se esboçavam nos
plementar. De um lado no "pelas mãos debates aparecia o NoseUa já trazendo o
fazendo a cabeça do trabalhador ". "nâo trabalho" como elemento neces­
Gaudêncio destacava a função entra­ sário para o entendimento das resistên­
nhada que o ensino técnico do SENAI cias operárias. Mas é através da análise
carregava quando ensinava o "fazer". pausada e forte do Cândido Gzybowsky
Numa exposição que trazia esse cons­ que se agrega ao corpo de conteúdos
tante argumento coube à platéia o papel para análise a necessária e indispensável
de esclarecimento e superação, quando presença dos movimentos sociais. Então,
alguém perguntou: como se poderia ex­ Educação e Trabalho se enriquece com
'
plicar que "dos treze sindicalistas do o "não trabalho "(tempo livre) e com a
ABC condenados na Lei de Segurança influência forte, nesse campo, da ação
Nacional, nove passaram por cursos de dos movimentos sociais. No caso do
aprendizagem do SENAI-São Paulo "? Cândido, o ponto de partida se confi­
Era a manifestação que desvelava tam­ gura nos movimentos sociais do campo,
bém a posição do autor: o conhecimento onde sua análise se efetua, mas tainbém
adquirido pode até produzir sujeitos se adequa aos movimentos urbanos
conformados (o conhecimento em si tal­ ("continuum" do José de Souza Martins
vez faça isso), mas mais forte do que ele ajuda nesse momento - entre o rural e
é o que acontece no mundo do trabalho, (I urbano).

no cotidiano operário, onde a consciên­ Essa retrospectiva carrega consigo um


cia se constitui. Num outro painel, o movimento que reflete as discussões em
professor Tragtemberg, muito carac­ cenários privilegiados, onde a produção
terístico pelo seu estilo de independência acadêmica tem sua ressonância am­

às normas, introduziu no espaço aca­ pliada. S ab e mos existirem outras


dêmico daquela reunião os depoimentos manifestações desse fenômeno em es­
concretos de operários lá presentes. Vale paços localizados regionalmente mas
mencionar a riqueza do argumento do fora do circuito de distribuição de saber
Brito, quando expressa quase o mesmo acadêmico. Mesmo assim, é possível
tipo de argumento surgido na exposição aceitar esse movimento das reflexões
do Gaudêncio: "o poder revolucionário sobre educação e trabalho como re­
do paquimetro" Em outras palavras era
,
presentante da tendência nacional.
a educação pelo trabalho no trabalho Então, os limites e impasses regis­
real, no espaço da fábrica. Mas esse trados acima (mesmo com a omissão de
painel (mesa-redonda) teve outra con­ alguma experiência não registrada nos
tribuição - a introdução feita pelo fóruns nacionais) permitem extrair entre
Tragtemberg em situar o papel do in­ outras conclusões o seguinte: há um
telectual fazendo uma analogia com a privilegiamento do espaço fabril e con­
expressão dos peões em relação aos seus seqüentemente do trabalhador urbano já
mestres: "cagar linha , ou seja, impor
" com níveis de organização consolidados.
ordens sem discuti-las previamente. Es­ Nosso relato é sobre o elo mais fraco
tava nessa apresentação o primeiro dessa corrente que constitui as assim
choque sobre o papel único da escola chamadas classes populares: o lumpen
que nós educadores tanto acreditáva­ - refletido na existência concreta do
mos, ou seja, a aprendizagem para a catador de lixo.

41
Vale ressaltar aqui o continuum da com bom ou mau tempo, permeado por
constituição da classe trabalhadora ex­ celebrações religiosas e por (des) encon­
presso nas análises de Oliveira (1981) e tros do afetivo, - aquela referência do
Kowarick (1987) a respeito do setor lixo impregna-se de tal forma que o
"marginal da economia" onde tais olhar sempre está atento ao que possa
trabalhadores existem. O conceito es­ representar sobra (que se torna sinô­
tático e fechado de classe impede uma nimo de matéria-prima) e sobrevivência.
análise desse segmento popular. Se faz Para a superação do que seja "mar­
necessário a colaboração de Thompson ginal"", no conjunto da produção eco­
(1987) que na introdução de seu livro nômica, como sendo algo fora do modo
traz um enfoque de . 'constituiçào' " de de produção capitalista, as críticas de
formação de uma classe como parte in­ Oliveira são suficientes - mas para a
dissociável para seu entendimento. Com noção de "marginal" como sinônimo de
isso e também um artigo de Hobsbawm preguiçoso, indolente e vagabundo -
sobre os sapateiros revolucionários, quem nos auxilia? É exatamente alguém
ousamos uma tentativa de abordagem como Kowarick que já auxiliou na
antropológica para descrição da cons­ análise econômica anterior tanto quanto
trução de identidade desse grupo de Oliveira ele recupera a história da noção
trabalhadores. de vadiagem imposta ao escravo liberto
e que até hoje ainda permanece nas
representações sobre o trabalhador
Constituição - construção de uma nativo.
identidade A identidade então S( (vlbtitui por
reação a esse tipo de estigma imposto
Tanto para o agente de educação pelo senso comum - mas muito tam­
popular quanto para a própria popu­ bém pela própria atividade cotidiana, na
lação envolvida se faz necessária a qual os catadores são determinados a
procura de um entendimento de como agir permanentemente para a garantia
um setor da classe trabalhadora constrói do mínimo para sobreviver. Este é um
sua identidade. Isso exige do educador momento importante para ser com­
uma qualificação de ampliação de seus preendido por aqueles que trabalham,
sentidos ao extremo para poder captar como educadores populares, junto com
as manifestações, no seu cotidiano, da esse segmento das classes subalternas. É
cultura popular. Sem "a prioris" de que, em contraste com o estereótipo da
modelar esses registros é possível se vadiagem, neste caso, estes sujeitos se
atingir ao que Brandão (1988) denomina defendem por uma ação individual de
de "cultura em processo" como a trabalho constante. A questão se encon­
maneira mais adequada para se superar tra mais na instância da combinação
o estático contido no termo "cultura desses sujeitos num projeto cooperativo,
popular", ou seja, para o "quebrar da ou seja, em relação ao trabalho o ca­
embalagem pronta" desse conceito e tador não se omite a essa ação, mas sim
"para lidar com o que vem sendo cul­ na sua forma organizada cooperati­
turalmente vivenciado nas elaborações vamente.
cotidianas" . Combinado com o item acima temos,
A partir disso se pode entender, por parte da constituição da sua iden­
sempre com os limites da provisorie­ tidade, o acesso à mobilidade, através
dade, como a catação do lixo preside a da representação dos outros catadores
constituição de �·.as identidades. Com o hoje com segurança econômica garan­
auxílio do texto riquíssimo de Luiz Fer­ tida. É interessante que isso não ocorre
nando Dias Duarte (1987) se pode en­ por uma superação de um polo oposto,
tender como o viver do lixo qualifica a como na fábrica através dos capitalistas­
unidade produtiva familiar. Crianças e empregadores. Existe, entre os pro­
adultos, em diferentes e complementares dutores de lixo (industrial e/ ou domés­
tarefas, atuam nas ações que vão de tico) e os catadores, um conjunto de in­
coleta na rua até a comercialização, e is­ termediários que, a partir do recolhi­
to passa a ser uma rotina que perpassa mento de um lixo privilegiado, se tor­
as mais diversas instâncias do cotidiano. navam donos de alguns setores (por
Do levantar ao dormir, na casa e na rua, exemplo: aparas de papel da indústria,

42
ou de bancos) que lhes garantem uma (nativos) existia (no tempo em que a
atividade sem interrupções e com es­ pesca propiciava a ação coletiva e neces­
quema de vendas garantido. Existem até sária entre os pescadores: preparar o
conflitos abertos entre estes catadores­ barco; lançar as redes e retirá-las. A
ricos que mantém um mercado cativo distribuição do excedente também
não permitindo qualquer novo con­ ocorria da pesca).
corrente. Mas a imagem de que o lixo Nesse conjunto de concretudes -
produz riqueza, através do já acontecido formação da identidade desse segmento
com seus "ex-colegas" também é ali­ das classes subalternas - surge o papel
mentada pelo mito do tesouro escon­ da educação pelo trabalho num ato
dido. Correm histórias fantásticas de produtivo e coletivo, num espaço físico
descobertas de jóias, talheres de prata, que é também seu local de moradia.
dinheiro, etc., entre os restos dos lixos Num galpão comunitário, se estabe­
domésticos. A ascenção social, possível e lecem as primeiras discussões através da
individual, rotineiramente compõe o palavra compartilhada e das propostas
referencial que permite, trabalhando reais de ação no campo produtivo.
num setor como esse, compensar o É nesse momento que a proposta do
caráter de "serviço sujo" pelo milagre, mutirão desafia as análises feitas "de
pelo inusitado. fora ", Nós, pesquisadores, costumamos
Na trajetória diária dos catadores em não privilegiar em nossos estudos esses
suas pequenas carroças, entre as ilhas e sujeitos como significativos num proces­
as zonas centrais de Porto Alegre, se so de transformação social. Apesar de
fortalece a imagem que a família tem de que o caminho percorrido nos encontros
si, vis-a-vis aos outros espaços e às como as CBEs e ANPEds tem demons­
outras pessoas. É contrastante essa trado em parte a superação desse tipo de
cena: - os catadores se vestem com limite. Mas quando tais anáijses "en­
roupas caracteristicamente escuras e até quadram" no terreno do dispensável as
rasgadas pelo seu uso de segunda mão e tentativas de educação pelo trabalho,
lavadas nas águas poluídas e barrentas do como um retrocesso no caminho de
rio Guaíba. Outra comparação que se es­ mudanças e até mesmo como sendo tais
tabelece é entre os animais que compõe a soluções um exemplo de paternalismo
caravana dos catadores, cavalos e muitos por parte do Estado, é necessário buscar
cães e os animais de estimação das fa­ um esclarecimento numa reflexão crítica
mílias das residências da cidade. Mas e qualificada de José de Souza Martins
além desses e outros contrastes, como por (1986). Um momento de rara sensi­
exemplo o ato de comer restos de co­ bilidade, motivado por seu engajamento
midas, existe o momento da volta ao seu teórico e concreto, permite uma com­
local de origem: a periferia. Em outras preensão do caráter provisório (mas
palavras, a cada dia parece se renovar o necessário) do cooperativo, via mutirão,
sonho da aproximação com outras si­ no momento conjuntural em que vi­
tuações mais ricas e isso se interrompe vemos no Brasil de hoje. Tomei a liber­
também diariamente no momento da vol­ dade de trazer a referência do mutirão
ta. Como num ato de resignação ao mun­ como solução encontrada pelos pe­
do real, o catador volta para sua residên­ quenos produ tores rurais, análise feita
cia para relatar o mundo dos outros para por Martins e tentei adaptá-la ao setor
seu grupo familiar. O papel do homem se "lumpen " ,
fortalece, pois a ele cabe trazer o "recur­ Mas qual a contribuição desse tipo de
so" econàmico para casa e a isso se associa análise? Respondo em primeiro lugar
deter a informação sobre o mundo exter­ para a quebra do sentimento de impotên­
no, deixando a mulher em situação de cia anunciado no início deste artigo. Vejo
dependência. que mais do que uma contribuição
Outro as pecto significa tivo que se analítica (ampliando a necessidade de se
icrifica é o irucio da consti tuição de uma rever conceitos cristalizados de classe
comunidade. O espaço do "nosso" em social) é a possibilidade do educador
oposição ao "deles" está se formando a popular superar seus limites impostos por
partir da situação histórica e concreta de manuais prescritivos (por exemplo: da
estarem os catadores morando em ilhas, Editorial Progresso ou de Cartilhas dog­
onde a tradição comunitária dos ilhéus máticas em termos de soluções).

43
Ora, não é por vontade de, gra­ Com essa perspectiva, e nos munin­
tuitamente, 'pichar esse tipo de ação
. " do de referências teóricas e metodo­
junto aos setores populares, mas sim é lógicas de au tores que se debruçam
pelo enorme leque que compõe a Cul­ sobre questões nessa área, como Bran­
tura Popular ("em processos ) o qual
' dão e Martins, é possível compreender­
demanda uma vigilância teórico/ me­ mos as proposições, sempre polêmicas,
todológica, de Miguel Arroyo. É nesse final que
surge a esc ola para nossa análise.
Por último vale salientar que, nas
Arroyo tem permanentemente desafiado
ações de educação popular, as represen­
os educadores messiânicos, ou seja,
tações sobre ESTADO se transformam
aqueles professores e intelectuais que
na prática, De um grupo "margina/" em
pensam na transformação ao nív�l do
completa dependência das benesses ,.
discurso articulado, como se suas ldelas
(migalhas) do Estado se vão agrupando
fossem o único referencial para o desen­
pessoas em situações educativas - pelo
cadear das consciências. Especialmente
trabalho - com um projeto superador
a concepção de escola que setores bur­
de sua situação dependente. Não há
gueses têm, como sendo o local privi­
nenhuma vontade de se parar no proces­
legiado para a adequação à sociedade,
so educativo ao ponto de remeter o
para os assim chamados "marginais"
"trabalho com o lixo" para o exótico
-

combina-se com os de alguns colegas


contemplativo das agências de finan­
progressistas (ditos) que, a partir da
ciamento, seus intelectuais daqui e os
confusão entre conteúdo e conhecimen­
internacionais. Pelo contrário, é a chan­
to ' transformam o primeiro como o
ce de usar o provisório, para resolver o
ca minho para a mudança social. Mais
imediato, e para propor também o
do que nunca Arroyo provoca a todos
futuro. Exemplo de sensibilidade nesse
nós, devolvendo ao Estado a respon­
campo de educação popular encon­
sabilidade sobre a materialidade da es­
tramos no texto do Victor Vincen t Valia
cola pública e alerta os professores para
(1987) sobre a "questão da verba
não cairem nas soluções acomodadoras
POBLICA , um dos reais caminhos
que partem do discurso pedagógi�o:
"

para que o Estado deixe de ser aquela


sem negar a existência da escola e Slm
instituição "doadora" de bens (e votos),
trazendo para ela a função que lhe cabe,
para ficar na posição de cobrança dos
. como espaço de realização das indivi­
direitos de uma população explorada. E
dualidades dos seus alunos, e levando a
por aí que noções de direito (como
questão da conscientização para o ter­
direito sobre a propriedade) deixam de
reno da luta concreta do trabalhador.
ficar ao nível do jurídico para ser o
'No caso, também serve a apropriação
direito "moral". Nesse momento a
noção de direito exige, do analista e do
que faço de um termo que Ma lia �
Sposito trouxe de Lefebvre: terrlto­
educador popular, um conhecimento
rialidade. Nessa perspectiva o embate
que transcenda o referencial legalista do
entre os interesses das classes subalter­
termo; mais uma vez Martins nos es­
nas em relação à escola deixa de ser
clarece sobre esse item quando de suas
travado no espaço físico da escola para
análises a respeito da questão da terra e
se efetivar nos outros locais da existência
dos lutos no campo.
de seus freqüentadores: o Sindicato, a
fábrica, o salão de festas, etc. Nesse
outro terreno a escola, estará enfrentan­
Concluindo: do um novo código, sendo questionada
em seu papel de representante oficial do
Estado. Nessas duas idéias, de Arroyo e
Para concluir este ensaio posso afir­
Sposito, fica clara a contribuição par� a
mar que, utilizando a noção de "cultura
análise sobre os catadores: o educativo
e m processo do Brandão (1988),
obtido cotidianamente no aprendizado
..

precisamos ultrapassar os limites das


"pelo trabalho" existe num campo fora
soluções prontas e ao mesmo tempo do
da instituição escola. As questões da es­
imobilismo, que provoca momentos ex­
cola passarão a fazer parte de um con­
tremamente ambíguos nas manifes­
junto maior de reivindicações e per­
tações da cultura popular em seu co­
mitirão um processo que, aos poucos,
tidiano.

44
respeitando ainda a "credencial" for­ REFER�NCIAS BIBLIOGRÁFICAS

necida por ela (o diploma - para con­ BRANDÃO, Carlos R. e NOGUEIRA, Adriano. A
seguir emprego) traga para si uma fun­ contribuição da Antropologia. In: Na escola que
trazemos. (org. P. Freire, A. Nogueira e D. Maz­
ção menos de "tem que ser" (moral da
za). Petr6polis, Vozes, 1988.
transformação crítica) para uma instân­ DUARTE, Luiz Fernando Dias. De bairros operá­
cia possibilitadora de encontros entre rios sobre cemitérios de escravos: um estudo de
sujeitos reais. O exemplo da Francisca construção social de identidade. In: Cultura e
Identidade Operdria (aspectos da cultura de
no texto de Haddad (1987) evidencia es­ classe trabalhadora). Coord. pl José Sérgio Leite
te fato já acontecido com a escola e o Lopes. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ. Museu Nacio­
trabalhador de setores "menos nobres" nal Marco Zero, 1987.
HADDAD, Sérgio. Ensino Supletivo Noturno. In:
do mundo do trabalho ("as domésti­ Da escola carente a escola possfvel. São Paulo,
cas"). Loyola, 1987.
KOWARICK, Lúcio. Movimentos Urbanos no
Brasil Contemporâneo: uma análise da literatu­
ra. In: Revista Brasileira de Crencias Sociais. São
Concluindo, o provisório está na ul­ Paulo, vol. 1, n2 3, fevJ1987.
trapassagem do atual estágio da con­ MARTINS, José de Souza. Não há terra para plan­
tar neste vertIo. Rio de Janeiro, Vozes, 1986.
dição de trabalho dos catadores. O OLIVEIRA, Francisco de. O Elo Perdido, Classe
mutirão além de ser uma organização Social e Identidade de Classe. São Paulo, Brasi­
material de produção frente ao emer­ liense, 1987.
---- . Economia Brasileira: crftica à razão
gencial da sobrevivência, é o projeto que dualista. 4! ed. Rio de Janeiro, Vozes, Cebrap,
se gesta de uma nova organização social. 1981.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operdria
O provisório exige dos intelectuais sen­
inglesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra. A árvore da
sibilidade na superação de conceitos liberdade. vol. I, 1987.
cristalizados sobre o real. VALLA, Victor Vincent. A Questão da Verba PÚ­
blica, Petr6polis, Vozes, 1987.

* * *

Nüton B. Fischer é professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do


Sul.

45
"nós" que decidiu que essa reunião

M Uito embora tenha havido um


progresso substancial nos últimos vinte
particular de conhecimentos era
apropriada? Que conjuntos de supo­
sições sociais e ideológicas definem o
anos em nossa habilidade para examinar conhecimento de alguns grupos como
criticamente o sistema educacional e seu sendo legítimo enquanto o conhecimento
funcionamento interno, há ainda um de outros grupos não é nunca oficial­
número considerável de educadores que mente transmitido? Como a distri­
vêem o currículo de uma nação, região buição, produção e controle de co­
ou escola como um corpo neutro de co­ nhecimento está relacionada às es­
nhecimento. De acordo com essa visão, truturas de desigualdade na sociedade
o currículo é constituído pelos fatos, mais ampla?
habilidades e valores que "nós" sele­ Naturalmente essas não são questões
cionamos para transmitir às gerações fáceis de serem respondidas, por uma
futuras. Na verdade, há um fortaleci­ série de razões. Primeiramente, pelo
mento dessa posição, em parte esti­ fato de que muitos educadores ainda
mulado por uma renovada ênfase na or­ tendem a tratar o curriculo simplesmen­
ganização do currículo em torno de um te como "conhecimento a ser apren­
conteúdo central que todo cidadão dido" (aquilo que tem sido chamado de
rleveria suoostamente conhecer. a "tradição do rendimento" na área do
A popularidade de livros tais como o currículo)( 3), os tipos de questões que
de E.D. Hirsch, Cultural literacy) 1) _ eles normalmente fazem são técnicas.
com sua listagem do conhecimento con­ Elas dizem respeito às questões do
sensual que todos os indivíduos devem "como", não do "por quê". As questões
saber se quiserem ser considerados como de técnica são importantes e precisam
"culturalmente alfabetizados" - e o ser feitas; mas, uma vez que a escola
movimento em direção a um currículo não está divorciada das relações de ex­
central nacionalmente estabelecido na ploração e dominação na sociedade e
Inglaterra mostram o apoio crescente das lutas para superá-la, devemos per­
que essa posição vem novamente ga­ guntar o quê constitui um conhecimento
nhando. Entretanto, como a literatura política e eticamente justificável antes
da sociologia do conhecimento escolar que nos lancemos a ensina-lo. Em se­
tem tão claramente indicado, essas gundo lugar, a fim de responder essas
suposições do senso comum a respeito questões mais criticamente orientadas
do consenso e da neutralidade encobrem devemos ter um quadro muito mais
as realidades do poder e do conflito que preciso das dinâmicas de classe, gênero
fornecem as condições para a existência e raça e dos antagonismos que organizam
de qualquer currículo (2). Quem é o a sociedade. Finalmente, necessitamos
ter um quadro mais claro do funcio­ tões "políticas" mais amplas. Ele iden­
namento social contraditório da própria tifica quatro categorias desse tipo de
escola, algo que é dificil de se obter, questões. Embora não mais que tipos
dadas as enormes pressões econômicas, ideais, elas incluem:
políticas e educacionais exercidas sobre
as pessoas que trabalham nas escolas
simplesmente para que se envolvam em (...) política estrutural centrada na
estratégias melhorativas cotidianas. natureza e na intensidade do alinhamento
da escola com a economia (por exemplo,
Tudo isto tem implicações importan­
tes para a forma como vemos a questão conflitos a respeito da educação profis­

do que conta como conhecimento es­ sional) e conflitos a respeito da estrutura


das relações de autoridade dentro das es­
colar apropriado. Como produção
social, o curriculo escolar não pode ser colas (por exemplo, conflitos a respeito da
centralização da autoridade adminis­
entendido de uma forma positivista. Ao
trativa, sindicalização e profissionalis­
invés disso, ele precisa ser entendido
mo); política do capital humano gerado
relacionalmente, como tendo adquirido
pelos esforços de pais e comunidades para
seu significado a partir das conexões que
aumentar as taxas de retorno de seus
ele tem com as complexas configurações
filhos ou das crianças de suas escolas
de dominação e subordinação, na nação
relativamente a outras crianças ou outras
como um todo e em cada região ou es­
escolas; política de capital cul tural criada
cola individual. Este é o meu argumento
por conflitos a respeito de definições
básico neste breve artigo. Argumentarei
opostas de conhecimento legítimo, isto é,
que o curriculo não existe como um fato
conflitos a respeito da distribuição de
isolado. Ao invés, ele adquire formas
autoridade simbólica na sociedade (por
sociais particulares que corporificam
exemplo, conflitos a respeito do conteúdo
certos interesses que são eles próprios os
curricular ou sobre livros didáticos); e
resultados de lutas continuas dentro e
finalmente, a política de deslocamento,
entre os grupos dominantes e subor­
na qual as questões educacionais (com
dinados. Ele não é o resultado de algum
freqüência, mas nem sempre, conflitos do
processo abstrato, mas é o resultado dos
tipo capital cultural) tornam-se subs­
conflitos, acordos e alianças de movi­
titutos de outros tipos de conflitos não­
mentos e grupos sociais determina­
educacionais na comunidade (5).
dos.( 4)
Ao desenvolver este argumento,
sugerirei brevemente certas formas de As categorias de Hogan são impor­
analisar o conhecimento escolar. Apon­ tantes. Os conflitos a respeito do co­
tarei para o poder das dinâmicas de nhecimento, dos bens e serviços eco­
classe, raça e gênero como determinan­ nômicos e das relações de poder dentro e
tes, em parte, da forma e do conteúdo fora da escola são todos de extrema im­
do curriculo e para as complexas in­ portância. A fim de entender essas com­
terações entre as "esferas" econômica, plexas questões, precisamos deixar de
política e cultural na sociedade numa pensar as escolas como sendo locais que
época de enorme crise.. Eu afirmei, en­ procuram apenas maximizar o rendi­
tretanto, que seria impossível compreen­ mento acadêmico dos alunos. Ao invés
der completamente como os curriculos dessa perspectiva mais psicológica e
funcionam e como eles são produzidos a centrada no individual, precisamos in­
partir das relações de poder, conflitos e terpretar a escola de forma mais social,
acordos sem termos um quadro mais cultural e estrutural. Uma série de ques­
completo do que a própria escola faz nos tões organizam essas interpretações. O
países capitalistas. O que é que a que é que a educação faz neste contexto
educação faz? mais amplo? Quando ela o faz, quem se
beneficia?
Em geral, a investigação recente a
o que as escolas fazem respeito dos papéis social, ideológico e
econômico de nosso aparato educacional
tem apontado para três atividades nos
Como observa David Hogan, é difícil quais as escolas se envolvem. Embora
separar questões educacionais de ques- elas estejam claramente inter-
relacionadas, essas funções consis tem que as instituições principais de nossa
em auxiliar nos processos de acumu­ sociedade são igualitárias em termos de
lação , legitimação e produção (6). raça, classe e sexo. Infelizmente, os
Primeiramente, as escolas auxiliam no dados disporúveis sugerem que isto não
processo de acumulação ao fornecer al­ é bem assim. Na verdade, como uma
gumas das condições necessárias para a série de investigações têm demonstrado,
recriação de uma economia dirigida slogans pluralistas à parte, o que vemos
para a desigualdade. Elas fazem isto, é um padrão no qual os 20 por cento
em parte, através dos processos internos mais ricos da população consistente­
de classificação e seleção dos alunos com mente obtêm mais vantagens que os 80
base no "talento", reproduzindo assim por cento mais pobres (12). Consideran­
- através de sua integração num mer­ do a ressurgente política dos regimes
cado de credenciais (títulos e diplomas) direitistas nas sociedades capitalistas
situado num sistema de segregação Uf­ avançadas, essa disparidade pode ser
bana - uma força de trabalho hierar­ ainda mais exacerbada (13). Em essên­
quicamente organizada (7). Tem-se ar­ cia, embora a "sociedade capitalista
gumentado que, como os alunos são avançada" tenha de fato um certo grau
hierarquicamente classificados - uma de pluralismo, sua intensidade tem sido
classificação freqüentemente baseada grandemente exagerada e seu caráter
nas formas culturais dos grupos do­ tem mudado notavelmente à medida que
minantes (8) - a diferentes grupos de tanto os setores empresariais quanto os
alunos são ensinados diferentes valores, setores operados pelo Estado têm, de
normas, habilidades, conhecimentos e forma crescente, obtido o controle de
disposições, de acordo com sua raça, mais e mais segmentos de nossas vi­
classe e sexo. Dessa forma, as escolas das (14).
ajudam a atender a necessidade que tem Entretanto, o papel da escola no
a economia de uma força de trabalho processo de legitimação não está li­
estratificada e ao menos parcialmente mitado a fazer nosso sistema sócio­
socializada (9). econômico parecer natural e justo ou a
Neste ponto devemos ser bastante separar os grupos uns dos outros. Uma
cautelosos. Facilmente podemos fazer vez que as escolas também fazem parte
parecer que tudo que é relativo à das instituições políticas de nossa so­
educação pode ser reduzido às neces­ ciedade, parte do Estado, elas devem
sidades da divisão do trabalho ou das também legitimar a si próprias. Isto é,
forças econômicas fora da escola. Uma não somente a economia, mas o aparato
tal perspectiva - comumente chamada educacional e a burocracia estatal e o
de modelo base/superestrutura - é governo em geral têm suas próprias
demasiadamente simplista e mecanicis­ necessidades de legitimação. Eles tam­
ta( 10). Evitar esse reducionismo, en­ bém devem obter o consentimento dos
tretanto, não significa que não é ainda governados, especialmente desde que
essencial ter em mente que existem numa época de crise real nas relações de
conexões bem reais entre a economia e a autoridade e na economia, o próprio Es­
atividade de classificação e seleção tado torna-se uma arena de grande con­
realizada pela educação. flito. Isto significa que a educação será
Em segundo lugar, as escolas são freqüentemente orientada por tendências
imp ortantes agências de legitima­ mais democratizantes que a economia
ção (ll). Isto é, elas são parte de uma capitalista. Assim, pode acontecer que
complexa estrutura através da qual os nem sempre a necessidade de legiti­
grupos sociais adquirem legitimidade e mação esteja em sintonia com a s
através da qual as ideologias sociais e exigências da economia. Isso complica
culturais são recriadas, mantidas e con­ consideravelmente a questão, mas não
tinuamente reeleboradas. Assim, as es­ será difícil encontrarmos exemplos desse
colas tendem a descrever tanto o seu fenômeno. Por exemplo, no relatório
funcionamento interno quanto o da patrocinado pelo governo americano,A
sociedade como sendo meritocrático e '1ation at risk, o qual, em quase todas as
levando inexoravelmente à j u s tiça passagens, salienta as necessidades da
econômica e social generalizada. Dessa "re-industrialização" e do capital, há
forma, elas reforçam a crença social de uma opção consciente no sentido de
evitar o elitismo de reivindicar mais tamentos atomizados, como é freqüen­
separação das turmas de estudantes por temente o caso hoje, muitas práticas
"habilidade"(tracking) e mais verbas escolares reduzem também a esfera cul­
para a educação de superdotados. O tural (a esfera do discurso democrático e
relatório, ao invés disso, de forma geral, das compreensões coletivas) à aplicação
decide enfatizar a elevação da qualidade de regras e procedimentos técnicos. Em
para o "estudante médio". Se procedesse essência, também nesse caso questões
de forma diferente, o relatório teria sua referentes ao "por quê" são transfor­
aceitabilidade ameaçada. madas em questões referentes ao
Finalmente, o aparato educacional "como". Quando isso se combina com o
como um todo constitui um conjunto fato de que o ensino do conflito está
importante de agências de produção. usualmente ausente do currículo, o
Esse é um argumento um tanto com­ debate e a conscientização política e
plexo, mas seus pontos básicos são bas­ ética são substihúdos pelas ideologias
tante claros. Nosso modo de produção, instrumentais (16). Nessas circunstân­
distribuição e consumo requer IÚ veis cias, os papéis ideológico e econômico
elevados de conhecimento técnico/ ad­ das escolas freqüentemente se cruzam.
ministrativo para a expansão de mer­ Ao dizer isso, entretanto, outra vez
cados, para a indústria armamentista, devemos ser bastante cuidadosos para
para a criação artificial e a estimulação não cair na armadilha do economicismo.
de novas necessidades de consumo, para A pró pria noção de que o s i stema
o controle e divisão do trabalho e para educacional contribui para o processo de
as inovações comunicativas e técnicas produção de conhecimento econômica e
necessárias para aumentar ou manter a ideologicamente útil aponta para o fato
participação da empresa no mercado ou de que as escolas são tanto instituições
para aumentar as margens de lucro e, culturais quanto econômicas. Ao definir
de forma não menos importante, para o o conhecimento de certos gru (> os como
controle cultural (15). As escolas e as legí timo para a produção e di stribuição
universidades acabam por ajudar na enquanto o conhecimento e tradiçõeç n"
produção desse conhecimento. Como outros grupos são considerados im­
centros de pesquisa e desenvolvimento próprios como conhecimento escolar, as
cujos custos são socializados (isto é, escolas contribuem não apenas para a
repartidos entre todos nós de forma que produção de conhecimento técnico/ad­
o capital não tenha que pagar a maior ministrativo útil, mas para a reprodução
parte do custo) e como campo de da cultura e das formas ideológicas dos
treinamento para os futuros empregados grupos dominantes.
da indústria, as universidades, por Mesmo assim, entretanto, como a
exemplo, exercem um papel essencial no pesquisa recente sobre a cultura dos
processo de tomar dispoIÚvel o co­ jovens de classe trabalhadora tem de­
nhecimento tecnicamente utilizável, do monstrado, os estudantes podem muitas
qual grande parte de nossas indústrias vezes rejeitar as ideologias e o conhe­
baseadas na ciência depende e no qual a cimento dominantes (17). A escola, nesse
indústria cultural está baseada. caso, s erve como um local para a
Ao mesmo tempo, o conhecimento produção de práticas culturais alter­
técnico/administrativo exerce um outro nativas ou de oposição. Essas práticas
papel, menos econômico, na educação. podem não servir de nenhuma forma
As próprias escolas estão crescentemente direta para as necessidades de acu­
dominadas pela ideologia tecnicista. Os mulação, legitimação ou de produção do
principais p rogramas curriculares, Estado ou do capital. Assim, exatamen­
pedagógicos e àe avaliação em uso, te como no caso das necessidades re­
digamos, nos Estados Unidos (e de­ lativamente autônomas de legitimação
vemos lembrar que os Estados Unidos por parte das instituições do Estado a
exportam esses programas e técnicas que me referi, existe uma dinâmica cul­
para um grande número de países) são tural parcialmente autônoma em
quase todos notavelmente comporta­ operação lambem nas escolas, uma
mentais e redutivos em sua orientação. dinâmica que não é necessariamente
Ademais, ao tentar reduzir todo o redu tí vel aos resultados e pressões do
conhecimento que é ensinado a compor- processo de acumulação de capital.
Essa breve descrição obviamente não reintroduzindo o ensino de "habilidades
esgota o que as escolas fazem. Entretan­ básicas", e assim por diante. Nesse
to, minhas principais asserções são: não processo, entretanto, outros segmentos
podemos entender plenamente o cur­ da população podem começar a perder
rículo a menos que primeiramente in­ confiança na autoridade e na legiti­
vestiguemos como nossas instituições midade do governo uma vez que o que
educacionais estão situadas numa con­ eles vêem nesse arrocho é realmente a
figuração mais ampla de poder eco­ criação de desigualdades e de redução
nômico, cultural e poli tico; e isso exige das possibilidades de progredirem. Nes­
que nos esforcemos por examinar as se caso, duas das funções da escola en­
dIferentes funções que elas cumprem em tram em conflito. A politica educacional
nossa formação social iníqua. Ademais, vê-se realmente apanhada numa si­
embora precisemos deslindar os vários tuação contraditória. Ela deve ajudar no
papéis que as escolas exercem, não processo de recriação de uma força de
devemos necessariamente supor que as trabalho econômica e ideologicamente
instituições educacionais serão sempre arrochada e ao mesmo tempo manter
bem sucedidas em levar a termos essas sua legitimidade perante outros grupos.
funções. Esse processos de acumulação, A necessidade que o Estado tem de
legitimação e produção representam consentimento, portanto, às vezes, entra
pressões estruturais sobre as escolas, em contradição com as pressões exer­
não conclusões garantidas. Em parte, a cidas sobre ele por condições econô­
possibilidade de que a educação possa micas cambiantes (18).
ser incapaz de levar a termo o que é Essa é, obviamente, uma leitura
"exigido" por essas pressões torna-se demasiado economicista de uma si­
mais factível pela circunstância de que tuação mais complexa. U ma análise
essas três funções são freqüentemente mais completa teria que incluir tanto as
cuntraditórias. Elas podem às vezes relações cambiantes de poder e prestígio
trabalhar umas contra as outras. dentro da própria "academia" quanto
Um exemplo atual talvez possa ser as pressões políticas e culturais geradas a
de utilidade nesse caso. Numa época de partir de baixo. Essas pressões são tam­
crise fiscal, numa série de paises a in­ bém geradas por diferentes grupos dentro
dústria tem exigido um número menor do Estado em favor de uma ênfase mais
de empregados com altos salários e fortemente controlada e "profissiona­
níveis elevados de educação. A neces­ lizante" na educação, algo que analisei
sidade descrescente de empregados com em outro trabalho (19). Entretanto, essa
níveis elevados de educação e os pro­ leitura serve para salientar o fato de que o
blemas das rendas decrescentes trazidos aparato educacional se vê freqüentemente
pela atual crise econômica têm criado no meio de uma série de demandas poten­
uma crise concomitante nas instituições cialmente conflitantes. "Resolver" um
educacionais e no governo. As classes conjunto de problemas pode exacerbar
dominantes e a indústria começaram a outros. Atacar abertamente os problemas
questionar a necessidade de se ter um da desigualdade econômica pode criar
número tão grande de estudantes com tensões por causa das outras funções que
uma educação geral. A própria base de a educação "deve" exercer.
aceitação dos moqos usuais de fun­ Entretanto, colocar o foco numa
cionamento da educa�ão está sob única exigência a ser supostamente
ameaça. Para fazer frente aos problemas atendida pelo sistema educacional - tal
do suporte monetário decrescente e do como, digamos, seu papel ideológico e
questionamento de suas ações, a bu­ econômico na reprodução da divisão
rocracia do Estado e seu apa rato social do trabalho - não fornece uma
educacional (estimulados pelas pressões interpretação adequada de sua posição
econômicas e pelos funcionários dos es­ como um local para outros tipos de
calões mais altos no próprio governo) ação. Como Roger Dale tem argumen­
estão introduzindo mecanismos alta­ tado de forma tão convincente, qualquer
mente centralizados de custo-benefício e das demandas postas sobre a educação
de prestação de contas, "critérios" mais somente pode ser plenamente com­
duros, verbas reduzidas para a educação preendida quando analisamos a relação
superior e outros "supérfluos", estão entre ela e as outras demandas estru-
turalmente geradas postas sobre a es­ poder cultural e econômico, as tradições
cola. E essas relações são freqüentemen­ residuais fornecerão, com freqüência, as
te contraditórias (20). Retornando à linhas principais do que será consi­
citação de Hogan feita no ilÚcio, po­ derado conhecimento legítimo e atuarão
demos ver que as forças e conflitos de forma a presidir tanto o estilo quanto
econômicos não explicam totalmente o o conteúdo da cultura de elite e seus
que a educação faz. Os conflitos a res­ possuidores.
peito de conhecimento e poder, a res­ Na França, por exemplo, tem havido
peito de cultura e política, cruzam-se tentativas para "modernizar" o sistema
com as determinações econômicas. educacional e vinculá-lo mais direta­
mente tanto às necessidades eviden­
ciadas na cultura emergente da nova
Poder e cultura classe média, que obtém avanços
através da posse de conhecimento téc­
nico/administrativo, quanto aos interes­
Considerando as pressõt:s freqüen­ ses dos grupos recentemente enri­
temente contraditórias exercidas soiJr� a quecidos. Entretanto, mesmo consi­
escola em geral, deveriamos esperar que derando esse movimento parcialmente
o próprio curriculo corporificasse essas bem sucedido, que gostaria de ver uma
demandas conflitantes. A própria "cul­ conexão mais estreita entre o curriculo e
tura oficial" da escola situa-se dentro o conhecimento economicamente útil, o
dessas relações de poder e de exigências sistema educacional - através de sua
contraditórias. Um conceito-chave é série de exames - coloca um valor cres­
a quele que Raymond Williams chamou centemente mais elevado na "cultura
de tradição seletiva (21). A partir de um geral", no estilo, nos "gostos" e no
universo inteiro de conhecimento pos­ capital cultural dos grupos de elite
�hel, somente uma parte limitada é tradicionais, à medida que se avança
reconhecida como conhecimento oficial, para os IÚveis mais elevados do siste­
como conhecimento "digno" de ser ma(24). Embora os parâmetros da cul­
transmitido às futuras gerações. En­ tura legítima ou de status elevado te­
tretanto, não é apenas o conteúdo que nham sido estabelecidos em torno das
deve nos preocupar. A forma do cur­ formas culturais residuais que carac­
riculo, o modo pelo qual ele é organi­ terizam a elite, a luta constante entre a
zado, também merece uma atenção elite tradicional e aqueles grupos que es­
cuidadosa. Tanto o conteúdo quanto a tão conseguindo ter algum controle
forma são construções ideológicas. Am­ sobre o conteúdo e a forma dos exames
bos representam a complexa conexão na significa a existência de grandes tensões.
qual o controle cultural tem um impor­ Aqueles que conseguem ingressar
tante papel (22). A seleção de ambos em algumas das escolas superiores de
constitui-se freqüentemente num acordo mais prestígio, entretanto, tais como as
produzido a partir das tentativas do sis­ grandes écoles, são reconhecidamente
tema educa cional para resolver os tidos como possuindo tanto o capital
problemas causados por seus papéis cultural residual quanto o capital cul­
contraditórios. O curriculo, portanto, tural emergen te. Há também uma
não será usualmente unitário, mas ele relação relativamente f orte entre o
próprio corporificará tendências con­ sucesso obtido pelos estudantes na
traditórias. corrida acadêmica dessas escolas e sua
Naqueles países com controle cen­ trajetória de classe. Grande parte dos
tralizado sobre o curriculo e com uma estudantes que se saem bem nessas es­
forte tradição de cultura de elite ou aris­ colas são já "possuidores" dos gostos,
tocrática, a forma e o conteúdo cur­ estilos e hábitos que estão corporificados
ricular dominantes conterão importantes nas tradições culturais de elite por causa
elementos dessas tradições eli tistas de suas histórias familiares (25).
residuais. Entretanto, eles freqüente­ Bourdieu explica desta forma como a
mente coexistem lado a lado com a cul­ cultura, os hábitos e os "gostos" de elite
tura eme rgente das tendências e frações funcionam:
de classe modernizantes da socieda­
de (23). Dependendo do equilíbrio do
A rejeiçio do divertimento balIo, este ponto mais adiante.
grosseiro, venal, servil - numa A situação é ainda mais complicada
palavra, natural - a qual constitui a naqueles países em que as autoridades
esfera sagrada da cultura, implica centrais têm menos controle sobre o
numa aflrmaçio da superioridade curnculo. Como demonstrei num artigo
daqueles que podem se satisfazer com anterior, nos Estados Unidos, por exem­
os prazeres subUmados, refinados, plo, em que o curriculo é geralmente
desinteressados, gratuitos, distintos, definido pelo livro didático, o controle
que estio para sempre interditos aos do curnculo reside num nexo complexo
profanos. Dai porque a arte e o con­ de forças, incluindo o mercado capi­
sumo cultural estio destinados, cons­ talista de publicações de livros didáticos,
ciente e deliberadamente ou nilo, a as decisões políticas e educacionais a
exercer a funçio soeial de legitimar as respeito da aprovação de livros didá­
diferenças soeia" ( 26) . ticos tomadas pelos distritos escolares e
estados individuais e lobby de grupos
Ele vai adiante, para dizer que essas de pressão (29). Isto faz com que a res­
fonnas culturais, "através das condições posta do Estado e do capital à presente
econÔmicas e sociais que elas pres­ crise seja mais difícil de ser coordenada
supõem ... ) estão ligadas aos sistemas e seja mais conflitiva.
de disposições (habitus) caracteristicos Assim, na ausência de um ministério
das diferentes classes e frações de clas­ central, a maioria dos distritos escolares
ses"(21). Assim, a fonna e o conteúdo nos Estados Unidos desenvolveu ob­
cultural funcionam como sinalizadores jetivos curriculares e programas pró­
de classe (28). A atribuição de legiti­ prios. Entretanto, o importante não são
midade a esse sistema de cultura, através esses objetivos e programas. O currículo
de sua incorporação �o currículo oficial efetivo, aquele que a maioria dos profes­
centralizado, cria, portanto , uma si­ sores tende a seguir, é co nsti tuído
tuação na qual os sinalizadores de "gos­ pelos livros didáticos padronizados,
to" tornam-se sinalizadores das pessoas. comercializados pelos grandes editores
A escola torna-se uma escola de classe. capitalistas. Aproximadamente vinte es­
tados têm mecanismos oficiais para
Entretanto, as crises são ameaças decidir quais livros didáticos serão aí
também para os sistemas de legitimação utilizados. Esses mecanismos usualmen­
cultural e, como observei, o poder da te tomam a forma de comissões poli­
cultura residual dos grupos de elite deve ticamente designadas, que então de­
competir sempre com a cultura emer­ cidem quais livros di dá ticos são
gente dos grupos poderosos novos dentro aprovados. Sob muitos aspectos essas
do Estado e da sociedade mais ampla. comissões realmente controlam a fonna
Assim, não se trata simplesmente de e o conteúdo dos livros didáticos para o
uma questão de interpretar a forma e o primeiro e segundo graus em todo o
conteúdo do currlculo como uma sim­ país, incluindo aqueles estados que não
ples express ão de dominação . Na têm comissões estaduais oficiais. Atual­
realidade, o fato de que as escolas são mente, o processo de seleção do livro
na verdade parte do Estado, parte do didático em dois estados - Texas e
aparato poli tico da sociedade, fornece Califórnia - determina amplamente o
algumas das condições para uma tal que é ensinado no resto do país. Uma
seleção mais ampla de cultura, dada a vez que entre 20 a 30 por cento de todos
necessidade relativamente autônoma de os livros didáticos são adquiridos por
legitimação por parte do Estado. Não há aqueles dois estados, as pressões sobre
nenhuma garantia, entretanto, de que os autores e editores para obterem
essa seleção mais ampla resultará em aprovação para todo seu conteúdo e or­
vantagens apreciáveis para os grupos ganização na Califórnia e no Texas é
que usualmente não têm nenhum poder imensa ( assim como as pressões exer­
significativo (por exemplo, grupos da cidas sobre as comissões por grupos da
classe trabalhadora), uma vez que direita e pelo capital para tentar garan­
freqüentemente o curriculo é o resultado tir que seu conhecimento seja visto como
de conflitos, dentro do Estado, entre as o mais legítimo). Para um editor, não
classes médias e a elite. Devo voltar a obter aprovação significa perder milhões
de dólares. Assim, a forma como esses são freQÜentemente o resultado de com­
estados particulares lidam com suas promissos ou acordos nos quais as clas­
próprias crises, a forma como as escolas ses, frações de classes e movimentos
respondem a essas necessidades de sociais estão às vezes numa relação con­
acumulação, legitimação e produção es­ traditória. Por exemplo, nos Estados
tabelece grande parte das condições Unidos atualmente, depois de anos de
para o curriculo da nação como um luta, um conhecimento mais honesto
tode. sobre a história das mulheres e dos
As diferenças entre aqueles países grupos minoritários tem sido incor­
capitalistas nos quais o "conhecimento porado ao curriculo. Esse conhecimento
legi timo" é definido mais pelas auto­ caminha lado a lado com um foco cres­
ridades centrais e aqueles nos quais os cente na "livre empresa" e nas "van­
curnculos são definidos de uma forma tagens" do capitalismo, tópicos que uma
mais fluida apontam para algo de im­ série de estados tem tornado obriga­
portância fundamental. As formas pelas tórios a fim de dar uma orientação mais
quais a educação responde à crise atual empresarial a seus curriculos numa
e os interesses que em última instância época de crise fiscal. Portanto, o con­
orientam sua resposta dependem das teúdo em muitas áreas é um amálgama
conexões especificas entre a educação , o pouco firme entre temas democráticos e
Estado e as culturas popular e de elite conservadores.
naquele paí s em particular. A resposta Ao mesmo tempo, a forma do
curricular depende também fundamen­ curnculo, os principios em torno dos
talmente do equilíbrio relativo de poder quais ele é organizado, é ela própria o
entre os grupos em confllito, seja dentro resultado de um acordo entre uma séire
do Estado, seja em relacão às políticas de grupos. Em parte como resposta à
articuladas pelo Estado (30). crise que se percebe na educação, na
Os argumentos de Bernstein são bas­ economia, nas relações de autoridade e
tante úteis nesse caso. As classes e as na legitimidade da política do Estado, o
frações de classe dentro do aparato cul­ currlculo ê usualmente organizado em
tural da sociedade não são necessa­ torno de principios e procedimentos de
riamente as mesmas que controlam o eficiência, de consideração de custos,
aparato econômico (31). As instituições de prestação de contas, de objetivos
poli ticas e culturais têm suas próprias comportamentais, de testes padroni­
histórias e necessidades internas. Elas zados, e da retórica da individualização.
seguem essas necessidades dentro dos Essa alteração na forma do curriculo
limites impostos pela dinâmica eco­ não está ocorrendo somente nos Estados
nômica, mas elas têm uma autonomia Unidos. Estamos assistindo em vários
relativa. Assim, não devemos esperar países à I,;cescente tecnificação da po­
que os grupos economicamente do­ lítica e da prática pedagógicas e cur­
minantes serão simplesmente capazes de riculares. Ensino e avaliação baseados
facilmente impor seus próprios interes­ na "competência", elaboração de cur­
ses ideológicos sobre o curnculo em todo rículos com base em objetivos compor­
e qualquer momento. As frações de tamentais e sistemas de prestação de
classe dentro das instituições culturais contas (accountability), tomados de em­
do Estado, e dentro do Estado em geral, préstimo da indústria, estão entre os in­
têm seus próprios interesses a perse­ dicadores de um tal movimento. Ao
guir (32). Esses interesses podem ser mesmo tempo, isso está relacionado com
coerentes com os interesses dos grupos uma preocupação crescente com o en­
dominantes. Entretanto, haverá ocasiões sino obrigatório de "habilidades bã­
em que não o serão. Dessa forma haverá sicas", com critérios acadêmicos, com
conflitos. O curnculo será o resultado uma conexão mais estreita entre a
desses conflitos e de conflitos entre esses educação e a indústria, com um maior
grupo s econômica e culturalmente controle centralizado sobre o curriculo e
poderosos e as classes populares que o ensino, e assim por diante.
desejarão tornar o curriculo mais de Entretanto, mesmo embora tudo isso
acordo com suas próprias tradições esteja ocorrendo, não é simplesmente
poli ticas e culturais. uma imposição dos interesses dominan­
Dessa forma, os curnculos escolares tes. Ao invés disso, é o resultado de uma
rede complexa de conflitos e compro­ qual o curriculo se dirige e nos prin­
missos de classe. A indústria e os grupos cipios em torno do qual ele é organi­
populistas de direita (os quais na In­ zado. Assim, uma tradição seletiva é
glaterra e nos Estados Unidos, por criada a partir de uma rede complexa de
exemplo, são eles próprios, às vezes, forças na qual as formas culturais emer­
parte das classes média-baixa ou dos es­ gentes da nova classe média e as frações
tratos mais elevados da classe traba­ modernizantes do capital - ambos os
lhadora, cujas vidas se vêem ameaçadas quais enfatizam a racionalidade bu­
pela crise emergente nas economias e rocrática, a técnica e a eficiência - jun­
relações sociais capitalistas, têm feito tam-se parcialmente com elementos
uma aliança com um particular segmen­ conservadores. Este acordo ou com­
to da nova classe média. Assim, a ên­ promisso temporário permite que a es­
fase que a indústria coloca na produção cola empregue o curriculo para auxiliar
de "conhecimento economicamente no processo de acumulação, para le­
útil", nas habilidades e na disciplina de gitimar tanto a economia quanto a si
trabalho e num curriculo que esteja própria perante uma gama mais ampla
mais estreitamente conectado às de grupos que não simplesmente os
"necessidades" econômicas está rela­ economicamente poderosos e, ao mesmo
cionada à preocupação da nova direita tempo, para produzir "conhecimento
com a proteção do conhecimento e útil".
valores tradicionais e com uma educação Entretanto, não creio que tal acordo
que garanta o emprego. É importante possa durar por muito tempo em muitos
observar que essa aliança emergente tem países, uma vez que se apóia numa base
incorporado aquela fração da nova clas­ bastante instável. Dois dos grupos prin­
se média cujos próprios empregos e cipais dentro dessa coalizão - dentro
mobilidade dentro do sistema educa­ do que Gramsci chamaria um "bloco
cional e do Estado em geral dependem hegemônico - não podem permanecer
da especialização técnica e gerencial e juntos por muito tempo, considerando­
das técnicas de racionalização e eficiên­ se as realidades econômicas e ideoló­
cia (33). Assim, como portadores do que gicas atuais (35). Refiro-me especifi­
chamei de conhecimento técnico/ad­ camente às forças relativámente po­
ministrativo, seu próprio status e opor­ pulistas da nova direita e as do capital.
tunidade crescente de mobilidade ascen­ Uma vez que o capitalismo, para ser
dente dependem dos tipos de controle do bem sucedido, precisa subverter valores
curriculo, do ensino e da avaliação que tradicionais e substitui-los por neces­
estão sendo agora crescentemente in­ sidades artificiais, por mercadorias,
troduzidos na educação (34). deve também atingir a visão de co­
Em grande parte pelo fato de que o nhecimento e valores legitimos que sub­
curriculo é sempre o resultado de pres­ jaz ao programa ideológico e educa­
sões conflitantes sobre o sistema edu­ cional da nova direita. Será difícil, por­
cacional, os movimentos sociais da clas­ tanto, para a cultura emergente do
se trabalhadora, das minorias e das capitalismo, permanecer ligada à visão
mulheres têm sido relativamente bem cultural residual da nova direita (ou à
sucedidos em vários países na tarefa de cultura residual de elite de certos grupos
obter legitimidade oficial para parte de dominantes). Portanto, novos conflitos
seu conhecimento. Entretanto, numa politicos e culturais surgirão no próprio
crise econômica e politica emergente, na centro do acordo temporário atual, em
qual os recursos financeiros não estão muitos países, criando, a partir dai,
mais prontamente dispolÚveis para a outra vez, as condições para mais con­
educação e a educação é crescentemente flito e mudança curriculares.
pressionada para levar em conta pri­
mordialmente as necessidades do capital
e dos grupos de elite, o poder de uma Aumentan do a visibiUdade das relações
aliança entre grupos püpulistas conser­ raciais e de gênero
vadores, o empresariado e segmentos da
nova classe média tornar-se-á crescen­
temente manifesto no conhecimento in­ Na discussão feita até agora sobre a
corporado ao curriculo, nos objetivos ao necessidade de relacionar o curriculo e o
ensino com a formação social mais am­ compreender plenamente por que o
pla, enfatizei a dinâmica de classe e as currículo e o ensino tanto assumem a
demandas contraditórias postas sobre o forma que têm quanto a maneira pela
Estado. Embora crucialmente impor­ qual eles são controlados a menos que
tante, entretanto, a classe não é a única perguntemos quem está ensinando. As­
dinâmica sobre a qual devemos nos sim, uma vez que grande parte do
preocupar. As dinâmicas de raça e de trabalho de ensinar no nível elementar,
gênero são tão importantes quanto por exemplo, tem sido construído como
ela (36). O mesmo tipo de análise que parte do trabalho r emunerado das
sugeri - examinar a configuração es­ mulheres e era originalmente percebido
pecifica de relações de poder dentro do como uma extensão do trabalho domés­
Estado e entre os grupos no Estado e as tico não-remunerado, é importante que
classes e os movimentos sociais na vejamos o aparato educacional do Es­
sociedade mais ampla - precisa ser tado tanto como um local de relações de
feita ao examinarmos o gênero e a raça. classe quanto de relações p atriar­
Deixem-me dar um exemplo do que cais (38). A classe sozinha é um construto
quero dizer. analítico insuficiente para desvelar as
Vários pesquisadores têm argumen­ relações de poder, cultura e controle na
tado que a tendência para racionalizar educação.
todos os aspectos importantes da Tipos similares de análise precisam
educação, para colocar o currículo e o ser feitas com relação à raça. Como Omi
ensino sob um controle técnico e bu­ e Winant demonstraram em seu tra­
rocrático mais rígido, não é simples­ tamento detalhado da história da for­
mente o resultado de acordos de classe, mação racial nos Estados Unidos, é im­
embora, como argumentei na seção an­ possível entender como o Estado opera
terior deste artigo, tais acordos cons­ sem ver como sua política educacional,
tituem um elemento crucial de qualquer assim como sua p�lítica em outras
explicação de como as politicas curri­ áreas, foi formada a partir de uma his­
culares se desenvolvem. Ela é também a tória de política racial. Como afirmam
corporificação da lógica masculina. Ela eles, a raça ajudou a formar a classe nos
desvaloriza as preocupações com a Estados Unidos e, portanto, a ela deve
comunhão entre as pessoas e o afeto (37). ser dado um status paralelo em qual­
A importância desse ponto é reforçada quer tentativa completa de explicar as
pelo fato de que, em um grande número necessidades de legitimação do Esta­
de países, o ensino - e especialmente o do (3Y).
ensino na escola elementar - é geral­ Obviamente, diferentes países têm
mente construído como sendo "trabalho diferentes articulações de relações de
feminino". Assim, as tentativas crescen­ classe, raça e gênero, por causa das
tes por parte das autoridades centrais diferentes histórias demo gráficas,
para racionalizar o ensino e para obter econômicas e polí ticas. Mas os três con­
maior controle sobre o currículo, a juntos de relações são essenciais para
pedagogia e a avaliação, numa época que analisemos como e por que a forma
de crise de acumulação e legitimação, e o conteúdo do currículo vêm a ser o
podem ser também vistas como um que são e como a educação responde às
ataque, embora nao necessariamente pressões contraditórias postas sobre ela.
consciente, contra o autocontrole do
processo de trabalho das trabalhadoras
do sexo feminino, em particular. As Conclusão
coalizões ideológicas formadas nesse
caso tornam-se bastante complicadas.
As implicações disso são muito im­ Neste ensaio, argumentei de forma
portantes. Isso está relacionado ao sumária contra nossas formas usuais de
processo de desvalorização e desqua­ analisar os currículos. Sugeri que o
lificação dos trabalhos das mulheres que currículo não se sustenta sozinho, mas é
vem se desenrolando há algum tempo o produto social de forças conflitantes.
nos países industrializados. Como ar­ Enfatizei algumas dessas forças: as fun­
gumentei com algum detalhe em outro ções freqüentemente conflitantes que o
trabalho, é praticamente impossível Estado é pressionado a exercer, funções
que se tornam ainda mais contraditórias vem, que ampliariam consideravelmente
em épocas de crise de acumulação e de a discussão que fiz aqui. Esses estudos
legitimação; tensões entre formas e de caso trariam para a linha de frente
grupos culturais residuais e emergentes; um reconhecimento ainda mais forte de
o processo de conflito e compromisso de que existe uma batalha constante em
classe que acaba resultando na for­ tomo do território do significado (41).
mação de um acordo temporário a res­ Para que as tendências democráticas
peito da politica pedagógica e curri­ saiam ganhando, devemos identificar
cular; e a importância dos múltiplos quem são os atores e quais são as con­
conjuntos de relações de poder - não seqüências se nós perdermos.
somente de classe, mas também de
gênero e de raça. Os exemplos que usei NOTAS
para esclarecer alguns dos meus pontos
conceituais e politicos não correspon­ 1. E.D. Hirsch, Jr., Culturalliteracy (Nova Iorque,
dem, naturalmente, à experiência de Houghton Mifflin, 1986).
todos os países. Entretanto, estou certo 2. Este trabalho está resumido de forma magnífica
de que as categorias básicas são blocos em Geoff Whitty, Sociology anti school kno­
de construção do quadro teórico neces­ wledge .(Nova Iorque, Methuen, 1985). Veja
também Geoff Whitty, "Curriculum research
sário para uma investigação do papel do and curricular politics", British Journal of So­
curriculo na crise atual. ciologyofEducation 8,n. 2 (1987:109-17).
As implicações desses pontos para 3. Michael W. Apple, Ideology anti curriculum
uma análise adicional são, entretanto, (Boston e Londres: Routledge and Kegan Paul,
claras. Há uma necessidade crucial de 1979).

estudos de casos específicos da interação 4. Para uma discussão adicional sobre a necessida­
de de se compreender o processo dos conflitos e
dialética entre esses fatores contradi­ alianças. veia John Clarke e Chas Critcher. The
tóriOs, não somente para esclarecer a devü makes work: leisure in capitalist Britain
explicação teórica indicativa que dei (Urbana: University of Illinois Press, 1985),
48-9. Veja também Michael W. Apple,Educa­
neste ensaio, mas para refinar, desen­ ção e poder (Porto Alegre, Artes Médicas, 1989).
volver e justificar nova teoria. Demons­ 5. David Hogan, "Education and c1ass formation:
trar essa interação dialética na formação the peculiarities of the americans", in Cultural
dos curriculos e identificar os mecanis­ anti economic reproduction in education: essays
on closs, ideology and the state, ed. Michael W.
mos reais através da qual ela ocorre (40) Apple (Boston e Londres: Routledge and Kegan
é tão importante quanto afirmar sua Paul, 1982),52-3.
existência.. Estudos comparativos - 6. Michael W. Apple e Joel TaxeI, "Ideology and
nos quais o Estado se articula de forma the curriculum", in The social sciences in edu­
cation, ed. Anthony Hartnett (London: Heine­
diferente com a economia e nos quais as
mann, 1982). Coloquei a palavra "funções"
decisões curriculares são, ou centrali­ propositadamente entre aspas por causa da dis­
zadas numa situação de forte controle cussão a respeito da utilidade do pr6prio con­
ceito de funcionalidade, uma vez que ele muitas
do Estado, ou descentralizadas para um
vezes conota um processo indefinidamente re­
nível local ou regional - seriam bas­ produtivo, relativamente isento de conflitos e
tante úteis, assim como o seriam es­ com pouca chance de mudanças. Para crfticas da
tudos daqueles países em que a ativi­ 16gica funcionalista em educação, veja Apple,
ed., Cultural anti economic reproduction in edu­
dade do Estado é totalmente politizada e cation: essays on closs, ideology, anti the state.
propositadamente ideológica. Uma versão refinada da análise funcionalista é
defendida, entretanto, em G. A. Cohen, Karl
A comparação de situações concretas
Marx' s theory of history: a defense (Princeton,
dos países socialistas e capitalistas e em NJ.: Princeton University Press, 1978).
seguida comparações no seu interior - 7. Veja, por exemplo, Randall Collins, The cre­
uma vez que os conflitos a respeito de dentiol society (Nova Iorque, Academic Press,
raça, classe e gênero e em relação ao 1979); John O.e;bu, Minority education and caste
(Nova Iorque: Academic Press, 1978); e Manuel
poder politico, cultural e econômico Castells, The economic crisis anti american 80-
variam notavelmente dentro dessas ciety (Princeton, N. J.: Princeton University
orientações globais - poderia também Press, 1980).

fornecer um conjunto bastante interes­ 8. Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron, Re­
sante de estudos a partir dos quais production in education, society and culture
(Londres: Sage, 1977); e Basil Bernstein, Closs,
poderiamos produzir formas ainda mais codes, and control, v. 3 (Boston e Londres:
adequadas de compreender tanto a Routledge and Kegan Paul, 1977).
relação entre o poder e o curriculo, 9. Esta posição é defendida de forma sistemática
quanto como os acordos se desenvol- em Samuel Bowles e Herbert Gintis, Schooling
in capitaüst America (Nova Iorque: Basic Books, 23. Raymond Williams, Marxism and literature
1976). Há uma série de problemas, tanto te6ri­ (Nova Iorque: Oxford University Press, 1977).
cos quanto empíricos, nessa posição. Veja, por
24. Pierre Bourdieu, Distinction: a social critique of
exemplo, Apple, Educaçélo e poder, e Michael
the judgement of taste (Cambridge: Harvard
R. Olneck e David B. BiIIs, "What makes
University Press, 1984), 7.
Sammy Run: an empirica1 assessment of the
Bowles-Gintis correspondence theory", Ameri­ 25. Ibid., 23.
can JournaJ of Education, 89 (Novembro 1980):
26. Ibid., 26.
27-61.
lO. Apple, Educação e poder; Apple, ed., Cultural 27. Ibid., 5-6.
and economic reproduction in education, espe­ 28. Ibid., 2.
cialmente Cap. I; e Stuart Hall, "Rethinking
the 'base and superstructure' metaphor", in
29. Discuti isso com bastantes mais detalheS em
Class, hegemony, and party, ed. lon Bloomfield Apple, Teachers and texts: a political economy
of class and gender relations in education; e em
(Londres: Lawrence and Wishart, 1977):43-72.
Michael W. Apple, "The political economy of
li. lohn Meyer, "The effects of education as an text publishing", Educational Theory, n. 4
institution" , American J ournaJ of Sociology, 83 (Outono 1984): 307-19.
(lul. 1977):55-77.
30. Veja Apple, Teachers and texts; Apple, Educa­
12. Vicente Navarro, Medicine under capitaJism ção e poder; e Martin Carnoy e Henry Levin,
(Nova Iorque: Neale Watson, 1976), 91. Veja Schooling and work in the democratic state (S­
também lames O'Connor, The fiscal crisis of the tanford: Stanford University Press, 1985).
State (Nova Iorque: St. Martin's Press, 1973).
31. Bernstein, Class, codes and control, v. 3, espe­
13. Castells, The economic crisis and american so­ cialmente Capo 8.
ciety, especialmente Caps. 3-5; e loshua Cohen
e loel Rogers, On democracy (Nova Iorque: 32. Veja Apple, Teachers and texts; e Michael W.
Penguin Books, 1983). Apple, "National reports and the construction
of inequality", British Journal of Sociology of
14. C. B. Macpherson, "Do we need a theory of the Education, 7, n. 2 (1986): 171-90.
State?", in Education and the State, v. I, ed.
Roger Dale et ai. (Sussex: Falmer Press, 1981),
33. Apple, Teachers and texts.
65. 34. Apple, Educação e poder. Não quero dizer que
seja somente através desse conhecimento técni­
lS. Agradeço a Walter Feinberg por parte desse ar­
co/administrativo no sistema educacional que
gumento. Veja também David Noble, America
esta fração de classe obtém posições, status e
by design (Nova Iorque: Knopf, 1977); Apple,
mobilidade ascendente. O sistema educacional
ldeo/Qgy and curriculum; e Apple, Educação e
não é senão wn entre muitos outros no governo,
poder, Cap. 2.
nas ocupações do serviço social e na economia
16. Apple, ldeologyand curricuJum. em que esse conhecimerito atua como uma for­
ma de capital cultural que pode fornecer essas
17. Veja, por exemplo, Paul WiIlis, Learning to /n­
vantagens.
bour (Westmead, Inglaterra: Saxon House,
1977); Robert Everhart, Reading, writing, and
resistance (Nova Iorque e Londres: Routledge 35. Veja Apple, "National reports and the cons­
and Kegan Paul, 1983); e Linda Valli, Becom­ truction of inequality".
ming clerical workers (Nova Iorque e Londres:
Routledge and Kegan Paul, 1986). 36. Michelle Barret, Women's opression today
(Londres: New Left Books, 1980). Veja tam­
18. Apple, Educação e poder. bém Michael W. Apple e Lois Weis, eds.,
19. Veja Michael W. Apple, Teachers and texts: a Ideology and practice in schooling (Filadélfia:
polilical economy of class and gender relations in Temple University Press, 1983), especialmente
education (Nova Iorque: Routledge and Kegan Cap. l .
Paul, 1986).
37. Carol GiIIigan, In a different voice (Cambridge:
20. Roger Dale, "Education and the capitalist Sta­ Harvard University Press, 1982); e Kathy Fer­
te", in Cultural and economic reproduction in guson, T.lre feminist case against bureaucracy
education, l3 7. (Filadélfia: Temple University Press, 1984).
21. Raymond Williams, "Base and superstructure
in marxist cultural theory", in Schooling and 38. Veja Apple, Teachers and texts.
capitalism, ed. Roger Dale et ai. (Boston e Lon­
39. Michael Omi e Howard Winant, Racial forma­
dres: Routledge and Kegan Paul, 1976), 205.
tion in the United States (Nova Iorque: Routled­
Veja tambéllJ Apple, ldeologyand curricuJum.
ge and Kegan Paul, 1986).
22. Veja a discussão q� Basil Bernstein faz da re­
40. Daniel Liston, Capitalist schools? (New York:
�ão entre culturas de classe e a "classificação e
Routledge and Kegan Paul, no prelo).
enquadramento" do conhecimento educacional
em seu Class, codes and control, v. 3. Veja tam­ 41. Fred Inglis, The management of ignorance: a
bém minha pr6pria discussão da forma curri­ political theory of the curricuJum (Londres: Basil
cular em Apple, Educação e poder, Capo 5. BlackwelI, 1985).

***

Artigo originalmente publicado em Educational Theory, v. 38, n. 2, 1988, aqui transcrito com auto­
rização do autor. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva.
***

Michael W. Apple é professor da Universidade de Wisconsin - Madison, Estados Unidos da América.


Um de seus livros, Educação e poder, foi recentemente publicado no Brasil (Editora Artes Médicas, Porto Ale­
gre,1989).
A
trabalho, e mesmo detectar as carac­
teristicas a partir de então exigidas de
acuidade d",a questão encontra-" diferentes categorias de trabalhadores,
hoje intensificada por razões evidentes: nas diferentes condições, e entre elas, as
a difusão das novas tecnologias no sis­ que devem ser objeto de formação. Mas
tema produtivo e o conjunto das mu­ essas mudanças, já visíveis no emprego,
danças que ela provoca interpelam ainda não afetaram os aparelhos de for­
duramente a escola no seu papel de for­ mação, ao menos a f o r m aç ã o dita
mação das competências , mas também inicial, que se dirige à população jovem,
no seu papel de socialização. A partir formação que, na França, diferente­
dessa colocação, uma série de inter­ mente de outros países, se realiza no
rogações relativas ao lugar da tecnologia aparelho escolar e, portanto, está menos
no corpo dos conhecimentos ensinados diretamente determinada pelas relações
pela escola - objeto de debates e de ex­ de produção.
perimentações há vários anos - re­ Acontece que, se as mudanças não
cebem respostas elaboradas no quadro são ainda imediatamente visíveis, elas
de políticas explícitas. Diversos fenô­ estão, a partir de agora, em marcha e
menos que, no essencial, ainda estão por são assunto de numerosos discursos
serem estudados nas suas diferentes programáticos e também de politicas ex­
dimensões. plicitas. Por isso, nos propomos analisar
A sociologia da educação pouco in­ esse conjunto de discursos e de práticas
teressou-se pelo assunto, por várias endossados, na sua maioria, pelas clas­
razões: ses dirigentes, nos seus componentes
- algumas de ordem teórica: os econômicos (organizações profissionais
modelos de interpretação que preva­ patronais) ou políticos (instituições es­
leceram nos anos sessenta e setenta (es­ tatais), mas também por diversas ca­
pecialmente as teorias da reprodução), tegorias de intelectuais. Se o sociólogo
situando-se ao nivel das estruturas, deve, para conseguir analisar a reali­
privilegiaram uma analise das invarian­ dade imediata, tomar uma certa distân­
tes em detrimento das mudanças; por cia em relação a ela, reinserindo-a nas
outro lado, inscrevendo-se na ordem regularidades sociais que se observam a
simbólica, ignoraram as relações entre longo prazo, ele é também, como outros
educação e economia; intelectuais, uma testemunha de seu
- as outras liga m-se à própria tempo e não pode evitar defrontar-se
realidade: aos fatos em questão. Um com os grandes problemas que agitam a
sociólogo do trabalho pode desde já ob­ sociedade: atualmente, os das mu­
servar como as novas tecnologias mo­ tações técnicas e as múltiplas questões
dificam a organização do processo do que lhe estão ligadas. Por isso, nós

EDUCAÇÃO E REALIDADE, Porto Alegre, 14(2):58-68,julldez. 1989


retomaremos os discursos e as práticas samento, de representações do mundo,
que dizem respeito às mutações tec­ etc.
nológicas. Esses discursos sobre a formação são
1. Em primeiro lugar, os discursos largamente partilhados pelo mundo
econômicos e tecnicistas que preva­ econômico (os empregadores, especial­
lecem atualmente e desenvolvem-se em mente) e por diversas instâncias do Es­
torno da busca de uma maior produ­ tado.
tividade econômica, que se t ornou 2. Os discursos econômicos e cul­
necessária pela intensificação da con­ turais que se elaboram e se difundem
corrência internacional. Vários desses com base na idéia de que a incorporação
discursos cristalizaram-se em torno de e a difusão das novas tecnologias no
um dos fatores da produtividade - o aparelho de produção implicam que
trabalho - e, por conseqüência, em sejam apropriadas para as diferentes
torno da força de trabalho e suas ca­ categorias sociais que as colocam em
pacidades técnicas. Estas são, o mais ação. Para esses, a formação não se
freqüentemente, apresentadas, intei­ reduz a um conjunto de conhecimentos
ramente ou em parte, como um fator· técnicos e de 'habilidades, mas inclui as
obstativo à obtenção da maior rentabi­ relações dos indivíduos com seu contexto
lidade almejada. Ê baseado nesse fato técnico e social, assim como os sistemas
que o uso social da noção de formação de representações e de valores. Eles
tende a generalizar-se, em substituição a questionam a escola, tendo em vista os
outras que anteriormente lhe eram conteúdos que ela programa, a cultura
preferidas, as de instrução ou de nivel que veicula e o lugar que concede à téc­
de instrução primeiramente, de edu­ nica enquanto categoria de conhecimen­
cação ou de ensino, subseqüentemente. to e elemento da cultura. Além dos dis­
(1) cursos, enunciaremos as principais
O uso, hoje quase generalizado, des­ medidas que foram tomadas, atualmen­
sa noção - esboçada, ao que parece, no te, pelos órgãos de Estado encarregados
final dos anos sessenta, correlativamente das questões de ensino e formação, e
à constituição de um aparelho de for­ tentaremos captar o que significam e
mação continua - pode ser considerado analisar suas condições de aplicabili­
como um indicador das lutas que se dade.
processam e das relações de força que 3. Enfim, nesse contexto, o movi­
se estabelecem em torno das diversas mento de aproximação escola-produção,
funções que cumpre todo aparelho delineado há mais ou menos dez anos,
educativo, para fazer prevalecer al­ desenvolve-se, procurando instituir
gumas delas. Ele expressa este movi­ relações orgânicas entre escola e em­
mento que tende hoje a redefinir os con­ presas. Não mais a nivel, unicamente,
teúdos ensinados nos diferentes segmen­ dos canais do ensino técnico, que é
tos e etapas do aparelho educativo, sua dirigiôo às categorias de alunos des­
organização e subdivisão, para articulá­ tinados a trabalhar em diferentes co­
los mais estreitamente ao sistema de locações na produção, mas igualmente a
empregos. Em outras palavras, a noção oi vel dos canais do ensino geral, de for­
de formação que no uso corrente da lin­ mas diferentes. Examinaremos as le­
gua francesa designa "o conjunto dos gitimações que são conferidas a esse
conhecimentos teóricos e práticos em movimento e as contradições que ele
uma técnica, um oficio" refere-se ex­ gera.
clusivamente à força de trabalho, àquele
que produz, deixando na obscuridade o
fato bem conhecido de que todo o As relações entre mudanças técnicas
processo de formação da força de e formação não são diretas
trabalho (organizado em uma insti­
tuição, e na instituição escolar, es­
pecialmente) contribui simultaneamente Aos partidários dos discursos eco­
para a constituição de identidades sócio­ nômicos e tecnicistas que fazem da for­
culturais, visto que transmite, com os mação a alavanca ou o obstáculo ao
conhecimentos e habilidades, um con­ crescimento da produtividade, a so­
junto de disposições, de hábitos de pen- ciologia do trabalho pode facilmente

59
mostrar, a partir dos conhecimentos que performances econômicas e maior com­
ela produziu desde os anos cinqüenta petitividade. Elas têm relação com: os
(2), que as relações entre mudanças téc­ modos de organização do trabalho que
nicas e formação são mediatizadas. É tornam possível a mobilização dos
assim que a introdução de uma mesma conhecimentos adquiridos e seu desen­
tecnologia, o controle numérico, por volvimento; as mobilidades profissionais
exemplo, em empresas que têm um suscetíveis de gerar qualificações. Em
mesmo tipo de produção, faz-se acom­ outras palavras, com base nas lutas e
panhar de práticas diferentes quanto à criticas levadas a efeito sobre as con­
seleção e designação aos novos postos de dições de trabalho, acaba-se por adotar,
trabalho, indo, para os operadores, des­ aqui ou ali, pontos de vista muito di­
de o recrutamento de jovens titular�s de ferentes dos afirmados há alguns anos,
um "baccalaureat" (*) técnico até a no que diz respeito aos conhecimentos
jovens que apresentam poucas habili­ profissionais cujo desaparecimento era
dades técnicas, mas que possuem um considerado necessário para o desenvol­
ni vel de ensino geral suficiente, a vimento da automação, por exemplo. �
preferência sendo dada a jovens que assim que, atualmente, admite-se que os
possuem uma formação profissional de operadores de máquinas de controle
operário, sancionada ou não por um numérico devem conhecer o metal, as
diploma (CAP, Certificado de Aptidão reações aos instrumentos de corte, etc. ,
Profissional, ou BEP, Brevê de Estudos ou seja, os conhecimentos próprios do
Profissionais) (3). A natureza das res­ operário especializado em mecânica{ 4).
postas dadas pelas empresas depende Em resumo, aos partidários dos dis­
tanto de seu modo de organização do cursos que invocam a formaçao como
trabalho quanto de sua política de ges­ fator de crescimento ou de freio da
tão do pessoal. O que significa que uma produtividade, o sociólogo não tem
mudança t écnica não implica uma senão que lembrar truísmos socio­
determinada mudança na composição lógicos: a formação não é redutivel a um
·
da força de trabalho e nas qualidades certo número de capacidades técnicas
desta. que agiriam invariavelmente e indepen­
Por outro lado, é importante, igual­ dentemente de todas as condições so­
mente, objetar ao caráter generalizante ciais, tais como a organização do
desse tipo de discurso que o sistema trabalho, a existência de grupos de
produtivo é eminentemente diversifi­ trabalho, as relações de cooperação que
cado. Processos de trabalho caracteris­ eles mantêm, as relações de autoridades
ticos de diversos "periodos técnicos" na empresa, os sistemas de valores, etc.
coexistem num dado momento. E, as­ Assim, ele quebra a simplicidade e a
sim, a persistência de certas formas de força desses discursos, mostrando o con­
trabalho, representativas de um periodo junto dos processos a dominar para
anterior, necessitam, para serem exe­ chegar ao objetivo proC\lrado, nota­
cutadas, de formações construídas em damente quando o processo de formação
torno de conhecimentos e habilidades se realiza, essencialmente, no aparelho
que, examinadas de um ponto de vista escolar, como na França, aparelho que
geral ou relativamente a processos de possui autonomia suficiente para ex­
trabalho reorganizados a partir da in­ pressar a demanda que lhe é feita pela
tegração de novas tecnologias, podem esfera econômica, dentro da sua lógica
parecer obsoletas. Desconhecê-las é as­ própria. É neste momento da transfor­
sumir o risco de ver óesaparecer certos mação da demanda econômica em ter­
modos de produção que são, no entanto, mos de conhecimentos e de cultura que
rentáveis e socialmente úteis, se a for­ vamos, agora, nos situar.
mação que lhes corresponde não for
mais ensinada.
Enfim, opondo-se a esses discursos Discursos sobre a necessidade de uma
generalizadores e empobrecedores, difusão da Cultura Técnica na escola
dirigentes de empresa tendem, hoje em e Práticas Visando Instaurá-la na França.
dia, a reconhecer que certas condições
devem coexistir para que a penetração Faz-se necessário lembrar alguns
de novas tecnologias permita melhores fatos atualmente bem definidos pela

60
sociologia da educação: a escolarização As tentativas de modificação dos modelos
tornou-se o modo de socialização do­ culturais dominantes na escola.
minante nas sociedades industrialmente na França., para propiciar a constituição
desenvolvidas. É importante, portanto, de uma cultura técnica.
conhecer as características desse modo
de socialização: os tipos de seres sociais
que ela procura formar, as represen­
tações do mundo e os sistemas de va­ Não é necessano enfatizar o que
lores que veicula; em suma, é importan­ todos têm conhecimento, a saber, que a
te questionar os conteúdos cognitivos e cultura escolar, na França, valoriza in­
culturais inseridos nos programas de c 11- tensamente a abstração e atribui um es­
sino. Em sociedades, como a francesa, tatuto muito elevado aos conhecimentos
em que a formação profissional dos acadêmicos e, especialmente nesse úl­
operários, empregados e técnicos timo período, às ciências matemáticas,
realiza-se inteiramente no aparelho es­ que estão revestidas do maior prestigio.
colar, essa função cresce em função das Inversamente, os conhecimentos téc­
outras instâncias, especialmente da nicos, maculados por suas ligações com
produção, e gera, assim, muitas con­ a prática e o trabalho, permanecem des­
tradições. valorizados. Assim, a orientação dos
Se é verdadeiro, como Durkheim e alunos para o ensino técnico secundário
outros autores após ele afirmaram (5), (especialmente o que forma operários)
que todo o sistema educativo , que é o efetua-se de um modo essencialmente
produto de uma história, deve igual­ negativo e chega a encarar esses ensi­
mente e ao mesmo tempo, articular-se namentos como reservados aos jovens
ao presente e estar apto a gerar o futuro, cujas performances escolares são muito
segue-se que toda a política escolar fracas nas disciplinas de conhecimento
deve, sob pena de fracassar, ser capaz geral. É com base neSSe modo de fun­
de fazer face simultaneamente às exi­ cionamento, nas socializações que o
gências de ruptura e de continuidade acompanham e nas contradições que
nas relações sociais. Em outras palavras, elas geram, que o aparelho escolar, en­
ele deve selecionar e transmitir os con­ contra-se fortemente interpelado por
teúdos de ensino que representam "a diversas forças sociais, e, singularmente,
verdadeira tradição", interpretada como neste periodo em que a demanda escolar
o caminho que conduz ao progresso se exprime majoritariamente em termos
universal e nacional, mas também con­ de competências e de qualificações que
frontar-se, de uma maneira ou de outra, possam ser reconhecidas no mercado de
com a existência de práticas culturais trabalho.
que são a expressão de novas relações Essas questões que, lembremos, têm
sociais já vigentes na sociedade (6). Os sido objeto de debates e conflitos há
currículos (7) programados pela escola mais de um decênio, igualmente oca­
geralmente pertencem à "cultura es­ sionaram diversos tipos de intervenções
tabelecida, de tal modo que escola e estatais visando a respondê-las (8). Hoje,
valores do passado tendem a se iden­ medidas diversificadas, que têm por
tificar"(6). Mas, contrariamente à inter­ finalidade explícita "fazer da cultura téc­
pretação geralmente dada, trata-se nica um verdadeiro componente da for­
menos de uma inércia da instituição mação geral ", estão sendo tomadas.
diante da mudan�a que da situação das Entre essas medidas que tendem à buscã
relações de força dentro e fora do sis­ de uma coerência de conjunto, cita­
tema educativo. A perpetuação de remos: o desenvolvimento de atividades
modelos culturais na escola traduz a de sensibilização à tecnologia, nas es­
ausência ou a insuficiência de orga­ colas primárias; a introdução massiva
nização polí tica de forças sociais capazes dos computadores nas escolas primárias,
de dar uma outra orientação cultural, colégios e liceus (**); a introdução da
que seja aceitável pela sociedade como tecnologia entre as disciplinas obri­
um todo. gatórias nos colégios, a introdução da
tecnologia entre as principais matérias
nos liceus; a profissionalizaç ão do
primeiro ciclo das universidades ( desen-

61
volvendo os Mestrados das Ciências e quema mental, há paridade de nível en­
das Técnicas (MST) e a aproximação tre atividade técnica e atividade cien­
entre a escola e as empresas (9). tífica, frisando "que subsiste uma certa
Sem prejulgar a inscrição e os modos diferença entre o esquema técnico do ob­
de inscrição dessas medidas políticas na jeto (comportando a representação de
prática, centraremos nossa observação uma finalidade humana) e o quadro cien­
em duas delas: a incorporação da tec­ tifico dos fenômenos (comportando
nologia nos conhecimentos prescritos a somente esquemas de causalidade efi­
todos e o desejo de modificação da ciente, mútua e recorrente) . . . }" (12) .
hierarquia ensino geral! ensino técnico. Acrescenta-se que a hierarquia dos en­
sinamentos feita pela escola apóia-se na,
e alimenta-se da, que é verificada no
A tecnologia em igualdade campo dos conhecimentos: os cienti­
com as matérias ditas fundamentais ficos, universais, abstratos, canalizados
unicamente pela preocupação de co­
nhecer, de compreender, dominando os
A programação da tecnologia entre outros, técnicos, particulares, concretos,
os conhecimentos reconhecidos como essencialmente destinados ao agir (13) .
socialmente necessários a todos (nos Essa hierarquia de estatuto entre
colégios) testemunha esse desejo de rup­ ciências e técnicas somente pode ser al­
tura com um modelo cultural que terada mediante certas condições, entre
minimiza essa categoria de conhecimen­ elas: que a prescrição da tecnologia na
tos. Efetivamente, essa chegará a ad­ categoria dos conhecimentos necessários
quirir um estatuto de paridade com os e obrigatórios para todos se efetue de
conhecimentos ditos fundamentais, um modo aceitável para todos os grupos
como as ciências e as letras? Responder sociais, ou seja, que se revista de um
a essa pergunta exigiria uma análise das caráter geral e que repense as antigas
relações entre as forças sdciais que agem relações entre teoria e prática. lo­
dentro e fora da escola, para identificar gramos, assim, examinar as diversas
suas concepções da cultura. Como isso modalidades em que esse ensino pode
não foi feito, nos limitaremos a cons­ ser programado: à maneira de co­
tatar que essas prescrições vão ao en­ nhecimentos exigidos para pôr em
contro da ação efetivada por certos prática procedimentos, máquinas, ou à
grupos sociais, no sentido de fazer maneira de um conhecimento da uti­
reconhecer e difundir a cultura técni­ lização dos dispositivos associado ao da
ca (lO). Esses grupos agem essencial· gênese e ao funcionamento daqueles
mente fora da escola, embora o Ma­ que, diz Simondon, estão no prolon­
nifesto pela cultura técnica, publicado gamento "da atividade de invenção e de
pela CRCT, designe a escola como um construção dos objetos técnicos". Em
dos instrumentos essenciais para cons­ outras palavras, o ensino da tecnologia
tituir e difundir essa cultura, mas essas seria orientado, de modo predominante ,
idéias parecem ainda não ter sido as­ para a atividade de trabalho ou para a
similadas pela escola: a maioria dos explicaç ão dos objetos técnicos, sua es­
professores das escolas primárias e dos trutura e fabricação(14}. Com a in­
colégios lhes sendo, por sua própria for­ trodução de novas tecnologias, a escola
mação, indiferente ou hostil (11). dará origem a esta tensão dialética entre
A aquisição pela tecnologia de um pensamento cientifico e técnico ou, em
estatuto de igualdade com as ciências conformidade com certas tendências an­
não poderia, é evidente, ser obtida por teriormente observadas, vai sacrificar o
medidas pedagógicas, pois implica uma fenômeno técnico a um ensino de infor­
transformação dos valores enraizados mática, sob a forma de uma subdis­
em uma história em que as técnicas são ciplina das ciências matemáticas. Outra
associadas ao trabalho manual. Certos interrogação ligada à precedente, mas
filósofos (como G. Simondon) e his­ distinta: a tecnologia será ensinada
toriadores (como B. Gilles) tentaram como um conjunto de conhecimentos
desfazer a confusão estabelecida entre particulares ou como um corpus de
conhecimento empírico e conhecimento conhecimentos "do sistema técnico"
técnico e mostrar que, no plano do es- caracteristico deste periodo de nossa

62
civilização (15), que não excluiria "uma cognitivos e culturais veiculados pela es­
propedêutica dos meios elementares de cola não podem ser efetivados sem
ação sobre a matéria" ( 16)? Enfim, a mudanças notáveis nas relações sociais.
tecnologia seria ensinada de uma forma
reificadJ, a exemplo do que acontece
nos segmentos técnicos, ou tornará pos­
gvel a constituição e a apropriação de A modificação da herarquia ensino
um conjunto de representações e de geralj ensino técnico
valores relativos aos objetos técnicos,
sua produção (e condições de sua
produção), sua difusão e sua utiliza­ Tal vontade é periodicamente afir­
ção? Citando, ainda, G. Somondon, "a mada e poder-se-ia legitimamente ques­
cultura comporta-se em relação aos ob· tionar sobre os mecanismos que asse­
jetos técnicos como o homem em relação guram a perpetuação dessa hierarquia.
ao estrangeiro. quando se deixa levar pela Paradoxalmente, a história do ensino
xenofobia primitiva ... Para desempenhar técnico, na França, pode ser descrita
um papel completo. a cultura deve incor' como um longo movimento de inte­
porar os seres técnicos. sob a forma de gração no aparelho escolar: movimento
conhecimento e sentido dos valores. . A
. orientado por uma busca de unifor­
maior causa de alienação. no mundo co/!­ mização e igualação desse ensinamento
temporâneo. é o desconhecimento da com aquele que permanece o referente,
máquina. alienação que não é causada o ensino geral dos liceus. Seria fácil
pela máquina. mas pelo não· demonstrar que nesse pais a noção de
conhecimento de sua natureza e de sua es­ igualdade preside as reformas que
sência. pela sua ausência do mundo das direcionam o desenvolvimento da escola
significações. e pela sua omissão do e sua organização institucional. Longe
quadro de valores e dos conceitos que de ser puramente mágica, a idéia de
fazem parte da cultura" (17). igualdade está na origem da norma de
Das respostas trazidas a essa série de unicidade que legitima a integração do
interrogações, que estão no centro dos ensino técnico no seio de um sistema es­
debates atuais, sendo que algumas ain­ colar que vai, simultaneamente, manter
da não foram formuladas, depende a contidas no ímplícito as diferenças
possibilidade d e atenuamen to dos sociais do público a que se dirige nos
modelos culturais dominanteS: 18). Se a vários segmentos, para não reconhecer
maioria dos discursos sustentados senão as diferenças psicológicas e in­
desenvolve-se em torno da noção de cul­ telectuais dos alunos. Esse movimento
tura técnica ou tecnológica, pode-se de igual ação e de uniformização pode
facilmente demonstrar que, assim for­ ser detectado a nível de lugar e de res­
mulados, eles tendem a ocultar uma pectivas funções atribuídas às insti­
dimensão do que está em jogo: quem diz tuições e a nível das instruções peda­
constituição de uma cultura técnica não gógicas que organizam o currículo
diz necessariamente que a técnica é um (sejam os programas ou os métodos de
componente da legí tima cultura, incor­ ensiílU e os exames que estes sancio­
porada por todos. A cultura técnica nam) . No plano dos fatos, esse movi­
pode existir e ser reconhecida pela es­ mento é, parece-nos, eminentemnte
cola como própria de certos grupos contraditório: ele provoca uma apro­
sociais. Em outros termos: a prescrição ximação, se não uma identidade, no
de um ensino técnico comum a todos recrutamento dos professores, na no­
conseguiria modificar o estatuto dos menclatura e qualificação dos diplomas,
conhecimentos técnicos e os valores que mas gera, simultaneamente, uma des­
lhe são associados para fazer dos mes­ valorização dos ensinamentos técnicos.
mos valores constitutivos da cultura Perdendo sua autonomia, esses igual­
comum ao conjunto dos grupos for­ mente perderam sua identidade positiva,
madores de uma sociedade, ou per­ para se tornarem modos de escolari­
manecerão especificos dos grupos cujo zação menores, que são def inidos,
trabalho social útil situa-se na produção primeiramente, como "não geral" (19).
(operários e técnicos, especialmente). Isso é particularmente verdadeiro para o
Tais abalos na hierarquia dos conteúdos ensino técnico de curta duração, que se

63
apresenta como uma forma de esco­ de produção. É assim que aproxima­
larização estreitamente associada ao damente um terço dos estudantes
fracasso das aprendizagens escolares no matriculados em Mensurações Físicas
primeiro ciclo (20). Esse movimento são portadores de um "baccalauréat"
seguiu-se de uma desvalorização deste em matemática e física (o mais pres­
ensino, que está registrada nas concep­ tigiado), que aproximadamente três
ções veiculadas por uma disciplina como quartos dos estudantes matriculados em
o francês, conforme mostramos em uma Biologia Aplicada são titulares de um
análise dos temas abordados nos exames "baccalauréat" em ciências físicas e
profissionais (CAP e BEP). Enquanto naturais, e que, contrariamente, dois
que, nos anos cinquenta, as represen­ terços dos estudantes matriculados em
tações organizavam-se em torno da es­ Manutenção Industrial são titulares de
fera do trabalho, vinte anos mais tarde um "baccalauréat" técnico. Quanto às
elas se estendem à totalidade da vida chances objetivas que tem um portador
social. Mas, simultaneamente, o tra­ de "baccalauréat" técnico de aceder à
balho, a técnica e a produção não Escola de Engenharia, elas são extre­
aparecem senão sob imagens depre­ mamente escassas.
ciativas. Assim sendo, o ensino técnico, Poder-se-ia mostrar que o ensino
que tem por objeto especifico transmitir técnico superior encontra-se, assim, de
a ciência dos modos de produção, en­ uma certa maneira, desviado de sua
contra-se desvalorizado e adquire uma função primeira, tendendo a articular-se
conotação negativa. mais estreitamente com o ensino cien­
Ao mesmo tempo que a demanda tifico.
social de competências técnicas de alto Modificar essa hierarquia significa,
nível aumenta, saem, cada ano, da es­ em última instância, redefinir os mo­
cola, sem qualificação, 100.000 jovens, e delos de produção das elites. E, se essa
o fluxo de saída, a nivel de qualificação redefinição passa necessariamente pela
operária, é três vezes superior ao fluxo escola, não está a ela limitada, longe
de saída a nivel técnico. Para puxar os disso. Para efetivar-se, essa mudança
fluxos de saída para cima e agir sobre a exige também outras relações entre
articulação negativa do ensino técnico teoria e prática, outros modos de or­
no ensino geral, projetos preconizam dar ganização e delimitação dos conheci­
uma maior abertura às passagens entre mentos técnicos, diferentes dos fun­
os diversos estabelecimentos: seja entre damentados na separação, exclusão e
os liceus de ensino profissional (LEP) e reificação. São, no entanto, esses prin­
os liceus técnicos (LT), entre os LT e os aptos que presidem, hoje, a distri­
IUT (Institutos Universitários de Tec­ buição dos conhecimentos entre os
nologia), entre estes e as Escolas de En­ diversos segmentos formadores das
genharia. Isto significa que a modifi­ diferentes categorias que vão pôr em
cação da articulação negativa ensino funcionamento o processo de produção:
técnico/ ensino geral se obteria pela ins­ os engenheiros, os técnicos e os ope­
tauração de uma espécie de encadea­ rários. Nós já mostramos, em outra
mento técnico, integrando os diversos oportunidade, que a divisão e a trans­
niveis: inferiores (LEP), intermediários missão dos conhecimentos, realizadas
(L11 e superiores (IUT e Escolas de En­ pela escola, tendem a seguir este mo­
genharia). No plano dos fatos, observa­ vimento descrito por J.M. Lévy-Leblond,
se um movimento inverso. Durante este o qual constata que, quanto mais uma
último periodo de afluxo profissional, o ciência penetra na produção, mais ela
ensino técnico superior (criado em 1965 perde seu caráter "científico": "Há uma
sob a forma dos IUT) tende, efetiva­ verdadeira reificação do conhecimento,
mente, a recrutar, de uma maneira que, nas mãos dos especialistas, se des­
privilegiada, os titulares de um "bac­ cientlfica, no sentido de que toda
calauréat" de ensino geral, em detri­ aproximação teórica, e, portanto, crítica,
mento dos titulares de um "bacca­ dele é excluída, para dar lugar somente à
lauréat" de ensino técnico. Inegavel­ manipulação empírica" (23).
men te, essa seleção se realiza, na Assim sendo, a escola pode per­
medida em que as formações sejam feitamente decretar uma valorização dos
muito ou pouco voltadas para as funções ensinamentos técnicos e lhes dar sig-

64
nificação através de uma mudança na escola para a empresa permitiria ad­
organização dos conhecimentos, mas es­ quirir as qualidades sociais exigidas
sa não se realizará se não for consi­ para exercer o trabalho como ele é or­
derada na divisão do trabalho, isto é, ganizado. De fato, essas aparecem como
caso o ensinamento técnico não par­ Um elemento constitutivo da qualifi­
ticipe efetivamente da produção das cação, na medida em que essa quali­
elites, em concorrência com o ensino ficação não pode se realizar plenamente
geraI(24). a não ser que integre o conhecimento
das condições de funcionamento das
técnicas de produção, conhecimento que
A aproximação escola-produção se acompanha, inevitavelmente, de uma
aprendizagem das relações sociais na
empresa, relações de autoridade e
Esse movimento, que teve ilÚcio no hierarquia, mas também de cooperação
começo dos anos setenta, na França, e solidariedade;
realiza-se com base nas contradições - as que visam a transformar os
geradas pela extensão da escolarização e conteúdos de formação, incorporando a
nas mudanças geradas pela crise nas eles o conhecimento dos novos proce­
condições de acesso ao trabalho, es­ dimentos de produção praticados em
pecialmente pelos jovens. Embora esse um dado momento histórico, particular­
movimento seja tido como um principio mente os procedimentos muito sofis­
geral, ele essencialmente atingiu, no ticados, que não podem ser incorpo­
decorrer deste último decênio, os seg­ rados à escola. De fato, nas sociedades
mentos que se destinam aos alunos em em que os processos de formação
situação de desvantagem, ou seja, con­ realizam-se parte na escola, parte na
cretamente: a "pré-aprendizagem" , dis­ empresa, como na República Federal
positivo destinado aos jovens que saem A lemã, as grandes empresas, que
do aparelho escolar sem qualificação, a utilizam as técnicas mais avançadas, in­
formação profissional do tipo operária tegram o conhecimento destas e a
(nos LEP). Sem analisar aqui as dife­ aprendizagem de seu funcionamento, na
rentes formas assumidas por este formação dos operários, ampliando, as­
movimento, diremos que o direito da sim, de maneira sensível, os conteúdos
empresa de educar e formar impôs-se definidos como caracteristicos de uma
em um contexto de questionamento da dada formação. Mas a situação é di­
escola, na sua função de formação das ferente nas pequenas empresas em que o
competências técnicas e sociais, com processo de formação se confunde ain­
base em um certo fracasso em instruir e da, em grande parte, com o processo de
socializar algumas parcelas da juven­ produção, e encontra-se, por essa
tude. razão, muito marcado por suas carac­
Nestes últimos anos, o principio de teristicas particulare�2S). Em outras
uma aproximação escola-produção palavras, realizada nos locais de pro­
parece dever estender-se ao conjunto dos dução, a formação mostra-se muito
segmentos de ensino e não mais aplicar­ heterogênea: em certos casos, apresenta­
se somente aos segmentos escolares se como um trampolim para a elevação e
profissionais. ampliação dos conhecimentos técnicos,
Esse movimento é legitimado por em outros, como um freio ao conhe­
duas ordens de idéias: cimento dos modos de produção em uso
- as que visam a organizar proces­ em um dado momento em uma dada
sos de socialização profissional que não sociedade.
podem realizar-se na escola, mesmo que Os discursos sobre a necessidade de
esta incorporasse a tecnologia à cultura um deslocamento de uma parte do
que veicula: a aculturação ao meio processo de formação para a empresa, a
profissional implica a aprendizagem de fim de nesta integrar novos conhecimen­
um conjunto de representações, de tos, adquirem um aspecto relativo
valores, de atitudes, de comportamento, devido à diversidade própria do sistema
nos locais mesmos da produção e na produtivo. Por outro lado, a tendência a
prática. Em suma, o deslocamento de visualizar a empresa como sendo, hoje,
uma parte do processo de formação da um lugar de produção de conhecimen-

65
tos, um lugar onde realiza-se a sintese transfonna a escola no local onde os
entre conhecimentos cientificos, co­ mais interessados podem afirmar seus
nhecimentos técnicos e "savoir-faire" pontos de vista próprios: empregadores,
não implica de forma alguma que ela artesões, engenheiros, técnicos, em­
seja o lugar inteiramente indicado para pregados e operários. Em outras pa­
transmitir conhecimentos. Essa de­ lavras, reúne as condições que per­
dução, freqüentemente feita, baseia-se mitem a manifestação e a confrontação
em uma imagem unificada da empresa e de diferentes concepções dos conhe­
ignora a divisão do trabalho que lhe é cimentos técnicos e profissionais a serem
caracteristica. A formação profissional ensinados, de visões de mundo a trans­
constituiu-se enquanto fonnação para o mitir, de valores a fixar. Como tal, ela
trabalho e pelo trabalho correlativamen­ gera igualmente novas contradições , as
te a uma organização do trabalho que das classes e grupos sociais presentes.
pennitia a transmissão dos conhecimen­ Para concluir, lembraremos que as
tos e "savoir-faire" ao mesmo tempo transfonnações tecnológicas não têm o
que a aquisição de identidades socio­ caráter generalizado que lhe atribuem
profissionais. os discursos. Pela sua diversidade, o sis­
O taylorismo, destruindo os coletivos tema produtivo apresenta-se como uma
de trabalho, destruiu também as con­ combinação de processos de trabalho de
dições necessárias para que se efetuas­ diferentes épocas. Por outro lado, se as
sem as aprendizagens teóricas e práticas novas tecnologias produzem rupturas téc­
e para que fosse possível a aquisição de nicas, não geram, necessariamente , rup­
um conhecimento técnico e social dos turas sociais. Neste período de crise e/ou
procedimentos de produção em uso. de mutações tecnológicas, a demanda
Percebe-se perfeitamente que as novas social dirigida à escola, em termos de
tecnologias não são, em si mesmas, nem conhecimentos , competências e quali­
geradoras, nem destruidoras de poten­ ficações, exacerba-se e empurra para o
cialidades de formação, mas elas podem segundo plano as lutas pela igualdade de
revestir-se de cada uma dessas funções, oportunidades. Se os problemas referen­
confonne a organização do trabalho e as tes à formação tendem a ser colocados em
politicas de gestão da mão-de-obra termos estritamente técnicos - a própria
selecionadas pelas empresas. Isto sig­ noção de formação participa desse
nifica que não se pode afinnar, atual­ movimento - não é menos verdadeiro
mente, que as novas atividades profis­ que a prescrição da tecnologia como
sionais em preparação, possuirão poten­ categoria de conhecimentos necessários a
cialidades formativas, nem afirmar a todos leva a questionar os conteúdos cog­
proposição contrária, porque nós não nitivos e culturais veiculados pela escola ,
dispomos de conhecimentos que per­ as relações teoria/prática que aí serão
mitam fazê-lo, seja porque estes são instituídas. a afirmar a necessidade da
muito localizados, seja porque, o mais constituição de uma cultura técnica den­
freqüentemente , derivam de perspec­ tro e fora da escola, a desejar modificar a
tivas às vezes otimistas, às vezes pes­ hierarquia dos conhecimentos estabe­
simistas. lecida. Ao mesmo tempo que a escola é in­
Por essa razão, nós finalizaremos as terpelada na sua função de formação das
considerações sobre essas interrogações, competências e discutida na sua função
lembrando que as relações escola/ em­ de socialização, um conjunto de forças
presas são necessariamente contradi­ sociais procura aproximá-la da produção,
tórias, visto que a escola e a produção a fim de que a organização, o desenvol­
têm lógicas diferentes, e que essas con­ vimento e o controle da fonnação seja
tradições devem ser geridas dentro das partilhada entre as duas instâncias . Mas
suas reivindicações. Pode-se destacar, ao essa análise continua realmente muito
menos, que, dividida entre a escola e a geral, para que se revista de uma perti­
produção, essa formação acarreta uma nência ou de uma utilidade para a ação.
ampliação da equipe de educadores que Particularmente, o leitor deve ter notado,
inclui os próprios produtores. Como tal, ela fica a reboque dos discursos que falam
ela não é mais dominada pelos "experts" em "novas tecnologias" , em lugar de
do saber e da cultura tno mundo es­ questionar as formas concretas e espe­
colar dos professores e inspetores, etc. ) e cíficas de que essas se revestem na escola,

66
como a introdução dos microcompu­ S. E. Durkheim. L'Ivobuion pldaRogique DI
"'rance, Presses Universitaires de France, Paria,
tadores em escolas e colégios, na forma de
1969.
instrumentos didáticos (ou auxiliares na
6. Sara Morgenstem de Finkel, Analysis of educa­
aprendizagem) e a iniciação na linguagem tional policy, Universidad Nacional de Educac­
informática. Ora, essa se define como um tion a Distancfa, Madrid, 1984.
conjunto de regras, de procedimentos e de 7. A noção de "currículo" designa aqui os pro­
vocabulário , e não de significações. Dis­ gramas de ensino prescritos para uma institui­
ção escolar, isto é, os conteddos de ensino su­
tingue-se, assim, totalmente, da lin­
bordinados a objetivos, transmitidos metodica­
guagem natural, utilizada na comuni­ mente, e ocasionando, eventualmente, uma
cação humana. Desde logo, importa avaliação. J. -C. Forquin. "La sociologie du
curriculum en Grande-Bretagne: une nouvelle
saber que sistemas de representação de
approche des enjeux de la scolarisation" in Ca­
mundo, que hábitos de pensamento são hiers du Centre de Recherches Sociologiques,
veiculados, induzidos por essas lin­ Toulouse, mai 1984.

guagens. Essas são, possivelmente, in­ 8. � assim que, no quadro da reforma Berthoin,
cumbências de um soci610go da educação ê introduzida, a título experimental, em 1962,
uma iniciação tecnolcSgica, nas classes de quarta
que se interesse pelas questões tecno- e terceira dos colégios. Em 1977, a reforma
16gicas, tarefas como, por exemplo, Haby busca o mesmo objetivo, mas de uma
forma diferente, visto que programa a educação
revelar o implicito, o escondido (26) . Mas �
manual e técnica (EMT). Em 1984, o ensino da
nos parecia necessário recolocar as in­ tecnologia é definido pela COPRET como uma
terrogações sobre as novas tecnologias síntese da iniciação tecnolcSgica dos anos ses­
senta, por sua orientação intelectual e de EMT,
em uma análise mais ampla do lugar e
por seu método, o da fabricação de objetos. L.
do papel da tecnologia nas relações Geminard. Prlsentation des travaux de la com­
sociais e culturais que a escola ajuda a mission pe17I1ll1Iente sur r enseignement de la
tecnologie (COPREn. Paris, 1984. W. Homer,
produzir, examinando um certo número
L'Uucation technoloBÜlue dans r enseignement
de condições necessárias para transfor­ glnlral en Europe. Etude critique des concep­
má-las. tions et pratiques en France, en Angleterre, en
RFA, en URSS et en ROA INRP, collection
Recherches sur les enseignements technologi­
NOTAS ques, 1985.

9. Este conjunto de medidas faz parte do projeto


de lei - programme sur les enseignements tech­
• Os liceus são estabelecimentos p6blicos que noIogiques et professionnels (n2 2908, Assem­
ministram todo o ensino de 22 grau, que, na blée Nationale), que não será examinado en­
França, divide-se em dois ciclos de três anos quanto tal.
cadà um. Os colEgios ministram apenas o pri­
meiro ciclo do ensino secundário. (N. da T.). 10. Especialmente por meio de revistas, entre as
quais citamos CuIture Techique, editada pelo
CRCT (Centre de Recherche sur la culture tec­
•• Grau universitário concedido apcSs os exames nique) e MÜÜ!ux, editada pelo Centre de Recher­
que finalizam os estudos secund4rios, exigido
che sur la civilisation industrieJle.
para continuação dos estudos em grau superior.
Divide-se em geral ou tEcnico. (N. da T .). 11. V. lsambert - Jamati o mostra bem em uma das
raras obras dedicadas a esse assunto CuIture te­
1. � o que se depreende da leitura de Trena-re­ chnique et crlti4ue sociLJle d r lcole elJmentaire.
port, cujo tema são as pesquisas realizadas DOS Presses Universitaires de France, Paris, 1981.
anos sessenta por V. lsambert-Jamati e J. Mau­ Sobre a resistencia da escola à penetração da
cultura tEcnica, ver também W. Homer, op. cito
corps. lA sociologie de rUucation. Collection
La Sociologie contemporaine, &litions Mou­ 12. G. Simondon, Du mode t1existence des objets
ton, 1972, vol. 20. Lembremos, por outro lado, techniques, Aubier-Montaigne. Paris, 1969, p.
que autores como G. Friedmann ou P. Naville, 36.
nos anos cinqüenta, ou A. Leon, nos anos ses­
Benta, utilizam raramente a noção de formação e 13. Essa dualidade é o produto de uma hist6ria que
o fazem de uma maneira circunscrita, preferin­ J. Guillerme e J. Sebestik tentaram reconstituir
do a ela a de �ucação tEcnica. a partir do momento do surgimento da tecnolo­
gia na sua concepção moderna de discurso ra­
2. M. Dadoy, "Qualification et structures socia­ cional sobre a atividade técnica, no infcio do sé­
les" in Cadres CFDT, juin 1984. culo XVIII, nos pafses germânicos. Na França,
a Revolução de 1789, impregnada de idéias di­
3. O. Bertrand. "Automatisation, affectation de la
fundidas pela Enciclopédia, tinha colocado bem
main-d'oeuvre, formation: I'exemple des ma­
o problema do ensino da tecnologia em todos os
chines-outils à commande numérique", in
nfveis, do elementar ao superior, mas este'
Fonnation Emploi n2 5, janvier-mars 1984. projetos caíram rapidamente em abandono, cú­
4. Todo este parágrafo baseia-se nas reflexões de mo revela um artigo da Revue générale de I'ar­
A. d'Iribarne "Le passage de la formation de chitecture et des travaux publics, em 1945: "o
base à la vie active dans le cadre des nouvelles estudo da tecnologia oficialmente reconhecida é
technologies: la necessi té d'une éducation pro­ tão importante quanto o do manchu .•• Até o dia
fessionelle". Conflrence europlenne sur la de hoje, há somente um professor de tecnologia,
maftrise sociLJle des nouve/1es technologies, CEE, na França, tanto quanto para o chinês e o man­
CEDEFOP, Berlin, novembre 1982. chu ( •••)"

67
J. Guillenne, I. Sebestik, "Lea ooJDllllellCements de cialmeDte 'teia. L. Tanguy, A. Kieffcr,L'1cM
la technologie" in Revue Tholes, Paris, PUF, etfintreprlse, fexpIriena des deux AI1emag1W.
1966. La Documentation française, 1982.
Por outro lado, Pierre Thullier lembra que Le Chã­
telier já observava, no inlcio do século, que, se 19. Essa proposição deve ser atenuada em relação
ao ensino técnico de longa dUração, cujos bae­
os franceses não estão atrasados na �quisa téc­
nica, o atraso é notável na prática dessas desco­ ealaurlats são relativamente valorizados pelos
bertas científicas: dois exemplos: quadros médios e superiores, como testemunha
- no meio militar: "os alemães bombardearam-nos o crescimento da proporção de alunos oriundos
dessas categorias sociais,desde o inlcio dos anos
com os canhões de aço do engenheiro francês
setenta (cf. Antoine Prost. La politique de de­
Martin e com a p61vora sem fumaça do enge­
moeratisation de r enseignement, 1950- 1980,
nheiro Vieille";
Relat6rio para o Commissariat au Plan)
- na microbiologia, "os trabalhos de Pasteur sobre
a fermentação da cerveja foram utilizados na 20. L. Tanguy, "Enseignement technique/enseig­
Dinamarca antes de serem utilizados na Fran­ nement général, intégration et hierarchie" in
ça", Pierre Thuillier, L'Aventure industriel1e, Éehee seoklire Muveaux debuts, MUVelleS ap­
Paris. Éditions Complexe, 1982. proehes sociologiques, Éditions du CNRS, Pa­
ris, 1985.
14. Em alguns aspectos, as novas tecnologias pare­
cem exigir esse movimento. Assim é com "a 21. L. Tanguy, C. Agullon, F. Rope "L'enseigne­
caixa eletrônica que é uma caixa negra, cujo ment du français dans le LEP, miroir d'une
funcionamento exige um conhecimento técnico perte d'identitél, in Études de Linguistique Ap­
que não é transfenvel para uma prática". A. pliqule, mai 1984.
d'Iribarne, Teehnologies Muvel1es, quali.fication
et édueation. L'intúêt d'une approehe societale 22. L. Tanguy, "Les savoirs enseignés aux futura
et eulturel1e, décembre 1982, LEST, Aix-en­ ouvriers",Sociologie du Travail n� 3, 1983.
Provence. 23. J. -M. Lévy Leblond, "Mais ta physique", in L'
15. B. Gilles, "La notion de systeme technique",
idlologie de/dans la seienee. Paris, Le Seuil,
Teehnique et Culture, n. I, 1979, e Histoire des 1977.
teehniques, Éditions Gallimard, 1978. 24. Como o demonstra a anãlise comparativa Fran­
ça/Alemanha. M. Maurice, F. Sellier,J. -J. Sil­
16. J. Chabal, J. Slafer,"Culture technique,educa­ vestre, Politique d'éducation et organisation in­
tion",inCulture Teehnique, n. 2, 1981. dustriel1e, PUF, 1982.
17. G. Simonden, Du mode d'existenee des objets
teehniques, op. cit.,pp. 9-10. 25. L. Tanguy, A. Kieffer, Lécole et r entreprise ,

rexplrienee des deux Al1emagne, op. cito


18. Assim, as mutações tecnol6gicas levam a defi­
26.
. M. -F. D. Young, "Information technology
nir um ensino tecnol6gico apto a romper com
and the sociology of education: somme preli­
uma certa forma de separação teoria/prática e
minary thoughts", British Journal of Education,
assim a aproximar-se da idéia de ensino poli­
v. 5, n. 2, 1984.
técnico, que os pafses, partindo do socialismo,
integraram nos seus sistemas educativos, com a
reserva, que é digna de nota, que este dltimo Este texto, salvo alguns detalhes, foi divulgado
está necessariamente associado ao trabalho. no Colloque lnternational Nouvel1es teehnolo­
Como tal, ele se apresenta como um ensino dos gies, division du travail, fórmation, Montreal,
princlpios de base da ação sobre a matéria e de março, 1985. Atas publicadas pela CEQ (Cen­
sua prática na produção de bens materiais so- trale de I'enseignement du Québec).

***

Artigo originalmente publicado em La Doeumentation Française, n. 13, jan.-mar. 1986, p. 35-42,


aqui publicado com autorização da autora. Tradução de Iara Gonçalves.

***

LUCIE TANGUY é Coordenadora de Pesquisa no CNRS,Paris.

68
Reflexão sobre" educação
e filosofia a prflp ósito do ensino
de filosofia nol\J"e29Graus 'r'> ')1 <

LAETUS MÁRIO verr>

elementos da paisagem em sua conexão

Vo ltOU a '"' objeto de análi,e ,


debates a questão do ensino de filosofia
e em sua individualidade ao mesmo
tempo. Mas esta escalada não está à
margem da vida que se oferece em es­
no 1� e 2� graus. A presente reflexão petáculo no topo da montanha, por­
tem por objeto este ensino, questionado quanto o espetáculo não é nem uma
quanto a seu sentido e valor para a paisagem estável, mas o turbilhão de um
educação da juventude brasileira hoje. processo ao qual pertence a escalada, a
O texto quer ser deliberadamente visão e o ver. O próprio turbilhão ergueu
sintético lembrando apenas os tópicos a montanha a partir da qual se pudesse
centrais da problemática e os motivos contemplar.
que parecem mais convincentes para Mas o turbilhão da vida é o quê? Sou
justificar a volta de um conteúdo de en­ eu a vida, minha vida? Ê a sociedade da
sino que não parece ser tão facilmente qual e na qual vivo? Ê a natureza da
dispensável sem conseqüências inde­ qual eu e a sociedade procedemos? Ê a
sejáveis. cultura, qual sujeito soberano e absoluto
Educação efilosofia formam um que tudo envolve e determina como um
binômio inseparável desde as origens de tempo histórico todo poderoso? Ou exis­
nossa cultura e assim permanecem até te um mero acontecer mais ou menos
hoje. Uma aspira à consciência mais pontual, mais ou menos contingente ou
abrangente, a outra à ação mais to­ totalmente contingente? Este turbilhão
talizadora. Desde aquela origem estão da vida se conduz por uma consciência
associadas intimamente três instâncias ou um inconsciente? Ou é comandado
da vida racional humana: a filosofia, a por ambos? Segundo que regras, que
política e a educação; basta lembrar a princí pios? Ê a luta, por vezes obscura e
utopia da República de Platão. O ambigua, generosa e heróica que engen­
homem, enquanto vida político-histórica, dra tudo ou tudo vive do desejo de
começa a ser levado a si pela educação, reconciliação e de reconhecimento? On­
no espaço reflexivo da filosofia, no qual de estamos? O que somos? Já que tais
toma consciência mais radical e abran­ problemas são tudo menos fictlcios e
gente de sua existência possível e no imaginários, parece ser bom e oportuno
qual o processo educativo se procura fazer refletir o jovem sobre sua iden­
legitimar. tidade e proveniência.
Afi/osofia tem a ver com "tomada A educaçâo é o processo que visa nada
de consciência". Pretende até ser o pos­
mais que a promoção da vida, desta vida
to mais avançado de uma escalada de
turbilhão, segundo sua destinação total.
onde, em princípio, a visão seria mais
total, mais abrangente, mostrando os O desenvolvimento das disposições

EDUCAÇÃO E REALIDADE, Porto Alegre, 14(2):69-72,juYdez. 1989 69


da natureza em sua determinação téc­ Há muitos motivos para compar­
nica, social- pragmática, são o objeto tilhar com a nova geração as preocu­
primeiro ou mais imediato do processo pações filosóf icas de nossa época,
educativo. Mas em tudo estará sempre aquelas preocupações próprias da fi­
visado o desenvolvimento das dispo­ losofia no contexto do tempo presente,
sições morais, isto é, do homem capaz porque certamente, como no irúcio, con­
de se encontrar, de se comunicar, de tinuamos a ter motivos de admiração e
respeitar e ser respeitado, capaz de espanto, de angústia, de perplexidade,
amar, numa palavra, capaz de ser livre e motivos de perguntar pelo sentido do
de se orientar em um mundo natural e que nos sobrevém, de perguntar pelas
histórico. Por isso a advertência de Kant exigências essenciais, pelas condições
pode ser oportunamente lembrada: necessárias e núnimas da justiça, da
"Não se deve educar as crianças segun­ condição humana.
do a situação presente da espécie hu­ O homem sempre habitou o mundo
mana mas segundo seu estado futuro como filósofo. Mas tanto a auto-reflexão
possível e melhor, isto é, de acordo com sobre sua própria experiência quanto o
a idéia de humanidade e sua destinação aprofundamento e legitimação de sua
total" (Kant, in Reflexions, p. 446). consciência mundana são fatos histó­
Assim o filósofo descreve a preocupação ricos tardios. No entanto, desde que se
filosófica por uma verdade concreta que colocou, com o nascimento da filosofia,
deveria animar o empreendimento a exigência de fundar racionalmente a
educativo. Este é o teor da preocupação experiência em sua totalidade, não foi
filosófica do educador. mais possível ignorar este imperativo.
Se agora olharmos para o aluno, Certamente não será necessário en­
logo entenderemos que também ele sinar a admiração, o valor da verdade,
deverá assumir, pela vida afora, uma da liberdade e da justiça. Mas a estas
visão, uma consciência e um compor­ certezas obscuras, desde sempre dadas e
tamento animado pelo ethos filosófico. intuídas, a filosofia confere maior
Estamos, pois, em educação, com­ claridade no espaço do discurso e da ar­
prometidos com a questão da totalidade gumentação, elevando-as à vida da cons­
do homem na totalidade da verdade, do ciência social e histórica.
mundo do sentido. Nada tão proble­ Ainda hoje parece-nos difícil, senão
mático hoje, quanto a questão da to­ impossível, que a vida se possa processar
talidade, do sentido. O jovem hoje vive e huma namente num espaço cultural
experiencia de muitas f ormas este como o nosso, altamente reflexivo,
problema. Nada mais justo que, através ideologizado, trabalhado por complexos
de maior aproximação do pen­ e múltiplos códigos mais e mais ela­
samento filosófico, seja informado sobre borados, sem que a necessidade de sen­
os termos em que a questão está sendo tido, de verdade, tão caracteristica do
colocada hoje, que tome conhecimento homem, se socorra de um certo poder
dos esforços imensos que estão sendo cri tico e totalizador ao mesmo tempo
desdobrados em torno da questão do que permita ao indivíduo encontrar os
sentido, da verdade, das condições da suportes para sustentarem uma ação,
liberdade. um comportamento coerente consigo
A reflexão filosófica é instância não mesmo neste espaço cultural. Porque a
só totalizadora, unificadora dos do­ ordem racional a que temos que nos
núnios, da multiplicidade, mas também submeter na existência concreta está
a instância critica, o momento da ne­ longe de satisfazer ou expressar os in­
gação, quando a vida se recolhe para teresses que definem o homem e suas
preservar, ainda que confusamente, sua possibilidades históricas. Como resgatar
identidade , mesmo que não seJa mais que a vida da sofística generalizada, da
para tentar uma imagem mais convincen­ positividade imperante, para um mí­
te de suas próprias certezas e amores. Por nimo de unidade e sentido que nos per­
tudo isso a filosofia vem diretamente ao mita conviver numa comunidade hu­
encontro da intencionalidade educa­ mana? Esta exigência de sentido e iden­
cional, que se desdobra contando com o tidade é condição núnima e universal e
pres!>uposto de que o jovem está propenso se realiza na infinidade dos modos cul­
a perguntar e a questionar. turais e dos tempos históricos. Mas tan-

70
to mais esta intencionalidade se frustra sabilidades e que se define como respon­
quanto mais a experiência social nos faz sabilidade politica de participar no
experienciar a dilaceração dos vinculos trabalho de construção comum da vida
humanos e a dificuldade do encontro em comum, de uma sociedade eman­
num espaço comum onde novamente cipada e livre.
façamos a experiência da razão e da O endereço primeiro da educação é o
liberdade, para lembrar um pensamento individuo-pessoa. Ele é o alvo e o sujeito
de Gadamer (Gadamer, 1983, p. 48). primeiro da ação educativa. Este in­
Esta razão e liberdade só serão possí veis dividuo, que importa ser educado, é seu
na comunidade e no espaço do discurso mundo, seu universo complexo, or­
e da ação. denado em vários patamares e esferas,
Tudo isso é bem sabido, mas pouco mundo no qual mundos se articulam,
meditado. Não mais havia motivos para modos intencionais de vida se imbricam,
ensinar nossos jovens a filosofar. Em compondo o projeto no qual a vida se
certos setores sociais a jovem geração analisa e se expõe como inalienável
deixa de ouvir as vozes dos poetas, dos exigência de unidade, de sentido na com­
mitos e dos profetas, por isso presu­ plexidade dos modos de estar no mundo e
mivelmente está mais necessitada de com os outros. Esta complexidade ori­
ouvir a voz da reflexão filosófica. Temos ginária torna difícil O empreendimento
que imitar novamente os gregos, que educativo se estiver preocupado tanto em
inauguraram esta atitude e ntre os respeitar a exigência de unicidade da pes­
homens, e fazer valer o poder organi­ soa quanto em promover a dimensão
zador do conceito por sobre a infinita universal e comunicativa da vida na
multiplicidade. Ou será mais esta volta comunidade humana e na natureza. Não
ao conceito um movimento contra o é fácil educar, portanto, para a auten­
poder sem limites da história? Não é o ticidade irrepetível e para a comunicação
instante sua verdade suficiente? Já não sem limites da vida política e comuni­
sabemos que o conceito e o sistema é a tária. Sentimos o evidente predomínio de
inverdade do ser? A isso se pode opor o um estilo de racionalidade que cultiva o
contrário: não é a verdade já sempre poder de manipular o mundo objetivo
comunicável? Não nasce ela no aberto sobre o poder de ordenar a vida para seus
do encontro? Já não a supõem os discur­ interesses políticos e éticos. Existe um
sos que a negam? Mas onde está a ver­ evidente problema de liberdade, de
dade: na luta ou na reconciliação? Na emancipação, à procura de sua razão ou
dominação técnica ou no reconhecimen­ de suas razões e caminhos para se firmar
to do outro? frente ao poder, à coação inconsciente e
Importa pois manter ou reavivar a consciente.
capacidade da admiração, pois não tudo Ê evidente a confluência na atuali­
é banal. Kosik nos alerta contra a ten­ dade, das preocupações filosóficas com os
tação de sucumbirmos ao bom senso, problemas mais sentidos no âmbito da
contra a inflação do óbvio (Kosik, 1969, educação: como traduzir, para o tempo
p. 198). O que é, por exemplo, mais presente, as exigências da liberdade, da
banal que a questão da liberdade? Mas, justiça. Os avanços da reflexão e da auto­
o que é mais problemático do que ela? reflexão do homem no âmbito da filosofia
O que é menos óbvio, menos banal? beneficiam uma educação voltada desde
Somos avassalados por uma mul­ sempre à promoção do homem em sua
tidão de questões e respostas; problemas verdade e liberdade possíveis.
nos são propostos, soluções são aven­ Com isso se torna inevitável que a
tadas e cresce a impressão de que o es­ educação se interrogue frente à filosofia
sencial permanece oculto e não dito e as sobre o possível lugar ou critério da ver­
mais das vezes positivamente silenciado. dade capaz de dar unidade e sentido ao
Se faz sentir de mil formas um poder do processo educativo. Sem um critério de
qual não dispomos; um saber que não verdade para o projeto pedagógico será
nos advém por trabalho próprio. Somos difícil promover uma ação coerente no
trabalhados pelo tempo sem que sai­ universo complexo da educação formal.
bamos para onde seremos levados. Mas Muito menos será possível ser sujeito do
esta consciência é também suficiente processo histórico. As situações se su­
para despertarmos para novas respon- cedem sem que o educador tenha ca-

71
pacidade de decürar a mensagem do a totalidade que se reduz no desterro do
momento no interesse da educação dos sujeito, tanto mais profunda é a sua ten­
jovens e da infância. Onde encontrar o dência para a dissolução" (Adorno ,
centro da gravidade no qual o discurso Negative Dialektik, Suhrkamp, 1966, p.
consiga organizar a experiência e orientar 337 cf. G. Bornheim, 1981, p. 46).
a educação? (a) O saber extensivo não Em filosofia, como em educação, não
mais obedece a um conceito intensivo on­ há como ignorar o problema do sentido,
de se pudesse acolher na unidade da idéia. da liberdade, da totalidade. Ê a posição
(b) Ou, quem sabe, o homem vive do da totalidade, do sistema, garantia de
trabalho e no trabalho em diálogo sem fim sentido, de verdade, de liberdade ou do
com a natureza e o melhor que pode é en­ terror? Ê a abdicação da totalidade
tregar-se a inteligência de suas próprias equivalente à proclamação do vazio, do
mãos fazendo-as o ponto de partida para sem-sentido, do arbítrio ou condição da
a ordenação racional-dialética da vida? liberdade?
Quem pode nos ajudar? Hegel, Marx, São problemas para a Filosofia e para
Foucault? (c) Ou com Sartre procla­ a Educação.
mamos os direitos, as exigências da liber­
dade comprometida com a liberdade de
todos e nos dedicamos a um infinito REFERÍl.NCIAS BIBLIOGRÁFICAS
processo de totalização dos projetos? (d)
Ou a verdade se pode dar no diálogo irres­ 1. ADORNO. Negative dialektik suhrkamp. 1966.
trito livre de coação? (e) Ou deve a 2. G. BORNHEIM. Vigência de Hegel: os impasses
da categoria da totalidade in Hegel. Brasí­
educação hoje deixar-se inspirar por uma
lia, Cadernos de UnB, 1981.
ampla sabedoria pragmática visando à
3. H. G. GADEMER. A razão na época da ci2ncia.
maior felicidade comum e minorar o Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1983.
sofrimento presente?
4. KANT. Rejlexions sur reducation. Trad. e Intr.
Não haverá mais nenhuma totalidade de A. Philonenko. Paris, Vrin, 1966.
capaz de nos inspirar sem causar o terror 5. K. KOSIK. Dialética do concreto. Rio de Janei­
totalitário? (Merleau-Ponty, 1968). Aqui ro,Paze Terra, 1969.
recordamos Adorno quando escreve: 6. M. MERLEAU-PONTY. Humanismo e terror.
"quanto mais a sociedade contribui para Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968.

***

Trabalho apresentado no Seminário Estadual do Ensino de Filosofia,Porto Alegre, 25 a 26 de agosto


de 1988.

***

Laetus M. Veit é professor do Departamento de Estudos Básicos da Faculdade de Educação da


UFRGS.

72
. p:ptuma soçiblogi;;t da
,v '�, .',<' ">";,, ' ;" __ ,
, _ _; _; "
_ _:/ _'" , _ _ �., ,,' _ , _ :

S
tribuição devida ao orocesso de de­
mocratização da educação.
ua falta de at'ação é c.,tamente Como de ousadia, vou tentar des­
responsável, em grande parte, pelo trinchar este espinhoso assunto, corren­
pequeno número de estudiosos que a ela do o risco quase certo de alguns ara­
se dedicam, deixando a descoberto nhões. Acho, entretanto, imprescindível,
vários pontos de grande importância e a esta altura, um pronunciamento sin­
de graves conseqüências sbbre o de­ cero sobre um assunto tabu evitado por
senrolar do processo educativo . muitos, mas reconhecidamente inevi­
Assunto quase "maldito", identi­ tável, se quisermos tratar devidamente
ficado por grande parte da comunidade do problema da democratização da
acadêmica especialmente com funções educação, já que a avaliação é parte
de controle e de repressão, a avaliação inerente dessa, como de muitas outras
teve sua história como disciplina mar­ atividades humanas.
cada por alguns percalços, que só fi­ Invoco agora o testemunho e as luzes
zeram ressaltar seu caráter restritivo e de Miguel Arroyo, em seu livro Da es­
pouco simpático. Foi o caso de sua cola carente à escola possível (Arroyo,
quase total identificação com os proces­ 1986). No estudo introdutório aos vários
sos de mensuração e elaboração de tes­ trabalh os reunidos no livro, todos
tes, com vistas a aquilatar precisamente tratando de experiências relativas aos
os progressos dos alunos em sua pas­ muitos problemas de nossa educação
sagem pela instituição escolar. Foi tam­ básica, Arroyo alerta-nos para o risco de
bém o caso de sua subordinação irres­ considerarmos feita e completa a critica
trita à perseguição de objetivos instru­ às concepções tradicionais, ou mesmo
cionais pré-estabelecidos para o processo mais recentes, com relação a uma es­
educacional, num arremedo, visto agora cola marcada pelo favorecimento claro e
à distância no tempo como quase cô­ domínio exclusivo de uma determinada
mico, do que se passa em algumas áreas classe social. Percebe-se em toda a ar­
de atividades, onde a previsão e o con­ gumentação desenvolvida pelo autor, a
trole são não apenas possíveis, mas necessidade de expansão dessa critica,
necessários. Pois esses e outros percalços sobretudo em seus aspectos orientados
assinalaram de forma acentuada a fi­ para a prática e a formação do profes­
sionomia dessa disciplina, dificultando sor. É necessário, portanto, muito esfor­
seu pleno desenvolvimento como campo ço de reflexão teórica, bem como de ob­
de investigação e, conseqüentemente, servação empírica, para a construção
reduzindo consideravelmente sua con- do conhecimento indispensável para

EDUCAÇÃO E REALIDADE, Porto Alegre, 14(2):73-77,juYdez. 1989 73


uma ação lúcida, que possa enfrentar obedece fielmente, sem mesmo se dar
com sucesso os muitos problemas no conta disso. Um artigo muito interes­
caminho da efetivação de uma escola sante, de um autor inglês, capta muito
diferente, comprometida com a trans­ bem essa ironia (HextaU, 1976).
formação social. Curiosamente vários desses aspectos
Um dos aspectos mais opacos, vitais do funcionamento comum de uma
menos iluminados pela reflexão teórica escola têm sido completamente igno­
c� tica, no campo da educação, é jus­ rados pelos estudiosos de sociologia da
tamente o da avaliação. Livros, como o educação, que entretanto reclamam, por
citado de Arroyo, ou o publicado por outro lado, da falta de efetividade dos
um grupo de pesquisadores da Fun­ seus achados, relativos a aspectos mais
dação Carlos Chagas, sobre a Escola de gerais e abrangentes. Pois atrevo-me a
tempo integral (Paro e outros, 1988), dizer que a falta de atenção sociológica
denunciam muito claramente vários dos para alguns desses detalhes pode vir
graves problemas ligados à expansão da sendo um dos fatores responsáveis pelo
educação básica, e em quase todos distanciamento, sistematicamente regis­
pode-se entrever a importância e a trado por tantos estudos, entre a teoria
carência de uma conceituação clara e educacional e a prática pedagógica.
adequada da avaliação educacional. Já tive ocasião anterior de propor es­
E especialmente no estudo do dia-a­ te ponto para discussão (Uidke, 1987),
dia das escolas que se pode observar mas gostaria de expandi-lo um pouco
claramente, tanto a insuficiência da mais agora. Trata-se de reivindicar um
análise teórica disponível hoje em tratamento sociológico para as questões
educação, como o pronunciado hiato da avaliação escolar. Como e por que
entre essa l).nálise e a prática cotidiana atuam os principais agentes envolvidos
dos professores, como bem alertou no processo avaliativo dentro da escola?
Arroyo. Não quero com isso afirmar seja O que efetivamente leva o professor a
que o conhecimento teórico seria su­ classificar seus alunos drasticamente em
ficiente para determinar a mudança da aprovados e reprovados, assinalando as­
escola na direção desejada, seja que o sim fortemente o destino de uns e de
estudo da realidade escolar, no seu dia­ outros? Ê claro que não se trata de um
a-dia, seria por si só bastante para cons­ ato de puro e espontâneo voluntarismo
truir esse conhecimento teórico. Ao con­ ou de uma decisão estritamente pessoal.
trário, é preciso exatamente extrapolar Há uma série de forças e pressões agin­
essa realidade, estabelecendo as co­ do sobre o professor e toda a escola, mas
nexões necessárias entre ela e a vasta como na realidade atuam essas forças e
totalidade da sociedade industrial onde como reage o professor, se é que tem al­
ela está inserida. É ai que se desenrola o gum espaço para reagir? Quem é esse
jogo da luta entre as classes, que tão professor e como foi sua formação, tanto
consistentemente vem envolvendo a es­ na escola de Segundo Grau, a Escola
coia básica, colocando-a sempre a ser­ Normal, quanto no exercicio de sua
viço de uma dessas classes. A história da profissão, em termos da conceituação
educação vem demonstrando isso que hoje ele tem sobre avaliação? O que
claramente e não apenas em nosso pais. realmente conta para ele na hora das
O que não tem sido claramente decisões cruciais sobre os alunos e o que
demonstrado, ou sequer devidamente sabe ele sobre todo o jogo de forças
estudado, é o intrincado mecanismo da sociais envolvidas nessas decisões? E
avaliação, do qual se serve por sua vez a quem é esse aluno, sobre o qual pouco
escola, para executu sua função se­ sabemos sistematicamente, além de que
letiva. Essa função passa entretanto des­ é membro das "classes subalternas"?
percebida, por vezes, até do mestre Como são suas reações individuais e
mais atento, aquele que se crê e declara coletivas ao processo de avaliação? E
um democrata, ao distribuir cuida­ seus pais, como vêem e avaliam a escola
dosamente suas notas aos alunos, sem e que participação têm ou poderiam ter
perceber que por esse simples mecanis­ naquele processo? Oual o papel do
mo pode estar respondendo exatamente diretor e da equipe técnica da escola,
a determinações ditadas por forças ex­ ainda que todas essas personagens men­
ternas e superiores à escola, às quais ele cionadas estejam necessariamente

74
subordinadas ao jogo pesado dos in­ "working class", numa reivindicação
teresses da sociedade maior? E como se política, cujo seguimento não é possível
joga esse jogo dentro da esfera menor da traçar aqui. O que interessa destacar é a
escola? relação por eles traçada entre a com­
Para tentar responder a essas e a posição do curriculum na escola e a das
muitas outras questões de cunho so­ classes na sociedade. Fica bastante
ciológico, no âmbito da avaliação es­ claro, a partir de então, que a escolha
colar, não há ainda dispomvel um re­ de determinadas disciplinas, e não de
pertório considerável de sugestões, or­ outras, de alguns conteúdos em de­
ganizado de modo articulado. Há, en­ trimento de outros, não é absolutamente
tretanto, contribuições mais ou menos gratuita, mas segue interessese e pro­
isoladas merecendo, sem dúvida, um es­ voca conseqüências bem e proposita­
forço de sistematização , que as torne Íns­ damente estabelecidos.
trumentos úteis para análise e com­ Não seria possível explorar aqui toda
preensão dos problemas tão complexos a riqueza desse importante veio de pes­
incluídos naquele âmbito. Gostaria de quisa, que durante todo esse tempo, a
destacar, embora muito brevemente, al­ partir do imcio dos anos 70, vem se
gumas dessas contribuições, e também desenvolvendo, embora com ritmo ir­
de indicar, ainda que de maneira não regular. Só para indicar a variedade de
exaustiva, questões por elas apontadas temas a ele relacionados, gostaria de
que mereceriam, a meu ver, destaque mencionar uma de suas mais recentes
dentro de uma agenda mínima de inves­ incursões: a história das disciplinas do
tigações sobre a área especifica. curso secundário, através de uma série
Embora mereça especial conside­ de pesquisas lideradas por I. Goodson
ração a contribuição de Bourdieu, com (1985).
os seus conceitos de "capital cultural" e No que se refere à avaliação, con­
de "hábitus", auxiliando a compreensão sidero particularmente importante as­
do papel da instituição escolar, na con­ sinalar que muitos dos problemas com
servação da sociedade e de sua cultura, os quais nos debatemos, dentro do
foi na Inglaterra que surgiu a principal quadro de reprovação e evasão maciças
fonte de tratamento teórico para um no primeiro grau, estão diretamente
manancial de problemas que inundam a relacionados com a composição cur­
escola básica e, portanto, a avaliação ricular escolhida (por quem?) para esse
dentro dela. Trata-se da sociologia do grau de ensino. Aliás, o mesmo se pode
curriculo, bandeira principal do mo­ afirmar em relação aos demais graus,
vimento iniciado oficialmente em 1971, obviamente sem as mesmas drásticas
com a publicação do livro de M. Y oung conseqüências seletivas que ocorrem no
Knowledge and control e que receberia Primeiro Grau. Ê bom lembrar, en­
mais tarde a denominação de Nova tretanto, se isto puder nos consolar, que
sociologia da educação. Não é o caso de até hoje (ou até recentemente), os so­
se traçar a trajetória desse movimento ciólogos ingleses continuam se debaten­
aqut mas de destacar a importância dos do com essa questão crucial, como se
estudos sociológicos sobre curri cu lo, no pode verificar pelo agudo estudo de P.
que se refere à avaliação. Inicialmente Willis (1977), cujo título é Learning to
colocada por Bernstein, mas logo as­ labour, mas cujo expressivo subtítulo
sumida e desenvolvida por outros mem­ diz: "Como os garotos da classe tra­
bros da corrente, a idéia básica é que há balhadora conseguem empregos de clas­
um sistema social de escolhas sobre se trabalhadora". E a leitura do estudo
como é distribuído o tempo educacional revela por inteiro a responsabilidade da
ou qual é o status dos vários conteúdos, escola e sobretudo da reprovação (da
ou como estes se relacionam entre si. A avaliação portanto) na atribuição final,
partir dessas escolhas surge a conste­ desses empregos a esses garotos. Aqui
lação chamada curriculum. Para os entre nós não me parece que aconteça
sociólogos da nova corrente essa co­ exatamente a mesma coisa, pois os nos­
locação era fundamental, pois um dos sos rapazes da classe trabalhadora nem
principais, se não o principal objeto de chegam à escola do tipo daquela fo­
estudu para eles era a adequação da es­ calizada por Willis. De todo o jeito
cola basica às necessidades dos filhos da valeria a pena um estudo semelhante.

75
Ainda da Inglaterra gostaria de des­ lógica de pesquisa sobre avaliação es­
tacar a contribuição de P. Broadfoot, colar, ainda que apenas tentativa. Al­
com um interessante estudo histórico guns deles são bastante especificos de
sobre a avaliação, acompanhando a nossa cultura escolar, tais como o da
própria história da instituição escolar composição de classes homogêneas ou
(Broadfoot, 1979). Embora se refira a heterogêneas, como mais convenientes
seu pais, a autora traz interessantes dis­ ou não, para o aproveitamento d o
cussões sobre questões fundamentais, aluno, o u a questão do caráter cu­
como a da seriação, por exemplo, fe­ mulativo das notas entre os bimestres,
nômeno relativamente recente na vida ou ainda o questionado papel do con­
da escola, mas de tão graves repercus­ selho de classe, ou a debatida possi­
sões sobre a vida dos alunos. As poucas bilidade da auto-avaliação dos alunos.
e importantes iniciativas institucionais Outros problemas são de natureza mais
que tentaram, ou estão tentando, de al­ ampla ou geral mesmo, como a impor­
guma forma, romper com esse sistema, tante questão da distribuição do poder
merecem indiscutivelmente a atenção de dentro da escola e sua repercussão sobre
uma investigação de cunho sociológico, a avaliação do aluno; a delicada questão
para extrair as lições vividas por elas da autonomia do professor, do diretor e
sobre essa dificil questão. É o caso do até mesmo da escola, frente aos órgãos
sistema escolar de Santa Catarina e centrais da administração do sistema es­
também de algumas experiências colar; a importante questão da parti­
menores de Minas Gerais e do Distrito cipação dos pais e da comunidade na
Federal (Cf. MEC, 1985). Ainda a P. gestão da escola e, portanto, sobre o
Broadf oot devemos alguns estudos próprio processo de a valiação dos
muito oportunos sobre o papel dos cer­ alunos.
tificados na trajetória educacional dos Esta é apenas uma agenda inicial e
indivíduos e, portanto, da sociedade. sobretudo sugestiva. Acho que a ava­
Novamente é toda uma gama de suges­ liação do aluno pode favorecer o esforço
tões que se abrem para estudos se­ de democratização da educação, se se
melhantes, aqui entre nós, por exemplo, beneficiar do conhecimento adequado
sobre os exames supletivos, ou outros dos fenômenos envolvidos em seu
certificados. processo. Não esqueço que ela se res­
Bem dentro da perspectiva da escola tringe aos limites já por si estreitos da
de Primeiro Grau, embora estudando atividade escolar. Mas também não pos­
uma realidade tão distante da nossa, so esquecer que até agora, mesmo den­
como a de Genebra, destaca-se a con­ tro desses limites, ela vem servindo
tribuição de Ph. Perrenoud, com seu in­ muito mais aos interesses já sobejamente
teressante livro, cujo titulo já encerra a servidos pela escola marcada pela
mensagem: A fabricação da excelência subordinação às classes dominantes. Se
escolar (1984). Não pretendo repetir quisermos romper essa ordem, é indis­
aqui a análise, ainda que breve, já feita pensável conhecermos bem os mecanis­
anteriormente (Lüdke, 1987), mas mos avaliativos, sobretudo seus com­
apenas reafirmar a riqueza e a ade­ ponentes sociológicos.
quação do tratamento decididamente Gostaria de terminar emprestando
sociológico que esse autor dá aos fe­ uma feliz expressão do grupo de pes­
nômenos avaliativos na escola. Tendo quisadores da Fundação Carlos Chagas,
passado com sua equipp vários anos es­ já citado:
tudando o sistema escolar genebrino, ele
oferece um quadro extremamente de­
talhado e profundamente analisado da "O fato de que a superação da in­
realidade da escola. justiça social e das contradições de
Ao lado dos recursos teóricos e classe não se resolva nos limites da
metodológicos e dos problemas obser­ escola, mas deva constituir-se numa
vados pela literatura dispOlÚ vel em âm­ luta que perpassa todo o social, não
bito internacional, gostaria de apontar deve obcurecer a constatação de que
também para alguns problemas ainda a escola tem um papel a cumprir no
não mencionados e que merecem sem atendimento do direito à cidadania
dúvida constar de uma agenda socio- r elacionado à apropriação do saber

76
historicamente acumulado" )Paro e GOODSON, I. Social histories of the seconáary cur­
riculum. Londres, The Falmer Press, 1985.
outros, 1988, p. 199).
HEXTALL, I. MaI"king Work. In: WHITTY, G.&
YOUNG, M. (ed.). Explorations in the poütics
of sclwol knowledge. Nafferton, Nafferton Bo­
Espero com este trabalho, ainda que
oks, 1976.
bastante sintético, ter contribuído para
LÜDKE, M. A caminho de uma sociologia da ava­
um merecido e necessário resgate da liação escolar. Educação e sekçlJo. Fundação
avaliação escolar, como tema de estudo Carlos Chagas,jul.-dez., n. 16, 1987.
acadêmico mais adequadamente situado MEC - Secretaria de Ensino de 1� e 2� Graus Avan­
e politicamente proposto. ços progressivos. Brasflia, 1985.
PARO, V. et alii. Escola de tempo integral. S. Pau­
lo, Cortez, 1988.

PERRENOUD, Ph. La fabrication de rexceUence


REFER�NCIAS BIBLIOGRÁFICAS
scolaire. Genebra-Paris, Droz, 1984.
ARROYO, M. (org.) Da escola carente descola WlLLIS, P. Leanúng to /abour. Farnborough, Sa­
passfvel. São Paulo, Loyola, 1986. xon House, 1977.

BROADFOOT, P. Assessment, schools and society. YOUNG, M. (ed.). Knowkdge and contrai. Lon­
Londres, Methuen, 1979. dres, Collier-MacMilan, 1971.

***

Trabalho apresentado no simp6sio "A avaliação do aluno e a questão curricular", V CBE, Brasflia,
agosto de 1988.

***

Menga Lüdke é professora da Universidade Federal Fluminense e da PUC-RI.

77
1. INTRODUÇÃO indissolubilidade teoria/prática, na tarefa
de não descuidar parcelas úteis e neces­
Ê uma tarefa difícil apresentar sárias para o corpo revolucionário.
Gramsci na sua faceta pedagógica­ Nesse sentido. a formacão de Grams­
educativa, uma vez que se faz necessária ci estará marcada por um estudo
para sua compreensão a inserção em um profundo da obra de Marx e Engels, o
código político (e no mesmo sentido desenlace da Revolução Soviética, o
moral e conceitual) que permita uma contato pessoal com Lênin e o conhe­
colocação precisa e que não desfigure a cimento de seus escritos, o choque com
personalidade única e total do marxista a prática de luta da Turim dos anos vin­
italiano. Levando em conta a evidente te, a militância no Partido Socialista
limitação de um artigo, tentaremos Italiano antes da ruptura que dá origem
apresentar algumas das linhas essenciais ao Partido Comunista, e o trabalho sis­
das proposições teórico-práticas grams­ temático sobre a obra de Benedetto
cianas, com referências freqüentes a Croce (2). Gramsci constituirá, além
notas esclarecedoras, que permitam o disso, o nexo necessário do marxismo
aprofundamento em algum aspecto de para a Europa Ocidental, em um con­
interesse para o leitor. texto sócio-político diferente por suas
Uma visão honesta de Gramsci exige caracteristicas histórias (Lênin e Rús­
que o qualifiquemos como um político sia), e com o marxismo originário de­
marxista integro, que trata de aplicar o senvolvido em outra época e em outras
materialismo histórico de forma dia­ condições. Aparece como o unificador
lética à sua realidade e que coloca - sistemático e orgânico das contribuições
como bom representante da tradição de teóricas e das realizações práticas re­
luta revolucionária anterior - seu ob­ volucionárias. Ê, pois, o centro de uma
jetivo principal na instauração do poder dupla dimensão espaço-temporal (3).
de classe do proletariado (1). Toda a sua A importância de Gramsci pode ser
argumentação teórica e sua ação política deduzida a partir de outra perspectiva.
está subordinada a esse fim a médio Ele será, juntamente com Lukács e Kor­
prazo. Assim, o "Gramsci pedagogo", sch, o último marxista (no sentido pleno
que critica o novo cientificismo socio­ do termo) do mundo ocidental. Todos os
lógico, que analisa as normas sociais e autores anteriores haviam evitado a dis­
metodológicas da educação, que se sociação teoria/prática: não se concebia
ocupa de um currículo apropriado para a elaboração teórica separada da rea­
o ensino primário... é o mesmo que en­ lidade social, do trabalho no partido, da
cabeça a luta nas ruas de Turim, o que politica responsável - não entendida
trabalha na organização dos conselhos como profissão. O trabalho teórico pos­
operários no partido. Um Gramsci fiel à terior é o produto da transformação do

78 EDUCAÇÃO E REALIDADE, Porto Alegre, 14(2):78-88, juUdez. 1989


marxismo em um socialismo de cátedra, uma terminologia moderada, que fala
desligado de suas raízes e de seus fins de "filosofia da práxis" no lugar de
hist6ricos. A confrontação da teoria marxismo, de hegemonia referida às
revolucionária desloca seu eixo da rua vezes à ditadura do proletariado... O
para a universidade e seminários es­ ponto escolhido para esta mudança de
pecializados (a nova relação se dá entre enfoque seria o momento da prisão. Es­
a teoria marxista e a teoria burguesa). sa interpretação tendenciosa passa por
Desenvolve-se uma corrente formal de cima de coisas demasiadamente relevan­
pensamento - em pleno apogeu - e tes: as condições de vida nos cárceres
uma práxis cotidiana representada pelos fascistas e a intenção de despistar os
políticos profissionais (4). censores, razão pela qual toda reflexão
Devemos insistir na herança leninista errônea justifica-se pelo afastamento for­
de Gramsci, que o identifica como o çado da realidade social. Esquece, igual­
melhor continuador das diretrizes mente, o caráter dialético do materialis­
ideol6gico-políticas do revolucionário mo histórico, este contínuo fazer-se da
russo. Herança assumida, que ele, por teoria, que não pode dogmatizar-se e pas­
outro lado, encarrega-se de reiterar ao sar por cima das mudanças sócio-políticas
longo de sua obra. Unin e a Revolução que se produzem tanto na Itália, onde vive
Soviética constituíram uma importante Gramsci, como a nível europeu e muno
base crítica e argumentativa na maior dial(9). Gramsci nega teórica e politi­
parte dos escritos gramscianos, inclusive camente o pretendido caráter conclusivo
os do cárcere. Hegemonia, bloco his­ do legado marxista, postura defendida
t6rico, partido ("novo príncipe"), con­ então como na atualidade, apesar da
selhos de fábrica, frente única, guerra aprendizagem histórica efetuada (10).
de posição... se, efetivamente, apresen­
tam em Gramsci um desenvolvimento Essa renovação constante de seus
inusitado quanto à profundidade e conceitos centrais, as mudanças bruscas
clareza teórico-conceitual e prática, da situação política, o aspecto fragmen­
fixam suas raízes hist6ricas na for­ tário de seus escritos carcerários, a
mulação leninista e, em geral, na so­ própria ambigüidade - por causa da
viética anterior e posterior à Revolução situação de encarcerado - com que
(os debates da III!l Internacional até a trata algumas de suas contribuições
morte de Unin podem servir de exem­ mais originais têm como resultado a
plo). Todos esses conceitos nunca cons­ dificuldade para a análise, o estudo e a
tituíram posturas acabadas, mas sofrem interpretação - apesar da coerência
uma contínua revisão, fruto de sua con­ global - das questões fundamentais dos
cepção histórico-social (5). As mesmas escritos gramscianos. Os diferentes ter­
considerações são válidas para a s mos que se organizam ao redor do eixo
análises d e correlações de forças ligadas principal do domínio e direção hege­
à necessidade da "revolução em um s6 mônica (bloco hist6rico, sociedade civil,
país", a partir de um modelo nacional­ estado-sociedade política, partido, etc.)
popular hegemonizado pelo partido não são exeqüíveis senão em referencia a
operário como de melhor proveito ao in­ um contexto concreto e específico:
ternacionalismo proletário (6). Podemos social, político, econômico e histórico.
afirmar, igualmente, que Gramsci nun­ Qualquer abstração nesse sentido tor­
ca renuncia, ainda que nas situações naria insolúvel toda a tarefa de inves­
mais confusas, ao meio tradicional tigação pretendida (11).
mediante o qual o dirigismo ideológico A hegemonia, como direção cultural
do partido operário transforma-se tam­ e ideológico-consensual, vai desfrutar de
b ém em uma opção politicamente um caráter preferencial n a an álise
dominante, e que não é outro senão a gramsciana (12). Partindo dessa noção
necessária Ditadura do Proletariado (7). central, Gramsci realiza um estudo sis­
Existe uma posição, nem sempre temático das instâncias educacionais
reconhecida, que pretende realizar uma italianas (valor do sistema e do enfoque
separação interessada entre o jovem educacional para que a burguesia incor­
Gramsci (revolucionário romântico, pore ao desfrute do domínio político a
agitador e imaturo) e o Gramsci maduro corrente diretivo-consensual), ou, ao
e reflexivo - corte semelh an te se contrário, trata de atribuir papéis a uma
pretende com Marx (8) - que utiliza educação de novo tipo que ajude a in-
79
verter, a favor da classe operária, a or­ titua um elemento de um modelo di­
dem hegemônica existente (13). Das três dático-pedagógico aparentemente or­
definições de hegemonia a que chega denado e sistematizado, é gerada no
Gramsci ao longo de sua obra, duas vazio, se se manifesta de forma indepen­
delas obedecem a uma análise que res­ dente e isolada.
ponde a situações excepcionais, quer Em outras palavras, e a partir de
sejam de tipo social e político quer de uma perspectiva dialética, o pedagógico
tipo teórico (14). A solução correta é inteligível somente em relação a um
parece ser aquela em que, partindo de todo que hierarquiza e determina a es­
uma relação de equilíbrio entre a so­ pecificidade do educacional. Estudar o
ciedade civil e a sociedade política (Es­ concreto, afirma Kosic (16), é com­
tado), a hegemonia abrange as instân­ preender e decompor o todo, captar o
cias das duas superestuturas. Sociedade essencial oculto nas sua!> manifestações
civil e Estado são centros de hegemonia; fenomênicas e deslindar as formas
uma hegemonia já não somente cultural, aparentes da realidade que se apresenta
mas que inclui coerção e consenso. Além na prática cotidiana. O concreto é, en­
disso e com propriedade, Gramsci tão, o real com suas determinações; em
depreende a existência de controles Gramsci, o concreto-pedagógico está
ideológicos tanto na sociedade civil ligado à sua concepção geral da
como no Estado (sociedade política) hegemonia e aos elementos que a con­
(15). formam como fundamentação teórica.
Assim, as considerações pedagógicas de
CENTRAUDADE DE ALGUNS Gramsci (políticas) situam-se ou bem na
CONCEITOS EM GRAMSCI formação econômico-social que com­
põem a Itália de sua época (utilizáveis
l.l. Teoria educacional? então até o ponto em que sejam ge­
neralizáveis as análises históricas) ou em
Em consonância com o que foi an­ uma teoria de transformação revolu­
teriormente afirmado, não podemos cionária da sociedade burguesa. De­
apresentar a faceta educacional de vemos aceitar a coerência lógica e global
Gramsci como uma atividade particular da personalidade revolucionário-política
- molecular, pode-se dizer - na qual, de Gramsci, ou ficaremos sem o Grams­
como é freqüente em nossa realidade, a ci pedagogo (17).
educação adquire valor por si e para si, Da mesma forma, não se interprete,
sem estar relacionada a um sistema ao estudar a educação em Gramsci, na
geral ideológico (enquanto concepção de acepção restrita e comum que a refere à
mundo) no qual alcance verdadeira relação acadêmica. Educação, em
dimensão, onde os êxitos educacionais Gramsci, deve ser entendida como
(ou os erros) não sejam analisados em elevação moral e intelectual, consciência
função do quadro microscópico - es­ política e capacidade crítica em confor­
cola ou outros centros educacionais e midade com fins únicos. Generalizando
culturais - em que se manifestam, mas muito, poderíamos dizer que supõe uma
sim em um entrelaçamento causal am­ socialização consciente, em confor­
plo dentro de uma organização eco­ midade com um código moral dado,
nômica e política que necessita utilizá-la com valores únicos - "consciência
para seus fins. Do mesmo modo, qual­ coletiva" - de uma comunidade or­
quer intenção de controle e direção das gânica (18).
instituições inscreve-se, dialeticamente, De acordo com a definição, vamos
em uma alternativa mais ampla de apresentar - reconhecendo a arbi­
política subversiva global de uma for­ trariedade que toda escolha pressupõe
mação histórico-social concreta. O ajus­ - alguns dos conceitos e instâncias
te dos princípios, dos meios e fins da principais da análise gramsciana. Cons­
educação à concepção da estrutura cientemente, não faremos um desenvol­
econômico-social nos permitirá deduzir vimento teórico da hegemonia (centro
a coerência ou não de um determinado "original e principal" do estudo grams­
sistema educacional, ou então sua con­ ciano junto ao de "bloco histórico"), as­
dição antitética em relação ao já exis­ sim como do "americanismo" e do "for­
tente. Nesse sentido, a orientação dismo", visto que não nos permitem
metodológica concreta, ainda que cons- nem o espaço nem a estruturação do ar-
80
tigo. Não queremos, porém, deixar de sonificado em Benedetto Croce (21). O
assinalar a importância transcendental, idealismo croceano será o ponto de par­
em Gramsci, - sem que sejam ex­ tida, mediando a necessária assimilação
clusivos - dos aspectos citados (19). prévia, na base do qual Gramsci re­
futará, de um ponto de vista materialis­
2.2. O historicismo gram scian o . O ta, toda uma concepção gnoseológica do
homem. mundo. Croce considera toda a filosofia
e seu reflexo na consciência individual
Gramsci possui uma consciência his­ como um tipo de religião que se ma­
toricista muito arraigada, e não poderia nifesta (enquanto torna patente uma
ser de outro modo, básica que é para a determinada concepção de mundo) na
sua trajetória revolucionária. atuação prática. Gramsci alarga mais
Sua concepção da história não esse raciocínio ("todos os homens são
obedece a esquemas restritivo­ filósofos"), já que é uma forma de fi­
reducionistas; abarca a diacronia­ losofia o que se expressa nos modos de
sincronia da política, as realizações comportamento ativo (filosofia que por
ativas da humanidade, a filosofia como ser pouco estruturada não é menos real)
forma de atuação conseqüente... e, (22). Já não podemos falar, conseqüen­
afinal, a História-História, que abrange, temente, de uma filosofia única, ou de
igualmente, a luta latente ou manifesta uma história da filosofia que se realize
das diferentes camadas, castas e classes sobre os progressos especulativos dos
sociais pelo domínio hegê mônico (em filósofos profissionais somente (muitas
suas manifestações coercitIvas e consen­ vezes em contradição com a filosofia
suais). A aprendizagem de como o ativa de uma determinada época) (23).
homem, em cada época, estabelece suas Segundo Gramsci:
relações sociais e de como vai evoluindo "História e Filosofia são inseparáveis
no domínio das forças da natureza para nesse sentido, formam um bloco. A fi­
torná-las úteis, está ligada à contínua losofia de uma época não é a filosofia des­
luta de opostos, às transformações es­ te ou daquele filósofo, nem deste ou
truturais da organização econômica, dos daquele grupo de intelectuais, nem desta
meios e dos modos de produção. His­ ou daquela parte das massas populares:
tória cheia de convulsões que, em seu é uma combinação de todos esses ele­
grau mais recente, traduz-se no enfren­ mentos, que caminha em uma direção
tamento burguesia/proletariado pela determinada, ao longo da qual essa sua
consecução da hegemonia. culminação faz-se norma de ação co­
Nesse contexto, o homem para Gram­ letiva, ou seja, torna-se história concreta
sci é um produto social e, portanto, his­ e completa (integra!)" (24).
tórico, superação criadora de todo o Essa filosofia total manifesta-se no
processo de atuações dos homens que o conjunto das noções da linguagem, no
precederam. A personalidade - enquan­ senso comum, na filosofia dos filósofos,
to manifestação individual dessa dimen­ etc.
são geral - desenvolve-a o homem O senso comum é o que denomi­
através de sua ação transformadora no namos vulgarmente de "filosofia po­
contato com as forças materiais e sociais, pular": elementos desagregados de uma
por meio da realização consciente (20). cultura, da concepção de mundo dos
Existe, não obstante, uma vertente mais "intelectuais" e dos "filósofos", en­
ampla que o faz participante, junto com quanto elaboradores de ideologia uti­
outros homens, de determinadas con­ lizada para manter o consenso sobre as
dições, como membro, afinal, de um classes subalternas.
grupo social, sem que tenha havido neces­ Por uma determinada concepção de
sariamente para isso a mediação de um mundo se pertence sempre a um dado
processo de racionalização critico. grupo social, àquele em que todos os
elementos compartilham um modo
2.3. Filosofia e senso comum similar de atuar e de pensar. A concep­
ção superior, estruturada e coerente da
A ruptura com o idealismo - ponto filosofia, pertence ao grupo dirigente
mais alto de toda uma tradição de pen­ (normalmente dominante) (25); é o
samento teórico - é realizada por "bom senso". O senso comum, desa­
Gramsci, a partir do Hegel italiano per- gregado e assistemático, é próprio dos
81
dirigidos, das classes subalternas. cício de um nexo material: os intelec­
Não é necessário ressaltar a enorme tuais.
importância do senso comum. Enquanto
a análise ideológica se mantenha a nível 2.4. O rigem e funções dos intelectuais
do discurso elaborado é muito pouco o
que pode avançar em clareza e expli­ Um dos grandes méritos da teoria
cação. Assim, a ideologia tem graus de gramsciana da hegemonia é a análise dos
sofisticação e refinamento que estão im­ intelectuais. Outras explicações menos
bricados, mas também hierarquizados a felizes da dominação ideológica - a de
nível dos diferentes sujeitos sociais. O Bourdieu-Passeron, entre outras - es­
senso comum não necessita de uma sis­ tabelecem uma relação mecânica e tam­
tematização teórica, para expressar seu bém idealista entre a base econômica e as
conteúdo ideológico, visto que se encon­ superestruturas. Mecânica enquanto que
tra presente constantemente na prática as últimas reproduzem e somente re­
cotidiana. produzem, de modo funcional, o que está
No que diz respeito à escola, uma estabelecido de antemão a nível das re­
ideologia não é somente a expressão das lações de produção. Idealista, visto que
linhas do discurso dominante, é a vivên­ não explicitam os processos nem os agen­
cia contínua do que se aceita como parte tes materiais dessa reprodução. Essa
da ordem escolar: sentar-se em fila, posição, muito generalizada na teoria
pedir permissão para ir ao banheiro, educacional, está, logicamente, muito
conceitos... trivialidades aparentes que mais próxima da "ação racional" deli­
representam e expressam a ordem berada de Max Weber do que de uma
social. análise marxista, se se prescinde do
Foi a Igreja Católica que, funda­ vocabulário. Gramsci, ao contrário,
mentalmente, serviu ao grupo dominan­ oferece uma visão dialética e materialista
te (e dirigente, enquanto centraliza his­ dessa relação, em dois sentidos:
toricamente a cultura elaborada) no a) não há uma correspondên­
sentido de manter a separação entre cia unidirecional entre domínio eco­
homens comuns e "filósofos". Apesar de nômico e hegemonia política e, b) essa
que o propósito da Igreja tenha sido de hegemonia é conquistada, renovada e
evitar que se formem oficialmente duas destruída pelas classes sociais, sendo os
religiões, a separação existe de fato, vis­ intelectuais os agentes materiais para
to que nunca se impôs a tarefa de elevar elaborar teoricamente essas lutas, e sua
as pessoas comuns ao nível de intelec­ expressão no plano das superestruturas
tuais e dirigentes, mas, pelo contrário, complexas. Deste modo consfituem o
sua única preocupação consistia em que vínculo orgânico, o nexo material que
não se percebesse demasiadamente o organiza o bloco histórico (26).
afastamento dos intelectuais da massa. Em uma primeira análise dos in­
O problema (superação da anti­ telectuais e de sua função na organi­
nomia teoria-prática) resultou igual­ zação da hegemonia, Gramsci distingue
mente insolúvel para as diversas filo­ dois níveis de formação histórica, ao
sofias imanentistas, herdeiras, em certo mesmo tempo que lhes nega todo o tipo
sentido, da tradição católica. Faltou­ de independência ideológica no que diz
lhes o saber e o querer criar a unidade respeito às classes sociais:
harmônica e ideológica (em sentido ·1- Ao nascer um grupo social no
superior) entre os intelectuais e os terreno da luta de classes, criam-se or­
homens comuns. A moderna "filosofia ganicamente uma ou várias castas de in­
da práxis" pretende abolir essa situação, telectuais que lhe dão homogeneidade e
mediante a tarefa de elevação dos consciência, tanto no campo econômico
homens comuns à categoria de intelec­ como no social e político. Assim, o em­
tuais, convertendo os dirigidos em presário capitalista cria toda uma rede
dirigentes, para conseguir a unidade de intelectuais que torna possível a or­
teoria-prática. Essa necessária soldagem ganização e o funcionamento da grande
tendo em vista a consecução da unidade empresa: o técnico industrial, o cientista
de ação revolucionária realizar-se-á por de economia política, encarregados da
meio, e em todas as instâncias de or­ organização de uma nova cultura, de
ganização e luta da classe operária (con­ um novo direito, etc. Ao mesmo tempo,
selho, partido, sindicato ... ), com o exer- o próprio empresário realiza uma série·
82
de funções de tipo intelectual, já que filósofos"), ainda que nem todos desem­
deve possuir uma certa capacidade de penhem, na sociedade produtiva, a fun­
dirigente administrativo e de técnico de ção de intelectuais (28). Todo o trabalho
produção. Além do mais, alguns em­ de especialização, ainda que muscular,
presários possuem funções técnico­ traz consigo um certo grau de intelec­
políticas na sociedade em geral, com o tualidade ("o trabalho unicamente físico
fim principal de preparar a melhor in­ não existe"). Essa atividade intelectual
fra-estrutura para as necessidades de que cada nm desenvolve a um certo
expansão relevantes para a sua classe. nível, é o que deve ser elaborado cri­
2 - Porém cada classe social essen­ ticamente para que se tome possível o
cial, ao emergir à história, proveniente aparecimento de um novo grupo de in­
da estrutura econômica precedente, en­ telectuais. Nessa base assenta-se a for­
controu categorias de intelectuais mação do intelectual próprio da or­
preexistentes e que subsistem às mudan­ ganização proletária, cuja consciência é
ças sociais ocorridas. O grupo mais necessária para levar a cabo a tarefa
representativo desse tipo é o dos ecle­ histórica da classe operária na sociedade
siásticos, os quais, em um momento burguesa.
histórico concreto, se podem considerar Desejamos fazer algumas obser­
ligados à aristocracia latifundiária vações relativàs à aplicação da teoria
(exercício da propriedade feudal da gramsciana dos intelectuais na atua­
terra e dos privilégios jurídicos que essa lidade. Busca-se a cooptação, por parte
propriedade concedia). Unidas a esse, do partido operário, dos intelectuais
temos outras formas tradicionais que tradicionais, sendo esses, em sua maior
aparecem na época do absolutismo: parte, o produto do sistema educacional
aristocracia da toga, administradores, formal (os orgânicos surgem como por­
cientistas isolados, etc. ta-vozes ou organizadores diretos das
Os intelectuais tradicionais con­ classes fundamentais, e não como
cebem-se a si mesmos como indepen­ produto da escola, prioritariamente).
dentes das classes sociais. Ilusão essa, Essa era uma incumbência fundamental
historicamente desmentida por duas na época de Gramsci, dado o escasso
alianças objetivas com o poder político número de profissionais produzido pelos
(27). sistemas educacionais e o caráter
Poderíamos ampliar a classificação predominantemente burguês da "In­
apresentada com o binômio intelectuais telligentzia" em toda a Europa. Os in­
de tipo urbano e intelectuais de tipo telectuais radicalizados constituíam
rural. Os intelectuais urbanos estão or­ cenáculos exclusivos do tipo do "Círculo
ganicamente unidos - tanto por sua do Domingo de Luckacs", da "Escola
origem como por suas condições sociais de Frankfurt" ou da "Escola Surrealista
- à grande indústria e a seu desenvol­ de Paris". Hoje em dia, com a massi­
vimento, carecem de iniciativa autô­ ficação do ensino, o excedente de profis­
noma, seguem diretrizes estabelecidas sionais e de desempregados, assistimos a
de antemão e, em geral, poem em re­ uma crescente consciência anticapitalis­
lação a massa instrumental com o em­ ta do intelectual. Isso pode ser ilustrado
presário. Ao contrário, os intelectuais de historicamente: nos anos vinte, os es­
tipo rural são, na prática, tradicionais, tudantes e profissionais desempenharam
poem em relação a massa de -campo­ um papel reacionário (greve geral in­
neses com as burocracias e as adminis­ glesa de 1926, greves da República de
trações locais e estatais; essa função é Weimar 1920-23). A partir de 1960, os
inseparável - como mediação profis­ estudantes e intelectuais negaram-se a
sional - da mediação política. Médicos, desempenhar um papel contra­
sacerdotes, advogados, tabeliães têm, revolucionário consciente, e freqüen­
além disso, uma grande ascendência temente têm apoiado, incentivado e ser­
psicossocial sobre o campesinato. vido de detonador em greves proletárias
Contudo, devido à necessidade que (maio de 1968) (29). Não obstante, tam­
se delineia de forjar uma camada de in­ bém é verdadeiro que, cada vez em
telectuais que realize a união teoria­ maior grau, os intelectuais tendem a
prática no bloco operário, Gramsci par­ formar suas próprias castas dentro das
te da base de que "todos os homens são organizações partidárias, abocanhando
intelectuais" ("todos os homens são em muitas ocasiões as posições cul-
83
minantes de poder a IÚveis de direção, "A doutrina do socialismo sur­
comitês centrais, etc. Tudo isso sem giu de teorias filos6ficas, históricas e
chegar a desenvolver uma luta no par­ econômicas elaboradas por intelec­
tido e no âmbito da classe trabalhadora, tuais instruídos das classes domi­
para essa superação e elevação conscien­ nadoras."
te - e não dogmática - necessária à
hegemonia. Produz-se, em outro âm­ Este processo histórico de ela­
bito, poderíamos dizer, a separação boração da teoria revolucionária de
dirigentes/dirigidos, teoria/prática e, maneira crítiça faz com que, no mo­
enfim, casta/massa trab alhadora, mento de constituir-se o partido político,
criticada à Igreja e à filosofia tradi­ a teoria lhe venha do exterior, mas, uma
cional. Se a isso acrescentarmos a cres­ vez constituído, assume essa herança ex­
cente vinculação do intelectual a or­ terior e a aplica a uma realidade trans­
ganizações sociais apartidárias (eco­ formável, pelo que o Partido converte-se
logia, desarmamento, religiões orien­ igualmente em elaborador e difusor da
tais), concluiremos que a conquista teoria revolucionária.
ideol6gica dos. intelectuais tradicionais A partir dessa base de desenvolvi­
de que fala Gramsci deve ser reexpli· mento, Gramsci delineia, em um escrito
cada dentro da metamorfose do capi­ de 1925, três áreas principais de pro­
talismo, e nesta, nas contradições que blemas, em relação à construção do par�
estão produzindo a expansão dos tido político. Essas três áreas centram-se
aparelhos culturais. nas relações que estabelece: a) a direção
do Partido com a base, b) a direção do
Partido com a classe operária e c) a
classe operária com as demais classes
2.5. O Partido. A reforma Intelectual anticapitalistas.
e moral em e pelo Partido. O Partido enquanto parte - e não
órgão - (vanguarda revolucionária,
Deparamo-nos com uma das ques­ caráter de elite) da classe operária, é o
tões mais desenvolvidas por Gramsci ao terreno onde se forja, dado o caráter
longo de sua vida: não somente nas selecionado de seus militantes, uma
páginas de L 'Ordine Nuovo e no caráter nova concepção de mundo, onde começa
e papel a ser desempenhado pelo Par­ a desenvolver-se a "reforma intelectual e
tido Socialista, mas também nas con­ moral" para uma sociedade nova. A his­
tínuas discussões para a construção do tória de um Partido, portanto, "não é a
Partido Comunista e na preocupação hist6ria de seus modos de existência in­
constante com sua linha de atuação e ternos", mas a "história de um deter­
organização, que se traduzem nos minado grupo social" que vai se cons­
debates internos do pr6prio Partido e, tituindo em um "Estado" dentro do es­
posteriormente, nas (contínuas reflexões tado capitalista.
dos "Cadernos". Observa-se nesse tema Um Partido torna-se historicamente
uma continuidade e uma clareza de necessário e não pode ser destruído por
meios e objetivos, nem sempre tão ex­ meios normais, quando é capaz de ar­
plícitas no que se refere aos conselhos­ ticular três níveis internos:
comissões internas e aos sindicatos, por 1. uma massa de homens que vai além
exemplo (30). de seus filiados e penetra no interior dos
Buscando antecedentes para a con­ grupos sociais que o Partido procura
cepção gramsciana do l'artido, temos de representar.
referir-nos obrigatoriamente a Lênin. 2. um elemento de coesão e disciplina
Para o marxista russo, o Partido é o que centraliza no campo nacional forças
momento da consciência de classe, a ar­ que abandonadas a si mesmas pouco
ma da direção. A classe trabalhadora - contariam.
segundo Lênin - não pode chegar es­ 3. um conjunto de quadros médios que
pontaneamente à consciência política, à se aplicam ao primeiro e segundo nível,
teoria revolucionária, consciência po­ pondo-os em contato não somente físico,
lítica necessária ao proletariado para ir mas também moral e intelectual (Grams­
para além da reivindicação econômica ci estabelece nesse ponto uma analogia
imediata (espontaneidade, tradeunionis­ com a estrutura e a organização do
ta). (31). exército: bases, quadros médios e di-
84
reção, em proporções definidas). comum, intelectuais/hpmens simples,
Este Partido historicamente neces­ Partido/classe operária" . Essa superação
sário atuaria como o "Príncipe" de deve ser de relações ativas recíprocas,
Maquiavel. O "Príncipe" (indivíduo) "pois que toda relação de hegemonia é
transforma-se em um "Príncipe Moder­ similar a uma relação pedagógica", não
no" (Partido), expressão de uma von­ somente entre as diferentes forças que
tade coletiva que tende para um deter­ compõem o campo nacional, mas tam­
minado fim político. O "Príncipe bém na comunidade internacional (35).
Moderno" haverá de revolucionar as
consciências, para dar forma a uma 2.6 - A escola do Partido
nova vontade coletiva.
O Partido deve estar no ápice de Gramsci luta denodadamente para
uma hierarquia de forças políticas que que as instituições de tipo cultural e
representem a totalidade dos traba­ educacional: escola, institutos, univer­
lhadores, numa situação de condução sida�es, bibliotecas, etc., fossem centros
intelectual, moral (política) que lhe em que se disputasse a hegemonia com a
garanta a possibilidade de converter-se classe dirigente, em que se impusesse as
em Estado proletário. máximas restrições à função ideológico­
Nas conversações que Gramsci man­ reprodutora da educação no período de
tém, em 1933, com Athos Lisa, no cár­ domínio da burguesia. Essa luta, por
'
cere (32), insiste em duas questões fun­ outro lado, não é uma manifestação res­
damentais para que o Partido se conver­ trita, mas a necessária elevação cultural
ta nesse ápice da pirâmide "dirigente e moral, a conversão dos dirigidos em
para seus aliados, dominante para seus dirigentes, a começar pelas próprias or­
inimigos": a) como ganhar apoio dos ganizações político-ideológicas da classe
grupos de trabalhadores (e, posterior­ operária.
mente, das classes subalternas) para o Dessa forma o Partido converte-se
Partido; b) ter presente o objetivo do em um ente educador, realizando a
Partido Comunista, ou seja: detecção e a elevação teórico-cultural de
elementos convenientes, para enquadrá­
''( ...) a conquista violenta do
los em sua vanguarda revolucionária.
poder, a Ditadura do Proletariado,
Diversas tentativas resul taram em
o que deve ser realizado com a
repetidos fracassos. desde que L 'Ordine
Num'o organizou a campanha para a
utifização da tática que melhor
corresponda a uma determinada
criação de círculos cultural-educativos
situação histórica e à relação de for­
próprios. a partir de 1919. A idéia
ças de classe existentes nos diversos
falhou algumas vezes pelas limitações
momentos da luta" (33).
inerentes a toda organização com essas
características, e, outras vezes porque,
Essa ligação do Partido com os pela contínua exaltação que a agitada
problemas italianos, com a análise das situação de Turim impunha à luta
condições revolucionárias na etapa con­ diária, a formação teórica realizava-se
juntural do fascismo, não nos pode fazer na pópria ação revolucionária.
esquecer a inserção do Partido em uma Gramsci, em um estudo publicado
em L 'Ordine Nuovo. em 1925, adverte
dimensão internacional da luta pelo
socialismo. O Partido constitui a ma­ sobre a batalha a empreender contra o
nifestação a nível nacional de uma luta estudo objetivo, a cultura desinteressada
internacional coerente com a univer­ e o risco de que o Partido se convertesse
salidade da classe operária. Essa cons­ em "campo de rapina ou o instrumento
ciência de unidade internacional ("des­ de experiências para inúmeros peda­
tacamento da Internacional") pode levar gogos mal-avisados".
à renúncia dos aparentes interesses O objetivo do estudo no Partido é as­
imediatos. sim definido:
Partido, crise revolucionária e teoria
do socialismo relacionam-se necessa­ "Somos uma organização de luta, e,
riamente na "superação dialética das em nossas fileiras, estuda-se para
oposições clássicas (34): dirigen­ acrescentar, para afinar a capacidade
tes/ dirigidos, teoria/prática, consciên­ de luta de cada um e de toda a or­
cia/esp on taneidade, filosofia/senso ganização, para compreender melhor

85
quais são as posiç'ões do inimigo e as que são o Estado (distintas burocracias),
nossas, para poder melhor adequar a o que traz complicações em relação à
essas, nossa ação de cadadia.Estudo e classe que domina o Estado a nível
cultura não são para nós outra coisa econômico.
senão consciência teórica de nossos
Todos os componentes de um par­
fins imediatos e últimos e da maneira
tido são intelectuais, apesar das diferen­
pela qual podemos levá-los a cabo
ças de grau que possam subsistir inter­
(36). "
namente. Isso ocorre dessa maneira por­
Contudo a iniciativa prospera com o que as funções dentro de um Partido
tempo e alcança os lugares mais recôn­ político são diretivas e organizativas, ou
ditos da geografia italiana. No local on­ seja, educativas e intelectuais.
de houvesse um militante, criava-se ao Assim, uma parte importante do
mesmo tempo um círculo de estudo à "Príncipe Moderno" deve dedicar-se à
sua volta. A passagem do material era gestação de uma reforma intelectual e
feita por correspondência. Material que moral, à construção de uma concepção
apresentava uma certa programação, do mundo unitária (de uma religião no
com perguntas, reflexões, etc., que o sentido croceano). Deverá formar uma
aluno de teoria política deveria respon­ vontade coletiva nacional-popular. Essa
der e conhecer. As respostas eram en­ reforma intelectual e moral não pode
viadas para correção ao encarregado de divorciar-se de uma reforma econômica,
formação do Partido mais próximo, que que é precisamente o modo concreto em
as devolvia, uma vez corrigidas, com as que se apresenta toda reforma intelec­
sugestões oportunas. Periodicamente, e tual e moral. Não obstante é necessário
na medida do possível, alunos e profes­ deixar explicitamente claro que não
�ores reuniam-se para trocar impressões. existe nisso o menor indício de meca­
E impressionante o esforço enorme, não nicismo: estando efetivamente a he­
só humano mas também material, que gemonia enraizada nas relações de
comporta tal iniciativa. Porém pouco produção, isso leva a deduzir-se que seja
podia com a moral de vitória revolu­ sua expressão imediata. Para Gramsci:
cionária do proletariado italiano da
época. "essa afirmação deve ser discutida
Porém, como forma o partido os in­ teoricamente como um infantilismo
telectuais e como os relaciona? Para al­ primitivo••.já que, sendo a poUtica,
guns grupos sociais, o Partido político realmente, em cada momento, a
constitui - principalmente - o modo reflexão das tendências de desenvol­
peculiar de organizar seus intelectuais vimento da estrutura, não é neces­
diretamente no campo político e filo­ sário que essas tendências devam
sófico e não no campo da técnica reaUzar-se" ( 37).
produtiva. O Partido político cumpre na
Isso quer dizer que, ainda que o
sociedade civil a mesma função que o
Partido tivesse êxito em alcançar essa
Estado na sociedade política, isto é,
reforma econômica uma vez conquistado
realizar a união entre seus próprios in­
o poder, nem por isso a classe operária
telectuais orgânicos e a categoria dos in­
teria assegurada sua hegemonia, que
telectuais tradicionais. O Partido cum­
deve ser construída dia a dia, em todos e
pre essa função formando seus com­
em cada um dos âmbitos da vida social,
ponentes, elementos de um grupo social
que nasceram e se desenvolveram no mesmo em aspectos que não têm um
econômico, até tomá-los qualificados conteúdo de classe imediato (cuidado
dirigentes políticos, organizadores de com o meio natural, respeito pela crian­
todas as atividades e funções inerentes ça, machismo, etc). Disso deduz-se que
a reforma cultural não seja somente a
ao desenvolvimento de uma sociedade
integral: isto é, política e civil. conseqüência da mudança econômica.
Sobretudo pelo diferente controle e Por isso:
disciplina em uma organização operária,
Gramsci afirma que essa união entre in­ "O Príncipe ocupa nas consciências
telectuais é maior no Partido político o lugar da divindade e do imperativo
que no Estado. Isso é demonstrado, en­ categórico, converte-se na base de um
tre outras razões, pelo fato de alguns in­ laicismo moderno e de uma completa
telectuais tradicionais chegarem a crer secularização de toda a vida e de

86
todas as relações de comportamento pré e p6s-carcerária. A esse respeito pode-se
consultar em espanhol, entre outros, os traba­
Inteuocial"(38) •
lhos e seleções:
Anderson, Perry. Las antinomias de Antonio Grams­
Do exposto até aqui pode-se deduzir cio Barcelona, Fontamara, 1978.
que Gramsci adjudica a o Partido-o Buci-Glucksmann, Christine. Gramsci y el Estado.
Barcelona, Anagrama, 1976.
educador coletivo um papel até certo Gramsci, Antonio. Antologia. Mexico, Siglo XXI,
ponto onipotente. Em certa medida não 1978.
La construcci6n deI Partido Comunista
faz uma análise das contradições dentro •

1922-1926. Madrid, Dédalo, 1978.


desse coletivo político-pedagógico e das • Notas sobre Maquiavelo, sobre Úl politica
dificuldades que nele poderiam encon­ y sobre el Estado moderno. Buenos Aires, Nue­
trar os intelectuais, para ter exercício va Vísí6n, 1972.
Partido y Revoluci6n. Mexico. Cultura Po­
como tais, em máquinas eleitorais como

pular, 1977.
nas que se converteram a maior parte 2. Consultar: Gramsci, Antonio. El materialismo
dos partidos comunistas do Ocidente. historico y Úl filosofia de Benedetto Croce. Bue­
Delineia-se aqui uma infinidade de nos Aires, Nueva Vision, 1971.

problemas não previstos por Gramsci, e 3. A manipulação muitas vezes tendenciosa da


obra de Gramsci tem sido freqüente em alguns
que tampouco podemos abordar com
trabalhos. Consultar: Macciocchi, M� Antonie­
rigor. Aí inclui-se, e seria bastante in­ ta. Gramsci y Úl Revoluci6n de Occidente. Ma­
teressante, estudar também com a drid, Siglo XXI, 1976. Nessa obra dá-se uma
visão política de Gramsci pr6xima à de Mao
metodologia gramsciana o papel dos in­
Tse-Tung, em oposição à Revolução Soviética
telectuais dissidentes na elaboração e, às vezes, a Lênin. Tenta-se ligar a figura de
potencial de uma contra-hegemonia, nos Gramsci a uma ruptura com a tradição marxista.
Gramsci, Antonio. 1ntroducción a Úl Filosofia de
países socialistas da Europa Oriental.
Praxis (seleção de Sok Tura). Barcelona, Pe­
No que se refere aos PCs ocidentais, nínsula, 1979. Apresenta-se um Gramsci preo­
e mais concretamente, ao PCI, há uma cupado, exclusivamente, com problemas supe­
restruturais e te6ricos acerca da hist6ria, da fi­
constante tensão entre as b urocracias
losofia e da lfngua, etc., sem que se perceba
partidárias e os intelectuais. As expul­ compromisso polftico algum. Na mesma medi­
sões, afastamentos voluntários, etc., da, em que pese as diferenças entre eles, e refe­
rindo-se à educação, ver:
abundam a tal nível que não tem sentido
Betti, G. EscueÚl, educaci6n pedagogfa en Gramsci.
especificá-los (Rossanda, Macciocchi, Barcelona, Martinez Roca, 1981.
Claudin, Semprum, Garaudy, etc.). Broccoli, Angelo. Antonio Gramsci y Úl educaci6n
conw hegenwnia. Mexico, Nueva Imagen,
Porém muito mais importante que es­
1977.
sas separações ou dissidências indivi­ Gramsci, Antonio. La alterlwtiva pedag6gica (sele­
duais é o crescente papel burocrático ção de A. Manacorda). Barcelona, Nova Terra,
exercido dentro do Estado capitalista 1976.
pelos intelectuais do Partido. Na Itália, 4. Ver a respeito:
Anderson, Perry. Consideraciones sobre el marxismo
a inserção dos intelectuais em diferentes Occidental. Madrid, Siglo XXI, 1978.
organismos públicos (estatais, regionais,
5. Consultar a respeito da hegemonia:
municipais) se faz na base de cotas Anderson, P. Las antinomias... op. cito
proporcionais aos diferentes p esos Geoff, Hodgson. "Las antinomias de Perry Ander­
eleitorais de cada partido. Isso significa, son" in Zona Abierta. n� 23.

por um lado, que a possibilidade de 6. Consultar:


Lenin. "Cinco afios de la Revoluci6n Rusa y pers­
conseguir colocação está associada ao pectivas de la Revoluci6n Mundial" in Obras
apoio do partido, por outro lado, que o Escogidas, tomo IH. Moscú, Progreso, 1961.
intelectual perde como tal toda a mo­ Gramsci, A. "Intemacionalismo y politica nacio­
nal" in Antologia .. op. cito
tivação para elaborar iniciativas contra­ .

hegemônicas, visto que, em última ins­ 7. Ver:


Gramsci, A. La construcci6n... op. cit.
tância, trabalha para o Estado (39). Athos, Lisa. "Discusi6n polftica con Gramsci en la
Após as eleições municipais na Espa­ cárcel", in Portantiero, Juan Carlos. GRAMS­
nha, esse processo começou a desenvol­ CI, Antonio: Los usos de Gramsci. México,
Passado y Presente 1977.
ver-se, se bem que, no momento, não
8. No mesmo sentido e com respeito a Marx, ver:
contamos com estudos suficientes que Althusser, Louis. La revoluci6n te6rica de Marx.
avalizem essa hipótese, como no caso Madrid, Siglo XXI, 1974.
italiano. 9. Essa influência contradit6ria da realidade, em
Gramsci, será uma constante em sua obra técni­
ca. Nesse sentido, pode-se estudar sua concep­
NOTAS ção variável de alguns aspectos centrais como a
hegemonia, os conselhos operários, os sindica­
tos, etc. Consultar:
1. Esse aspecto nem sempre fica claro nos autores
que tratam de Gramsci, porém pode ser com­ Anderson, P. Las Antinomias... op. cito
provado em numerosas passagens de sua obra Gramsci, A.Antologia. op. cito

87
10. O ponto mais alto dessa conclusão é a teoria trelaçamento de relações da luta pela hegemonia
pragmática do eurocomunismo, como dnica al­ operária.
ternativa poIrtica viável, autêntica e inevitável
23. A dissociação de que fala Gramsci não somente
para a revolução nos pa!ses desenvolvidos (se­ se mantém, como é ainda maior, atualmente.
gundo sua pr6pria versão). Existe, além disso, Adquire nova relevância o papel do filósofo em
uma cerração ideol6gica em todas as tendências seus processos de investigações salvadoras, de­
que fixam suas rafzes no marxismo, que possi­
pois de uma etapa de maior compromisso. A
bilita uma atuação poIftica desencontrada e mesma observação pode ser válida para as car­
contradit6ria. O acreditar-se na posse absoluta reiras mais te6ricas de nossa universidade.
da verdade revolucionária toma imposs!vel
(tampouco existem verdadeiras motivações para 24. Gramsci, A.Antologia. op. cit., pág. 442.
isso) qualquer tipo de conciliação e aproxima­ 25. Um grupo social é, normalmente, dirigente so­
ção entre as diferentes correntes. Marxismo so­ bre seus aliados e dominante sobre seus inimi­
viético, chinês, eurocomunismo, social-demo­ gos. As tarefas de direção ideol6gica e cultural
cracia... falam linguagens distintas e, muitas vão pesar fundamentalmente na hora do domí­
vezes, sem ponto de comparação poss!vel. Sem nio hegemônico.
ter que recorrer à obra especializada sobre o te­
ma, o leitor encontrará uma boa demonstração 26. Williams, R. Marxismo y Literatura. Barcelo­
desse fato na imprensa diária, mais especifica­ na, Pen!nsula, 1979.
mente no noticiário referente à poIftica interna­ 27. Enquanto elaboradores e depositários de um
cional. código ideol6gico de chaves de caráter restrito,
11. É nesse sentido a universalização desligada de pertinente, portanto, à necessidade dirigente da
qualquer base contextual das análises das insti­ classe dominante. A aliança clero-poder poUti­
tuições educacionais italianas, ou a abstração co é estudada por Gramsci principalmente com
que dissocia a educação da luta pelo poder poIr­ base nas concordatas Itália-Santa Sé, com as
tico. prebendas significativas para a Igreja, enquanto
organização e seleção cultural, educativa, e
12. Ver nota 5. controle dos dirigentes sociais.
13. Análise dos intelectuais, discussão do princípio
28. Ver Gramsci, A: La formaci6n de los intelec­
educativo, etc. Ver os cap!tulos referentes a es­ tuaIes. Madrid, Grijalbo, 1967.
ses aspectos nas recompilações de Gramsci cita­
das anteriormente. 29. Ver Therborn, G.: ;,Como domina la c/ase do­
minante? Madrid, s. XXI, 1978.
14. Ver principalmente os capítulos 11 e IV de An­
derson, P. Las Antinomias op. cit. 30. A posição dessas duas instâncias varia em con­
sonância com as diferentes circunstâncias his­
15. Ibidem, pp. 51 e 88
tórico-sociais e a elaboração te6rica de Gramsci
16. Ver Kosic, Ilard. DiaMctica de 10 concreto. ao longo de sua obra. Da inter-relação Conse­
México, Grijalbo, 1967. lho, Sindicato, Partido é o dltimo que sai defi­
17. Ver segunda parte, nota três. nitivamente fortalecido. Ver a esse respeito:
Portantiero, J. C.: "Los usos de Gramsci in
18. Ver "La educaci6n en el Partido", nesse mes­ Portantiero-Gramsci op. cito
mo artigo. Em geral, Gramsci não perde de
vista o essencial, em favor do secundário. 31. Ver Lenin, V. I.: i,"Que Hacer?". in Obras es­
cogidos. Moscd, Progreso, 1961, tomo I.
lY. Nessa mesma linha, encontra-se o desenvolvi­ 32. Athos, Lisa. "Discusi6n poIrtica com Gramsci
mento te6rico dos conselhos operários, os sindi­ en la cárcel". in Portantier-Gramsci: Los
catos, a frente dnica, guerra de posição, etc. Usos op. cito O texto integral desse apêndice
•••

20. Gramsci, A. La alternativa ••• op. cit., pág. 223. foi apresentado pelo autor ao Comitê CentraI do
PCI.
21. A esse respeito diz Betti: "parece-nos que se
pode dizer que Gramsci tenha sido condiciona­ 33. Ibidem, pág. 308.
do por Croce como sempre ocorre quando duas 34. Portantiero-Gramsci: Los usos, •• op. cit., pág.
forças opostas lutam reciprocamente. A relação 64.
com Croce, à parte uma simpatia inicial, nunca
se expressa como dependência espiritual, mas 35. Ver entre outros:
como tensão, como discrepância cordial, isto é, Gramsci, A.: Panido y revoluci6n. México, Cultura
desacordo puro e simples". Betti, G. Escuela •••
Popular, 1977.
op. cit., pág. 39. Idem La construcci6n op. cito
•••

Também: Gruppi, Luciano. El concepto de hegemo­ 36. Ibidem, pág. 45.


nia en Gramsci. México. Cultura Popular, 1978,
cap!tulos IV, VI e VII. 37. Gramsci, A. El materialismo ••• op. cit., pág.
104.
22. Essa afirmação gramsciana convertida em um
tópicô e fora de contexto, por isso perdendo to­ 38. Gramsci, A. La alternativa ••• op. cit., pág. 109.
do o sentido, dá lugar a interpretações pseudoli­ 39. Ambrois, C. "De Ia dificultad de ser um inte­
berais que não se ajustam à realidade. Como lectual en el Estado de los partidos" in Le Mon­
isolamento formal, só é compreensível no en- de Diplomatique. Julio, 1980, pp 9 e 10.
***

Traduzido da revista espanhola Tempora, n� 2, 1981, por gentileza especial do autor e desse peri6di­
co. Tradução de Iara Gonçalves. Revisão de Tomaz Tadeu da Silva.

***

Blds Cabrera Montoya é professor do Departamento de Educação Comparada e Hist6ria da Educação


da Faculdade de Filosofia e Letras da Univesidade de La Laguna, Tenerife, Espanha.

88

Você também pode gostar