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OPINIÃO DEMIAN MELO

Quem é Losurdo, o teórico marxista que refez a


cabeça de Caetano
Cantor diz ter reavaliado antiga posição 'liberaloide' após ler as críticas do filósofo italiano ao
liberalismo

16.set.2020 às 8h00

Demian Melo
Professor de história contemporânea do bacharelado em políticas públicas da UFF (Universidade Federal
Fluminense)

[resumo] Citado por Caetano Veloso como inspiração para reavaliar sua antiga posição
“liberaloide” e encarar com mais respeito o socialismo, o filósofo marxista Domenico
Losurdo escreveu conjunto de obras dedicadas a demolir a visão mítica do liberalismo,
apontando a relação de alguns de seus expoentes com a escravidão e o pouco apreço de
muitos deles pela democracia, embora também apoiasse posições políticas autoritárias,
como a defesa de Stálin e do regime chinês, avalia professor.

Bastou uma figura fundamental da cultura brasileira mencionar a revisão da história do


liberalismo feita por Domenico (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/757470-leia-entrevista-com-domenico-losurdo-
biografo-de-nietzsche.shtml)Losurdo (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/757470-leia-entrevista-com-domenico-losurdo-biografo-

de-nietzsche.shtml) para que a obra do filósofo comunista italiano despertasse novo interesse

público. A imagem de (https://tvefamosos.uol.com.br/colunas/mauricio-stycer/2020/09/05/caetano-eu-sou-menos-liberaloide-


do-que-era-ha-dois-anos.htm)Caetano Veloso afirmando a Pedro (https://tvefamosos.uol.com.br/colunas/mauricio-

stycer/2020/09/05/caetano-eu-sou-menos-liberaloide-do-que-era-ha-dois-anos.htm)Bial (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/pablo-

ortellado/2020/09/stalin-em-ipanema.shtml) sua própria reavaliação da antiga posição “liberaloide” e o

respeito pelo socialismo ganhou as redes sociais na semana que passou.

Para parte da esquerda, carente de vitórias, aquilo pareceu a glória —“Finalmente ele
está do nosso lado!”—, enquanto que, para o pântano de obscurantismo que se tornou a
Sua
direita, a declaração seria só mais assinatura
uma “prova”vale muito. conspiratória do marxismo
da ofensiva
ENTENDA
cultural no país.
O filósofo italiano marxista Domenico Losurdo em visita a São Paulo, em 2017, para lançar o livro "Guerra e
Revolução" (ed. Boitempo) - Heleni Andrade/Boitempo

Embora em “Narciso em Férias”, documentário de Renato Terra e Ricardo Calil sobre a


prisão de Caetano (e Gilberto Gil) em fins de 1968 (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/09/caetano-
veloso-diz-ainda-ser-o-agente-desvirilizante-e-subversivo-preso-na-ditadura.shtml),
o compositor seja categórico ao
manifestar sua opção liberal e objeção ao socialismo, na entrevista a Bial ele disse que já
não pensa mais assim, agradecendo ao jovem youtuber Jones Manoel pela indicação da
obra de Losurdo. (https://quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/colunas/politica/verdade-liberal)

Não fosse o fato de estarmos diante de um governo que busca se identificar como
“liberal na economia e conservador nos costumes”, ao mesmo tempo em que investe
contra as instituições liberais do Congresso, do Judiciário e da imprensa, essa poderia
parecer uma controvérsia fora do lugar.

Mas tanto não é assim que nesta Ilustríssima já se produziu uma polêmica recente entre
aqueles que estão buscando comparar o bolsonarismo ao fascismo
—apesar do
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/06/por-que-assistimos-a-uma-volta-do-fascismo-a-brasileira.shtml)

“liberal na economia” — e os que recorrentemente falsificam a história para salvar os


liberais (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/08/associar-liberalismo-ao-fascismo-nao-e-intelectualmente-honesto.shtml).

Sua assinatura vale muito.


TEORIA E PRÁTICA DO LIBERALISMO
ENTENDA
No grande e erudito painel intitulado “O Liberalismo – Antigo e Moderno” (1991), o
crítico liberal brasileiro José Guilherme Merquior (https://m.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/08/1671785-
merquior-o-conformista-combativo.shtml)(1941-1991) define tal tradição como assentada em três pilares

básicos: a teoria dos direitos naturais, o constitucionalismo e a defesa da economia de


mercado.

O livro atravessa o contexto do Iluminismo, onde situam-se autores matriciais como


Locke, Montesquieu, Smith, Kant etc., e, no desenrolar dos capítulos, Merquior
apresenta o núcleo central de teorização dessa tradição na ideia de liberdade individual.

O cantor Caetano Veloso em cena do documentário "Narciso em Férias" - Reprodução

Nesse sentido, destaca-se a própria diversidade que habita o liberalismo assinalada por
Merquior, comportando desde aquilo que Benedetto Croce chamou de liberismo até a
defesa da democracia representativa; do novo liberalismo de John Maynard
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/05/otima-biografia-mostra-atualidade-de-keynes-na-crise-do-coronavirus.shtml)Keynes

(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/05/otima-biografia-mostra-atualidade-de-keynes-na-crise-do-coronavirus.shtml) ao

neoliberalismo de Milton Friedman; daquilo que no ambiente cultural estadunidense é


chamado distintamente como liberal e, no mesmo contexto, libertariano.

É preciso lembrar que no mesmo momento em que Merquior publicava seu


“Liberalismo”, o colapso dos sistemas burocráticos do Leste Europeu levava intelectuais
como Francis Fukuyama a celebrar as realizações liberais da democracia representativa
e da economia de mercado.

Na vulgar tese do “fim da história” de Fukuyama (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/07/fukuyama-do-


fim-da-historia-atualiza-diagnostico-em-modelo-2020.shtml) , a sociedade capitalista estadunidense figurava

como o modelo do estágio final do desenvolvimento humano. Nesse clima, e no mesmo


sentido que Norberto (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1001200424.htm)Bobbio
(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1001200424.htm), Merquior apresentava o regime democrático

como um resultado natural dos princípios liberais.

Pois foi justamente contra essa apologia dos vitoriosos da Guerra Fria que Losurdo
(1941-2018) escreveu um conjunto de trabalhos dedicados a demolir essa narrativa
mítica do liberalismo, dentre os quais se destacam os livros “Democracia ou
Bonapartismo” (1993) e “Contra-história do Liberalismo” (2005), já publicados no Brasil.

Mas antes de tratar a avaliação losurdiana da história do liberalismo, cabe situar que o
autor faz parte de certa tradiçãoSua
do assinatura
marxismovale muito.
italiano que historicamente se dedicou à
ENTENDA
crítica do pensamento político, uma tradição que remete a (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/otavio-frias-
Antonio (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/otavio-frias-filho/2017/11/1932335-gramsci-
filho/2017/11/1932335-gramsci-esquecido-e-atual.shtml)

esquecido-e-atual.shtml)Gramsci (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/otavio-frias-filho/2017/11/1932335-gramsci-esquecido-e-

(principalmente a partir das leituras problemáticas de Palmiro Togliatti e


atual.shtml)

Luciano Gruppi).

Contudo, no tema em tela, boa parte do trabalho de Losurdo desvia-se, talvez


excessivamente, do esforço de, na crítica, encontrar o núcleo racional do discurso
liberal —como, a propósito, fizeram Marx e (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/05/biografo-quer-
apresentar-marx-sem-o-emaranhado-ideologico-do-marxismo.shtml)Gramsci

(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/05/biografo-quer-apresentar-marx-sem-o-emaranhado-ideologico-do-marxismo.shtml)—

e assume o caminho de demonstração das contradições entre a teoria e a prática dos


“campeões da liberdade”.

Nesse sentido, sua contribuição tem um lugar importante, embora talvez seja limitada
quando comparada aos trabalhos mais recentes de outros marxistas como Ellen
Meiksins Wood e Carlos Nelson Coutinho, de intelectuais feministas como Carole
Pateman e Nancy Fraser, e, na matriz foucaultiana, Wendy Brown, Pierre Dardot e
Christian Laval, só para citar algumas referências.

MUITO ALÉM DA HAGIOGRAFIA LIBERAL

Em “Democracia ou Bonapartismo”, o foco de Losurdo é problematizar a ideia de que o


pensamento liberal se desdobrou naturalmente na democracia. Chama atenção para a
oposição de autores como Benjamin Constant e Herbert Spencer à ampliação dos
direitos políticos para as classes trabalhadoras, em geral abordadas como “crianças”, à
maneira que, de resto, as potências imperialistas trataram os povos coloniais.

O autor lembra que, mesmo na vertente utilitarista, que pode ser mencionada como
contraponto democrático no interior do liberalismo oitocentista, como em John Stuart
Mill (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcos-lisboa/2018/10/a-falta-que-faz-o-liberal-john-stuart-mill.shtml), é possível ler
a defesa de filtros sócio-culturais para o direito ao voto e até mesmo “ditaduras
pedagógicas” para civilizar os “povos selvagens”.

O ponto mais estimulante da crítica losurdiana, contudo, é sua caracterização da


natureza e dinâmica dos regimes liberais contemporâneos. A generalização do sufrágio
universal conhecida no último século, por exemplo, foi contrabalançada por restrições e
limitações das prerrogativas políticas dos eleitores. Disso deriva sua polêmica tese do
“bonapartismo soft”, conceito que elabora para relativizar o caráter democrático dos
regimes liberais e apontar as falsas polarizações na sua cena político-eleitoral.

Já na “Contra-história”, LosurdoSua
explora longamente a constrangedora relação dos
assinatura vale muito.
liberais
ENTENDA com a escravidão moderna, algo encontrado explicitamente em John Locke, que,
além de defender o instituto, foi acionista da Royal African Company, empreendimento
cujo maior negócio era justamente o tráfico transatlântico de africanos escravizados.

E como enquadrar John C. Calhoun, ideólogo do Sul escravocrata, que chegou a ser vice-
presidente dos Estados Unidos e cuja estátua foi removida recentemente pelo vigoroso
movimento antirracista estadunidense (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/08/derrubar-estatuas-nao-
significa-esquecer-mas-refletir-sobre-o-passado-diz-pesquisadora.shtml)?
Lord Acton, o insuspeito liberal inglês do
século 19, não tinha dúvidas quanto a considerá-lo um “campeão da liberdade”.

Também são explorados, retomando observações de “Democracia ou Bonapartismo”, o


compromisso e as simpatias que liberais como Ludwig von
(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/12/antes-consideradas-inviaveis-ideias-liberais-agora-sao-aceitas-diz-presidente-do-instituto-

mises.shtml)Mises (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/12/antes-consideradas-inviaveis-ideias-liberais-agora-sao-aceitas-diz-

presidente-do-instituto-mises.shtml) e Friedrich (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/08/quem-sao-os-libertarios-e-


anarcocapitalistas-que-pregam-o-fim-do-estado.shtml)Hayek (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/08/quem-sao-os-

libertarios-e-anarcocapitalistas-que-pregam-o-fim-do-estado.shtml) tiveram com regimes de exceção no século 20,

dos fascismos do entre guerras à ditadura militar de Pinochet


(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1112200601.htm).

Neste tópico, Losurdo tem uma reflexão bastante eficiente ao demonstrar como as
obras desses economistas austríacos são marcadas pela crítica (não defesa) da
democracia.

Assim, vale a pena lembrar que, num livro de 1927 denominado “Liberalismo segundo a
Tradição Clássica”, Mises considerou que “não se pode negar que o fascismo e
movimentos semelhantes, visando o estabelecimento de ditaduras, são cheios de boas
intenções e que sua intervenção, em dado momento, salvou a civilização”.

Já em Hayek, incomparavelmente mais denso que Mises, a crítica da democracia como


antessala do comunismo é bastante explícita na sua reflexão tardia, como em “Direito,
Legislação e Liberdade”, em que propõe como modelo político a demarquia. Que no
início da década de 1980 Hayek tenha declarado à imprensa chilena que “prefiro um
ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo” só surpreende aqueles que
não possuem intimidade com suas ideias e com a prática política destes liberais
austríacos.

Não deveria também surpreender quem hoje vê o Brasil mais uma vez combinando
liberalismo econômico com um ridículo tirano (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/04/democracia-
liberal-esta-sendo-corroida-afirma-cientista-politico.shtml). Afinal, é necessário reconhecer que nossos

primeiros liberais foram proprietários de escravos e que na República os liberais


figuraram em conspirações golpistas e no apoio à última ditadura militar.
Sua assinatura vale muito.
ENTENDA
Como já assinalamos acima, Losurdo não é o único responsável pela revisão crítica da
história do liberalismo —a rigor, esse tópico sempre fez parte do repertório de questões
trabalhadas por tradições teóricas críticas, como o marxismo.

Da mesma forma, a crítica ao socialismo, nem sempre muito iluminada


(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/08/liberais-se-mostram-avidos-por-normalizar-acoes-autoritarias-de-bolsonaro.shtml),

faz parte do escopo de problemas discutidos por liberais e conservadores. Contra


Losurdo, estes podem também ironizar suas posições políticas mais polêmicas (e que
também não gozam de minha simpatia, ao contrário), como a tentativa de reabilitação
da figura histórica de (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/12/legado-de-stalin-volta-a-inflamar-debates-na-
esquerda.shtml)Stálin (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/12/legado-de-stalin-volta-a-inflamar-debates-na-esquerda.shtml)

e de defesa do atual regime chinês.

Muito ao contrário de (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/direita-precisa-desesperadamente-ler-merquior-diz-


professor.shtml)Merquior (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/direita-precisa-desesperadamente-ler-merquior-diz-

professor.shtml), a maior parte dos liberais de hoje é incapaz de, no sentido inverso, discutir

honestamente as ideias marxistas sem o recurso à caricatura. Afinal, “Narciso acha feio
o que não é espelho.”

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